Revista Iberoamericana de Arritmología – ria Artigo de revisão DOI: 10.5031/v1i2.RIA10176 Arritmias na sarcoidose cardíaca: do diagnóstico ao tratamento Francisca Caetano, Rui Candeias, Inês Almeida, Sérgio Barra, Rui Providência, José Nascimento, Ana Botelho, António Leitão-Marques Resumo Introdução: A sarcoidose é uma doença granulomatosa de etiologia desconhecida, cujo envolvimento cardíaco está muitas vezes subdiagnosticado, podendo a morte súbita ser a primeira manifestação. Não existe consenso no diagnóstico e na conduta terapêutica dos doentes com sarcoidose cardíaca. Motivo da revisão: Estudos recentes mostraram que o envolvimento cardíaco é por vezes a primeira manifestação da sarcoidose, devendo este diagnóstico ser evocado em doentes com bloqueio aurículo-ventricular com menos de 55 anos e em doentes com miocardiopatia idiopática e taquicardia ventricular mantida. A estratificação do risco para decisão de implantação de cardioversor desfibrilhador implantável é também um tema polémico. Métodos: Foi feita uma revisão da literatura com recurso à Pubmed, optando-se por uma estratégia de pesquisa não sistemática, através das palavras “cardiac sarcoidosis” e “arrhythmias”. Conclusão: A sarcoidose cardíaca é uma condição rara, mas potencialmente fatal. Torna-se imperativo o seu rastreio em todos os doentes com sarcoidose. A primeira manifestação poderá ser a morte súbita mesmo em doentes com função ventricular esquerda mantida, sendo importante a identificação de métodos eficazes de estratificação de risco. Palavras-chave: sarcoidose; bloqueio aurículo-ventricular, taquicardia ventricular. manifestation. There is no consensus on the diagnosis and management of cardiac sarcoidosis. Purpose of review: Recent studies have described cardiac manifestations as the first presentation of sarcoidosis. Cardiac sarcoidosis should be considered in patients aged less than 55 years presenting with unexplained atrioventricular block, and in patients with idiopathic cardiomyopathy and sustained ventricular tachycardia. Risk stratification for implantable cardioverter defibrillator is also a controversial theme. Conclusions: Cardiac sarcoidosis is a rare condition, but potentially fatal. Screening in all patients with sarcoidosis is mandatory. Sudden death may be the first manifestation even in patients with preserved left ventricular function. It is important to identify effective methods of risk stratification. INTRODUÇÃO A sarcoidose é uma doença granulomatosa, multissistémica, de etiologia desconhecida. Os granulomas não caseosos são a sua marca histopatológica e mais frequentemente envolvem os pulmões e os gânglios linfáticos, podendo também atingir o coração, o fígado, o baço, os olhos e outros 1 órgãos ou tecidos . A incidência da sarcoidose caracterizase por uma ampla variedade em função da etnia e da região. Os escandinavos apresentam a maior taxa de incidência com 50 2 a 60 casos por 100 000 habitantes . Arrhythmias in cardiac sarcoidosis: from diagnosis to treatment SARCOIDOSE CARDÍACA Introduction: Sarcoidosis is a granulomatous disease of unknown aetiology. Cardiac involvement is often under diagnosed. Sudden cardiac death may be the first clinical www.ria-online.com Um quarto (25%) dos doentes com sarcoidose tem envolvimento cardíaco, normalmente sendo indivíduos entre os 20 e os 303 Mar 12 Vol. 1 No. 2 Revista Iberoamericana de Arritmología – ria Artigo de revisão DOI: 10.5031/v1i2.RIA10176 3 40 anos. Estudos recentes descreveram casos isolados de sarcoidose cardíaca (SC). Existe contudo uma fraca correlação entre os sintomas e o grau de envolvimento miocárdico mesmo nos casos mais avançados, podendo a morte súbita ser a primeira manifestação (tanto devido a arritmia ventricular como a bloqueio aurículo-ventricular 4 (BAV) completo) . O envolvimento cardíaco é responsável por 13 a 25% da mortalidade associada à 5 doença . Atendendo às complicações potencialmente fatais associadas à SC e ao potencial efeito benéfico do tratamento, a todos os doentes com o diagnóstico de sarcoidose deveria ser feito o rastreio de envolvimento cardíaco, embora o diagnóstico antemortem de SC possa ser um desafio. Não existe nenhum consenso internacional sobre o algoritomo diagnóstico de SC, havendo apenas um documento da Sociedade Japonesa de Sarcoidose e Doenças Granulomatosas, cujo valor não foi 6 validado . As técnicas de imagem (ecocardiografia, estudos com radionuclídeos e ressonância magnética) mostram achados característicos, contudo nenhum é patognomónico do diagnóstico de SC. A biópsia endomiocárdica, apesar de altamente específica, tem uma baixa sensibilidade para SC, não devendo ser 7 realizada por rotina como teste diagnóstico . Os granulomas podem ter qualquer localização cardíaca, sendo o miocárdio a área mais 1 frequentemente envolvida . As manifestações clínicas da SC estão relacionadas com a localização, extensão e actividade da doença, podendo os doentes apresentar-se com uma ampla variedade de sinais e sintomas, que variam desde alterações electrocardiográficas assintomáticas até à morte súbita. Apesar da ausência de grandes estudos randomizados ou registos prospectivos em doentes com SC, a literatura existente refere que a presença de BAV, disritmias ventriculares ou disfunção ventricular esquerda associa-se a um prognóstico mais sombrio. www.ria-online.com A corticoterapia é o pilar do tratamento da SC, contudo os seus efeitos na evolução clínica da doença ainda não foram avaliados em estudos prospectivos, randomizados. Existe contudo uma evidência crescente suportando a sua eficácia clínica, embora a dose ideal, o momento de início do tratamento bem como a 6 sua duração ainda não foram definidos . PERTURBAÇÕES DA CONDUÇÃO Os distúrbios da condução ocorrem devido ao envolvimento da porção basal do septo interventricular e vão desde o bloqueio de ramo (completo ou não) até ao BAV de segundo ou terceiro grau. O BAV completo é a perturbação mais comum, afectando até 2,8,9 30% dos doentes , e frequentemente a síncope é a manifestação inicial. Recentemente, Kandolin et al. mostraram que o BAV completo pode ser a 10 manifestação inicial de sarcoidose , devendo a SC ser considerada em todos os adultos jovens 11 com BAV de causa inexplicada . Neste mesmo estudo demonstraram que doentes com menos de 55 anos de idade e com BAV têm um risco dez vezes superior de eventos cardíacos adversos em dois anos comparativamente com doentes sem SC. Em alguns doentes o BAV é transitório, contudo isto é imprevisível e todos os doentes deverão ser submetidos a implantação de pacemaker definitivo (PMD). Atendendo à natureza progressiva da SC há autores que defendem a implantação de um cardioversor desfibrilhador implantável (CDI) nos doentes 12 que têm critérios para PMD . ARRITMIAS SUPRAVENTRICULARES As arritmias supraventriculares são 5 menos comuns (19%) que as ventriculares e incluem extrassistolia supraventricular; taquicardia, flutter e fibrilhação auriculares. Este tipo de arritmia mais frequentemente é uma consequência da dilatação auricular secundária a disfunção ventricular ou a cor pulmonale. Mais raramente 304 Mar 12 Vol. 1 No. 2 Revista Iberoamericana de Arritmología – ria Artigo de revisão DOI: 10.5031/v1i2.RIA10176 podem ser causadas por envolvimento directo das aurículas pelos granulomas. permanece pouco claro quais os doentes com SC com elevado risco de morte súbita. A utilidade do estudo electrofisiológico (EEF) com estimulação ventricular programada para predizer futuros eventos disrítmicos nesta população permanece desconhecida. Além disso, a natureza progressiva da SC, não nos permite assegurar que a não indutibilidade de TV num determinado momento, se manterá assim após alterações no grau de envolvimento miocárdico. Contudo, alguns autores defendem o recurso ao EEF na estratificação de risco de doentes com SC. Em 2005, Mehta et al. publicaram um 19 estudo com 32 doentes com SC e função ventricular preservada, demonstrando que os doentes com disritmia ventricular mantida, espontânea ou induzida, apresentavam maior risco de morte súbita, independentemente do tratamento com fármacos anti-arrítmicos ou beta-bloqueantes, comparativamente com doentes sem nenhum tipo de disritmia ventricular. Mais recentemente, Mehta et al. 20 estudaram 76 doentes com sarcoidose sistémica demonstrada por biopsia, com envolvimento cardíaco assintomático, e verificaram que 11% tinham TV indutível em EEF. Durante um follow-up médio de 5 anos, seis dos oito doentes com EEF positivo apresentaram TV espontânea ou morreram, comparativamente com uma morte no grupo com EEF negativo (p<0.001). 18 As guidelines referentes à implantação de dispositivos do American College of Cardiology / American Heart Association / Heart Rhythm Society de 2008 referem a presença de SC como uma indicação razoável (nível de recomendação IIa) para a implantação de CDI. As mesmas guidelines reforçam a ausência de informação que nos permita estratificar o risco de morte súbita em doentes com SC. Assim, o clínico deverá usar toda a literatura disponível em conjunto com a sua experiência na decisão de implantação de CDI na prevenção primária, reforçando a importância de sintomas como a síncope, a insuficiência cardíaca, a função ventricular ARRITMIAS VENTRICULARES E MORTE SÚBITA A taquicardia ventricular (TV) pode ser a forma de apresentação clínica de sarcoidose, sendo a segunda manifestação mais frequente 13 (23%) de envolvimento cardíaco , é geralmente causada pelo envolvimento granulomatoso do miocárdio. Áreas de processo inflamatório em resolução geralmente evoluem com a formação de cicatriz miocárdica, fornecendo o substrato 14 para o mecanismo de reentrada . A TV monomórfica é a mais frequentemente observada, contudo também 15 pode ocorrer TV polimórfica . A TV mantida é um preditor independente de mortalidade em 16 doentes com SC . A corticoterapia pode diminuir o número de extrassístoles ventriculares e de episódios de TV, podendo o risco de morte súbita também ser reduzido. Contudo, a resolução dos granulomas pode deixar um substrato arritmogénico. Existe alguma evidência que sugere que as arritmias ventriculares secundárias à SC podem não responder à terapêutica anti17 arrítmica . A utilização de fármacos antiarrítmicos que actuam no nódulo aurículoventricular deve ser feita de um modo cauteloso. Embora a amiodarona seja frequentemente usada no tratamento de arritmias ventriculares, a sua utilidade em doentes com SC poderá estar limitada pela sua potencial toxicidade pulmonar. A implantação de um CDI é recomendada em todos os doentes com SC e 18 TV mantida ou fibrilhação ventricular . Uma questão mais difícil de responder é se os doentes com SC sem disfunção ventricular significativa e sem disritmias ventriculares importantes espontâneas deveriam ser considerados para implantação de CDI ou pelo menos para uma estratégia de estratificação de risco, uma vez que www.ria-online.com 305 Mar 12 Vol. 1 No. 2 Revista Iberoamericana de Arritmología – ria Artigo de revisão DOI: 10.5031/v1i2.RIA10176 esquerda e a presença de disritmias ventriculares espontâneas ou induzidas em EEF. A implantação de um CDI de dupla câmara é recomendada atendendo ao frequente desenvolvimento de doentes. Apresenta-se de seguida (Figura I) para a terapêutica doentes com SC, com base 13 actual : BAV nestes um algoritmo com CDIem na literatura Figura I: Algoritmo para a terapêutica com CDI em doentes com SC, com base na literatura 13 actual . A ablação por cateter de radiofrequência é uma terapêutica adjuvante em doentes com choques recorrentes de CDI por TV, após optimização da terapêutica 9antiarrítmica e da corticoterapia. Dentro das TV mapeáveis, a TV peritricúspide constitui o circuito de re-entrada mais frequente. com cardioversor desfibrilhador implantável demonstrou ser eficaz na prevenção da morte súbita. REFERÊNCIAS 1. Roberts WC, McAllister HA, Ferrans VJ. Sarcoidosis of the heart: a clinicopathologic study of 35 necropsy patients and review of 78 previously described necropsy patients. Am J Med. 1997; 63:86-108. 2. Doughan AR, Williams BR. Cardiac sarcoidosis. Heart. 2008; 92:282-288. 3. Kandolin R, Lehtonen J, Graner M, et al. Diagnosing isolated cardiac sarcoidosis. J Intern Med 2011; 270:461_469. 4. Mitchell DN, du Bois RM, Oldershaw PJ. Cardiac sarcoidosis. BMJ.1997;314:320-1. 5. Silverman KJ, Hutchins GM, Bulkley BH. Cardiac sarcoid: a clinicopathologic study of 84 unselected patients with systemic sarcoidosis. Circulation 1978;58:1204-11. CONCLUSÕES A sarcoidose é uma doença de etiologia desconhecida, cujo diagnóstico continua a ser um desafio clínico. A sarcoidose cardíaca é uma manifestação comum com um amplo espectro de sinais e sintomas, podendo a morte súbita ser a apresentação inicial mesmo em doentes com função ventricular normal ou preservada. Assim, torna-se imperativo o seu rastreio em todos os doentes com o diagnóstico de sarcoidose. A necessidade de um algoritmo de estratificação de risco urge neste doentes em que a terapia www.ria-online.com 306 Mar 12 Vol. 1 No. 2 Revista Iberoamericana de Arritmología – ria Artigo de revisão DOI: 10.5031/v1i2.RIA10176 6. Soejima K, Yada H. The work-up and management of patients with apparent or subclinical cardiac sarcoidosis: with emphasis on the associated heart rhythm abnormalities. J Cardiovasc Electrophysiol 2009; 20:578–583. 7. 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