19 A CONSTITUIÇÃO DAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS EM POÇOS DE CALDAS (MG): Pluralidade, Identidade e Experiência Religiosa1 Gustavo Reis Machado (1); Alexandre da Costa (2) [email protected]; [email protected] (1) Arquiteto e Urbanista (PUC Minas) e Graduando em Geografia (IFSULDEMINAS). (2) Mestre em Ética e Professor na PUC Minas campus Poços de Caldas. Introdução O Brasil é um país marcado por um pluralismo religioso, pois nele se encontra uma diversidade religiosa muito rica, que auxilia na construção de uma cultura diversificada e oriunda de inúmeras vertentes A Constituição do Brasil, dá o direito a qualquer individuo acreditar ou não em Deus, e também o direito de praticar livremente sua opção religiosa, assim sendo, ninguém tem o direito de criticar a forma religiosa alheia, demonizando seus cultos religiosos e seus ritos. Esta pesquisa objetivou compreender e analisar a constituição religiosa afrobrasileira na cidade de Poços de Caldas, através do contato direto com as lideranças religiosas e seus seguidores, transferindo a esse texto a ideologia e formação religiosa dos entrevistados que compartilham abertamente suas experiências, fazendo presente o orgulho de suas origens e/ou os fatos que levaram a crer nessa manifestação religiosa. Pautado pela descrição in loco, formando uma ponte entre o pesquisador e a etnografia, foram visitados e observados cerimônias, festas, ensaios, atividades cotidianas e também realizadas entrevistas com os frequentadores e os lideres religiosos. Estas entrevistas foram concebidas de duas formas, informal e formal, sempre buscando entender e compreender as experiências dos indivíduos, e revelando a formação de uma rede de vínculos significativos nos espaços de devoção que mantêm interações com os terreiros. 1Esse texto foi concebido a partir dos resultados da pesquisas realizados para o projeto de iniciação científica, financiado pelo Fundo de Incentivo a Pesquisa da PUC Minas. A fim de compreender como se constituíram as religiões afro-brasileiras em Poços de Caldas, tendo como fundamento as tradições históricas. A pesquisa foi realizada no âmbito da Ciência da Religião, na área de concentração de Religião Comparada e perspectivas de Diálogo, na linha de pesquisa Pluralidade e Diálogo. Anais da 4ª Jornada Científica da Geografia UNIFAL-MG 30 de maio a 02 de junho de 2016 Alfenas – MG www.unifal-mg.edu.br4jornadageo Este trabalho se pautou pela descrição in loco (pesquisa participante/etnografia): observação de cerimônias, festas, ensaios, atividades cotidianas e realização de entrevistas (história oral), buscando apreender as experiências dos indivíduos, não simplesmente como participantes de instituições particulares, mas também seu trânsito por uma rede formada por vínculos significativos nos espaços de devoção que mantêm vínculos com os terreiros; espaços de referências para os cultos afro-brasileiros por serem considerados domínios de entidades espirituais (matas, cachoeiras etc.) e onde se realizaram cerimônias e festas religiosas, academias de capoeira, escolas de samba e blocos carnavalescos, instituições culturais e acadêmicas. As informações foram registradas por meio de tecnologia digital. Por fim, a pesquisa documental foi realizada nos acervos de bibliotecas, centros culturais, museus e outras instituições vinculadas de algum modo ao tema das religiões afro-brasileiras. O desenvolvimento da cidade de Poços de Caldas e das suas raízes religiosas Existem algumas poucas publicações de cunho antropológico, e sociológico e geográfico sobre expressões culturais e religiosas relacionadas à presença da cultura negra na cidade de Poços de Caldas, ainda assim, nenhuma especificamente sobre religiões afro-brasileiras. Há uma lacuna neste sentido, e pretende-se, com este estudo diminuir este hiato. Também se pode dizer que têm aumentado a procura e a oferta dessas religiões nas cidades, principalmente pelo crescimento dos “terreiros” e religiosos adeptos nas Minas Gerais. No entanto, não é possível confirmar nossa afirmação em números exatos porque os órgãos de pesquisa nacional, como por exemplo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), não consideram os fenômenos de dupla pertença, como é o caso dos adeptos das religiões afrobrasileiras. Como umas das vertentes fomentadoras da formação cultural de um povo, a religião vem auxiliar na caracterização do ser humano e na consciência de si mesmo. As influências afro constituem uma das matrizes religiosas brasileiras e estão presente em sua maioria na diversidade de crenças e rituais. A religião afro-brasileira se faz presente na cidade de Poços de Caldas, e por volta de 1944 registram-se os primeiros cultos de Umbanda, trazidos por Vergílio Fiunza, do Rio de Janeiro, e seguido pela abertura do primeiro Núcleo Umbandista – Centro Espírita Nossa Senhora Auxiliadora – pelo ‘filho de santo’ João Avelino de Melo. No processo de formação do povoado, a vida religiosa centrava-se na Igreja de Bom Jesus da Cana Verde, hoje a Igreja de Santo Antônio, localizada à Rua São Anais da 4ª Jornada Científica da Geografia UNIFAL-MG 30 de maio a 02 de junho de 2016 Alfenas – MG www.unifal-mg.edu.br4jornadageo 20 Paulo, a primeira a ser construída. A paróquia de Poços de Caldas foi criada a 24 de Dezembro de 1874, pela lei 2085, com a denominação de Nossa Senhora da Saúde das Águas de Caldas. A tradição cristã católica teve muita influência na historia da cidade de Poços de Caldas. Partindo de uma compreensão da institucionalização das religiões afrobrasileiras, podemos dizer que a presença e o crescimento das culturas afrobrasileiras e indígenas, em um município tradicional de Minas Gerais, possivelmente possibilitaram outros significados existenciais que se constituíram em outras experiências religiosas dos seus moradores. Podemos citar como exemplo, segundo exposto, a presença das culturas afro-brasileiras e indígenas na cidade de Poços de Caldas na tradicional festa cultural denominada como Congada2, ou para os indígenas o Caiapós. A chamada Congada chegou a Poços por meio do negro Herculano Cintra que, pela devoção a São Benedito, iniciou um movimento de construção da primeira igreja do santo, no ano de 1902: (...) a Câmara Municipal naquela época autorizou Herculano de Araújo Cintra a edificar uma capela para São Benedito na praça do cemitério velho (...). A primeira Festa de São Benedito que se tem documentado data de 1904 e realizada no dia 13 de maio, já com os grupos culturais: congada, moçambique e caiapós. (Fonseca, 2004, p.10) É interessante observar que os devotos do Congo em Poços de Caldas afirmam-se como católicos. No entanto, partindo das vivências religiosas herdadas de tradições africanas e indígenas, tais como: os rituais, cultos e processos específicos de iniciação – o congado tornou-se uma prática religiosa que tem características que se identificam com a tradição católica e outras, se distanciam. Ao mesmo tempo, que as tradições afro-brasileiras e indígenas foram aos poucos se introduzindo na cidade de Poços de Caldas, seu crescimento enquanto cidade – urbanização, comércio e turismo hidromineral – foi também prosperando. Assim, cogitamos que a modernização da cidade de Poços de Caldas, com sua urbanização e a tecnologia social, foram importantes para que as pessoas começassem a esvaziar-se da experiência religiosa (mundo do sagrado), assumindo a vida secular. De acordo com Beger e Luckmann (2003), há uma forte evidencia que na modernização das culturas, as crenças religiosas tradicionais se tornaram vazias de sentido, não somente nos vastos setores da população, como também nos pertencentes de determinadas igrejas. É interessante notar que esse fenômeno se deu 2 O congado, também chamado de congo, mescla cultos católicos com africanos num movimento sincrético. Em Poços de Caldas, os ternos de Congos (grupos) se apresentam acompanhados pelos de Caiapós. Esta característica torna a celebração especial na cidade, já que em poucas regiões do Brasil se observa a participação de bailantes (pessoas que comemoram o dia santo através da dança dramática) que representam a figura do índio em comemorações marcadas pela cultura negra. Anais da 4ª Jornada Científica da Geografia UNIFAL-MG 30 de maio a 02 de junho de 2016 Alfenas – MG www.unifal-mg.edu.br4jornadageo 21 pelas características peculiares que a modernidade possui, tais como: o imperativo da racionalidade (científica), a idéia de autonomia do sujeito e a diferenciação das instituições, como destaca Hervieu-Léger (2008). A modernização urbana e a pluralismo religioso O município de Poços de Caldas ainda possui certas características que foram/são importantes para o seu desenvolvimento urbano. Em primeiro lugar, destacamos a estância hidromineral, a partir do qual muitas pessoas visitam o município em busca de tratamento de saúde através das águas sulfurosas. E dentro deste aspecto se desenvolve muitas pesquisas científicas. Os personagens de maior destaque foram os doutores Mário de Paiva, Orozimbo Corrêa Netto e Antônio de Oliveira Fabriano, que escreveram tratados sobre as águas medicinais de Poços de Caldas, e Mário Mourão, líder político, médico consagrado, cuja bagagem literária inclui vários estudos sobre Crenoterapia. Nesse sentido, temos uma característica fundamental da modernidade que é a cientificidade com seu imperativo racional (HERVIEU-LÉGER, 2008). Além disso, a cidade de Poços de Caldas cresceu também a partir da imigração italiana. Como ocorre em cidades do interior mineiro, há uma forte presença de famílias oligárquicas proprietárias das fazendas e hegemônicas por décadas na política predominante do município. E, foi exatamente de uma fazenda, que se iniciou o processo de urbanização; urbanização esta, que, além de outros traços, foi marcada por uma forte influência do catolicismo tradicional. Assim, é possível identificar outra característica da modernidade, que é o próprio processo de urbanização com suas redes sociais (HERVIEU-LÉGER, 2008). Ainda, neste processo, outras expressões religiosas, como dito acima, também foram criando seus espaços, tais como: as tradições Afro-brasileira, o Kardecismo e o protestantismo. Por fim, identificamos outra característica da modernidade que é a pluralidade de crenças, concomitante a isto, a idéia de autonomia e diferenciação das instituições (HERVIEU-LÉGER, 2008). Ao mesmo tempo, a sociedade poços-caldense, na medida em que sua cidade foi se tornando mais urbanizada e moderna, presenciou o advento de uma sociedade laica. Nesse sentido, a religião que antes era hegemônica (católica) agora passa para o território do indivíduo, como destaca Berger e Luckmann (2003). Com a modernização da cidade de Poços de Caldas, a experiência presente nas tradições religiosas hegemônicas, passaram não ter mais um significado social e existencial, como em outras épocas. Podemos dizer que é no “mundo da vida Anais da 4ª Jornada Científica da Geografia UNIFAL-MG 30 de maio a 02 de junho de 2016 Alfenas – MG www.unifal-mg.edu.br4jornadageo 22 cotidiano” 3 (Lebenswelt), que as pessoas realizam suas atividades significativas juntamente com outras pessoas. No entanto, destaca Berger (1985, p.36) “toda sociedade está empenhada na empresa nunca completada de construir um mundo de significado humano”. Com a urbanização e a construção do mundo moderno, as pessoas integradas ao sentido cientifico, racional e tecnológico, têm buscado modos inteiramente seculares de cosmificação (sensusreligiosus). No caso de Poços de Caldas, as religiões afro-brasileiras possivelmente apareceram nesse contexto, ou seja, de mudanças e transições sociais. Com isso temos outras constituições sociais de sentido humano que possibilitaram aberturas e movimentos em direção às outras tradições. As influências do catolicismo são perceptíveis na maioria dos Terreiros visitados, que, contrastando com as raízes africanas, resulta em um sincretismo, bem com na tendência pela busca da cura física e espiritual. É notório verificar no Brasil – que já não é um país de hegemonia religiosa – como destaca Prandi (2000), pouco mais de um quarto população adulta (26%) já teria passado por uma “experiência de conversão” religiosa. Isso é que provavelmente aconteceu com diversos poços-caldenses, que com a crise de sentido migrassem para outras denominações locais (afro-brasileiras). É interessante o estudo da socióloga francesa Daniele Hervieu-Léger, que faz uma distinção entre o peregrino (que é o religioso em movimento) e convertido (figura exemplar do crente). Porque muitos adeptos das religiões tradicionais são também, ao mesmo tempo, adeptos das afro-brasileiras. Para Hervieu-Léger (2008) o convertido é aquele que é marcado por uma identidade religiosa, podendo assumir três modalidades diferentes: aquele que muda totalmente de religião, aquele que se integra a uma tradição religiosa de forma inaugural e aquele que se re-afirma ou re-afilia-se a mesma tradição. Por meio dessas categorias (peregrino e convertido) é que fundamentamos nossa compreensão das experiências religiosas das tradições afro-brasileiras em Poços de Caldas. Porque parece que a busca ou o querer dar um sentido existencial – uma nova constituição social de sentido humano – por meio destas experiências, seja mais significativo que pertencer a uma determinada tradição religiosa. Talvez seja esta uma das razões para um grande transito nestas tradições, mas sem uma identificação formal. O termo Lebenswelt (mundo-da-vida) escrito pelo filósofo Edmund Husserl (1859-1938) em “A crise das ciências européias e a fenomenologia transcendental” (1934-1937). O mundo-da-vida na concepção de Husserl é o mundo das experiências originárias ou pré-científicas que são evidentes por si mesmas e trazer uma saber (sentido) universal. 3 Anais da 4ª Jornada Científica da Geografia UNIFAL-MG 30 de maio a 02 de junho de 2016 Alfenas – MG www.unifal-mg.edu.br4jornadageo 23 Bibliografia BERGER, Peter L. & LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade. Petrópolis: Vozes, 2003. BERGER, Peter L. O Dossel Sagrado – Elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985. FONSECA, Alexandre. 100 anos de registros históricos da Festa de São Benedito. Poços de Caldas – MG: Divisão de Cultura da Secretaria Municipal de Educação, 2004. HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Petrópolis: Editora Vozes LTDA, 2008. PRANDI, Reginaldo. De africano a afro-brasileiro: etnia, identidade, religião. Revista da USP,São Paulo, n. 46, p. 52-65, jun./ago. 2000. Anais da 4ª Jornada Científica da Geografia UNIFAL-MG 30 de maio a 02 de junho de 2016 Alfenas – MG www.unifal-mg.edu.br4jornadageo 24