DIÁLOGO E INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA COM CRIANÇAS GIACOMASSI, Rejane – SME Curitiba1 [email protected] Eixo Temático: Didática: Teorias, Metodologias e Práticas Agência Financiadora: Não contou com financiamento Resumo A ideia de propiciar à criança a oportunidade de aperfeiçoamento das habilidades de pensamento através da filosofia já tem mais de trinta anos. Matthew Lipman e seu programa Filosofia para Crianças já são, de alguma maneira, conhecidos mundialmente. Em 2008 a ONU publicou um relatório sobre o ensino de Filosofia nos níveis Básico e Superior onde dedicou um capítulo ao ensino de crianças. Também muito já se criticou o autor e suas idéias, porém praticamente não avançamos com novas propostas no sentido de auxiliar nossas crianças a melhor desenvolver um pensamento crítico, criativo e cuidadoso. A experiência que será relatada busca uma interlocução entre Lipman e Paulo Freire – a comunidade de investigação do filósofo e pedagogo norte-americano e a proposta de temas geradores do educador brasileiro – visando integrar mais o trabalho da escola com a realidade vivida pela criança. E ao pensar a criança é imprescindível antes de tudo clarear o conceito de infância. A criança tem sido objeto de estudo da psicologia da infância, e seu conceito vem sendo formulado teoricamente a partir de influências culturais, econômicas e históricas. Se pretendemos trabalhar seriamente com ela é urgente pensar quem é ela afinal. Se queremos trabalhar para ajudar nossas crianças a pensar de maneira autônoma, criativa e emancipadora é imprescindível conhecê-la melhor e também conhecer os pressupostos teóricometodológicos dos autores citados. Lipman organizou um programa para a constituição das salas de aula em comunidades de investigação filosófica onde se daria, pela interação entre seus membros, o aprimoramento do pensamento, e Freire também convida ao diálogo interativo na sala de aula e propõe o trabalho pedagógico por Temas Geradores. Palavras-chave: Criança. Filosofia. Diálogo. Investigação Filosófica. Introdução Neste início de milênio, nós professores nos encontramos diante de enormes incertezas e desafios com relação ao nosso trabalho educativo. Estamos em busca de novos paradigmas para uma educação realmente transformadora, onde o pensamento do aluno possa se libertar 1 Secretaria Estadual de Educação/Curitiba-Pr (Colégio Santa Gemma Galgani) 4490 das inúmeras forças sociais que restringem a visão do mundo e da vida e dificultam a ação. Estamos carentes de certezas e em busca de novos ordenamentos. A LDB/96 e os Parâmetros Curriculares Nacionais pedem uma prática educacional voltada para a compreensão da realidade pessoal e social. As Diretrizes Curriculares Nacionais, aprovadas em 29/01/98, nos pedem uma prática voltada a Princípios Éticos, Políticos e Estéticos. As Diretrizes Curriculares da Secretaria Municipal de Educação de Curitiba para o Ensino Fundamental colocam os Princípios da Educação Pela Filosofia, Educação Para o Desenvolvimento Sustentável e Gestão Democrática como norteadores da organização curricular na escola. Diante destas intenções formalmente declaradas e da perplexidade frente aos desafios que se impõem, precisamos cada vez mais nos perguntar como lidar com o conhecimento, como trabalhá-lo com nossos alunos. Nossa tarefa não se reduz ao simples informar; ela é mais complexa. Precisamos trabalhar pela busca e manipulação da informação e incentivar a capacidade de criação de novos conhecimentos. Este trabalho relata a experiência de mais de dez anos da Escola Municipal Professor Ricardo Krieger/Curitiba com relação à inclusão de aulas semanais de Filosofia nas séries iniciais do ensino fundamental. O diálogo e a investigação filosófica com as crianças levou a instituição a buscar referencial teórico-metodológico em Matthew Lipman, criador do Programa Filosofia para Crianças e Paulo Freire e sua Pedagogia dos Temas Geradores. O ponto de partida é a busca de clareza quanto ao conceito de criança, pois é com ela que trabalhamos, seguindo-se os pressupostos teórico-metodológicos da "Comunidade de Investigação" de Matthew Lipmann, a investigação dialógica em Paulo Freire, a interlocução entre os dois educadores e a organização curricular da Escola Ricardo Krieger a partir destes referenciais. Diálogo e Investigação Filosófica com Crianças O Conceito de Criança Platão nos fala em sua obra A República (livro II) sobre a educação dos guardiões da pólis desde a mais tenra idade. Eles deveriam compreender a gênese da justiça, e esse conhecimento seria indispensável para uma pólis mais justa e bela. O conceito de infância em Platão é o de uma primeira etapa da vida. O ser humano é pensado como um ser em 4491 desenvolvimento numa relação de continuidade entre passado, presente e futuro e a educação teria papel preponderante nesta linha contínua. A criança é pensada como possibilidade, potencialidade. Conforme Ariès (1981) há uma significativa mudança na concepção de criança e infância no Iluminismo. Até a Idade Média não se pensava em uma natureza diferenciada para a criança; após os sete anos ela era inserida na sociedade, participando no trabalho, em festas, rituais, etc. tal como o adulto. Nos séculos XVI e XVII propagou-se a ideia de que as crianças são inocentes e corruptíveis e por este motivo devem ser segregadas da sociedade e treinadas para só então unirem-se ao mundo dos adultos. O que antes era aprendido na vida diária, na experiência, agora passou a ser ensinado em um espaço especial – a escola. No início do século XIX podem ser identificadas duas tendências histórico-políticoculturais que influenciaram a Psicologia; uma delas expressa o racionalismo europeu e a outra o empirismo da América do Norte. Na psicologia norte-americana refletem-se aspectos como conquista, desenvolvimento, oportunidade, próprios à sua história de desbravamento e colonização. Nela se vai buscar identificar as mudanças possíveis ao longo do desenvolvimento humano. A psicologia continental europeia estava envolvida com a compreensão do funcionamento humano; sob a influência filosófica de Leibniz concebia a mente como tendo uma atividade potencial que deveria ser descrita e compreendida. Vemos aí as teorias do desenvolvimento infantil de Piaget e Freud, que conceberam o processo de desenvolvimento através de estágios, concentrando-se em descrevê-los e afirmar a impossibilidade de mecanismos de aceleração do desenvolvimento humano, tanto em termos de personalidade quanto ao que se refere às funções cognitivas da criança. A partir do início do século XX, condições históricas e sociais vão contribuir para a institucionalização da psicologia da infância: famílias do sul e oeste europeu trouxeram para as escolas crianças com desvantagens de linguagem e problemas emocionais decorrentes da imigração e consequente choque cultural. Os clínicos passam então a dedicar-se ao estudo dos distúrbios infantis e busca de procedimentos de tratamento. Estes estudos contribuíram para a formulação de teorias de desenvolvimento da personalidade. O atraso ou fracasso escolar, quando situado em seu contexto histórico revela suas implicações sociais. Nas décadas de trinta e quarenta, quase metade dos artigos publicados referiam-se à padronização do desenvolvimento e foram estudadas várias funções mentais como memória, percepção, inteligência, capacidades sensoriais, etc. Após a Segunda Guerra o campo de 4492 estudo do desenvolvimento infantil sofreu grande expansão e nos anos 60 o foco de estudo se transferiu do interesse pelos aspectos motivacionais e da personalidade para os aspectos cognitivos. Surge a Psicometria, Psicanálise, Psicologia Social, Psicologia Cognitiva. A diversidade destes olhares tornou difícil um consenso e o grande desafio hoje é ver como as experiências biológicas e culturais estão entrelaçadas no desenvolvimento humano. O pensamento e comportamento infantil não podem ser compreendidos sem que se considere que a criança está inserida num amplo contexto social e por isso sujeita a grande variedade de influências – pais, grupos de pares, parentes, professores, escola, mídia, etc. – que interagem e modificam o impacto um do outro. E o desafio de relacionar a totalidade dos eventos observados no ambiente da criança e os resultados psicológicos permanece um sério problema. O conceito atual de criança adotado pela Organização das Nações Unidas abrange o conceito brasileiro de criança e adolescente. Na Convenção Sobre os Direitos da Criança encontramos que “entende-se por criança todo ser humano menor de 18 anos de idade, salvo se, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes” (art. 1º – BRASIL. Decreto 99.710, de 21 de novembro de 1990: promulga a Convenção Sobre os Direitos da Criança. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, 22 nov. 1990. Seção I, p. 22256). Nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente “considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até 12 anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade” (art. 2°). Dessa forma, os efeitos pretendidos, relativamente à proteção da criança no âmbito internacional, são idênticos aos alcançados com o Estatuto Brasileiro. Na tradição ocidental educar a infância é educar o adulto de amanhã e, como nos diz Walter Kohan (2004, p.32) “a infância é a matéria-prima das utopias, dos sonhos dos políticos dos filósofos e educadores.” A educação seria então o instrumento da realização destes sonhos. Porém, diversos trabalhos contemporâneos afirmam a infância como uma condição da experiência humana, e não simplesmente uma etapa da vida. Walter Kohan (2004, p. 5) nos fala: “O discurso pedagógico está cheio de pessoas e idéias bem-intencionadas, que buscam formar as crianças para que elas adquiram habilidades, capacidades e valores que as constituam em pessoas melhores e façam do mundo um lugar melhor para viver...” 4493 Mas não haveria outra maneira de pensar a criança e sua educação? – nos pergunta ele ainda. E nos responde que talvez possamos sim pensar a educação de outra forma, deixando de nos preocupar tanto em transformar as crianças em algo distinto do que são, para pensar uma escola que possibilitasse às suas crianças e aos seus adultos (professores, orientadores, diretores, gestores) buscar um outro início, uma outra política da infância, onde já não se buscasse normatizar o tipo ideal de criança a formar, ou o tipo de sociedade que deva construir, mas que buscasse promover, desencadear, estimular nas crianças e também nos adultos, uma intensidade criadora, revolucionária, disruptora, que só poderia surgir na abertura do espaço, no encontro entre o novo e o velho, entre uma criança e seus pares, entre uma criança e um adulto. Esses encontros entre uma criança e outra criança, entre uma criança e sua professora, entre uma professora e outra professora, nos diz Kohan, talvez pudessem abrir a escola ao que ela ainda não é, um espaço de experiências, acontecimentos inesperados e imprevisíveis, um mundo do devir e não apenas da história. Pressupostos teórico-metodológicos da "Comunidade de Investigação" de Matthew Lipmann Os filósofos sempre tentaram se apropriar da filosofia, delimitando-a a partir de sua própria atividade. Platão determinou para ela uma relação memorável com a realidade não sensível, Descartes marcou seu território nas idéias claras e distintas, Kant exigiu a crítica da própria razão teórica e prática, Husserl pretendeu que a filosofia fosse ciência de rigor. Embora cada um deles e outros filósofos tenham contribuído para o desenvolvimento da própria filosofia, nenhum deles conseguiu conter a atividade filosófica no limite de suas próprias definições. Parece haver algo na filosofia que rejeita qualquer tentativa de apropriar-se dela. Afirmando-se pelo pensamento, a filosofia abre as portas ao invés de fechá-las (KOHAN, 1999, p.9). Matthew Lipman, pedagogo e filósofo norte americano pensou, na década de setenta, a ideia de abrir as portas da filosofia às crianças. Ele não lançou uma idéia simplesmente, criou também um programa e desenvolveu materiais e uma metodologia para colocar essa ideia em prática. Seu programa - Filosofia para Crianças: Educação para o Pensar - consiste numa tentativa de trazer às crianças a oportunidade de vivenciar o filosofar. E a filosofia, presente no ensino fundamental, aprimoraria as dimensões crítica, criativa e ética do pensar das crianças. 4494 Em seus livros, O Pensar na Educação, A Filosofia vai à Escola e A Filosofia na Sala de Aula, Lipman aponta o caminho metodológico da Comunidade de Investigação. Seria preciso desafiar os alunos a discutir e dialogar sobre seus valores, pontos de vista e idéias, com seus colegas e com o professor, num exercício de reflexão em grupo. A esse exercício, Lipman denominou Comunidade de Investigação: seria fazer filosofia com as crianças através do diálogo regido pela lógica visando o aperfeiçoamento de habilidades de pensamento, o que geraria reflexão e aprofundaria a tomada de consciência. Matthew Lipman propõe uma Educação para o Pensar, pois reconhece e insiste na necessidade de que algo precisa ser feito em educação no sentido de garantir a qualidade do pensar. Para isso, seria necessário que tivéssemos claro o que significa pensar bem, ou pensar reflexivamente, racionalmente; como o pensamento se processa; quais os procedimentos mais adequados à tarefa para a qual nos propomos. Cabe a cada educador que pretenda trabalhar o aperfeiçoamento do pensar com seus alunos, buscar tornar seu trabalho educativo mais crítico, mais criativo e mais avaliativo na questão de seus procedimentos. A proposta da inclusão de filosofia no currículo da educação básica é um caminho. "Diálogo" e "Educação Dialógica" em Paulo Freire Não há diálogo, porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há amor que a infunda [...] a fé nos homens é um dado a priori do diálogo [...] não existe, tampouco, diálogo sem esperança. A esperança está na própria essência da imperfeição dos homens, levando-os a uma eterna busca. [...] finalmente, não há o diálogo verdadeiro se não há nos sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar crítico. Pensar que, não aceitando a dicotomia mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrantável solidariedade (FREIRE, 1992, p.79). Para a professora Ann Sharp, uma das razões para o entendimento e aceitação da proposta do trabalho de Filosofia com Crianças no Brasil são as muitas afinidades entre esta proposta e as ideias de Paulo Freire. Freire propõe um esforço sério, rigoroso, profundo e abrangente para a construção de um saber relativo à realidade da qual se faz parte e se constrói constantemente. Ele propõe a busca por um saber significativo. Toda situação educacional precisa ser situação de produção de conhecimento daqueles que estejam envolvidos nela. E a maneira mais eficiente para essa aprendizagem seria o diálogo. 4495 Em seu livro Extensão ou Comunicação, Freire nos fala da importância do diálogo como veículo para o processo básico da educação, a comunicação. Ele produziria avanços cognitivos ao ajudar os alunos a sair da doxa (opinião) em direção ao logos (verdade): “A educação que renuncia a ser uma situação gnosiológica autêntica, para ser esta narrativa verbalista, não possibilita aos educandos a superação do domínio da mera 'doxa' e o acesso ao 'logos' (FREIRE, 1992, p.83)” O diálogo "aprofunda a tomada de consciência", nos diz Freire. Essa tomada de consciência e consequente aprofundamento não se dariam isoladamente nos seres humanos e sim, nestes inter-relacionados, quer com a realidade, quer com outros homens. Esse esforço seria sempre social, coletivo. Não é isso que, de alguma forma, propõe também Lipman nas Comunidades de Investigação? E como se daria esse diálogo? Ele aconteceria nos encontros das pessoas, mediatizadas pelo mundo e pela realidade. Aí pode ocorrer a comunicação, a conversa de uns com os outros a respeito da realidade vivida. Essa conversa se iniciaria com a problematização da realidade e das pessoas, mantendo-se sempre um espírito perguntador. Problematizar é enxergar dificuldades, quer nas explicações já tidas, quer nas situações em que estejamos envolvidos. E, enxergando as dificuldades, ser capaz de explicitá-las na forma de perguntas, pois, sem perguntas assumidas como próprias não ocorre o esforço real e produtivo pela busca de respostas; não há esforço cognitivo. Paulo Freire afirma que é possível aprender a perguntar, e a melhor forma seria fazer isso coletivamente, junto com os outros. Aí a boa conversa, o diálogo se iniciaria. Em suas obras defende o diálogo como único caminho na construção de conhecimentos mais sólidos, mais objetivos, mais consistentes, como meios de promoção do aluno a verdadeiro sujeito do seu saber. Na visão de conhecimento emancipatório de Freire, percebe-se a preocupação fundamental com a compreensão filosófica, sociológica e política do conhecimento enquanto instrumento de intervenção consciente no contexto histórico concreto. A aprendizagem supõe uma situação dialógica entre sujeitos que conhecem, sendo o objeto do conhecimento o mediador dessa relação. O diálogo investigativo aparece como condição para o conhecimento. 4496 "Investigação Filosófica" e "Educação Dialógica": em busca de uma aprendizagem significativa Quando se fala em investigação filosófica com crianças, não se está preocupado em formar discípulos de alguma corrente filosófica ou de determinada visão de mundo. Trabalhar filosofia com crianças seria ajudá-las a pensar a realidade vivida em busca de sua transformação. Existem aproximações entre o pensamento de Paulo Freire e Matthew Lipman em vários aspectos. Freire trabalhou mais com adultos, nos Círculos de Cultura e Lipman, com crianças. Porém ambos acreditam na capacidade das pessoas (crianças, jovens e adultos) decidirem sobre seu próprio destino e no papel do professor como facilitador e coordenador dos grupos de alunos. O processo educativo em Freire é organizado na relação entre currículo, conhecimento e cultura. O conteúdo programático da educação problematiza o homem como ser de relações, situando-o historicamente e possibilitando criação e recriação de conhecimento pelo diálogo e investigação da cotidianidade do aluno, na cultura de que é portador. Este conteúdo é buscado no pensamento e na fala do povo, no Tema Gerador, e o conteúdo da educação nasce do diálogo educador-educando, educando-educando, abordando o mundo da natureza e da cultura. Seria “... a devolução organizada e sistematizada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada.” (FREIRE, 1992, p.92). Como organizar o trabalho pedagógico a partir da proposta freireana de relacionar currículo, conhecimento e cultura? Freire propõe uma metodologia dialógico- problematizadora e conscientizadora de organização das aulas. Esta metodologia inclui as codificações temáticas, que seriam as representações existenciais (cenas de trabalho, das idéias, dos mitos, da arte, da ciência) problematizadas para desafiar na busca de significação do conteúdo de um Tema a ser pensado para garantir a interação conhecimento/mundo vivido. A descodificação seria a análise crítica da situação codificada como um ato cognoscitivo que possibilita ao homem admirar sua ação e a de outros sobre o mundo e ainda analisar a forma como admiravam anteriormente o mundo (percepção da percepção anterior). Ao final surge uma nova percepção e desenvolve-se um novo conhecimento. É no plano das perguntas infantis que Lipman, assim como Freire, percebe uma fonte inesgotável de interesse pela busca de significados para a experiência. É nela que se inicia o 4497 ato de pensar. Seria necessário problematizar o conhecimento em sua relação com a realidade concreta, onde incide e é gerado, para melhor compreendê-la, explicá-la e transformá-la. Ao propor os Temas Geradores, Freire nos diz que precisamos buscar constituir no conteúdo programático da educação as questões presentes na vida da comunidade em que está inserida a escola. Como afirma Henry Giroux: “Freire [...] acredita que o papel do alfabetizador é entrar num diálogo com as pessoas, a respeito dos temas que tenham a ver com as situações concretas e experiências de vida que fundamentam suas vidas diárias (CORAZZA, 1998, p.11)”. Assim, Paulo Freire nos fornece indicações e nos desafia para a ampliação de sua concepção metodológica. Freire e Lipman creem que toda relação ensino-aprendizagem precisa passar pelo diálogo como forma básica de comunicação. O pensamento construtivista é dialógico, pois é centrado no problema, e também é igualitário, autocorretivo e baseado nos interesses, visões e crenças dos envolvidos. O currículo, na pedagogia freireana, não é dado previamente, é construído coletivamente. Lipman pode colaborar na organização do trabalho educativo fornecendo-nos uma metodologia de problematização e investigação que visa a autonomia do pensar. Em sua proposta, encoraja-se as crianças a operacionalizar, construir e reconstruir conceitos, a empregar métodos de investigação para detectar incoerências e evidências, a buscar conclusões válidas, a empregar critérios e construir hipóteses, pré-requisitos estes para pensar autônoma e criticamente e agir eticamente. A experiência da Escola Municipal Professor Ricardo Krieger/Curitiba-Pr: "Temas Geradores" e "Iniciação Filosófica” A Escola Municipal Professor Ricardo Krieger está situada no bairro Boa Vista e atende as séries iniciais do ensino fundamental. No ano de 1996, conhecemos o Programa Filosofia para Crianças, de Matthew Lipman, e incluímos na grade curricular de nossa escola uma aula semanal de Iniciação à Filosofia, com duração de 1 hora e 10 minutos. A experiência foi sendo aprimorada gradativamente e, no decorrer deste processo, nos questionávamos sobre possibilidades mais amplas de contribuição da investigação filosófica no desenvolvimento do trabalho pedagógico no ensino fundamental. Buscando tratar o conhecimento de forma emancipatória, provocamos uma série de discussões entre os educadores da escola, objetivando a construção de uma proposta pedagógica que valorizasse a 4498 intersubjetividade e formas dialógicas de interpretação da realidade, com o objetivo de colocar em suspenso as maneiras rotineiras e cristalizadas de conhecer. No início de 1999, tivemos a oportunidade de conhecer, num Encontro de Filosofia e Educação em São Paulo, a experiência da Secretaria Municipal de Educação de Cuiabá/MT, através da Professora Mabel Strobel Weimer, então responsável pela reformulação curricular do ensino fundamental naquela cidade. Cuiabá vinha buscando referenciais para a organização do projeto Escola Sarã em Paulo Freire e Lipman, dentre outros educadores e filósofos. A Professora Mabel esteve na escola a nosso convite e com o apoio da SME (Secretaria Municipal de Educação), no ano de 2000. Trabalhou conosco por três dias no mês de março, retornando em julho, para nos auxiliar na avaliação do trabalho que vínhamos desenvolvendo. Desde então a escola tem organizado seu projeto pedagógico a partir de Temas Geradores e Investigação Filosófica, buscando aprofundamento teórico nas idéias de Paulo Freire e Matthew Lipman. Ambos têm em comum o diálogo como fundamento da educação e ambos almejam a consciência crítica. Interrogar é uma atitude filosófica e educativa. Encontramos em Freire uma visão de conhecimento emancipatório, e na sua proposta de Tema Gerador, uma metodologia dialógico-problematizadora e conscientizadora de organização das aulas. Em Freire, o ponto de partida para o trabalho educativo é a leitura crítica da realidade, problematizada pelo diálogo, "pronúncia do mundo". Desde que o trabalho com Temas Geradores foi iniciado, procura-se pesquisar junto ao grupo social a que pertencem nossos alunos - famílias e adultos em geral - as principais questões que interessam ou preocupam as pessoas da comunidade. É preciso conhecer junto com as crianças, o que pensa e sente esse grupo e, por isso, os resultados das pesquisas têm sido discutidos em sala de aula para que se possa ampliar as experiências trazidas pelos alunos e levantar, com eles, possíveis ações em busca de soluções para os problemas detectados. Pela intermediação da linguagem, dialogando a partir de perguntas, procuramos trabalhar para a ampliação do campo conceitual do tema tratado, auxiliando a criança na compreensão e construção de conceitos necessários à sua discussão, num exercício permanente de diálogo, que sabemos ter fundamental importância na formação da identidade. Temos buscado provocar a interdisciplinaridade, acreditando nas ideias de Lipman e Freire. Pais, professores e alunos da escola são envolvidos na organização dos Temas Geradores. A primeira fase da organização do Tema consiste num levantamento de questões 4499 problemáticas na comunidade através de pesquisa com os pais. As questões mais citadas são agrupadas e problematizadas por meio de perguntas. A partir deste mapeamento inicial são nomeados tema e subtemas e os professores planejam seu trabalho. Propomos nas aulas de Iniciação à Filosofia, a organização do campo conceitual do tema e seus subtemas, assim como procuramos discutir questões filosóficas pertinentes a uma melhor compreensão da realidade pessoal e social. A filosofia está presente no currículo quando se tem como objetivo educar o ser humano em sua totalidade. Ela contribui desde a investigação e escolha dos temas geradores até o seu desenvolvimento, provocando a interdisciplinaridade quando se discutem e constroem conceitos acerca de temas que lhe são próprios e que estão relacionados com o tema trabalhado. A própria abordagem filosófica dos temas promove desafios cognitivos às crianças e estes desafios são desencadeadores do desenvolvimento de habilidades de pensamento. Essas habilidades, associadas ao exercício do diálogo e à auto-reflexão geram significações que vão se aprofundando no decorrer do processo. A filosofia coopera na articulação e reconstrução de significados quando proporciona às crianças analisar a coerência e justificação de argumentos, conhecimentos e ações. O aprofundamento da reflexão com os alunos envolve a busca de expressão clara de pensamento nas discussões promovidas em sala de aula, argumentações consistentes, observação e análise de fatos e experiências, expressão crítica e criativa, entre outras habilidades. A possível articulação entre filosofia e as áreas do conhecimento trabalhadas na escola oportuniza a análise crítica da realidade discutindo-se as relações sociais, econômicas e políticas que a caracterizam. A construção da sala de aula como Comunidade Dialógica depende muito da natureza e qualidade das perguntas levantadas por alunos e professores. Na escola Ricardo Krieger estamos constantemente buscando por perguntas investigativas ou abertas, aquelas em que o inquisidor está procurando por algo que não possui. São estas as que realmente nos interessam porque qualquer resposta que se encontre não significa o fechamento da questão, mas justamente a abertura para uma investigação mais profunda; elas refletem e compelem à boa reflexão, encorajando os alunos a examinar ainda mais profundamente as implicações de seus próprios pensamentos. A Comunidade de Investigação proposta como modelo pedagógico por Lipman, indica um caminho a seguir para estruturar o diálogo proposto por Freire nos Temas Geradores. 4500 Procuramos avaliar o processo constantemente, e as próprias crianças nos ajudam nestes momentos. No final de cada ano de trabalho com o Tema Gerador, propomos às crianças, atividades que façam retornar à comunidade algumas das mais importantes questões levantadas no início do ano e o resultado do que discutimos a respeito. Paulo Freire caracteriza assim esse processo de busca de questões na comunidade e retorno a ela no final do trabalho: Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da educação não é uma doação ou imposição - um conjunto de informes a ser depositados nos educandos - , mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada (FREIRE,1999, p.82-83). Finalizando... A força das ideias de Lipman não está propriamente nos materiais que produziu, mas na concepção de educação que propõe. É um novo olhar para o processo pedagógico, um novo fazer. E isso está também presente em Paulo Freire, na ênfase que coloca no diálogo. Se quisermos pensar seriamente a educação de nossas crianças neste tempo de tantas incertezas, é importantíssimo que pensemos na contribuição da investigação filosófica e dialógica para o processo educacional. E existem algumas questões primordiais a serem pensadas neste caminho de busca: • É preciso que procuremos compreender o significado de trabalhar filosofia com crianças a partir da proposta original de Matthew Lipman e dos novos encaminhamentos que têm surgido a partir dela; • há necessidade de discutir formas possíveis da inserção da filosofia no ensino fundamental a partir das experiências que já estão acontecendo no Brasil e no mundo; • é importante estudar as idéias freireanas de Educação Dialógica e possíveis contribuições para um projeto de investigação filosófica; • precisamos buscar diálogo permanente com a psicologia e o que ela tem a dizer sobre o desenvolvimento do pensamento infantil. Estudar Lev Vygotsky, especialmente nas relações que estabelece entre pensamento e linguagem e a formação social da mente; 4501 • é urgente dialogar com instituições de nível superior, dentre outras, buscando possíveis parcerias para essa discussão. • é preciso abrir-se a possíveis críticas, pois elas nos ajudam a aperfeiçoar o trabalho; • é necessário abrir, especialmente em Curitiba, um amplo debate sobre o papel da filosofia na escola. Há profissionais que acreditam que é importante que a filosofia tenha um espaço próprio no currículo; há outros que acreditam que uma metodologia crítico-dialógica deve permear o trabalho com as áreas do conhecimento, não sendo necessário também um espaço específico. São grandes desafios que precisam ser enfrentados se realmente quisermos aproximar a educação de nossas crianças à realidade vivida, trazendo sentido para o que aprendem e trabalhando para a sua autonomia e emancipação. REFERÊNCIAS ARIÈS, Philips. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar. 1975. CANDIDO, Celso e CARBONARA, Vanderlei.(org.) Filosofia e ensino: um diálogo transdisciplinar. Ijuí: Ed. Unijuí, 2004. CORAZZA, Sandra Mara. Tema Gerador: concepção e prática. 2ª ed. Ijuí: UNIJUÍ, 1998. DANIEL, Marie-France. A filosofia e as crianças. São Paulo: Nova Alexandria, 2000. DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO FUNDAMENTAL. Brasília: MEC, 1998. DIRETRIZES CURRICULARES MUNICIPAIS. Curitiba: SME, 2000. FAZENDA, Ivani. Práticas interdisciplinares na escola. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 1997. FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação?10ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992. ____________ Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.8.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1998. ____________ Pedagogia do oprimido. 27ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1987. GALLO, Sílvio. Ética e cidadania no ensino de filosofia. Piracicaba: UNIMEP, 2000. 4502 GIACOMASSI, Rejane. Conhecimento e aprendizagem significativa em filosofia: diálogo e investigação filosófica no currículo do ensino fundamental. Curitiba, 2004. Monografia apresentada no curso de graduação em filosofia. UFPR. GIACOMASSI, Rejane; GIACOMASSI, Marilene et al. A relação do professor com o conhecimento a partir de uma perspectiva interdisciplinar. Curitiba, 1999. Monografia apresentada no curso de pós-graduação Interdisciplinaridade na Educação Básica. Faculdades Integradas Espírita. KOHAN, Walter O. A Infância da educação: o conceito de devir-criança. Rio de Janeiro: VI Encontro de Pesquisa em Educação da Região Sudeste. Maio/2004. KOHAN, Walter O. e LEAL, Bernardina(org.) Filosofia para crianças em debate. Petrópolis: Vozes, 1999. KOHAN, Walter O. e WAKSMAN,Vera. Filosofia para crianças na prática escolar. Petrópolis: Vozes, 1999. LIPMAN, Matttew; SHARP, Ann M. A filosofia na sala de aula. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. LIPMAN, Matthew. A filosofia vai à escola. São Paulo: Summus, 1990. MOREIRA, Antonio Flavio e SILVA, Tomaz Tadeu (org.) Currículo, cultura e sociedade.4.ed. São Paulo: Cortez, 2000. MURARO, Darcísio. A dimensão do pensar na educação escolar: o pensamento reflexivo como princípio educativo em John Dewey. São Paulo: Dissertação de mestrado/PUC, 1998. Parâmetros Curriculares Nacionais: Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997, p. 111. Secretaria Municipal de Educação de Cuiabá. Escola Sarã: Cuiabá nos Ciclos de Formação. Cuiabá: SME, 2000. SHARP, Ann M. e SPLITTER, Laurance J. Uma nova educação: a comunidade de investigação na sala de aula. São Paulo: Nova Alexandria, 1999. THEOBALDO, M. C. Educação para o pensar e pensamento. Col. Pensar. São Paulo: CBFC, 1998.