Retrovírus Humanos Endógenos: Papel Fisiológico

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Retrovírus Humanos Endógenos: Papel Fisiológico
Amélia Isabel Aleixo Miguela, Quirina Santos-Costaa, José Miguel Azevedo-Pereiraa
a) Unidade dos Retrovírus e Infecções Associadas - Centro de Patogénese Molecular;
Faculdade de Farmácia, Universidade de Lisboa e-mail: [email protected]
Resumo
Os Retrovírus Humanos Endógenos (HERVs) representam peugadas de infecções
ancestrais por retrovírus exógenos, tendo sido transmitidos verticalmente de forma
Mendeliana através da linha germinativa, compreendendo cerca de 8% do DNA. Foram
encontrados transcritos e proteínas de HERVs em praticamente todos os tecidos
humanos tanto saudáveis como doentes. Estudos sugerem papéis importantes em
diversas condições fisiológicas. Esta revisão pretende fornecer informação acerca da
importância biológica dos HERVs, enfatizando o seu papel ao nível da reprodução nos
mamíferos e citando os estudos mais recentes. Fisiologicamente, os HERVs podem
contribuir para a evolução do hospedeiro, conferir resistência antiviral contra vírus
exógenos e fornecer as condições essenciais para a formação da placenta. Os seus
transcritos parecem estar envolvidos na fusão celular que origina o sincício,
diferenciação do citotrofoblasto e supressão do reconhecimento imunitário do embrião.
Palavras-chave: Retrovírus Humanos Endógenos, fisiológicas, patológicas, papel,
reprodução
Introdução
O DNA das células dos humanos é constituído, entre outros componentes, por
sequências retrovirais completas ou degeneradas denominadas de retrovírus endógenos
(ERVs), as quais se pensa serem os remanescentes de infecções ancestrais da linha
germinativa por retrovírus exógenos actualmente extintos. A análise filogenética destas
sequências demonstrou que as integrações ocorreram numa época precoce da evolução
dos primatas, tendo as diferentes famílias de HERVs invadido o genoma humano em
vagas, a maior das quais ocorreu aproximadamente há cerca de 30 milhões de anos,
após a separação dos macacos do Novo e do Velho Mundo. O significado e as
consequências da presença destas sequências no genoma humano, pelo seu potencial
tanto fisiológico como patológico, tem sido alvo de intensa especulação e estudos.
Neste sentido a presente revisão tem como objectivo tentar responder à seguinte
questão: Qual o potencial papel fisiológico, principalmente ao nível da reprodução que
os Retrovírus Humanos Endógenos apresentam, como constituintes normais do DNA?
Retrovírus Humanos Endógenos
O genoma humano é constituído por 3 classes de sequências: genes que
codificam para proteínas e RNAs (incluindo famílias de genes e genes repetidos em
tandem), DNA repetitivo e, DNA spacer.(1) Dos cerca de 3 mil milhões de pares de
bases de DNA, quase metade encontra-se representado em sequência única ou em baixo
número de cópias, nos quais se incluem as sequências que codificam para proteínas,
intrões e DNA spacer; o restante é representado por sequências que se encontram
repetidas quer em baixo número (150-200 vezes, como o DNA que codifica para as
subunidades ribossomais) quer em múltiplas cópias que podem chegar a um milhão
(DNA minisatélite, satélite e microsatélite).(2) A maioria das sequências de DNA
repetitivo de classe intermédia é constituída por diferentes famílias de elementos
genéticos móveis, assim designados por possuírem a capacidade de se moverem no
genoma, sendo neste contexto que se encontram os Retrovirus Humanos Endógenos
(HERVs). (1,2)
Os elementos genéticos móveis constituem, portanto, cerca de 45% do genoma
humano, compreendendo dois tipos, os transposões (2,8%) e os retroelementos (42,2%,
anteriormente designados de “DNA parasita”, “DNA junk” ou “DNA egoísta” já que
aparentemente não tinham nenhuma função específica na biologia do organismo dos
seus hospedeiros).(1,3) Os retroelementos subdividem-se em dois grupos, os elementos
LTR (Long Terminal Repeat, que representam cerca de 8% do genoma humano) e os
elementos não-LTR (que representam cerca de 34% do genoma humano). (3) Os
elementos LTR incluem retrotransposões e retrovirus endógenos (ERV).(3) Embora
existam vários LTRs no genoma dos eucariotas, apenas quatro classes se encontram
representadas no genoma humano: HERV I, II, III, e MalR.(2)
A presença de retrovírus endógenos tanto no genoma humano (HERVs) como no
genoma de outros mamíferos, sugere a ocorrência de infecções ancestrais por retrovírus
exógenos, nas quais o DNA proviral foi integrado no genoma e transmitido às
sucessivas gerações durante milhares de anos, tendo sido denominados de “vírus
fósseis”.(2,4) Os HERVs representam, portanto, peugadas
de infecções retrovirais
ancestrais e, são transmitidos verticalmente através da linha germinativa, sendo
herdados pelas gerações sucessivas de forma Mendeliana.(4) Com o tempo, os HERVs
foram sujeitos a eventos de amplificação e transposição repetidos dando origem a
múltiplas cópias ou cópias únicas de provírus que se encontram distribuídas no DNA de
todas as células, constituindo na totalidade cerca de 1% do genoma humano.(4)
Estrutura
Os HERVs têm características semelhantes à dos retrovírus exógenos, como por
exemplo a estrutura genómica, sem contudo, serem infecciosos.(2,4) São constituídos por
3 genes denominados de antigénio associado ao grupo (gag), polimerase (pol) e
envelope (env), flanqueados por duas regiões LTR.(2) Os genes gag e env codificam,
respectivamente, para as proteínas da cápside retroviral (nucleocápside, cápside e
proteínas da matriz) e do envelope, enquanto que o gene pol codifica para enzimas
necessárias à replicação viral, integração e clivagem de proteínas (transcriptase reversa
– RT, ribonuclease H – RnaseH, integrase e protease).(4,5) As regiões LTR são
constituídas por sequências reguladoras fundamentais para a regulação da expressão do
gene retroviral, tais como o promotor, enhancer, sinal de poliadenilação e sítios de
ligação a factores de transcrição.(4,6)
A maioria das proteínas do envelope possui uma estrutura semelhante,
constituída por duas subunidades: de superfície (SU) e transmembranar (TM).(5) A
subunidade transmembranar integra três domínios, um com propriedade fusogénica, um
com propriedade imunossupressora o qual está conservado entre os retrovírus e, cujo
péptido sintético correspondente, CKS-17, possui diversos efeitos imunossupressores in
vitro e, por último, um domínio hidrofóbico com função de ligação da proteína à
membrana celular.(5)
Durante as várias gerações após a sua integração, vários ERVs desapareceram
do genoma dos hospedeiros, devido a recombinação homóloga e deleção entre dois
LTRs, o que resultou na substituição de um provírus completo por uma sequência LTR,
originando o grande número de LTRs solitários que se podem encontrar no genoma dos
vertebrados actuais.(4)
Embora os HERVs possuam algumas características semelhantes aos retrovírus
exógenos, foram adquirindo no decurso da evolução várias mutações, deleções e sinais
de terminação no interior de sequências codificantes, pelo que, excepto nalguns casos,
são defectivos e incapazes de produzir proteínas.(4,7) A análise do genoma humano
revelou a presença de poucos provírus com open reading frames (ORF) completas para
os genes gag, pol e env (evidenciadas pela presença de proteínas retrovirais ou detecção
das suas actividades enzimáticas nalguns tecidos humanos), ao contrário do que
acontece nalgumas espécies como os porcos e ratos, nas quais alguns retrovírus
endógenos retiveram a capacidade de transmissão infecciosa.(6,7) Para além das proteínas
retrovirais, foram encontradas nos tecidos humanos partículas tipo vírus (Virus Like
Particles, VLP), que se libertam a partir das membranas celulares mas são incapazes de
infectar novas células.(6)
Perspectiva Histórica
A maioria dos retroelementos parece estar profundamente fixa no genoma dos
primatas não sendo conhecidos alelos sem vírus.(3) A taxa de novas inserções na linha
germinativa humana encontra-se actualmente a um nível extremamente baixo,
comparativamente a fases anteriores da história evolucionária ou com a taxa noutros
mamíferos, não tendo sido documentadas actividades de transposição de HERVs ou de
endogenização de retrovirus humanos exógenos na actualidade.(3) A continuação de tais
eventos na nossa espécie, embora pouco provável, não pode no entanto ser
completamente excluída per se, uma vez que se conhecem exemplos de eventuais
processos de endogenização noutros mamíferos a decorrer presentemente, como o
MMTV (Mouse Mammary Tumor Virus), JSRV (Jaagsiekte Sheep Retrovirus), PERV
(Porcine Endogenous Retrovirus), ALV (Avian Leukemia Virus) e FeLV (Feline
Leukemia Virus), dos quais existem estirpes endógenas e exógenas.(3)
Os HERVs das Classes I e III são os mais antigos encontrando-se presentes
através da linhagem dos primatas, enquanto que os HERVs da Classe II têm estado
activos mais recentemente em termos evolucionários, como se pode observar pelos
provírus da família HERV-K (HLM-2) os quais são específicos dos humanos.(3,7) Sabese que esta família possui homólogos nos macacos do Velho Mundo mas não nos
macacos do Novo Mundo, pelo que a família deve ter invadido inicialmente o ancestral
do genoma humano entre o período de divergência dos humanos dos Macacos do Velho
Mundo e dos humanos dos macacos do Novo Mundo, sendo geralmente aceites como
tal os 30 milhões de anos.(8) Os vírus da família HERV-K têm vindo a integrar-se
continuamente até à actualidade a uma taxa aproximadamente constante, como se pode
observar pelo facto de vírus desta família estarem activos antes e após a separação
evolucionária dos humanos e chimpanzés, àcerca de 5 milhões de anos e, alguns loci
serem mesmo exclusivos dos humanos indicando a sua integração após a divergência
destas duas linhagens.(3,8) O provírus da família HERV-K mais recente, HERV-K113,
foi identificado como tendo menos de 200 000 anos.(3)
Através da análise da evolução dos mamíferos consegue-se observar os vários
padrões de aquisição de parasitas genéticos específicos das várias espécies. (9) Por um
lado, é nos mamíferos placentários (euterios) que se observa a expansão em larga escala
destes elementos, o que aliado ao facto de cada linhagem placentária ter a sua versão
peculiar destes elementos, a qual por sua vez, se distingue das das outras espécies
placentárias, sugere que a invenção da trofectoderme, da placenta e do nascimento se
encontram associados ao sucesso destes mamíferos.(9) Por outro lado, as transições que
ocorreram desde a evolução inicial dos mamíferos placentários não-símios, passando
pela divergência dos macacos do Novo Mundo, ao desenvolvimento dos macacos
Africanos e a emergência dos humanos dos grandes primatas Africanos, podem ser
vistas como eventos de colonização por ERVs distintos no cromossoma Y.(9) Contudo,
curiosamente, o cromossoma Y dos marsupiais e monotremos (mamíferos que põem
ovos) permaneceu pequeno e não mostra os mesmos eventos colonizadores por ERVs,
indicando, mais uma vez, que este processo de colonização está associado às espécies
placentárias.(9)
Todos os HERVs, específicos do genoma dos humanos, pertencem à subfamília
HML-2 (família HERV-K).(6) Este é um dos maiores grupos de ERVs encontrado no
genoma humano, e é representado por cerca de 170 provírus completos e 2000 LTRs.(6)
Actualmente considera-se que a superfamília HERV-K representa um dos HERVs mais
activos, sendo mesmo capaz de produzir partículas virais.(4)
Papel Fisiológico: a importância biológica dos HERVs
A expressão dos HERVs foi encontrada em praticamente todos os tecidos
humanos e órgãos, incluindo a placenta, tecidos embrionários, vários tumores, pulmões
e rins.(6)
Estando os HERVs presentes no genoma humano há um tempo considerável
(cerca de 30 milhões de anos), transmitidos através de gerações sucessivas pela linha
germinativa e tendo sido sujeitos a múltiplos eventos de transposição e amplificação
eventualmente resultando na modificação/modulação da expressão genética, pode-se à
partida inferir que estes conferiram algum tipo de vantagem selectiva para o hospedeiro,
contribuindo para a sua evolução.(2,6)
Contribuição para a evolução do hospedeiro
O genoma de uma célula eucariota está bastante distante de ser uma estrutura
fixa e imutável, uma vez que pode albergar várias sequências que se movem de um local
num cromossoma para uma posição completamente diferente: elementos transponíveis.
(4)
A presença de um número considerável destes elementos inseridos nos cromossomas
dos mamíferos teve, obviamente, um profundo impacto na forma e plascticidade dos
genomas.(3) Os rearranjos genómicos causados pelas sequências homólogas provirais
distribuídas pelo DNA deram origem a inúmeras variações genéticas que não
conseguiriam ser suportadas apenas por mutações e, nas quais os poderes
evolucionários da selecção e adaptação puderam trabalhar.(3,4)
Da análise dos genes humanos pode-se observar que os elementos móveis,
incluindo os retroelementos, se encontram sobre-representados nos mRNAs dos genes
que se encontram em rápida evolução.(3) Estes genes encontram-se envolvidos sobretudo
na imunidade, respostas a stress e a estímulos externos, o que, por um lado, demonstra
um papel activo por parte destes elementos na diversificação e expansão das famílias de
genes, aumentando a velocidade da evolução nos humanos e outros mamíferos.(3) Por
outro lado, uma explicação alternativa para esta observação pode ser a maior
redundância dos genes em rápida diversificação com um nível de tolerância aumentada
para inserções.(3)
Modulação da expressão genética
Como referido anteriormente, os genes retrovirais que foram integrados no
genoma são flanqueados por short direct repeats de DNA do hospedeiro e sequências
LTR com cerca de 500-600 nucleótidos.(4) Estes LTRs podem influenciar os genes
vizinhos, interagindo com a expressão celular proteica, uma vez que possuem elementos
reguladores transcricionais tais como enhancers, promotores, elementos de resposta a
hormonas e sinais de poliadenilação.(4,10) Geralmente, os LTRs actuam como promotores
complementares menores, levando a uma expressão considerável apenas em
determinados tecidos, principalmente na placenta.(3) Contudo, para alguns genes
celulares, os retroelementos podem ser o único promotor. (3) A influência na expressão
proteica pode ser demonstrada por proteínas cujos genes estão ligados a LTRs como a
amilase salivar (cuja expressão do gene é mediada pelo HERV-E, o qual se integrou
após a divergência dos Macacos do Velho Mundo da linhagem ancestral dos primatas),
apolipoproteína-C1 (da qual cerca de 15% dos transcritos hepáticos derivam de LTRs),
enzima galactosiltransferase (presente no cólon e intestino delgado humano, cujo gene
responsável pela sua produção possui um promotor dominante pertencente a um LTR da
família ERV-L) ZNF80, fosfolipase A2-L, entre outros.(3,4,10)
Resistência antiviral
Um dos efeitos da endogenização retroviral que se pode considerar favorável é a
resistência parcial à infecção por outros vírus exógenos patogénicos ou vírus
semelhantes através da interferência com os receptores.(3) Esta protecção pode conferir
aos portadores de um provírus na linha germinativa menos patogénico ou apatogénico
uma vantagem selectiva que pode resultar na fixação alélica e erradicação do
competidor exógeno a longo prazo.(3)
Na Gâmbia e no Quénia foram identificadas prostitutas que após exposição
repetida ao HIV permaneceram não infectadas e seronegativas.(4) Sugeriu-se que a
aparente resistência à infecção pelo HIV seria devida aos linfócitos T citotóxicos (CTL)
restrictos do MHC (Complexo Major de Histocompatibilidade) classe I, HLA-B35 e
HLA-A2/HLA-B18, os quais podem ser encontrados nos Gâmbianos e Quenianos,
respectivamente.(4) A resposta imunitária à infecção pelo HIV caracteriza-se por uma
forte resposta dos CTL específica para o HIV, onde os CTLs específicos dos vírus
reconhecem antigénios na forma de péptidos processados (8 a 10 aminoácidos em
comprimento), os quais se encontram ligados às moléculas MHC classe I na superfície
das células apresentadoras de antigénios.(4) Neste contexto, dados recentes revelaram
semelhanças entre sequências de péptidos dos CTL HIV e certas regiões do HERVK10.(4) Consequentemente nalguns casos a exposição prévia aos péptidos HERV pode
potencialmente tornar imune determinados indivíduos, embora este argumento não
esclareça o facto de algumas mulheres sofrerem seroconversão após uma redução na
actividade sexual.(4)
A infecção pelo vírus HIV-1 numa célula permissiva resulta na sua integração
no genoma semelhante ao que acontece com os retrovírus endógenos. A integração
associada à posterior modificação do ambiente celular de forma a potenciar a expressão
viral vai afectar os retrovírus endógenos existentes no genoma da célula.(11) A proteína
Rev do HIV-1 reconhece algumas sequências de HERVs, fornecendo desta forma uma
exportação nuclear para os transcritos dos HERVs em células que estejam infectadas. (11)
O facto de ter sido detectada uma maior expressão de HERVs em indivíduos infectados
com HIV-1 e ainda de as células infectadas exporem à sua superfície antigénios tanto
virais como self, levou Garrison e seus colegas a sugerirem que alguns destes antigénios
seriam provenientes de HERVs e que os mesmos poderiam desencadear a resposta das
células T citotóxicas CD8+ (característica da infecção pelo HIV-1) contra os próprios
HERVs.(11) Os investigadores sugeriram ainda um potencial benefício desta resposta no
controlo da carga viral, demonstrando uma correlação entre a resposta T CD8+ antiHERV e a restrição da virémia.(11) Um dos maiores desafios para o sistema imunitário
no controlo eficaz e a longo prazo da replicação retroviral do HIV-1 é a rapidez da
resposta a variantes virais emergentes.(11) Uma vez que os HERVs possuem as mesmas
sequências em todas as células, uma resposta imunitária específica anti-HERV pode ter
como alvo qualquer célula infectada pelo HIV-1 independentemente da sua sequência
viral.(11) Desta forma, os HERVs podem ser um alvo efectivo para a resposta imunitária
eliminar as células infectadas com HIV-1, constituindo fortes candidatos para a sua
inclusão num novo género de vacina contra este vírus.(11)
Péptido Imunossupressor
As proteínas do invólucro retroviral contêm uma região com actividade
imunossupressora selectiva (ISP, péptido imunossupressor), in vivo e in vitro,
inicialmente definida na região TM (p15E) do vírus da leucemia murina Moloney.(12) O
local imunossupressor activo foi mimetizado por uma sequência sintetizada de 17
aminoácidos (CKS-17) que é homóloga a uma região altamente conservada da p15E,
tendo-se observado que a adição de péptidos sintéticos desta região afecta a função das
células T e fagocíticas.(12) Embora o mecanismo pelo qual esta região é
imunossupressora não se encontre devidamente esclarecido, sabe-se que a sequência
CKS-17 afecta os níveis de cAMP e a actividade das proteínas cinases dependente de
cAMP, a qual, por sua vez, pode afectar a função dos linfócitos.(12)
A presença de um ISP pode ser vantajosa para uma célula infectada por um
vírus, em termos de se proteger contra um ataque imunológico, mas pode também ser
igualmente importante para o hospedeiro.(4) Em exemplo é o HERV-R (ERV3) o qual se
encontra amplamente expresso nas células trofoblásticas resultando em elevadas
concentrações da proteína env (~65 kDa) nos sinciciotrofoblastos.(4) O potencial
imunossupressor deste HERV e a natureza fusogénica do tecido placentário sugere o
seu possível envolvimento na função placentária normal e na protecção do feto em
desenvolvimento da resposta imunológica materna (uma vez que este herda metade dos
antigénios a partir do pai).(4) Outro possível papel para os HERVs durante o
desenvolvimento embrionário é a alteração do padrão de expressão dos genes através da
modificação das velocidades de desenvolvimento de diferentes partes do embrião.(4)
HERVs no Desenvolvimento Placentário
A placenta é um órgão autónomo e transitório cuja função é alimentar e oxigenar
o feto/embrião durante a vida intrauterina, entre outras. (13) Em várias espécies de
mamíferos, incluindo o Homo sapiens, a fusão das células trofoblásticas
(citotrofoblastos) numa camada multinucleada denominada sinciciotrofoblasto constitui
um processo fundamental na morfogénese da placenta e implantação do embrião.(13)
Nos anos 80 foi sugerido por alguns virologistas um potencial papel para os
HERVs na formação da placenta, a partir da observação de que determinados vírus
possuíam a capacidade de fundir células formando um tecido confluente multinucleado,
o qual, como referido anteriormente, é característico da placenta dos mamíferos.(10)
A detecção da libertação de partículas tipo retrovírus (RVLPs) a partir da
membrana plasmática basal das vilosidades do sinciciotrofoblasto, em placentas de
termo, por microscopia electrónica, levou à suspeita de que a placenta poderia ser um
local de expressão de HERVs.(5) A purificação destas partículas forneceu uma evidência
definitiva da origem HERV das partículas, das quais se isolaram sequências de várias
famílias.(5)
Os estudos de placentas de vários mamíferos, realizados na tentativa de
caracterizar as partículas retrovirais libertadas bem como a sua contribuição para a
reprodução, levou à distinção das proteínas do invólucro do
ERV-3, HERV-W e
HERV-FRD.(10,12)
A proteína do invólucro do ERV-3 (HERV-R) foi a primeira proteína produzida
por retrovírus endógenos à qual foi atribuída uma função fisiológica. (12) O mRNA
contendo a sequência env deste retrovírus foi encontrado em vários tecidos como o
cortex adrenal, glândulas sebáceas e testículos, centrando-se os maiores níveis de
expressão no sinciciotrofoblasto.(5,12) O retrovírus ERV-3, com uma única cópia, foi
identificado e caracterizado por O’Connell e seus colegas, que o mapearam no
cromossoma 7.(10,12) O seu genoma integra codões de terminação in-frame nos genes gag
e pol e, embora no gene env esteja uma grande ORF, a mesma é terminada
prematuramente na região transmembranar, truncando o domínio hidrofóbico que liga a
proteína à membrana celular, originando, portanto, uma molécula citoplasmática
solúvel.(5,12) O papel sugerido para esta proteína não envolve, contudo, as propriedades
imunossupressora nem de fusão intercelular, já que cerca de 1% em 150 Caucasianos
saudáveis são homozigóticos para um codão stop prematuro no gene env, o que resulta
numa proteína truncada e provavelmente não funcional na qual se encontram ausentes o
péptido de fusão e o domínio imunossupressor.(5) A acção proposta por Rote e colegas
para o ERV-3 env é ao nível da diferenciação celular e hormonal.(5,10,12) Num modelo
estudado com células de coriocarcinoma BeWo, os níveis de RNA e de proteína
aumentaram durante a diferenciação induzida pela forskolina.(5,12) A expressão estável
do ERV-3 env provocou alterações características da diferenciação do trofoblasto, que
incluem inibição do crescimento, alteração na morfologia e aumento da produção de
gonadotropina coriónica humana (hCG).(5) A análise da sobre-expressão do ERV-3 env
nas células BeWo demonstrou uma alteração nos níveis de proteínas reguladoras do
ciclo celular, com redução de Ciclina B (regulador positivo da fase G2/M) e aumento de
p21 (regulador negativo da fase G1/S), resultando numa capacidade proliferativa
reduzida correlacionada com paragem do ciclo celular.(5,12) Desta forma, pensa-se que
este retrovírus se encontra envolvido no início da produção da β-hCG e sujeita o
trofoblasto à paragem do ciclo celular.(12)
No ano 2000 dois investigadores independentes, McCoy e Mallet, e seus
respectivos colegas, identificaram uma família de retrovírus endógenos que se expressa
quase exclusivamente na placenta, mais concretamente no sinciciotrofoblasto: HERVW.(13,14) Este retrovírus possui várias regiões gag, pol e env dispersas pelo genoma
humano, estando identificadas três ORF para as mesmas nos cromossomas 3, 6 e 7,
respectivamente.(12) A ORF da região env encontra-se up-regulated durante a
diferenciação e fusão do trofoblasto, tendo sido demonstrada a produção de uma
proteína correspondente denominada sincitina.(5,10,12)
Em 2003, Mallet e seus colegas evidenciaram o papel da sincitina na fusão das
células trofoblásticas, através da observação de que a inibição da expressão desta
proteína reduzia tanto o número como o tamanho dos sincícios formados durante a
cultura celular de citotrofoblastos e ainda, que a expressão do mRNA HERV-W env e
glicoproteína era colinear com a diferenciação primária do citotrofoblasto (Figura 6) e
regulada por um factor regulador da diferenciação do trofoblasto (cAMP).
(5,15)
Os
processos celulares que levam à formação do sincício estão associados a um aumento
concomitante do nível intracelular de cAMP, o qual é necessário à sintese de várias
proteínas específicas do trofoblasto e hormonas.(15) No estudo realizado por Mallet e
seus colegas, foi observada a estimulação da expressão do HERV-W mRNA e proteína
correspondente pelo cAMP.(15)
Para além da formação da proteína sincitina, a expressão do retrovírus HERV-W
parece estar associada a outros aspectos da diferenciação, como a produção de mRNA
hCG e correspondente hormona.(12,15)
A descoberta do receptor celular para a proteína sincitina, levou à proposta de
um mecanismo para a fusão celular mediada por esta proteína. O receptor atribuído à
proteína sincitina é o transportador de aminoácidos ASCT2, o qual transporta
aminoácidos neutros como a alanina, serina e cisteína e, é dependente de sódio.(16) Este
transportador é também denominado de transportador de aminoácidos B0 ou receptor de
retrovírus de tipo D (RDR).(16) Por um lado, a expressão funcional deste receptor foi
detectada predominantemente na membrana basal do sinciciotrofoblasto, o que coincide
com a localização do ligando da sincitina.(5,16) Por outro lado, foi demonstrada em
estudos a fusão entre as células do citotrofoblasto com células que expressam este
receptor, bem como a alteração da expressão e função do receptor durante a formação
do sincício.(5) Existem, contudo, outros receptores ou co-receptores potenciais para a
HERV-W Env no sinciciotrofoblasto, embora ainda não tenham sido feitos estudos
exaustivos para a caracterização dos mesmos.(12) O facto de a sincitina se ligar a um
receptor por forma a exercer a sua função, sugere também um potencial papel na
protecção contra a infecção por retrovírus exógenos através da interferência com
receptores.(5) Ponferrada e seus colegas demonstraram que a expressão da HERV-W
Env numa linha celular canina reduziu substancialmente a infectividade pelo Spleen
Necrosis Virus (SNV), retrovírus exógeno que utiliza o receptor RDR para entrar nas
células.(17) A presença da região imunossupressora conservada desta proteína aponta
para um terceiro papel da sincitina: na tolerância imunitária materna ao feto, ao
contrário do que acontece com o ERV-3.(5) Alguns investigadores procuraram
evidências da expressão anormal de sincitina em gravidezes patológicas, as quais serão
abordadas posteriormente na revisão.
Em 2003, um estudo que envolveu o screening do genoma humano na tentativa
de identificar todas as potenciais ORFs completas do gene env, no qual apenas 16 destas
regiões foram descobertas, levou à identificação do gene env pertencente ao HERVFRD.(5,12) Este novo gene apresenta elevados níveis de expressão na placenta, como
acontece com os ERV-3 e HERV-W, nomeadamente ao nível das células do
citotrofoblasto primário.(5) A proteína produzida é estruturalmente semelhante à
produzida pelo HERV-W e outras proteínas retrovirais clássicas do invólucro, tendo
sido denominada de sincitina 2. À semelhança da sincitina, a proteína sincitina 2 possui
propriedades fusogénicas contudo, apresenta diferentes tipos de especificidade celular
para a fusão e o bloqueio do receptor da sincitina RDR não produziu qualquer efeito na
actividade fusogénica do HERV-FRD Env, o que sugere a utilização de um receptor
diferente por parte desta nova proteína.(5) O receptor identificado para a sincitina 2,
MFSD2, é membro
de uma
família
contendo
cerca de 10-12
proteínas
transmembranares, cuja principal função se pensa ser o transporte de moléculas
necessárias à homeostasia da placenta.(18)
A fusão intercelular verificada durante a formação da placenta é um processo
com várias fases, que necessita de, entre outros mecanismos, adesão intercelular e
aproximação das membranas por uma proteína de fusão.(12) As proteínas sincitina,
sincitina 2 e ERV-3 env desempenham, desta forma, funções diferentes mas
essencialmente complementares no processo de formação da placenta.
Conclusão
No decurso da evolução, o genoma humano acumulou um número considerável
de inserções no DNA ao acaso. Uma das fracções que tem merecido especial atenção é a
constituída pelos retrovírus endógenos, os quais representam infecções ancestrais por
retrovírus exógenos que invadiram a linha germinativa e se perpetuaram no genoma
humano através da sua transmissão às gerações seguintes de forma Mendeliana. Estudos
indicam que esta integração ocorreu há cerca de 30 milhões de anos e, desde então, as
sequências retrovirais têm sofrido eventos de amplificação originando o grande número
de sequências distribuídas por todo o genoma. Com o mapeamento do genoma humano
verificou-se que os HERVs representam cerca de 8% do DNA.
A análise filogenética do genoma dos vertebrados permitiu distinguir famílias
destas sequências específicas de determinadas espécies com consequente extrapolação
do período evolucionário em que ocorreu a integração, como por exemplo alguns
provírus da sub-família HERV-K são específicos dos humanos tendo integrado,
portanto, o genoma humano há cerca de 5 milhões de anos. A taxa de inserção na linha
germinativa humana encontra-se presentemente a um nível extremamente baixo, não
podendo ser de facto excluída uma vez que se conhecem processos de endogenização
activos noutros mamíferos.
O estudo da expressão dos HERVs levou à sua detecção em praticamente todos
os tecidos humanos e órgãos, incluindo a placenta, tecidos embrionários e diversos
tumores, pelo que vários investigadores iniciaram estudos sobre as implicações
biológicas da herança dos HERVs, tendo surgido duas linhas independentes de
investigação, uma sobre o potencial patológico e posteriormente outra sobre o potencial
fisiológico.
O papel fisiológico dos HERVs pode ser demonstrado pela modulação da
expressão genética, indução de resistência antiviral, actividade imunossupressora e
interferência no desenvolvimento placentário. É ao nível do desenvolvimento
placentário que os HERVs desempenham um importante papel fisiológico, no qual
sobressaem três tipos de retrovírus com níveis de expressão acentuados ao nível da
placenta: ERV-3, HERV-W e HERV-FRD. Estudos sobre estes retrovírus endógenos
revelaram a associação entre o ERV-3 e a diferenciação do trofoblasto e produção da
hormona hCG, HERV-W e a produção da proteína sincitina a qual se encontra
associada à fusão das células trofoblásticas com formação do sincício, produção da
hormona hCG e indução de tolerância imunitária materna ao feto e, HERV-FRD e a
produção da proteína sincitina-2 a qual possui propriedades fusogénicas. O facto de os
HERVs poderem modular a expressão de genes aponta ainda para outro potencial papel
no desenvolvimento embrionário, através da modificação das velocidades de
desenvolvimento das diferentes partes do embrião, por alteração do padrão de expressão
de genes.
A
contínua
análise
do
genoma
dos
mamíferos
juntamente
com
o
desenvolvimento de estratégias de identificação e análise filogenética dos retrovírus
endógenos contribuiu em larga escala para o aumento do conhecimento acerca dos
HERVs. À medida que aumenta o conhecimento sobre estes elementos, vai aumentando
o conhecimento sobre a evolução dos mamíferos, nomeadamente do Homo sapiens
sapiens, com descoberta de novos exemplos acerca do carácter duplo desta íntima
relação (fisiológico/patológico), na qual os HERVs perderam a capacidade de
sobreviver independentemente, mas a sua remoção do genoma resultaria na extinção
humana.
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