REINTERPRETANDO A “CONSTRUÇÃO” DO CÁLCULO DIFERENCIAL E INTEGRAL DE LEIBNIZ COM USO DE RECURSOS GEOMÉTRICOS Sérgio Carrazedo Dantas [email protected] _________________________________________________________ Resumo Nesse texto apresentamos algumas deduções que Leibniz realizou para chegar ao Cálculo Diferencial e Integral. Para tanto abordamos conceitos como sequências de diferenças, triângulos característicos e transmutações. Esses conceitos aliados a algumas das questões que Leibniz buscava responder, como a quadratura de curvas possibilitou “sua invenção” do Cálculo Integral e Diferencial. _________________________________________________________ Introdução Nesse texto apresentamos alguns problemas e as soluções encontradas por Leibniz que levaram-no a “sua invenção” do Cálculo Diferencial e Integral. Apresentamos os tópicos sequências de diferenças, triângulos característicos e transmutações aliados a uma interpretação geométrica com o emprego do Software GeoGebra1. Concluímos com a formalização em notação atual do cálculo de área por meio de integral definida. Sequências de diferenças No ano de 1672 Leibniz foi defrontado com a seguinte pergunta: “Qual é a soma dos recíprocos dos números triangulares?” Os números triangulares fazem parte de uma sequência numérica que representa um elo entre a Aritmética e a Geometria, as chamadas sequências figuradas. Na figura a seguir são apresentados os quatro primeiros termos da sequência de números triangulares e o seu termo geral. Figura 1: Representação gráfica dos primeiros termos da sequência de números triangulares 1 Alguns dos gráficos que ilustram o texto possuem objeto interativo que disponibilizamos no site www.maismatematica.com.br/leibniz. Tais gráficos aliados a leitura do texto podem contribuir com a compreensão das deduções de Leibniz. Por reciproco de um número entende-se o seu inverso. Assim, Leibniz deveria encontrar a soma dos inversos dos números triangulares, o que se traduz em: 1 1 1 1 2 1 ... 3 6 10 15 r(r 1) Para realizar esse cálculo, Leibniz fez uso de sequências de diferenças, conceito que já havia estudado em função de outras motivações. Considere uma sequência (an) = a1, a 2 , a 3 , a 4 ,...,a n . A partir dos termos de (an) é possível obter uma sequência (bn), tal que: b1 = a1 a 2 b2 = a 2 a 3 b3 = a 3 a 4 ... b n = a n a n 1 Assim, b1 b2 b3 ... bn a1 a 2 a 2 a 3 a 3 a 4 ... a n a n 1 b1 b2 b3 ... bn a1 a n 1 Em outras palavras, isso significa que Leibniz descobriu que uma sequência cujos termos podem ser escritos como diferenças são facilmente somados. E, voltando a pergunta inicial, Leibniz notou que: 1 1 1 1 2 1 ... 3 6 10 15 r(r 1) r n 1 2 r(r 1) r n 1 2 2 r r 1 Daí concluiu que: r n 1 2 r(r 1) r n 1 2 2 2 2 2 r r 1 As sequências de diferenças serviram de ferramenta para Leibniz calcular somas de números impares e sequências numéricas no triângulo harmônico2. A partir do estudo das sequências de diferenças Leibniz concluiu que “somar sequências e tomar as suas sequências de diferenças são operações mutuamente inversas em certo sentido” (Baron, 1985). 2 Para mais detalhes consulte Boyer páginas 264-267 e 293-294. Para ilustrar a conclusão apresentada anteriormente, considere a curva da representação gráfica de x1, x 2 , x3 , x 4 , x5 ,..., x n em f (x) x que 3 . Considere x n x n 1 1 ainda e a a sequência sequência y1, y2 , y3 , y4 , y5 ,..., yn em que cada yr f x r com r N*. Figura 2: Representação gráfica de f (x) x com as sequências (xn) e ( yn). Considere também a reta secante s por x1, f x1 e x 2 , f x 2 . Figura 3: Representação gráfica de f (x) x e da reta secante s. Como x 2 x1 1 , temos que o declive da reta s é dado por: ms 3 f x 2 f x1 f x 2 f x1 f x 2 f x1 x 2 x1 1 Leibniz não utilizou uma expressão analítica para a curva e sim um arco arbitrário passando por três pontos. Nossa escolha deve-se a relação que pretendemos estabelecer entre curvas e as expressões analíticas da área de regiões que limitam. Assim, o declive de uma reta secante por x n1,f x n1 e x n ,f x n é calculado por f x n f x n 1 , ou seja, pela diferença das ordenadas. Leibniz concluiu ainda que tomando x 2 x1 1 , a área limitada pelo gráfico n de f(x) no intervalo x1, x n é calculada por y r . Isso é possível tomando a unidade r 1 1 o quanto menor possível. Figura 4: Escolha da unidade 1 a cada vez menor. www.maismatematica.com.br/leibniz/g1.html Segundo Baron, Leibniz percebeu [...] uma analogia entre o cálculo de diferenças finitas e somas, por um lado, e a determinação de áreas e de tangentes pelo outro: a adição das sequências correspondia à quadratura de curvas; tomar as diferenças correspondia à determinação das tangentes. A relação inversa entre tomar somas e diferenças sugeriu a Leibniz que as determinações de áreas e de tangentes também são operações inversas. (1985, p. 46) Triângulo característico Em um segundo momento, Leibniz utiliza as sequências de diferenças juntamente com os chamados triângulos característicos que abordamos a seguir. Para realizar a construção do triângulo característico tomamos a mesma curva dos exemplos anteriores, ou seja, f (x) x . Consideramos ainda os pontos O, C e T sobre essa curva. Figura 5: Representação gráfica de f (x) x e das retas tangente t e normal n. Por C é traçada a reta tangente t que intercepta o eixo x em G e o eixo y em S. E ainda por C é traçada a reta normal n que intercepta o eixo x em E. Sobre a reta t obtém um ponto C1 próximo do ponto C. A partir desses pontos construímos o triângulo CC1D, com ângulo reto no vértice D. Figura 6: Representação gráfica de f (x) x e do triângulo CC1D. O triângulo CC1D é chamado de triângulo característico. Transmutação Nas últimas construções é possível identificar triângulos semelhantes ao triângulo característico. Na Figura 7 é exibido o triângulo CBE. Figura 7: Triângulos semelhantes CEB e CC1D. A Figura 9 exibe o triângulo GBC também semelhante ao triângulo característico CC1D. Figura 8: Triângulos semelhantes GBC e CC1D. Pelo ponto O traçamos uma perpendicular a reta t obtendo o ponto P. O triângulo OSP também é semelhante ao triângulo característico CC1D. Figura 9: Triângulos semelhantes OSP e CC1D. www.maismatematica.com.br/leibniz/g2.html Na sequência dessa construção obtemos o ponto B1 de tal maneira que B1D seja perpendicular ao eixo x. Em seguida, obtemos os pontos Q e Q1 por uma paralela ao eixo x por S, e construímos o retângulo BB1Q1Q. Figura 10: Retângulo BE1Q1Q. Na Figura 12 destacamos o triângulo CC1O de altura OP. Figura 11: Triângulo CC1O. www.maismatematica.com.br/leibniz/g3.html A área do triângulo CC1O pode ser calculada pela seguinte expressão: 1 área CC1O .CC1.OP 2 Como os triângulos CC1O e OSP são semelhantes, temos: CC1 OS CC1.OP CD.OS CD OP 1 1 1 Assim, a área CC1O .CC1.OP .CD.OS .CD.BQ 2 2 2 Desse modo Leibniz mostrou que é possível calcular a área do triângulo CC1O a partir da área do retângulo BB1Q1Q. E daí concluiu que para cada ponto Ci é possível encontrar um ponto Q pertencente a uma curva OQJ. Com isso ele reduz a quadratura de uma curva dada OCT à quadratura de outra curva OQJ que pode ser construída a partir da curva dada mediante suas tangentes. Figura 12: Curva OQJ que representa a quadratura de OCT. Assim, a área abaixo da curva OCT, acima do eixo x e limitada no intervalo x O , x T é calculada por: área OCTR n i 1 1 área OCTR . 2 área dos triangulos OCi1Ci área OTR n i 1 área BBiQiQ área OTR Figura 13: Área da região OCTR. www.maismatematica.com.br/leibniz/g4.html Como cada ponto Ci possui um correspondente Qi é possível encontrar uma expressão analítica para o calculo da área da região OCTR. Figura 14: Curvas OCT e OQC com indicações de x, y, dx e dy. Para iniciar a dedução da expressão analítica ressaltamos que x = OB, y = BC e 1 1 1 ax z BQ . Temos assim que OS BC , ou seja, z y 2 2 2 Temos ainda que dy CQ dy BC BQ dy y z . dx BO dx BO dx x Da última igualdade obtemos z y x. dy dx (1) Integrando em relação a x ambos os membros da equação (1), obtemos xT xO z dx xT xO dy y x. dx dx Logo, a área da região OCTR é calculada por área OCTR 1 2 xT xO dy 1 y x. dx+ x T .yT dx 2 1 2 xT 1 2 xT xO xO 1 y dx 2 xT xO 1 dy x. dx x T .yT 2 dx 1 y dx x T .yT 2 xT xO 1 y dx x T .yT 2 1 2 xT xO 1 1 y dx x T .yT 2 2 xT xO 1 y dx x T .yT 2 xT y dx xO Atualmente, a expressão xT y dx é lida como a “integral definida de y em xO relação a x no intervalo xO , xT ”. É possível notar, nas demonstrações que apresentamos até aqui, que foi considerado apenas um arco com concavidade voltada para baixo e por uma função f crescente. Podemos notar ainda que a área abaixo da curva é calculada pela soma da área do triângulo ORT com a soma das áreas dos triângulos OCi – 1Ci, cujas áreas, devido as proporções existentes são calculadas em função da medida do lado OS do triângulo OPS, que são as alturas dos retângulos BBiQiQ. Figura 15: Curvas OCT e sua transmutada OQC com 10 triângulos OCCi e seus respectivos retângulos BBiQiQ. www.maismatematica.com.br/leibniz/g5.html Essa escolha permite deduzir uma expressão analítica para a curva OQJ. Vejamos cada um dos quatro casos existentes e a dedução da expressão analítica T(x) da curva OQJ. Caso 1: Função crescente com concavidade voltada para baixo. Figura 16: Gráfico de função crescente com concavidade voltada para baixo www.maismatematica.com.br/leibniz/g6.html Caso 2: Função crescente com concavidade voltada para cima. Figura 17: Gráfico de função crescente com concavidade voltada para cima www.maismatematica.com.br/leibniz/g7.html Caso 3: Função decrescente com concavidade voltada para cima. Figura 18: Gráfico de função decrescente com concavidade voltada para cima www.maismatematica.com.br/leibniz/g8.html Caso 4: Função decrescente com concavidade voltada para baixo. Figura 19: Gráfico de função decrescente com concavidade voltada para baixo www.maismatematica.com.br/leibniz/g9.html Em cada um dos casos 1, 2, 3 e 4, a área da região OCTR é calculada pela soma área OTR n i 1 área dos triangulos OCi1Ci . O primeiro termo dessa expressão corresponde a área do triângulo OTR e o segundo termo corresponde a região transmutada para curva OQJ ou RQJ. Já sabemos que a soma das áreas dos triângulos OCi1Ci é equivalente a um meio da soma das áreas dos retângulos BBi Qi Q , ou seja, n i 1 1 OCi1Ci . 2 n i 1 BBi Qi Q Sabemos ainda que a altura BQ de cada retângulo BBi Qi Q corresponde a ordenada do ponto S4, o que é equivalente a afirmar que a altura de cada retângulo BBi Qi Q é a ordenada de Qi que pode ser calculada por: Q(x) f (x) df (x) x x 0 f (x 0 ) dx Essa última expressão possibilita compreender a relação que Leibniz fez quando afirmou que “as determinações de áreas e de tangentes também são operações inversas” (Baron, 1985). O que nos leva a afirmar que a “invenção” do Cálculo por Leibniz surgiu a partir da resolução de um problema em que foram uteis e desenvolvidas simultaneamente conceitos de derivada e de integral. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARON, M. E. Curso de História da Matemática: origem e desenvolvimento do Cálculo. Brasília, UnB, v.1/2/3/4/, 1985. GUIDORIZZI, Hamilton Luiz, Cálculo, Volume 1 – 5ª edição LTC Editora. LIMA, Elon Lages, Curso d Análse, Volume 1 – IMPA. SWOKOWSKI, Earl W., Cálculo com Geometria Analítica, Volume 1 – 2ª edição – MAKRON Books do Brasil Editora Ltda. 4 O ponto S é obtido pela intersecção da tangente t intercepta a reta x = xo