PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS DECORRENTES DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Daniel Prochalski Advogado sócio da João Paulo Nascimento & Associados - Advogados e Consultores. Especialista em Direito Tributário e Processual Tributário pela PUC-PR. Mestre em Direito Empresarial e Econômico pelo Centro Universitário Curitiba. Professor de Direito Tributário no CESCAGE -Centro de Ensino Superior dos Campos Gerais 1. Estado Democrático De Direito A transição do Estado de Direito para o Estado Democrático de Direito verifica-se com especial destaque no enriquecimento da carga valorativa existente na expressão “liberdades”, cuja eficácia jurídica vem exigindo sua efetivação não só no aspecto negativo, correspondente à clássica noção do princípio da legalidade no âmbito privado, em que ao indivíduo é facultado fazer tudo aquilo que a lei não proíbe, mas também e especialmente no aspecto positivo, pelo qual não basta que a atividade dos indivíduos não esteja vedada pela lei, sendo necessário que esteja de acordo com a proteção aos direitos sociais positivados constitucionalmente. Essa evolução jurídica tem como um de seus marcos iniciais a idéia de república. Da essência legítima de república, bem como de sua etimologia (res publica = coisa do povo) nasceram várias idéias, muitas das quais passaram a representar verdadeiros princípios presentes nas modernas constituições. Mas foi seguramente na noção de representatividade no poder que o princípio republicano mais se disseminou por quase todo o mundo. E representatividade nada mais é do que governar através da lei. Disso resulta, como inferência lógica, que o princípio da legalidade está umbilicalmente ligado às diretrizes republicanas, desde que o governo, mesmo que através de leis, seja real e efetivamente expressão da vontade popular, forte na noção de auto-governo, idéia que remonta às teorias sobre o contrato social de Hobbes, Locke e em especial de Rousseau. À noção de república confluem os ideais da democracia, tendo vários autores até mesmo concluído pela confusão conceitual entre ambos os termos, 1 crescendo assim em grande escala a utilização da expressão república democrática. É também na reunião de ambas as idéias que CANOTILHO afirma que “(...) a ‘forma republicana de governo’ reivindica uma legitimação do poder político baseado no povo (‘governo do povo’). Num governo republicano a legitimidade das leis funda-se no princípio democrático (sobretudo no princípio democrático representativo) com a conseqüente articulação da autodeterminação do povo com o ‘governo de leis’ e não ‘governo de homens’”.1 Também em nosso ordenamento jurídico vigora o princípio republicano, tendo a Constituição de 1988, previsto, já em seu artigo 1°, que “A República Federativa do Brasil” – acrescentando adiante, no mesmo artigo – “constitui-se em Estado Democrático de Direito”. Aqui surge, qualificado pela democracia, outra expressão jurídica: Estado de Direito. Mas a história demonstra que nem sempre o Direito (legítimo) foi o adjetivo na grande maioria dos Estados. No Estado Moderno – que nasce em razão do fim dos feudos, na Europa, diversamente do que ocorreu na Antiguidade clássica e na sociedade feudal, verificou-se uma “(...) crescente concentração de poder nas mãos do príncipe, (...) operada com o auxílio da noção de soberania recém-elaborada por juristas e teóricos” – diríamos forjada – o que resultou no surgimento do Estado absolutista.2 Esta situação gerava insegurança nas relações jurídicas, situação agravada com a existência de várias ordens paralelas (clero, nobreza etc.). Todos os problemas gerados pelo Estado Absoluto, aliados ao surgimento do racionalismo iluminista, favoreceram, ideológica e politicamente, a eclosão das revoluções burguesas, surgindo, com esse movimento, a chamada teoria constitucional, a qual daria ao Estado uma constituição jurídica, com o objetivo de fixar os limites do poder político e vincular esse Estado à sociedade civil, através da positivação dos direitos individuais aspirados pela burguesia. Por propiciar tais ensejos, ganhou relevância a teoria da separação dos “poderes” – primeiro através de Locke e depois com seu precursor, Montesquieu – sendo adotada nas constituições seguintes, tanto nos Estados Unidos como na França, iniciando-se então o processo de sua positivação. 1 2 Direito constitucional e teoria da constituição, p. 223. CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, Atividade legislativa do poder executivo, p. 21-22. 2 É comum referir-se ao liberalismo como sendo o modelo do qual resultaram dois legados: um, no âmbito econômico, representado pela idéia de bemcomum, advindo das leis naturais do livre mercado; e outro, no espectro político, representado de forma especial pela positivação das liberdades nos ordenamentos jurídicos. O liberalismo econômico puro, como é cediço, quedou impotente ante a inevitável conclusão de uma necessária participação estatal na regulação do mercado e na prestação de serviços ao público, sendo que a discussão ideológica permanece quanto à intensidade e à dimensão mais indicadas de intervenção. O liberalismo político legou-nos o primado do Estado de Direito, consolidando a idéia da inviabilidade de um Estado que não fosse criado e regulado pela ordem jurídica legitimamente instituída. As características básicas desse modelo seriam, conforme ensina JOSÉ AFONSO DA SILVA, (a) a submissão ao império da lei, que era a essência do seu conceito, sendo a lei necessariamente considerada ato emanado formalmente do Poder Legislativo, composto de representantes do povo-cidadão; (b) divisão de “poderes”, para que os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário sejam separados com independência e harmonia, resultando em técnica que garanta a produção legislativa ao primeiro, a viabilidade do atendimento das exigências sociais ao segundo e a independência e a imparcialidade do último diante dos demais e das pressões do setor privado mais poderoso; e, por fim, o (c) enunciado e a garantia dos direitos individuais. Essas exigências continuam a ser postulados básicos do Estado de Direito, o qual representa uma grande conquista da civilização liberal.3 A teoria da separação de “poderes”, por constituir-se em mecanismo de garantia das liberdades individuais, conquistou prestígio na doutrina constitucional do liberalismo, “(...) doutrina política que fundamentou a construção da teoria do Estado de Direito; um Estado juridicamente limitado pela Constituição e ideologicamente assumido pela doutrina liberal”.4 A liberdade de que se fala no liberalismo não é a mesma da antiguidade, que se exercitava através de uma forma direta de democracia, mas um novo conceito, que define um campo de autonomia do cidadão e da sociedade em contraposição à autonomia estatal. O Estado deve ser concebido como expressão da vontade dos indivíduos (contratualismo), e deve ter o seu 3 4 Curso de direito constitucional positivo, p. 112-113. CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, Atividade legislativa..., op. cit., p. 34. 3 poder e os seus fins limitados. O único fim do Estado liberal parece ser o de garantir a segurança de que os indivíduos necessitam para que possam livremente desenvolver-se. O liberalismo defendia a responsabilidade do Estado somente para garantir a segurança das relações sociais, não possuindo outras funções além da legislativa, da executiva e da judicial. No início do capitalismo, os liberais acreditavam que o egoísmo em geral produziria o bem comum através de uma “mão invisível”, sem imaginarem que as mudanças provocadas pela acumulação de capital e a recente noção de poder econômico exigiriam uma mudança no Estado e no Direito. Para o liberalismo, o Parlamento representava a vontade da nação, que não se confundia com o povo ou com o eleitorado. A conquista do sufrágio universal, portanto, teve a virtude de conciliar as idéias de liberalismo e democracia, que, em suas origens, não são coincidentes. Mas ainda mesmo nos Estados de Direito em que não se verificaram tendências totalitárias, demonstrou-se que o individualismo e o neutralismo do Estado liberal resultaram em grandes injustiças, deflagradoras de importantes movimentos sociais, ocorridos em especial nos dois últimos séculos. O qualificativo “liberal”, desse modo, não era mais “bem visto” ao Estado de Direito, o qual não mais poderia justificar-se de tal forma. Como conseqüência, percebeu-se o abandono da visão meramente formal do Estado de Direito, nascendo de tal transição paradigmática um Estado material de Direito, acrescendo, à positivação jurídica das liberdades, o “plus” dos direitos sociais, donde nasce o Estado Social de Direito. Entretanto, JOSÉ AFONSO DA SILVA anota que, embora a concepção liberal do Estado de Direito tenha servido de apoio aos direitos do homem, transformando os súditos em cidadãos livres, verificou-se a existência de concepções deformadoras, “(...) pois é perceptível que seu significado depende da própria idéia que se tem do Direito”, do que resulta sua ambigüidade quando apartado de outro qualificativo que indique qual é o seu conteúdo material. Diante disso, e apoiado em construções formalistas e normativistas do Direito, infelizmente serviu a interesses de regimes totalitários e ditatoriais, como ocorreu na Alemanha nazista.5 A limitação jurídica estatal cede espaço diante da necessidade do Estado de assumir novas funções. Os direitos fundamentais, antes restritos à idéia de liberdades negativas (dever de abstenção do Estado), agora incluem os chamados direitos econômicos, sociais e culturais (prestações positivas pelo Estado). Fatores como 5 Curso..., op. cit., p. 113-114. 4 a crise capitalista, sufrágio universal, reivindicações dos trabalhadores, revoluções socialistas, redução das empresas, oligopólio, sociedade de massas, urbanização etc., acabaram por exigir o nascimento do Estado Social de Direito, fenômeno que não pôde ser ignorado pelo direito constitucional, tendo como primeiros modelos a Constituição mexicana de 1917 e a alemã de 1919 (Weimar), surgindo, no Brasil, com a Constituição de 1934. Diante das numerosas exigências que lhe são feitas, e em decorrência das profundas modificações sofridas no meio social, o Estado avolumou-se, inchou. E é o mesmo Estado quem tem o dever de assegurar as liberdades, abstendo-se muitas vezes de ultrapassar certos limites. A liberdade outrora existente, não é mais imaginável hoje. Os indivíduos dependem do Estado para quase tudo, além de dependerem uns dos outros. Além de indivíduos, a sociedade é formada hoje por grandes grupos – sindicatos, igreja, partidos políticos, grandes empresas, bancos etc. – cada um com interesses muitas vezes conflitantes com outros grupos ou com o próprio Estado. Assim, tem o Estado a função de quebrar o domínio dos grupos e corporações. Em um Estado social, o Executivo vê ampliada sua atuação, pois é um Estado de serviços, o que lhe dificulta uma conciliação com o Estado de Direito, pois “(...) a separação de poderes só tem sentido em um Estado de Direito”.6 Não faltam exemplos de Estados sociais que se tornaram totalitários. É que, diante da ambigüidade da expressão “social”, o modelo do “Estado Social de Direito”, infelizmente, serviu de justificativa para a implantação de uma série de regimes em que se verificou total desrespeito à vontade popular e aos mínimos direitos humanos. Foram, assim, “Estados Sociais”, a Alemanha nazista, a Itália fascista, e inclusive o Brasil, na época do Estado novo. O Estado “Social” comporta, portanto, a coexistência de regimes políticos antagônicos, como a democracia, o fascismo e o nacional-socialismo. O “social” deve qualificar o Direito, e não o Estado. Conclui-se, portanto, que, nem o Estado liberal de Direito, nem o Estado social de Direito, garantem a existência de um Estado Democrático, regime fundado na soberania popular, exigindo a participação formal e material do povo, não só na formação das instituições representativas, mas, além disso, na gestão da coisa pública, visando “(...) realizar o princípio democrático como garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana”.7 6 7 CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, Atividade legislativa..., op. cit., p. 34. JOSÉ AFONSO DA SILVA, Curso..., op. cit., p. 115-117. 5 Como bem observou BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS, “(...) entre as ruínas que se escondem atrás das fachadas, podem pressentir-se os sinais, por enquanto vagos, da emergência de um novo paradigma”; ou dizendo de outro modo, os novos paradigmas sempre nascem das mazelas dos velhos paradigmas.8 Assim, do Estado absoluto, nasceu o Estado Liberal, e desse surgiu o Estado Social. Mas, após o fim da Segunda Guerra Mundial, o Estado social e o Estado de Direito reencontraram-se, com a união do novo papel do Estado à já conquistada sujeição do Estado ao Direito. É quando nascem os Estados Democráticos de Direito. Do princípio republicano democrático, portanto, bem assim dos fundamentos do Estado de Direito, surgem, para o cidadão, direitos fundamentais, entre nós, positivados no rol do artigo 5° da Constituição de 1988, assim como vários direitos sociais, indicados no artigo 7º da Lei Maior. Dentro do Direito Tributário, porém, sempre foi dado destaque aos direitos à liberdade, à igualdade, à segurança jurídica e à propriedade, devido em grande parte à estreita vinculação desse ramo jurídico com o princípio da legalidade.9 É importante, no entanto, atentar para os novos conteúdo e alcance do princípio da legalidade, renovado com novos matizes, após o advento do Estado Democrático de Direito, como expressa com propriedade JOSÉ AFONSO DA SILVA, constitucionalista que defende ser a legalidade um princípio basilar do Estado Democrático de Direito, modelo que, como todo Estado de Direito, sujeita-se ao império da lei, mas da lei que realize o princípio da igualdade e da justiça, não pela sua generalidade, mas pela busca da equalização das condições dos socialmente desiguais. Mais adiante, ressalta que o Estado Democrático de Direito “(...) tem que estar em condições de realizar, mediante lei, intervenções que impliquem diretamente uma alteração na situação da comunidade”, pois “(...) a lei não deve ficar numa esfera puramente normativa (...), pois precisa influir na realidade social”.10 Não se poderia chegar a outra conclusão, pois se a Constituição é o berço legítimo das transformações 8 Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática, v.1, A crítica da razão indolente: contra o desperdiço de experiência, p. 16. 9 O direito à vida, direito fundamental por excelência, é patrimônio primeiro do cidadão, devendo ser priorizado em qualquer circunstância. Apenas não o citamos, aqui, em razão de que a tributação atual, apesar de agressiva, felizmente não tem ocasionado violações à vida, pelo menos não diretamente, pois se poderia defender que, do regime tributário do país, resultam as mazelas sociais e econômicas, e que por via reflexa, portanto, a tributação seria a causa das mortes ocorridas, devido a estados extremos de pobreza e subnutrição. 10 Curso..., op. cit., p. 121-122. 6 políticas, econômicas e sociais almejadas pela sociedade brasileira, a lei terá importância fundamental, posto que, na qualidade de expressão clássica do direito positivo, fruto do desdobramento do conteúdo constitucional, revela-se como instrumento de transformação democrática da sociedade. No presente trabalho, essa nova perspectiva, resultante do advento do Estado Democrático de Direito, implica uma necessidade de uma nova consciência político-tributária, tanto para os representantes do povo como para os contribuintes. Esse novo contexto é marcado, de forma especial, pelo influxo, no âmbito tributário, do valor constitucional da solidariedade social, previsto no artigo 3º da Constituição Federal de 1988. 2. Sistema Tributário Nacional A análise jurídica de qualquer tributo, inserido no ordenamento jurídico pátrio, não pode ser feita somente a partir de seus dispositivos específicos, o que pressuporia a interpretação isolada dos textos normativos, como se eles gozassem de uma autonomia normativa. “Não há norma jurídica avulsa, como que pairando no ar...”, dizia, com autoridade científica, GERALDO ATALIBA, acrescendo que não é possível entender o texto, “(...) sem inseri-lo no contexto do qual faz parte”.11 Com efeito, não há outra opção hermenêutica válida, legítima, senão aquela que privilegie uma interpretação sistemática de toda e qualquer norma, dentro do seu respectivo sistema. O maior ou menor sucesso nessa empreitada dependerá, ainda, de um correto e coerente dimensionamento axiológico dos princípios maiores que informam o ordenamento jurídico, é dizer, há que se saber aplicar, em cada caso, qual é o princípio que revela o vetor constitucional mais indicado para que a solução final seja consentânea com os valores prestigiados no sistema, aqui e agora. A razão disso está no entendimento de que não há relação de hierarquia entre os princípios constitucionais, em especial entre aqueles de maior envergadura – com graus de generalidade e abstração equivalentes – senão um campo de aplicação específico para cada um, hipótese em que todos os demais deverão ser, 11 Imposto sobre serviços: competência tributária é, eminentemente, legislativa – matéria constitucional – função das normas gerais de direito tributário – ampla autonomia tributária do Município – tributação dos serviços de vigilância bancária, Revista de Direito Tributário, n. 35, p. 69. 7 para aquele caso único, desconsiderados, posto ser aquele princípio eleito o único que realiza, por meio de uma só norma, o Direito como um todo. Há casos, por exemplo, em que o valor da segurança jurídica determinará a aplicação do princípio da legalidade tributária ou de seu corolário imediato, a tipicidade fechada da norma tributária, e a conclusão pela inaplicabilidade do princípio da isonomia tributária. Em outra situação, nada impede que, por exigência inafastável de prestígio ao cânone da capacidade contributiva, a isonomia tributária deva ser a opção do intérprete. Quando se fala em “aplicação de um princípio”, ou “opção por um princípio”, parte-se da premissa implícita de que essa “aplicação” ou “opção” é efetivada com uma independência parcial do intérprete, pois em razão de os valores já estarem positivados no sistema, àquele somente resta, no plano pragmático da linguagem jurídica, subsumir seus valores pessoais à ideologia encampada pela Constituição. É lógico que, devido ao elevado grau de abstração e generalidade das normas que revelam princípios, evidencia-se uma verdadeira e legítima “folga interpretativa”, espaço no qual se justifica a convivência de conclusões diferentes sobre o mesmo tema, assim como é o que permite às expressões e vocábulos, constantes dos textos normativos, adaptarem-se às peculiaridades fáticas, no tempo e no espaço. Essa “flexibilidade” existente no sistema jurídico, verificável, como se disse, somente no nível pragmático da linguagem jurídica, e que peculiariza a lógica da Ciência do Direito (“dever-ser”) diante da lógica inerente às ciências naturais (“ser”) é a única justificativa legítima para resultados interpretativos divergentes. Fora dessa perspectiva, qualquer análise de um texto normativo resulta falsa, não podendo nem mesmo ser qualificada como interpretação, pois, ou a interpretação é sistemática, ou de interpretação não se trata. É o caso clássico da interpretação literal (gramatical) que, apesar de válida como um primeiro estágio hermenêutico, não é bastante em si para chegar a qualquer resultado verdadeiro. De resto, o caráter sistemático e unitário do Direito é, em rigor, verdadeiro axioma, que por essa razão dispensa maiores esforços em sua demonstração. O Sistema Tributário Nacional é expressão que abrange todas as normas, constantes do ordenamento jurídico, que disciplinam as relações jurídicas tributárias. Constitui-se, portanto, em verdadeiro subsistema, em razão das peculiaridades que esse ramo jurídico apresenta. Não se quer com isso afirmar a existência de foros de autonomia científica para o Direito Tributário, pois já é cediço 8 que o caráter unitário do Direito impede possa um determinado ramo jurídico pretender ser titular de institutos e conceitos próprios, desvinculados do restante do sistema jurídico. Quando muito, há uma autonomia tão-só didática, e que não passa de relativa, pois não há ramo jurídico cujo ensino prescinda do recurso às demais áreas do Direito. O Direito Tributário, além de não poder ser diferente, é intensamente marcado por essa característica. Basta um breve lançar de olhos a qualquer norma jurídica tributária, em cuja hipótese de incidência são facilmente identificáveis conceitos e institutos advindos de outros ramos, em especial do Direito Civil e do Direito Comercial. No plano do Direito Tributário formal, onde estão inseridas as normas jurídicas que tratam da exigibilidade dos tributos, destacam-se as participações do Direito Administrativo e do Direito Processual. Não por outra razão o Direito Tributário é denominado de “direito de superposição”. O Sistema Tributário Nacional, assim como o sistema jurídico, pode ser vislumbrado como a clássica figuração da pirâmide jurídica. No ápice estão as normas jurídicas que, não obstante existirem em menor número, são as mais importantes do ponto de vista axiológico, o que lhes confere a posição hierárquica superior. A cada degrau da pirâmide, reduzindo-se o grau de abstração e generalidade, as normas tributárias vão aumentando em quantidade e concreção, mas sempre tendo a forma e o conteúdo vinculados ao que dispõem as normas superiores, que lhes servem de fundamento de validade. São as normas constitucionais, portanto, que ocupam o mais alto nível na hierarquia normativa. Dentre elas, ainda se podem classificar as mais relevantes, e que condicionam a interpretação do restante do ordenamento jurídico, inclusive das demais normas constitucionais. São os chamados princípios constitucionais e, para o que interessa ao presente estudo, os princípios constitucionais que orientam a aplicação de todo o Direito Tributário brasileiro. Com essa afirmação não se quer defender que apenas os princípios constitucionais previstos no Capítulo I do Título VI (Do Sistema Tributário Nacional) orientam a aplicação do Direito Tributário no Brasil. Isso implicaria franca contradição com a anterior afirmação da inexistência de autonomia do Direito Tributário. Essa exigência hermenêutica foi bem demonstrada por HUMBERTO ÁVILA, em acertada crítica sobre a “combinação de princípios” levada a 9 efeito pela tradicional interpretação sistemática do Direito Tributário, onde a descrição, pela doutrina, das limitações ao poder de tributar abrange, em geral, as limitações negativas, sem uma investigação mais profunda e conjunta das limitações positivas, como, por exemplo, a proporcionalidade e os princípios e direitos fundamentais.12 3. Princípios Constitucionais Tributários13 O artigo 150, da Constituição Federal de 1988, antes de enumerar em seus incisos as mais importantes “limitações constitucionais ao poder de tributar”, dispõe, em seu caput, o seguinte:“Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:...” (grifamos). Ou seja, a expressão “outras garantias” confere a certeza de que os princípios constitucionais tributários subsumem-se entre os “direitos e garantias individuais” previstos no artigo 60, § 4°, IV, da Constituição Federal de 1988, o que os qualificam como cláusulas pétreas. E não poderia ser de outra forma. São os princípios que presidem o funcionamento de todo o sistema jurídico. Se assim não fosse, o Direito seria um amontoado de normas, cuja aplicação em cada caso dependeria do humor momentâneo do magistrado, instaurando-se o caos da insegurança jurídica e da inexistência de certeza do Direito. Dessume-se, então, que as noções de sistema jurídico e princípio são indissociáveis. É da essência de todo e qualquer sistema a existência de elementos mais importantes que comandam a intelecção e aplicação dos demais. No sistema jurídico brasileiro, os princípios são a mais legítima expressão da vontade popular, sendo compromisso ético e moral dos representantes do povo, tanto no Poder Legislativo como no Poder Executivo, a luta incessante pela sua eficácia, mediante a irradiação de seus valores sobre a legislação infraconstitucional. GERALDO ATALIBA, publicista que se destacou como um dos maiores defensores dos princípios constitucionais, revela esse pensamento, nos seguintes termos: “Olvidar o cunho sistemático do Direito é admitir que suas formas de expressão mais salientes, 12 13 Sistema constitucional tributário, p. 21-22. Alguns princípios, que aqui serão analisados, não são de aplicação exclusiva no Direito Tributário, como é o caso dos princípios republicano, federativo e da autonomia municipal, valores supremos que se irradiam por todo o ordenamento jurídico. Não há, nesse sentido, princípio específico e exclusivo de algum ramo jurídico, senão manifestações específicas dos princípios gerais de Direito, que ganham nova roupagem em cada área do jurídico. 10 as normas, formam um amontoado caótico, sem nexo, nem harmonia, em que cada preceito ou instituto pode ser arbitrária e aleatoriamente entendido e aplicado, grosseiramente indiferente aos valores jurídicos básicos resultantes da decisão popular”.14 No entanto, como bem adverte JOSÉ ROBERTO VIEIRA, “É extensa e larga a diversidade semântica da palavra ‘princípio’(...)”, sendo comum na seara do Direito, lembra o autor, referi-los metaforicamente como alicerces do edifício jurídico, ou ainda como bases ou pilares do ordenamento. Em razão dessa multiplicidade de sentidos da expressão “princípios constitucionais”, o jurista paranaense nos adverte da necessidade de “(...) elucidar o sentido em que a estamos utilizando, de modo mais específico do que a noção muito ampla de fundamentos do sistema (...)”, e, amparado nas quatro acepções arroladas por PAULO DE BARROS CARVALHO, o autor adota a expressão, nesse seu estudo, com os sentidos de “(...) normas jurídicas de posição privilegiada, portadoras de valor expressivo ou que estipulam limites objetivos”.15 Em virtude da boa síntese, e da sua aderência com os nossos objetivos, adotamos também, neste trabalho, a expressão “princípios constitucionais” com essa conotação. 3.1. Princípios: Republicano, Federativo e da Autonomia Municipal A Constituição Federal, já em seu artigo 1º, estabelece: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos...”. A circunstância de os primados da República e da Federação já constarem do primeiro artigo da Constituição não é mera coincidência. Antes, é fruto da solidificação jurídico-cultural desses que estão entre os mais importantes princípios de nosso sistema jurídico, pois deitam luzes sobre todas as demais normas do ordenamento jurídico, inclusive sobre os demais princípios constitucionais, os quais têm eficácia na medida exata em que, com eles, entrem em harmonia. 14 15 República e Constituição, p. 15. Bocage e o terrorismo constitucional das medidas provisórias tributárias: A emenda pior do que o soneto, in ROBERTO FERRAZ (coord.), Princípios e limites da tributação, p. 685-688. 11 Segundo a definição irretocável de GERALDO ATALIBA, República é o “(...) regime político em que os exercentes de funções políticas (executivas e legislativas) representam o povo e decidem em seu nome, fazendo-o com responsabilidade, eletivamente e mediante mandatos renováveis periodicamente”.16 As características da República, para o autor, são, portanto, a eletividade (instrumento de representação), a periodicidade (asseguradora da fidelidade aos mandatos) e a responsabilidade (penhor da idoneidade da representação popular). Verifica-se que, para o referido autor, a tônica do ideal republicano está na exigência de que a tomada de decisões seja feita pelo povo, através de seus representantes. Ou seja, o Direito que disciplina a sociedade e o próprio Estado é fruto da vontade popular. Quer parecer que a principal conseqüência desse posicionamento será a necessidade de rigorosa observância, pelo Estado e pela própria sociedade, dos valores prestigiados pelo povo, e que, por essa razão, erigiram-se como os magnos princípios constitucionais, com destaque para o princípio da legalidade. ROQUE ANTONIO CARRAZZA tem definição semelhante, cujo traço distintivo, no entanto, parece ser a ênfase na idéia da igualdade, como reflexo principal da república: “República é o tipo de governo, fundado na igualdade formal das pessoas, em que os detentores do poder político exercem-no em caráter eletivo, representativo (de regra), transitório e com responsabilidade”.17 Como decorrência de seu raciocínio, ressaltam, como principais reflexos do princípio republicano no campo tributário, o princípio da isonomia tributária (artigo 150, II, da Constituição) e o cânone da capacidade contributiva (artigo 145, § 1º, também da Constituição). Não restam dúvidas, todavia, que, no seu raciocínio, também se manifesta a idéia da legalidade, fruto do exercício do poder político por meio dos representantes. O mesmo entendimento é defendido por SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO.18 Tamanha é a força e intensidade axiológica do princípio republicano que todo o restante do ordenamento jurídico tem seu sentido dirigido em razão de seus postulados. De outra forma, pode-se afirmar que o princípio republicano influi, de modo decisivo, na interpretação de todas as demais normas constitucionais, sejam as que revelam verdadeiros princípios, sejam as que revelam simplesmente 16 República..., op. cit., p. 13. Curso de direito constitucional tributário, p. 52. 18 Comentários à Constituição de 1988: Sistema tributário, p. 4-5. 17 12 regras. Com mais razão, todas as normas infraconstitucionais devem ter seu sentido condicionado à conformidade com suas exigências.19 O principal reflexo do princípio republicano no Direito Tributário é a exigência inafastável de que todo tributo só pode ser criado ou aumentado tendo em vista o bem-comum, o que se estende, por força de pura lógica, às isenções tributárias, as quais não podem ser concedidas ou revogadas em detrimento desse supremo valor constitucional. Disso decorre o princípio da destinação pública dos valores arrecadados mediante a tributação, assim como a proibição de vantagens tributárias a determinadas pessoas sem respaldo constitucional, como no passado ocorria, por exemplo, com aqueles que possuíam títulos de nobreza ou que faziam parte do clero.20 ROQUE ANTONIO CARRAZZA também ressalta que o princípio republicano leva ao princípio da generalidade na tributação, pelo qual “(...) todos os que realizam o fato imponível tributário venham a ser tributados com igualdade”.21 O princípio republicano, portanto, leva à igualdade na tributação, o que exige tratamento tributário isonômico para todos os que se encontram na mesma situação jurídica. Por via de conseqüência, o princípio da capacidade contributiva, previsto no artigo 145, § 1º, de nossa Carta Magna, também é manifestação do ideal republicano, pois é o discrímen que permite atribuir tratamento desigual aos contribuintes. Ou seja, os iguais e os desiguais, no Direito Tributário, são os que revelam a mesma ou diversa capacidade contributiva.22 GERALDO ATALIBA leciona que os princípios mais importantes são os da Federação e o da República, razão pela qual “(...) exercem função capitular da mais transcendental importância, determinando inclusive como se devem interpretar os demais, cuja exegese e aplicação jamais poderão ensejar menoscabo ou detrimento para a força, eficácia e extensão dos primeiros”.23 Tão cristalizada está a certeza da importância desses princípios no ordenamento jurídico, que a Constituição Federal, no § 4º do seu artigo 60, tratou de petrificá-los, não podendo, diante desse dispositivo, nem mesmo ser objeto de deliberação, no Congresso Nacional, a proposta de emenda que tão-somente tenda a 19 GERALDO ATALIBA, República..., op. cit., p. 32. ALIOMAR BALEEIRO, Limitações constitucionais ao poder de tributar, p. 258 et seq. 21 Curso..., op. cit., p. 73. 22 Curso..., op. cit., p. 80-81. 23 República..., op. cit., p. 36. 20 13 aboli-los.24 Ainda que a vedação somente seja expressa em relação à “forma federativa de Estado” (inciso I), a Constituição alberga outras inequívocas manifestações do ideal republicano, sendo o “voto direto, secreto, universal e periódico” (inciso II), certamente, a principal delas, por representar a idéia essencial de representação. Em seguida, pode-se ainda citar a “separação dos Poderes” (inciso III) e “os direitos e garantias individuais” (inciso IV). Dentre os dois princípios, pode-se ainda afirmar que a noção de república vem em primeiro lugar, posto que a federação é um instrumento de sua realização. A autonomia dos entes federados e a descentralização política em que se traduz a federação, fazem com que melhor funcione a representatividade e o exercício, pelo povo, de suas prerrogativas de cidadania e de autogoverno, nas palavras de GERALDO ATALIBA, que, amparado em Rui Barbosa, lembra que a expressão regime “republicano-federativo” denuncia a íntima e necessária relação entre os dois princípios.25 A divisão do Estado brasileiro em pessoas políticas – União Federal, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios – deve-se aos princípios constitucionais do federalismo e da autonomia municipal. MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI, amparada em MIGUEL REALE, afirma que: (...) a todo poder social corresponde uma ordem jurídica, sendo a ordenação do Direito a forma de organização da coerção social. Por conseguinte, com a descentralização política própria do Estado federal se dá, necessariamente, uma descentralização jurídica. O enfoque estritamente jurídico da questão, leva-nos a constatar o inverso. À descentralização jurídica corresponderá a política, já que o poder estatal, sob tal ângulo, é mera validade e eficácia da ordem jurídica [sic].26 No âmbito tributário, em face de previsões como, por exemplo, a do artigo 146, caput, da Constituição Federal de 1988, o conhecimento amplo dos primados do federalismo e da autonomia municipal será crucial para a análise do espectro de atuação da lei complementar de normas gerais em matéria tributária. A expressão “normas gerais” já denuncia tratar-se de normas de âmbito nacional. A existência das leis nacionais – complementares ou ordinárias, conforme a matéria – não 24 “§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais.” 25 República..., op. cit., p. 43-44. 26 Fundamentos da competência tributária municipal, Revista de Direito Tributário, n. 13/14, p. 105. 14 só para o Direito Tributário, mas também em relação a outros ramos do Direito Público, deve-se a uma necessidade, prevista pelo legislador constituinte, de que a Constituição Federal fosse observada por todas as pessoas políticas de uma forma harmônica, quando do exercício de suas competências, preservando assim a unidade dos interesses nacionais. Inafastável é a conclusão de que a autonomia dos Municípios é conseqüência direta não apenas do princípio federativo, como também do princípio republicano, o que a posiciona dentre os mais importantes princípios de Direito Público previstos na Constituição. Afirma ATALIBA que “(...) por meio da autonomia municipal realizam-se os ideais republicanos de maneira excelente e conspícua no que concerne à vida política local e no exercício das liberdades políticas, em matéria própria do ‘círculo de vizinhos’, em que se funda a instituição municipal”.27 Acresce ainda o autor: Realiza-se no Município brasileiro, com notável extensão, o ideal republicano da representatividade política, com singular grau de intensidade. Aí, a liberdade de informação, a eficácia da fiscalização sobre o governo, o amplo debate das decisões políticas, o controle próximo dos mandatários pelos eleitores, dão eficácia plena a todas as exigências do princípio republicano representativo. (...) Todos os preceitos constitucionais direta ou indiretamente aplicáveis aos Municípios têm a dupla finalidade de: a) dar eficácia ao princípio republicano, garantindo o autogoverno local; e b) assegurar mecanismos republicanos de funcionamento do Município, nas suas relações internas. (...) O modo pelo qual foi constitucionalmente tratado o Município no Brasil só faz esplender, com maior intensidade e brilho, as virtudes notáveis da república representativa, com seus postulados democráticos.28 Do raciocínio lúcido e inatacável do referido autor, resulta a inviabilidade da pretensão da União Federal de, quando no exercício de competências de âmbito nacional, pretender amesquinhar a autonomia municipal, como é o caso da competência para editar, por meio de lei complementar, as normas gerais de direito tributário, instrumento que não pode ser invocado para invadir a competência municipal, pois nem mesmo o legislador constituinte derivado tem essa prerrogativa. 27 28 República..., op. cit., p. 45. Ibidem, p. 46. 15 3.2. Princípio da Legalidade Tributária O artigo 5°, II, da Constituição, estabelece a máxima pela qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. É o princípio da legalidade, em sua disposição genérica, que pode ser traduzido como a mais clássica noção de liberdade, no sentido de que o cidadão é livre para fazer tudo aquilo que a lei não proíba. Tão grande é a importância e expressão do Princípio da Legalidade, que o mesmo foi incluído entre os direitos e garantias individuais, o que lhe garante a condição de cláusula pétrea, estando vedada qualquer deliberação sobre proposta de emenda à Constituição que até mesmo tenda a abolir essa garantia, conforme disposição do artigo 60, § 4°, IV da Constituição Federal de 1988. O termo “tenda” significa que a vedação de deliberação de propostas de emenda à Constituição não alcança somente aquelas que violem frontalmente a legalidade, mas impede também as que indiretamente venham a conflitar, seja com que intensidade for, com o primado da legalidade. No campo tributário, tamanha é a sua importância, que a grande maioria dos países, de uma forma ou de outra, o adotou em suas constituições, revelando que a sua essência constitui verdadeiro princípio geral de Direito. RAMÓN VALDÉS COSTA, ex-professor titular da Faculdade de Direito da Universidade da República do Uruguai, em acurado estudo sobre o Princípio da Legalidade no sistema uruguaio, ante o Direito Comparado, confirma esse entendimento, conforme se verifica desse seu raciocínio: Seguramente ningún principio jurídico ha acumulado a través de siglos mayores adhesiones en la doctrina y en los Derechos Positivos, que el de la legalidad em materia tributaria. Con razón ha sido calificado como ‘principio común de Derecho Constitucional Tributario’ en virtud de su recepción expresa o implícita en las constituciones del Estado de Derecho Contemporáneo. Esta raigambre constitucional permite afirmar, como lo hemos hecho en repetidas oportunidades, que se trate de la proyección de un principio general de Derecho, en el campo específico de la rama juridíca que en este siglo hemos categorizado como Derecho Tributario.29 Quando visto sob a óptica da liberdade, o princípio da legalidade expressa uma permissão, visto, portanto, com um conteúdo positivo. Mas do ponto de 29 El Principio de Legalidad, Revista de Direito Tributário, n. 38, p. 93-94. 16 vista de uma garantia, encerra uma proibição, que tem por destinatário o próprio Estado, no sentido de impedir que atos estatais não fundamentados em lei venham a atingir a liberdade ou a propriedade das pessoas – dever de abstenção. A legalidade está, dessa forma, dentre aqueles direitos que ROBERT ALEXY denomina de “derechos a acciones negativas” ou “derechos de defensa”.30 E, mais do que isso, a lei que fundamenta todo e qualquer ato estatal deve estar em consonância com as diretrizes maiores veiculadas pelos princípios constitucionais. Mesmo porque, do contrário, não seria lei, teria apenas aparência de lei, pois a expressão lei inconstitucional, em rigor, encerra uma contradictio juris. Ao contrário, portanto, do sentido que o princípio veicula quando os destinatários são os cidadãos – relação de compatibilidade com a lei, pode-se fazer tudo o que a lei não proíba – quando o destinatário é o Poder Público, surge obrigatoriamente uma relação de conformidade com a lei, o que se traduz na exigência de que toda e qualquer atividade realizada pelo Estado deva estar prevista em lei. Como observa VICTOR UCKMAR, o surgimento do parlamentarismo ocorreu na Europa da Idade Média, tendo em vista impedir que qualquer prestação pecuniária pudesse ser imposta sem anterior deliberação pelos órgãos legislativos. Para o autor italiano, é errônea a idéia generalizada de que a legalidade tributária tenha surgido com a Magna Charta, quando, durante o reinado de João sem Terra, os barões rebelaram-se contra a onerosidade dos tributos, citando o autor vários países nos quais, em épocas anteriores, já existiam formas de aprovação legislativa para a cobrança de tributos. O parlamentarismo surge, acrescenta o autor, tendo em vista a “(...) necessidade de se adequar entradas e despesas públicas”.31 Sendo a cobrança de tributos atividade que invade sobremaneira tanto a esfera da propriedade, como também a da liberdade dos cidadãos, é de concluirse pela acentuada necessidade de que todas as fases inerentes à tributação, desde a sua instituição, passando pelos procedimentos de fiscalização, lançamento, recolhimento e também de sanção nos casos de descumprimento, rigorosamente obedeçam ao que foi estabelecido na lei em sentido formal e material, ou seja, lei que obedeceu aos requisitos constitucionais de elaboração e de aprovação. Dizendo de outra forma, a lei deve ser constitucional tanto no conteúdo como na forma. 30 31 Teoria de los derechos fundamentales, p. 189. VICTOR UCKMAR, Princípios comuns de direito constitucional tributário, p. 21-22. 17 Por essas razões, a exigência de lei em matéria de tributos é representada pelo brocardo nullum tributum sine lege, à semelhança do existente no Direito Penal, onde nullum crimen nulla poena sine lege. Ressalte-se, contudo, que, no Direito Tributário, o princípio ganhou maior intensidade, conforme se depreende da leitura do artigo 108, §§ 1° e 2°, do Código Tributário Nacional, os quais, respectivamente, estabelecem que “O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei” e “O emprego da eqüidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo devido”. Essa maior intensidade do Princípio da Legalidade da Tributação é, também, demonstrada pela expressão reserva absoluta de lei32, o que significa dizer que não basta a existência de lei formal como fundamento da instituição de um tributo, sendo necessário que essa lei esteja revestida de características especiais, ou seja, que traga em seu conteúdo todos os elementos necessários a identificar, com previsibilidade, todos os fatos que se subsumam na previsão normativa, assim como todos os que com ela não se compatibilizem, por não se adequarem ao tipo tributário em todos os seus aspectos. Em 1988 essa garantia foi consagrada pela nova Constituição, que além de prever a legalidade tributária no artigo 150, I, o qual estabelece que “sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça”, foi além, no seu artigo 146, III, “a”, dispositivo que reservou à lei complementar a competência absoluta para definir, em relação aos impostos, seus elementos essenciais: “Cabe à lei complementar: estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes”. É por decorrência, portanto, da reserva absoluta de lei formal que o Princípio da Legalidade assume conteúdo extremamente rígido, que se manifesta 32 Registre-se que, no Direito brasileiro, por força do Princípio da Legalidade genérica, previsto no artigo 5º, II, da Constituição de 1988, pelo qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, a expressão “reserva absoluta de lei” não pode resultar na conclusão de que algumas matérias estão reservadas à previsão legal, enquanto outros assuntos poderiam ser previstos em norma infralegal, como os decretos, por exemplo, pois todos os direitos e deveres devem ter previsão na lei, salvo se já estiverem previstos, de forma suficiente, em norma de hierarquia superior. 18 através de outro princípio, o da Tipicidade da Tributação, que deverá ser observado tanto na criação, como na majoração dos tributos. A cada um dos entes políticos caberá, através de suas respectivas leis ordinárias, decidir se instituem ou não os tributos que lhe couberam na repartição de competências, podendo até mesmo ficar aquém do que dispôs a lei complementar, nunca podendo, entretanto, ir além, sob pena de instituir-se tributos sobre fatos que não se encontram dentro de sua faixa de competência, tal como estabelecida pela Constituição. E quais são as razões do rigor com que se expressa o Princípio da Legalidade na tributação? Com a conquista do Estado Democrático de Direito, o cidadão recebeu da Constituição prerrogativas, positivadas sob a rubrica de direitos fundamentais – artigo 5° da Constituição Federal de 1988 – e que certamente possuem hierarquia superior à de qualquer norma relativa à tributação. O setor da tributação, por sua vez, sempre se revelou “generoso” em desrespeitar os direitos e garantias dos cidadãos, e, como a atividade de tributar atinge diretamente o direito de propriedade das pessoas, podendo afetar drasticamente também o seu direito à liberdade – seja a clássica de ir e vir, como também a livre iniciativa, prevista no artigo 170 da Constituição – necessário foi que o Princípio da Legalidade fosse qualificado por regras que vinculassem estritamente tanto o aplicador da lei, como o próprio legislador, tudo com o fim maior de assegurar a observância ao Princípio da Segurança Jurídica e que, em síntese, visa garantir a previsibilidade nas relações jurídicas.33 É nesse sentido o raciocínio de OCTÁVIO CAMPOS FISCHER, conforme se observa nessa sua crítica: (...) chama-nos a atenção que, em um Estado Democrático de Direito, a cada inovação fiscal, ainda temos que nos preocupar com normas basilares do direito tributário e que há muito já deveriam ter sido incorporadas à atuação dos poderes públicos. Se hoje descobrimos a importância para a tributação de princípios como a boa-fé, a moralidade, a eficiência, a proporcionalidade, por outro lado, ainda não conseguimos superar a fase da legalidade tributária. Há um eterno retorno a esse princípio cada vez que nova legislação é produzida. Não só porque o executivo passou a amealhar uma maior gama de funções legislativas, mas porque se verificou que o Legislativo também é capaz de ser tão agressor da Constituição quanto aquele.34 33 34 PAULO DE BARROS CARVALHO, Curso de direito tributário, p. 148. A tributação dos serviços de registros públicos, cartorários e notariais, in HELENO TAVEIRA TÔRRES (coord.), Imposto Sobre Serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 455-456. 19 Interessante observar que, mesmo com o advento do Estado Social de Direito, e, após, com a sua evolução para um Estado Democrático de Direito, quando ao Executivo foi atribuída uma imensidão de novas responsabilidades, não houve enfraquecimento do primado da Legalidade Tributária. Ao contrário, como se pode observar em nossa Constituição, as disposições em matéria tributária, ao invés de serem reduzidas, foram substancialmente aumentadas, vinculando a atividade de tributar às disposições de um verdadeiro Estatuto do Contribuinte. Como aspecto negativo, temos, infelizmente, o histórico do indiscriminado e abusivo uso de medidas provisórias em matéria tributária, problema que não foi resolvido, mesmo com o advento da Emenda Constitucional n° 33/2001, a qual objetivou minimizar os problemas da utilização em massa desse instrumento normativo. Não se quer, porém, defender uma posição ultrapassada do Princípio da Legalidade Tributária, como se fosse um instrumento perverso a justificar, por exemplo, negócios jurídicos praticados em flagrante exercício abusivo do direito. É importante, entretanto, compreender que o Princípio da Legalidade Tributária, como, aliás, ocorre em qualquer outro ramo do direito, deve ser interpretado de forma condizente com as novas exigências advindas do Estado Democrático de Direito, modelo que, como todo Estado de Direito, sujeita-se ao império da lei, mas da lei que realize o princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade, mas pela busca da equalização das condições dos socialmente desiguais, como ensina JOSÉ AFONSO DA SILVA, pois se a Constituição é a origem das aspirações às transformações políticas, econômicas e sociais, a lei, como desdobramento do conteúdo constitucional, é instrumento de transformação democrática da sociedade.35 O desafio reside em consolidar esse novo paradigma da Legalidade Tributária no Direito brasileiro, sem prejuízo das garantias já conquistadas pelos contribuintes, em defesa dos abusos constantemente cometidos pelos fiscos federal, estaduais e municipais. É nesse novo contexto que parte da doutrina passou a defender que a possibilidade de o fisco desconsiderar planejamentos tributários não se restringe mais às tradicionais hipóteses do artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional, ou seja, quando restarem demonstrados o dolo, a fraude ou a simulação. Com o advento do atual Código Civil, que positivou as figuras do abuso de direito (como ato ilícito) e da fraude à lei (como ato nulo), surgiu a tese de que o fisco passou a ter o poder-dever de 35 Curso..., op. cit., p. 121-122. 20 lançar o tributo também nessas novas hipóteses.36 Isso implica uma nova definição dos limites em que o planejamento deixa de ser hipótese de elisão tributária (lícita) para tipificar caso de evasão tributária (ilícita). Nesse sentido é o pensamento de MARCO AURÉLIO GRECO37 e de DOUGLAS YAMASHITA38, por exemplo. No entanto, essa tese ainda está longe de ser pacífica, havendo boa parte da doutrina que defende só haver evasão fiscal nas hipóteses de dolo, fraude e simulação, posto que previstas no seio do Direito Tributário – artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional. Esse é o entendimento, por exemplo, de ALBERTO XAVIER.39 Contudo, entende-se que o abuso de direito e a fraude à lei não são figuras de aplicação restrita às relações privadas, o que alguns defendem em razão da positivação desses institutos no Código Civil. Uma premissa importante e também inafastável reside no entendimento de que os dispositivos do Código Civil não pertencem apenas ao Direito Privado. Deve-se lembrar que a Lei de Introdução ao Código Civil, e a parte geral do próprio código, por exemplo, tratam de temas que dizem respeito a todos os ramos jurídicos, inclusive os ramos do direito público, não sendo o Direito Tributário exceção a essa regra. Nesse contexto estão, por exemplo, as regras sobre a vigência e a eficácia das normas jurídicas, as disposições sobre os fatos, atos e negócios jurídicos, regime das pessoas naturais e pessoas jurídicas, inclusive as de direito público etc. Esse é o entendimento de MIGUEL REALE, para quem “(...) nada mais errôneo do que pensar que o que se encontra num livro de Direito Civil seja sempre Direito Civil”.40 Seria ilógico, portanto, que alguém pudesse defender que um planejamento tributário é legítimo, ainda que fundamentado em negócio nulo e/ou ilícito, apenas porque não há norma especificamente tributária que o tipifique dessa forma. A questão relaciona-se intimamente com o princípio da legalidade tributária, porque, regra geral, as hipóteses de planejamento tributário, contaminadas por abuso de direito e/ou fraude à lei, têm, como fundamento uma interpretação da norma tributária 36 “Artigo 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” “Artigo 166. É nulo o negócio jurídico quando: (...) VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa.” 37 Planejamento tributário. 38 Elisão e evasão de tributos: limites à luz do abuso do direito e da fraude à lei. 39 Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. 40 Lições preliminares de direito, p. 15. 21 que conclui pela não incidência e/ou incidência reduzida, mas que, apesar de ser um dos sentidos literais possíveis, é violadora de algum princípio jurídico de maior hierarquia. Ou seja, o contribuinte não pode invocar o Princípio da Estrita Legalidade Tributária diante de uma interpretação literal que contraria, por exemplo, o Princípio da Isonomia Tributária. Esse é o entendimento, por exemplo, de RICARDO LOBO TORRES.41 Nesse sentido é o acórdão proferido nos autos da Apelação Cível nº 115.478/RS, do extinto Tribunal Federal de Recursos. Nesse processo, discutiu-se a viabilidade da criação de oito sociedades pelos mesmos sócios de uma única indústria fornecedora, com o fim de possibilitar a opção pelo lucro presumido, regime a que a mesma não teria direito por ser de grande porte. Embora não tenha considerado a operação nem simulada nem fraudulenta, definiu-a como ilícita e evasiva, por ofensa ao Princípio da Igualdade: AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL. IMPOSTO DE RENDA. LUCRO PRESUMIDO. OMISSÃO DE RECEITA. Legitimidade da atuação do Fisco, em face dos elementos constantes dos autos. Constituídas foram, no mesmo dia, de uma só vez, pelas mesmas pessoas físicas, todas sócias da autora, 8 (oito) sociedades com o objetivo de explorar comercialmente, no atacado e no varejo, calçados e outros produtos manufaturados em plástico, no mercado interno e no internacional. Tais sociedades, em decorrência de suas características e pequeno porte, estavam enquadradas no regime tributário de apuração e resultados com base no lucro presumido, quando sua fornecedora única, a autora, pagava o tributo de conformidade com o lucro real. Reconhece-se à recorrente, apenas, o direito de compensação do Imposto de Renda pago pela aludidas empresas. Reforma parcial da sentença.42 41 42 A norma antielisão, seu alcance e as peculiaridades do sistema tributário nacional: objeto da norma, efeitos na aplicação, fundamentos e limites, abrangência, pressupostos, avaliação de motivos, condição de aplicação, in Escola de Administração Fazendária - ESAF (coord.), Anais do Seminário Internacional sobre Elisão Fiscal, p. 208. Apelação Cível no 115.478-RS, Ac. da 6ª Turma do Tribunal Federal de Recursos, de 18.2.87, Rel. Min. Américo Luz, Revista do Tribunal Federal de Recursos 146: 217, 1987. Às fls. 5 do voto consta o entendimento de que a operação violou o princípio da igualdade de tratamento tributário: “As respostas do laudo não infirmam essa conclusão (a de que as oito sociedades não teriam finalidade própria), porquanto enfatizam o envoltório jurídico das operações cuja finalidade era acobertar a receita representada pela diferença financeira resultante da justaposição de regimes tributários, privilegiados (lucro presumido), de um lado, do lucro real de outro. Eis um efeito tributário ilícito, não meramente elisivo, conclusão a que se chega inclusive pela via do absurdo que representa o garantir à autora o beneplácito a um procedimento que quebra o princípio da igualdade de tratamento tributário perante a comunidade de contribuintes”. 22 3.3. Princípios da Isonomia Tributária e da Capacidade Contributiva A Constituição da República, em seu artigo 150, II, prescreve que “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”. Verifica-se que este dispositivo recepcionou a tradicional visão aristotélica, pela qual o princípio da isonomia consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na razão de suas desigualdades. Embora a legitimidade do princípio o constitua em primado inafastável, seu alto grau de abstração é insuficiente para que tenha eficácia satisfatória junto ao mundo fenomênico, posto não estabelecer quais os critérios hábeis a identificar as desigualdades em cada caso. CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, a partir dessa verificação, a que ele resume afirmando que, apesar de reconhecer nesta afirmação “(...) sua validade como ponto de partida, deve-se negar-lhe o caráter de termo de chegada”, o que leva à imprescindibilidade de saber, para fins jurídicos, quem são os iguais e quem são os desiguais.43 O referido autor, após questionar qual espécie de igualdade veda e que tipo de desigualdade faculta a discriminação de situações e de pessoas, sem violação aos objetivos do princípio constitucional da isonomia, conclui que “(...) as discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição”.44 A Igualdade Tributária, no ensinamento de PAULO DE BARROS CARVALHO, está intimamente ligada ao conteúdo econômico dos fatos escolhidos pela lei impositiva, os quais são mensurados pela base de cálculo. Quando o legislador, ao escolher os fatos tributários, opta pelos que expressem signos de riqueza 43 44 Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 10-11. Ibidem, p. 17. 23 econômica, observa a chamada capacidade contributiva absoluta ou objetiva. Quando, ato contínuo, ao distribuir a carga tributária, estabelece o grau de contribuição dos participantes de forma proporcional às dimensões de cada fato ocorrido, realiza a capacidade contributiva relativa ou subjetiva. Com efeito, é dessa forma que se realiza o Princípio da Igualdade previsto no artigo 5º, caput da Constituição Federal.45 Confirma o raciocínio AIRES BARRETO: “Lanço por lanço, dispositivo por dispositivo, vê-se na Constituição a afirmação e reiteração de que a outorga de competência para a criação de tributo se circunscreve a manifestações de capacidade contributiva”.46 Portanto, no âmbito do direito tributário, de regra, o critério a ser utilizado para estabelecer discriminações, pelo menos no que tange aos impostos, somente pode ser o critério da Capacidade Contributiva, conforme, aliás, explicita o § 1º do artigo 145 da Lei Maior, o qual exige que “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte (...)”. Dizemos “de regra”, e a expressão constitucional “sempre que possível” confirma a assertiva, em razão de haver, na própria Constituição, autorização para que sejam instituídos impostos cuja maior ou menor intensidade, na cobrança, tenha finalidade extrafiscal, como é exemplo o caso das alíquotas progressivas do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana – IPTU, visando o atendimento da função social da propriedade, afastando-se, nesses casos, a Capacidade Contributiva. No entanto, a extrafiscalidade, como bem adverte JOSÉ ROBERTO VIEIRA, “(...) é uma medida excepcional em face da via regular dos tributos que é a finalidade arrecadatória, que é o abastecimento dos cofres públicos”.47 Em matéria tributária, ensina AIRES BARRETO, a agressão ao princípio verifica-se de forma mais constante pela inadequação da base de cálculo, como ocorre, por exemplo, com os chamados “tributos fixos”. É que a análise do Princípio da Capacidade Contributiva, em conjunto com a função constitucional da base de cálculo de servir de critério de distinção das espécies tributárias, assim como o de indicar os limites das competências tributárias – conforme ilustra o artigo 154, da 45 Curso..., op. cit., p. 336-337. AIRES FERNANDINO BARRETO, Base de Cálculo, alíquota e princípios constitucionais, p. 26. 47 IPI e extrafiscalidade, Revista de Direito Tributário, n. 91, p. 76. 46 24 Constituição Federal de 1988 – revela a inconstitucionalidade dessa sistemática impositiva.48 3.4. Solidariedade Social e Tributação Com o advento do Estado Democrático de Direito, ganhou força a tese que defende a necessidade de interpretar a relação jurídica tributária de forma contextualizada com o valor constitucional da solidariedade social. Ainda que em todo o capítulo da Constituição Federal de 1988, dedicado ao Sistema Tributário Nacional – Capítulo I, Título VI – não se encontre disposição expressa sobre o assunto, é de rigor concluir que o preceito contido no artigo 3º, I, da Lei Maior, pelo qual “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; ...”, tem aplicação obrigatória em relação a todos os demais dispositivos constitucionais. Registre-se também a expressão constante do seu preâmbulo, a qual indica o ideal de uma “sociedade fraterna”. Isso não significa, porém, que a busca da solidariedade social prevalecerá sempre sobre todas as demais normas constitucionais, pois sempre existirão situações onde restará configurada a supremacia de outros valores, também positivados no texto constitucional. De início, é relevante identificar o significado da expressão “solidariedade social”. MARCIANO SEABRA DE GODOI esclarece que o termo solidariedade, apesar de plurívoco, “(...) aponta sempre para a idéia de união, de ligação entre as partes de um todo...”, e que etimologicamente, “(...) o termo remonta a termos latinos que indicam a condição de sólido, inteiro, pleno”. Mas, em seu sentido jurídico – que é o que interessa ao nosso trabalho – a solidariedade social “(...) remonta à idéia próxima de justiça social, conceito típico do início do século XX”.49 A solidariedade de que trata a Constituição, no entanto, é a solidariedade genérica, referente à sociedade como um todo, em oposição à solidariedade de grupos sociais homogêneos, a qual se refere a direitos e deveres de um grupo social específico. Por força da solidariedade genérica, é lógico concluir que cabe 48 49 Ibidem, p. 134. Tributo e solidariedade social, in MARCO AURÉLIO GRECO e MARCIANO SEABRA DE GODOI (coord.), Solidariedade social e tributação, p. 142. 25 a cada cidadão brasileiro dar a sua contribuição para o financiamento do “Estado Social e Tributário de Direito”.50 Vários autores que se debruçaram sobre o tema identificaram o Princípio da Capacidade Contributiva, previsto no artigo 145, § 1º, da Constituição, como o vínculo essencial entre a tributação e a solidariedade social.51 Ou seja, o contribuinte cumpre com seu dever de solidariedade, no meio social, quando efetivamente contribui para a manutenção dos gastos estatais – através do recolhimento dos tributos que lhe são exigíveis – na exata medida de sua capacidade contributiva. Nas palavras de JOSÉ CASALTA NABAIS, professor da Faculdade de Direito de Coimbra, “(...) a simples existência de um Estado Fiscal convoca desde logo uma idéia de justiça, que se não contém nos estritos quadros de uma justiça comutativa, como seria a concretizada num Estado financeiramente suportado por tributos bilaterais ou taxas, figura tributária cuja medida se pauta pela idéia de equivalência”.52 O autor lusitano acrescenta que tal não ocorre em um “Estado Fiscal”, que é suportado por todos ou, em especial, por aqueles que revelem capacidade contributiva. Disso resulta que o conjunto dos contribuintes deva suportar o custeio de todos os serviços públicos, que beneficiam todos os cidadãos, sejam ou não contribuintes, do que surge a idéia de justiça distributiva, traduzida na redistribuição dos rendimentos dos contribuintes para os que não sejam contribuintes. Conclui que essa situação tem, como importante aspecto, o fato de que a lei criadora do tributo teve a participação democrática tanto dos representantes dos contribuintes, como dos não contribuintes, o que não ocorria durante a vigência do sufrágio censitário. Com efeito, entende o autor que a máxima inglesa “no taxation without representation” passou a ter um sentido mais democrático do que a clássica noção da “autotributação”.53 Na doutrina brasileira, MARCO AURÉLIO GRECO é um dos autores que mais se destacam no exame dessa questão: Esta mudança do perfil do Estado repercute, também, no âmbito da tributação, que deixa de ser vista da perspectiva do confronto entre contribuinte e Fisco – a partir do que as respectivas normas constitucionais assumem o papel de instrumentos de limitação do poder do Estado e 50 DOUGLAS YAMASHITA, Princípio da Solidariedade em Direito Tributário, in MARCO AURÉLIO GRECO e MARCIANO SEABRA DE GODOI (coord.), Solidariedade..., op. cit., p. 59-60. 51 DOUGLAS YAMASHITA, Princípio da Solidariedade..., op. cit., p. 160. 52 Solidariedade Social, Cidadania e Direito Fiscal, in MARCO AURÉLIO GRECO e MARCIANO SEABRA DE GODOI (coord.), Solidariedade social e tributação, p. 128. 53 JOSÉ CASALTA NABAIS, Solidariedade Social..., op. cit., p. 128-129. 26 proteções ao patrimônio do indivíduo – para ser vista como instrumento de viabilização da solidariedade no custeio do próprio Estado. Daí a capacidade contributiva ser guindada à condição de princípio geral do sistema tributário, a teor do § 1º do art. 145 da CF.54 Infelizmente, é um fato cultural e histórico o contribuinte desconfiar do Estado, assim como ver na arrecadação dos tributos uma “subtração”, em vez de uma contribuição a um Erário comum. Diante disso, o tema da solidariedade é fundamental, porque leva a uma reflexão sobre as razões pelas quais se pagam tributos, ou porque deva existir uma lealdade tributária. Inegável, todavia, que esse “mal-estar” em pagar tributos resulta de uma gestão corrupta das receitas arrecadadas, serviços públicos ineficientes, assim como de uma carga tributária muitas vezes distribuída de forma não equânime.55 Para CLÁUDIO SACCHETTO, catedrático de Direito Tributário e Internacional, Comunitário e Comparado da Universidade de Turim, “Como corolário da solidariedade, no campo fiscal, surgiu a reconstrução do dever tributário como um dever de concorrer para a própria subsistência do Estado e não como uma prestação correspectiva-comutativa diante da distribuição de vantagens específicas para o obrigado”.56 Pagar tributos, portanto, é um dever constitucional, que deve ter como perspectiva não o caráter impositivo, porque oriundo do império da lei, mas da consciência jurídica de que a lei criadora do tributo reflete a vontade e a decisão de todos, quanto à necessidade de custeio dos encargos estatais por todos os cidadãos, na medida da capacidade econômica de cada um. Daí a noção do vocábulo “contribuinte”, pois o dever de contribuir para as despesas públicas é um dever individual de solidariedade social, pela simples razão de pertencer a uma comunidade. O autor citado defende, com acerto, que não é mais possível considerar o tributo como prestação coercitiva apenas porque sua instituição está submetida à reserva de lei, pois “(...) legalidade e autoridade não são mais correlatas”. O Princípio da Legalidade passou a representar, nos Estados Republicanos, a vontade expressa de forma democrática pelo povo, que é o único titular da soberania. Acrescenta o autor: “Um dever de solidariedade fiscal só pode ter como referência a 54 Planejamento tributário, p. 284. CLÁUDIO SACCHETTO, O Dever de Solidariedade no Direito Tributário: o Ordenamento Italiano, in MARCO AURÉLIO GRECO e MARCIANO SEABRA DE GODOI (coord.), Solidariedade..., op. cit., p. 11. 56 Ibidem, p. 21. 55 27 comunidade. A repartição das despesas públicas só pode ser, in primis, perante bens e serviços indivisíveis, portanto, bens e serviços que devem ser colocados à disposição de todos. Não faz sentido um tributo a cargo de um único indivíduo beneficiário do serviço público;...”.57 Do raciocínio do professor italiano resulta clara a idéia de que a solidariedade social, no âmbito tributário, aplica-se também na exigência de os tributos – com destaque para os impostos – serem suportados por todas as pessoas que revelem capacidade contributiva, não tendo a Constituição estabelecido uma contrapartida direta a ser suportada pelo Estado, o que somente ocorre com os chamados tributos vinculados, como a taxa e a contribuição de melhoria. A idéia ganha coerência quando lembramos de certos serviços sociais impossíveis de serem sempre custeados pelos próprios beneficiários, como a educação e os serviços de assistência social. A imposição tributária não pode mais ser vista como tendo apenas caráter fiscal, ou que esse prevaleça, pois a arrecadação tributária não é um fim em si mesmo. Nesse novo paradigma, prestigiou-se a natureza extrafiscal dos tributos, os quais passaram a servir de instrumento para atingir outros fins de ordem econômica e social encampados pela Constituição, os quais, por sua vez, somente são legítimos na medida em que viabilizam os ideais republicanos e democráticos. Essa nova perspectiva, entretanto, não autoriza a instituição de tributos – e muito menos a sua cobrança – com base apenas em princípios constitucionais, em virtude da existência de normas constitucionais que condicionam as atividades do Estado no campo da tributação, dentre as quais o Princípio da Legalidade tributária, previsto no artigo 150, I, da Lei Maior, e as regras que distribuem as competências tributárias, são os exemplos mais relevantes. Nessa perspectiva, HUMBERTO ÁVILA tece argumentos indispensáveis no trato da matéria: Na perspectiva da espécie normativa que as exterioriza, as normas de competência possuem a dimensão normativa de regras, na medida em que descrevem o comportamento a ser adotado pelo Poder Legislativo, delimitando o conteúdo das normas que poderá editar. O decisivo é que a Constituição Brasileira não permitiu a tributação pelo estabelecimento de princípios, o que deixaria parcialmente aberto o caminho para a tributação de todos e quaisquer fatos condizentes com a promoção dos ideais constitucionalmente traçados. Em vez disso, a Constituição optou pela atribuição de poder por meio de regras especificadoras, já no plano constitucional dos fatos que podem ser objeto de tributação. Essa opção pela 57 Ibidem, p. 23. 28 atribuição de poder por meio de regras implica a proibição de livre ponderação do legislador a respeito dos fatos que ele gostaria de tributar, mas que a Constituição deixou de prever. Ampliar a competência tributária com base nos princípios da dignidade humana ou da solidariedade social é contrariar a dimensão normativa escolhida pela Constituição.58 Uma tributação com fundamento tão-somente em princípios, acabaria por conflitar com as regras constitucionais que outorgam as competências tributárias e as demarcam entre as pessoas políticas, como, por exemplo, a divisão das materialidades tributáveis pelos impostos, com base nos artigos 153, 154, 155 e 156 da Constituição Federal, entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios. A idéia de que os princípios são normas de maior importância pode levar à falsa conclusão de que os mesmos devem prevalecer sobre as regras, no caso em exame, as que tratam de competências tributárias. A questão, na verdade, refere-se à diferente eficácia entre essas normas, ou seja, “(...) as regras têm uma eficácia que os princípios não têm. (...) Em primeiro lugar, a eficácia das regras é decisiva, ao passo que a dos princípios apenas contributiva, não cabendo ao intérprete, por conseqüência, afastar, sem mais, a decisão tomada pela Constituição Federal pela sua própria decisão pessoal.” Em síntese: “(...) não há poder de tributar com base no princípio da solidariedade social de acordo com a Constituição de 1988”.59 Admitir o contrário implicaria a contrariedade com outras normas constitucionais, como as referidas regras de competência e o sobreprincípio da Segurança Jurídica, bem como os seus corolários da Legalidade, Irretroatividade e Anterioridade. Como anota HUMBERTO ÁVILA, esse entendimento tem sido prestigiado pelo Supremo Tribunal Federal, inclusive em relação às contribuições sociais, tributos previstos na Constituição especificamente como instrumentos de busca do ideal da solidariedade social. Encontramos um bom exemplo desse posicionamento no Recurso Extraordinário nº 150.764-1, onde a Suprema Corte decidiu que a seguridade social, ainda que deva ser financiada por toda a sociedade, só o poderá, em relação às contribuições, mediante bases de incidência próprias60 – as previstas no artigo 195 da Constituição – e não apenas com base no princípio da universalidade do 58 Sistema constitucional tributário, p. 159-160. HUMBERTO ÁVILA, Limites à Tributação com Base na Solidariedade Social, in MARCO AURÉLIO GRECO e MARCIANO SEABRA DE GODOI (coord.), Solidariedade..., op. cit., p. 70-71. 60 DJ 02 abr. 1993 – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 59 29 financiamento.61 Se esse raciocínio se aplica às contribuições, com maior razão deve refletir, também, sobre a interpretação das regras de competência relativas aos impostos, os quais se submetem, nesse contexto, apenas ao princípio da capacidade contributiva, conforme o artigo 145, § 1º da Constituição. Ainda que a linguagem utilizada pela Constituição possa ser indeterminada, isso não autoriza concluir pela inexistência, em qualquer caso, de núcleos de determinação, ou que ela não possa sofrer determinação pelo próprio sistema no qual esteja inserida. As normas constitucionais que atribuem competências indicam os critérios materiais das hipóteses de incidência dos tributos e, assim o fazendo, estabelecem conceitos, “(...) cujos núcleos de significado não podem ser desprezados pelo intérprete, nem mesmo a pretexto de prestigiar algum valor constitucional, supostamente de maior hierarquia”. Felizmente o Supremo Tribunal Federal tem prestigiado esse entendimento, como se pode verificar na decisão proferida no Recurso Extraordinário nº 117.887-662; que, ao analisar a incidência de imposto sobre a renda na distribuição de dividendos pelas sociedades, concluiu não ter havido auferimento de renda, raciocínio que partiu do conceito constitucional dessa materialidade como “acréscimo patrimonial”.63 Com base na análise das decisões do Supremo Tribunal Federal, HUMBERTO ÁVILA conclui que essa Corte tem prestigiado de forma firme e reiterada o entendimento de que as regras constitucionais atributivas de competência, quando utilizam expressões com conotação dada pela própria Constituição ou pela legislação infraconstitucional vigente à época de sua promulgação, “(...) prevêem ou incorporam conceitos que fixam balizas instransponíveis ao legislador infraconstitucional”, não havendo espaço para entender essas normas como constitucionalmente abertas.64 A eficácia do Princípio da Solidariedade Social no âmbito tributário deve, portanto, restringir-se a informar a aplicação do cânone da Capacidade Contributiva e, por seu intermédio, consagrar a Isonomia Tributária, estabelecida no artigo 150, II, da Constituição, pelo qual é vedado às pessoas políticas “(...) instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles 61 HUMBERTO ÁVILA, Limites à Tributação..., op. cit., p. 72. DJ 23 abr. 1993 – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 63 HUMBERTO ÁVILA, Limites à tributação..., op. cit., p. 73-74. 64 Ibidem, p. 77. 62 30 exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”. De forma especial, entendemos que a maior eficácia da solidariedade social, em relação ao Direito Tributário, resulta da observância da aplicação da progressividade nas alíquotas dos impostos, instrumento ótimo no atendimento do caráter extrafiscal da tributação, ou seja, promover o bem-estar social, tendo em vista que a tributação apenas proporcional, além de atender apenas ao aspecto fiscal da imposição tributária, cria situação de extrema injustiça, ao onerar na mesma intensidade contribuintes em situação desigual. Partindo desse raciocínio, concorrer de modo progressivo e não proporcional, significa fazê-lo em função das necessidades não só próprias, mas também das alheias, do que decorre a estreita ligação entre solidariedade e progressividade. A não valorização do Princípio da Solidariedade certamente explica a queda presenciada na defesa da progressividade tributária.65 Ao lado da progressividade, a exigência de alguns impostos estará em sintonia com a solidariedade social mediante o atendimento da seletividade, como são exemplos, no Sistema Tributário Nacional, o IPI e o ICMS, por força, respectivamente, do disposto nos artigos 153, § 3º, I, e 155, § 2º, III, da Constituição Federal. Em que pese o dispositivo relativo ao ICMS prescrever literalmente que esse imposto “poderá” ser seletivo, ROQUE ANTONIO CARRAZZA, de forma acertada, defende que a seletividade é instrumento de extrafiscalidade obrigatório, tanto para o ICMS como para o IPI.66 É verdade que a receita tributária é condicionada à existência da economia privada e também à garantia dos direitos dos particulares. Por outro lado, o contrário também é verdade, pois é a receita obtida com a tributação que possibilita a existência e manutenção do direito à propriedade, ao patrimônio privado, à livre iniciativa etc. “Se estas premissas são aceitas, então todos aqueles que têm direitos, e todos são titulares de direitos – são obrigados à solidariedade e à solidariedade fiscal”.67 Essa tomada de posição não implica aceitar a tese de que a eficácia jurídica do Princípio da Capacidade Contributiva autorizaria o Fisco a exigir tributos com base na chamada “interpretação econômica do fato gerador”. Da mesma 65 CLÁUDIO SACCHETTO, O Dever de solidariedade..., op. cit., p. 28. Curso..., op. cit., p. 89. 67 CLÁUDIO SACCHETTO, O Dever de solidariedade..., op. cit., p. 36. 66 31 forma, não nos parece possa a Capacidade Contributiva servir de fundamento para desconsiderar negócios jurídicos lícitos, apenas porque celebrados com o propósito isolado de economia tributária. A evasão tributária somente pode resultar de ilicitudes que contaminam o planejamento tributário, e a economia tributária, em si mesma, não pode tipificar um ato como ilícito, ainda que se admita a recepção, no Direito Tributário, das figuras da fraude à lei e do abuso de direito, previstas, respectivamente, nos artigos 166, VI e 187, ambos do Código Civil – Lei nº 10.406/2002. Diante de tais argumentos, entendemos que a solidariedade social é, efetivamente, um valor a ser atendido, inclusive no âmbito tributário. No entanto, essa efetivação deve ter como instrumento, de forma especial, a eleição, pelo legislador, de hipóteses de incidência que revelem capacidade contributiva – aqui em sua acepção objetiva – assim como através da progressividade e da seletividade em relação aos impostos, o que viabiliza o atendimento da chamada capacidade contributiva subjetiva. Obviamente, o Poder Judiciário poderá e deverá, sempre que provocado, desconsiderar atos e negócios jurídicos contaminados por alguma ilicitude, tendo em vista a necessidade de coerência interna no ordenamento jurídico. 4. Conclusões O Sistema Tributário Nacional constitui-se em subsistema, inserido no sistema geral do Direito Positivo. Disso decorre a exigência de que a aplicação de toda e qualquer norma tributária seja precedida da valoração dos princípios constitucionais que se revelem os mais adequados em cada caso concreto. Nesse sentido, os princípios Republicano, Federativo e da Autonomia Municipal são princípios gerais de Direito Público cuja aplicação, no Direito Tributário, é constitucionalmente inafastável, pois todos se constituem em instrumentos de realização dos objetivos do Estado Democrático de Direito. Dentre as “limitações constitucionais ao poder de tributar”, o Princípio da Legalidade Tributária é de fundamental importância, constituindo instrumento legítimo de auto-regulação social e, ao mesmo tempo, de protetor da liberdade do contribuinte de planejar sua vida econômica, de modo a sofrer o menor ônus tributário possível, sempre dentro da licitude. O novo contexto em que a 32 Legalidade Tributária está situada resultou na possibilidade de o fisco desconsiderar planejamentos tributários não mais ficando restrito às tradicionais hipóteses do artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional, ou seja, quando restarem demonstrados o dolo, a fraude ou a simulação. Com o advento do atual Código Civil, que positivou as figuras do abuso de direito – como ato ilícito – e da fraude à lei – como ato nulo –, ganhou força a tese de que o fisco passou a ter o poder-dever de lançar o tributo também nessas novas hipóteses. Isso implica uma nova definição dos limites em que o planejamento deixa de ser hipótese de elisão tributária (lícita) para tipificar caso de evasão tributária (ilícita). Já o Princípio da Isonomia Tributária, em relação aos impostos, efetiva-se através da observância da Capacidade Contributiva objetiva – pela qual o legislador, ao escolher os fatos tributários para as hipóteses normativas, deve optar pelos que expressem signos de riqueza econômica – e da Capacidade Contributiva subjetiva, pela qual o legislador, ao distribuir a carga tributária, estabelece o grau de contribuição dos participantes de forma proporcional às dimensões de cada fato ocorrido. Com o advento do Estado Social e Democrático de Direito, a interpretação da relação jurídica tributária deve ser feita de forma contextualizada com o valor constitucional da solidariedade social. A efetivação desse valor constitucional tem na Capacidade Contributiva subjetiva – viabilizada especialmente pelos critérios da progressividade e da seletividade – um de seus instrumentos mais eficazes, o que implica uma evolução da tradicional concepção de Legalidade Tributária, onde esse princípio deixa de ser visto apenas como uma “limitação constitucional ao poder de tributar”, para passar a ser visualizado como a manifestação da consciência políticojurídica do cidadão como contribuinte. Entretanto, a solidariedade social, por si só, não autoriza a cobrança de tributos, em violação das regras constitucionais atributivas de competência tributária. 33 REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Centro de Estudios Constitucionales. 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