ARTIGO DE REVISÃO As Arritmias Cardíacas e suas Manifestações Clínicas Cardiac Arrhythmias and Clinical Man ifestations Eduardo Corrêa Barbosa Disciplina / Serviço de Cardiologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro Endereço para correspondência: Dr Eduardo Barbosa Rua Alzira Cortez 5/ 101 Botalogo Cep: 22260-050 - Rio de Janeiro, RJ. "Só com profunda compreensão do problema do Universo pode haver um progredir." Albert SWCHEITZER Munique, 1951 Tal como aconteceu com outros ramos da Çardiolagia, a estudo das arritmias impôs-se como uma subespecialidade em função do desenvolvimento de suas técnicas diagnósticas e terapêuticas e da expansão de conhecimentos científicos nessa área. O progresso tornou a avaliação das arritrnias GI<lis distante da semiologia e mais próxima da parafernália tecnológica. Isso foi umanecessidade, entretanto o diagnóstico correto dos distúrbios do ritmo não exclui uma anamnese e um exame clínico minuciosos e estes devem reunir e coordenar todos os meios de investigação. 64 AANAMNESE A história clínica permite formular uma hipótese de arritmia e identificar as circunstâncias clínicas desencadeantes e de alívio, bem como a freqüência, a distribuição temporal e a repercussão funcional dos sintomas Entre as diversas manifestações clínicas das arritmias, síncope e palpitação pela sua freqüência e potencial indicador diagnóstico e prognóstico adquirem maior importância e serão comenta·... ::ê~ :lFste ;:;rtiblu. A slncope é definida mediante a ocorrência de perda relativamente súbita da consciência com redução do tônus muscular. Com objetivo de diferenciar a síncope de outras causas de perda temporária da autopercepção (como distúrbio convulsivo) adotaremos, neste artigo, uma defini- Abr/Mai/Jun - 1998 Rov SOC"RJ Vai XI N' 2 ---------... , . ---_ ._----.-;--;"~---- . ~..: ''-0'':, . _~---,-- .. --- -----------. .•.• =: /.. _._-- j ção adicional de síncope como uma inconsciência devida à redução temporária e crítica do fluxo sangüíneo cerebral. Dentro desta concepção, os episódios mais freqüentes de perda transitória da consciência podem ser classificados conforme sua origem e freqüência em (1): 1. Síncope verdadeira 65% 1.1. Neurocardiogênica 1.2. Primariamente cardiogênica 2. Doença do sistema nervoso central < 10% 2.1. Doença convulsiva 2.2. Insuficiência vascular cerebral 3. Drogas e Metabólicas <10% 3.1. Agentes hipotensores 3.2. Álcool 3.3. Narcóticos 3.4. Hipoglicemia 4. Diagnóstico desconhecido 15a 20% '~ ? A síncope neurocardiogênica mediada por reflexos autonômicos anormais ocasionam vasodilatação el ou bradicardia reflexa e constitui a causa mais freqüente de perda breve da consciência (55% dos casos) (2). Deve ser a primeira hipótese diagnóstica em indivíduos com menos de 50 anos com síncope e sem história prévia de cardiopatia. A fisiopatologia da síncope neurocardiogênica foi discutida em outro artigo desta edição. Os sintomas desta doença estão relacionados à estimulação inicial simpática e posterior vagal. A síncope ocorre geralmente com o paciente após moderado ou longo tempo em ortostatismo, em especial em ambientes com temperatura elevada, e também pode ser desencadeáda por uma série de estímulos de origem visceral (micção, dor, distensão gástrica, deglutição, neuralgia do glossofaríngeo e etc), límbicos (visão de sangue e estresse) e hipersensibilidade de seios carotídeos Na fase inicial, o paciente pode referir palpitação, sudorese fria, ansiedade e salivação conseqüentes à estimulação simpática. Em seguida advém a fase de hiperatividade vagal e diminuição do tônus vasoconstrictor com hipotensão e bradicardia. O paciente torna-se pálido, podendo apresentar náuseas, tonteira ou pré-síncope. A passagem da fase simpática para vagal pode ser extremamente rápida levando à síncope com queda ao solo e, em outros casos, a passagem é mais lenta, permitindo ao paciente que se sente ou deite evitando a perda da consciência. Em alguns casos raros de síncope l'b,Jrocard;c·g~·;~I(,H. :':(;11 8. HoI :1'Klc!::; diminuição do débito cardíaco, uma grave isquemia do córtex cerebral pode gerar breves movimentos convulsivos (ríecorticação). A síncope neurocardiogênica (3) pode ser vasodepressora pura' (queda inicial da pressão arterial sistólica com freqüência cardíaca, diminuindo me- - Rev SOCERJ Vol XI NQ2 . nos que 10% da freqüência pré-hipotensão), cardioinibidora (pausa assistólica > 3 segundos ou freqüência cardíaca < 40 bprn, antecedendo queda da pressão arterial) e mista (hipotensão inicial por vasodilatação mais bradicardia reflexa com registro de freqüência < 40 bpm por menos de 10 segundos). A hipotensão das síncopes mista ou vasodepressora não pode ser completamente corrigida pela atropina intravenosa ou pela estimuiação cardíaca artificial, visto que, nestes casos, predomina a vasodilatação. Uma distinção entre síncope e convulsão pode ser particularmente difícil. Os sintomas associados a convulsões incluem início em idade jovem; a síncope ocorre em decúbito, espumação na boca, mordedura na língua, sonolência após o evento e duração do período de inconsciência maior que 5 minutos. O sintoma que melhor distingue convulsão de síncope é a desorientação após o episódio, muito mais comum na r onvulsão. Sintomas neurológicos associados sugerem ataque isquêmico transitório ou enxaqueca da artéria basilar. Síncope desencadeada por movimentos amplos dos braços pode estar relacionada à síndrome do roubo subclávio. A síncope por hipoglicemia geralmente ocorre em pacientes em uso de insulina exógena ou antidiabéticos orais. Usualmente apresentam história de episódios de fraqueza focal ou tetraparética, podendo ocasionar estado confusional breve, além de cursarem com glicemia inferior a 30 ou 40 mg/dl. Uma história de medicamentos utilizados pode revelar uma síncope induzida por drogas. Os medicamentos que mais comumente causam síncope incluem nitratos, vasodilatadores periféricos e centrais, betabloqueadores e inibidores da enzima de conversão da angiotensina. A síndrome do intervalo Q-T longo( 4) pode levar a episódios de taquicardia ventricular do tipo torsades de pointes (taquicardia ventricular polimórfica) que pela freqüência cardíaca muito rápida pode ocasionar síncope. Esta síndrome, geralmente adquirida, é devida ao uso de drogas que prolongam o intervalo Q-T como antiarrítmicos bloqueadores dos canais de sódio e potássio (quinidina, procainamida, disopiramida, propafenona, sotalol e amiodarona), antidepressivos tricíclicos, neurolépticos, eritromicina e terfenadine (estas duas últimas com raros relatos de associação com síndrome do intervalo Q-T longo e síncope). A síncope assoclada à taquicardia ventricular geralmente ocorre em pacientes com cardiopatia estrutural; os pródromos são de curta duração e a recuperação da autopercepção e dos níveis normais de pressão arterial são rápidos após término da arritrnia com restabelecimento da consciência. Por outro lado, na síncope vasovagal, a anormali- . Abr/Mai/Jun - 1998 65 ._-'--.~-~-------""''''~ dade dos reflexos neurais pode persistir por até 2 horas, ocasionando labilidade da pressão arterial por um período mais prolonqado após recuperação da consciência. A síndrome de MorganiStokes-Adams refere-se habitualmente à síncope ocasionada pelo bloqueio átrio-ventricular total e segue a seguinte seqüência clínica: palidez, síncope, rubor, convulsão e recuperação da consciência. O rubor e convulsão seriam decorrentes da abrupta normalização da freqüência cardíaca com súbito aumento do débito sistólico e irrigação arteriolar períférica e cerebral. Mediante um episódio de arritmia, a síncope ocorre em função, basicamente, de quatro fatores: a freqüência cardíaca, o estado contrátil do miocárdio, a função diastólica ventricular e a presença de barreiras mecãnicas à ejeção. Arritmias sustentadas com freqüência cardíaca superior a 180 ou inferior a 35 batimentos por minuto são mais prováveis de gerar síncope. Corações comdisfunção sistólica ou com diminuição da distensibilidade ventricular propiciam o aparecimento de síncope durante arritmias. Da mesma forma, cardiopatias como a estenose aórtica de moderada à grave e a cardiomiopatia hipertrófica obstrutiva predispõem a ocorrência de perda da consciência durante arritmias sustentadas devido à dificuldade de ejeção sistólica. A percepção de batimentos extrassistólicos normalmente é referida pelos pacientes como palpitações, "tranco" no coração, "parada" e "batedeira" no peito. A pausa compensatória após a extra-sistole aumenta o enchimento das câmaras ventriculares que, mediante um estiramento maior dos sarcômeros no fim da diástole e através do mecanismo de Frank-Starling, produz um batimento pós extra-sistólico mais vigoroso. Normalmente é este batimento com maior força contrátil que é percebido. Desta forma, quanto maior a pausa compensatória, maior a percepção da alteração do ritmo. A função contrátil ventricular também influi nos sintomas gerados pelas extra-sístoles. É comum em indivíduos com insuficiência cardíaca a ausência de percepção de extra-sístoles e isto ocorre apesar da freqüência desta arritmia, sendo que, nestes casos, pela incapacidade do coração em aumentar vigorosamente a força de contração do batimento. pós extra-sistólico. As extra-sístoles ventriculares costumam ser mais sintomáticas do que as .atriais. A despolarização -;).l':3.' ">H "u!târ!sa à despolarização ventrcular precoce ocasiona contração atrial contra as valvas átrio-ventriculares fechadas. Isto gera uma onda de pressão retrógrada que começa nas câmaras atriais e segue para veias pulmonares e veias jugulares. Este tenórneno no lado esquerdo do coração provoca estiramento e ativação de presso- 66 -----.-. Abr/Mai/Jun- a o -_ .. , l I EXAME FíSICO O exame físico apresenta maior importância para o diagnóstico específico dos distúrbios do ritmo quando realizado no momento de ocorrência da Rev SOCERJ 1998 . -------,.------~-----_.•_._--..--:-._---- receptores atriais e de veias pulmonares, podenc;Joinduzir taquicardia (fenômeno de Bainbridge). E relativamente comum observarmos, em indivíduos sem cardiopatia grave, um aumento da freqüência cardíaca após uma extra-sístole ventricular. Um estiramento mais acentuado desses pressoreceptores produz um reflexo neural vasodepressor com retirada do tônus simpático, queda da resistência vascular periférica e diminuição da pressão arterial. Este mecanismo explica a sensação de tonteira em alguns pacientes durante momentos de extrasistolia ventricular freqüente. 00 lado direito do coração, a transmissão retrógrada da onda de pressão para território jugular causa sensação de pressão no pescoço. Os indivíduos que. ao relatarem palpitações extrasistólicas, levam a mão em direção à base do pescoço geralmente estão sinalizando com a origem ventricular das extra-sístoles. Um outro mecanismo responsável pela sintomatologia das extra-sístoles é a liberação de fator natriurético atrial(5-6). Estes peptídeos vaso ativos são liberados de grânulos localizados nos miócitos atriais partir do aumento da pressão intra-atrial que ocorre na contração desta câmara contra as valvas átrio-ventriculares fechadas. Estes peptídeos produzem efeitos vaso-relaxantes diretos sobre a musculatura lisa vascular e efeitos natriuréticos no rim, contribuindo para a diminuição da pressão arterial e para o aumento da diurese. As taquiarritmias sustentadas são referidas usualmente como "disparo" no coração. O paciente geralmente caracteriza bem o início brusco da taquicardia, mas nem sempre o término súbito (quando a arritmia é auto limitada). O relato de diminuição progressiva da freqüência cardíaca se deve à taquicardia sinusal que sucede o fim da arritmia. As taquicardias com despolarizações atrial e ventricular próximas, como, por exemplo, a taquicardia nodal reentrante, são capazes de liberar grandes quantidades de fator natriurético atrial, o que explica a diurese excessiva após período mais prolongado da arritmia. As taquiarritmias também podem ser percebidas de forma tátil ou visual pelo paciente. Normalmente é útil perguntar se ele pode ver o balanço rápido do precórdio durante a taquicardia; uma resposta positiva ajuda a diferenciar uma taquiarritmia de ansiedade Ol' taquicardia sinorsa', ern que .,;,;.:;te fato não é comum. Vol XI N!2 2 arritmia. Fora destes episódios, sua utilidade con- ' siste em fornecer subsídios para diagnóstico de possíveis cardiopatias subjacentes. Durante episódios de extra-sistolia ventricular, a palpação do pulso arterial dos batimentos pós extra-sistólicos pode inferir o diagnóstico de cardiomiopatia hipertrófica obstrutiva. Em pacientes com esta doença, o aumento da contratilidade causado pela potencialização pós extra-sistólica pode aumentar o grau de obstrução à ejeção, devido a uma maior aproximação do septo interventricular e o folheto anterior da valva mitra!. Isto faz com que a amplitude do pulso referente ao batimentos pós extra-sistólico seja igualou inferior ao dos batimentos normais. Este fenômeno recebe a denominação de efeito Brockenbrough(7) e ocorre, aproximadamente, em um terço das cardiomiopatias hipertróficas. Na pericardite constrictiva também não ocorre alteração da amplitude do pulso após uma longa diástole seguindo uma extra-sistole.Isto ocorre porque o enchimento ventricular. na presença de pericardite constrictiva, se faz rapidamente no início da diástole, sendo prontamente interrompido pela diminuição da distensibilidade das câmaras ventriculares (perícárdío rígido). A análise do contorno do pulso jugular interno permite a identificação de alguns distúrbios do ritmo que provocam contração simultânea do átrio e ventrículo direitos e que ocorrem nos seguintes casos: de forma intermitente no bloqueio átrio-ventricular total, nas extra-sístoles ventriculares que incidem próximas à despolarização atrial de origem sinusal ou que apresentem condução atrial retrógrada e nos ritmos juncionais ou de comando por marca-passo ventricuiar cum condução retrógrada. Esta contração do átrio direito contra a valva tricúspide fechada gera uma grande onda A no pulso venoso jugular chamada de onda em canhão. Na fibrilação atrial ocorre desaparecimento da onda A e diminuição da descendente X do pulso venoso, fazendo com que a onda dominante e de melhor observação seja a descendente Y que segue a segunda bulha cardíaca. Em relação ao pulso venoso jugular é interessante, a título de curiosidade, citar que o bloqueio átrio-ventricular do 2= grau, com aumento progressivo do intervalo P-R, relatado por Mobitz após o advento da eletrocardiografia, fora descrito por Wenckebach, no século passado, através da análise do pulso jugular, onde o autor observou um aumento progressivo da distância entre a onda A e o pulso carotídeoev; ~::;Ia pequena pausa no pulso arterial. Na ausculta cardíaca, a intensidade da primeira bulha varia de forma inversamente proporcional ao intervalo P-R do eletrocardiograma. Quanto mais curto o P-R, maior a intensidade da 1 bulha. Existem duas explicações para este fenômeno: a primeira consiste no fato de que quando o P-R é curto, os Rev SOCERJ folhetos da valva mitral estão amplamente abertos no momento do início da contração ventricular. Fazendo uma analogia com o movimento de uma porta, o som do fechamento será tanto maior, quanto mais aberta ela estiver. A segunda explicação diz que mediante um P-R curto, o átrio esquerdo não tem tempo para relaxar antes da contração ventricular, portanto a pressão atrial ainda está elevada quando a pressão ventricular a ultrapassa. Desta forma, o ventrículo esquerdo terá maior tempo para acelerar o aumento da pressão intraventricular O incremento da velocidade de contração produz o fechamento mais vigoroso dos folhetos da valva mitral, resultando em uma 1º bulha mais intensa. A intensidade da 1º bulha será variável no bloqueio átrio-ventricular total, aumentada nos casos de PR curto como nas síndromes de pré-excitação ventricular e diminuída no bloqueio átrio-ventricular do 1 grau. Na síndrome de Wolff-Parkinson-White com feixe anômalo à direita, a 1 bulha pode apresentar intensidade normal, apesar do intervalo P-B curto. Isto ocorre porque a ativação do ventrículoesquerdo atrasa, fazendo com que o intervalo entre as contrações atrial e ventricular esquerdas sejam normais. Na fibrilação atrial, os tempos de enchimento ventricular e o volume diastólico final desta câmara são variáveis, conseqüentemente a contratilidade ventricular e a intensidade da 1 bulha também serão variáveis Os indivíduos portadores de marca-passo cardíaco podem apresentar, na ausculta, um ruído adicional semelhante à da 4 bulha. Isto pode ocorrer devido à estimulação e contração dos músculos esqueléticos intercostais que produzem um ciique, precedente à 1 bulha(8-9). Cliques adicionais também podem ser observados em pacientes com marca-passo em decorrência de estirnulação diafragmática( 1O). A aferição da pressão arterial é' importante na investigação de pacientes com síncope. Uma diferença de 20 mmHg ou mais entre os braços sugere dissecção aórtica ou síndrome do roubo subciávio. As medidas da pressão, em indivíduos com sintomas sugestivos de baixo fluxo cerebral, devem ser realizadas nas posições supina e ereta. Uma queda de 20 mmHg na posição ereta em relação à supina indica hipotensão ortostática. Quedas maiores acompanhadas de sintomas freqüentemente correlacionam a hipotensão ortostática com a síncope. .Ó» REFERÊNCIAS 1) P/um F - Perda breve da consciência. Em Wyngaarden JB, Smith CH e Bennett JC (eds). Cecil: Tratado de Medicina Interna. 19 edição, Philade/phia, W.B. Saunders Company, 1993 pp 2104. Abr/Mai/Jun - 1998 Vol XI· W 2 _ ..----------. ----_.----'~._--_.._-------:---,. 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