1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS DECORRENTES

Propaganda
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS DECORRENTES DO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Daniel Prochalski
Advogado sócio da João Paulo Nascimento & Associados - Advogados e Consultores.
Especialista em Direito Tributário e Processual Tributário pela PUC-PR. Mestre em
Direito Empresarial e Econômico pelo Centro Universitário Curitiba. Professor de
Direito Tributário no CESCAGE -Centro de Ensino Superior dos Campos Gerais
1. Estado Democrático De Direito
A transição do Estado de Direito para o Estado Democrático de
Direito verifica-se com especial destaque no enriquecimento da carga valorativa
existente na expressão “liberdades”, cuja eficácia jurídica vem exigindo sua efetivação
não só no aspecto negativo, correspondente à clássica noção do princípio da legalidade
no âmbito privado, em que ao indivíduo é facultado fazer tudo aquilo que a lei não
proíbe, mas também e especialmente no aspecto positivo, pelo qual não basta que a
atividade dos indivíduos não esteja vedada pela lei, sendo necessário que esteja de
acordo com a proteção aos direitos sociais positivados constitucionalmente.
Essa evolução jurídica tem como um de seus marcos iniciais a
idéia de república. Da essência legítima de república, bem como de sua etimologia (res
publica = coisa do povo) nasceram várias idéias, muitas das quais passaram a
representar verdadeiros princípios presentes nas modernas constituições. Mas foi
seguramente na noção de representatividade no poder que o princípio republicano mais
se disseminou por quase todo o mundo.
E representatividade nada mais é do que governar através da lei.
Disso resulta, como inferência lógica, que o princípio da legalidade está umbilicalmente
ligado às diretrizes republicanas, desde que o governo, mesmo que através de leis, seja
real e efetivamente expressão da vontade popular, forte na noção de auto-governo,
idéia que remonta às teorias sobre o contrato social de Hobbes, Locke e em especial de
Rousseau.
À noção de república confluem os ideais da democracia, tendo
vários autores até mesmo concluído pela confusão conceitual entre ambos os termos,
1
crescendo assim em grande escala a utilização da expressão república democrática. É
também na reunião de ambas as idéias que CANOTILHO afirma que “(...) a ‘forma
republicana de governo’ reivindica uma legitimação do poder político baseado no povo
(‘governo do povo’). Num governo republicano a legitimidade das leis funda-se no
princípio democrático (sobretudo no princípio democrático representativo) com a
conseqüente articulação da autodeterminação do povo com o ‘governo de leis’ e não
‘governo de homens’”.1
Também em nosso ordenamento jurídico vigora o princípio
republicano, tendo a Constituição de 1988, previsto, já em seu artigo 1°, que “A
República Federativa do Brasil” – acrescentando adiante, no mesmo artigo –
“constitui-se em Estado Democrático de Direito”. Aqui surge, qualificado pela
democracia, outra expressão jurídica: Estado de Direito. Mas a história demonstra que
nem sempre o Direito (legítimo) foi o adjetivo na grande maioria dos Estados. No
Estado Moderno – que nasce em razão do fim dos feudos, na Europa, diversamente do
que ocorreu na Antiguidade clássica e na sociedade feudal, verificou-se uma “(...)
crescente concentração de poder nas mãos do príncipe, (...) operada com o auxílio da
noção de soberania recém-elaborada por juristas e teóricos” – diríamos forjada – o
que resultou no surgimento do Estado absolutista.2 Esta situação gerava insegurança nas
relações jurídicas, situação agravada com a existência de várias ordens paralelas (clero,
nobreza etc.).
Todos os problemas gerados pelo Estado Absoluto, aliados ao
surgimento do racionalismo iluminista, favoreceram, ideológica e politicamente, a
eclosão das revoluções burguesas, surgindo, com esse movimento, a chamada teoria
constitucional, a qual daria ao Estado uma constituição jurídica, com o objetivo de fixar
os limites do poder político e vincular esse Estado à sociedade civil, através da
positivação dos direitos individuais aspirados pela burguesia. Por propiciar tais ensejos,
ganhou relevância a teoria da separação dos “poderes” – primeiro através de Locke e
depois com seu precursor, Montesquieu – sendo adotada nas constituições seguintes,
tanto nos Estados Unidos como na França, iniciando-se então o processo de sua
positivação.
1
2
Direito constitucional e teoria da constituição, p. 223.
CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, Atividade legislativa do poder executivo, p. 21-22.
2
É comum referir-se ao liberalismo como sendo o modelo do qual
resultaram dois legados: um, no âmbito econômico, representado pela idéia de bemcomum, advindo das leis naturais do livre mercado; e outro, no espectro político,
representado de forma especial pela positivação das liberdades nos ordenamentos
jurídicos.
O liberalismo econômico puro, como é cediço, quedou impotente
ante a inevitável conclusão de uma necessária participação estatal na regulação do
mercado e na prestação de serviços ao público, sendo que a discussão ideológica
permanece quanto à intensidade e à dimensão mais indicadas de intervenção.
O liberalismo político legou-nos o primado do Estado de Direito,
consolidando a idéia da inviabilidade de um Estado que não fosse criado e regulado pela
ordem jurídica legitimamente instituída. As características básicas desse modelo seriam,
conforme ensina JOSÉ AFONSO DA SILVA, (a) a submissão ao império da lei, que
era a essência do seu conceito, sendo a lei necessariamente considerada ato emanado
formalmente do Poder Legislativo, composto de representantes do povo-cidadão; (b)
divisão de “poderes”, para que os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário sejam
separados com independência e harmonia, resultando em técnica que garanta a produção
legislativa ao primeiro, a viabilidade do atendimento das exigências sociais ao segundo
e a independência e a imparcialidade do último diante dos demais e das pressões do
setor privado mais poderoso; e, por fim, o (c) enunciado e a garantia dos direitos
individuais. Essas exigências continuam a ser postulados básicos do Estado de Direito,
o qual representa uma grande conquista da civilização liberal.3
A teoria da separação de “poderes”, por constituir-se em
mecanismo de garantia das liberdades individuais, conquistou prestígio na doutrina
constitucional do liberalismo, “(...) doutrina política que fundamentou a construção da
teoria do Estado de Direito; um Estado juridicamente limitado pela Constituição e
ideologicamente assumido pela doutrina liberal”.4 A liberdade de que se fala no
liberalismo não é a mesma da antiguidade, que se exercitava através de uma forma
direta de democracia, mas um novo conceito, que define um campo de autonomia do
cidadão e da sociedade em contraposição à autonomia estatal. O Estado deve ser
concebido como expressão da vontade dos indivíduos (contratualismo), e deve ter o seu
3
4
Curso de direito constitucional positivo, p. 112-113.
CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, Atividade legislativa..., op. cit., p. 34.
3
poder e os seus fins limitados. O único fim do Estado liberal parece ser o de garantir a
segurança de que os indivíduos necessitam para que possam livremente desenvolver-se.
O liberalismo defendia a responsabilidade do Estado somente
para garantir a segurança das relações sociais, não possuindo outras funções além da
legislativa, da executiva e da judicial. No início do capitalismo, os liberais acreditavam
que o egoísmo em geral produziria o bem comum através de uma “mão invisível”, sem
imaginarem que as mudanças provocadas pela acumulação de capital e a recente noção
de poder econômico exigiriam uma mudança no Estado e no Direito. Para o liberalismo,
o Parlamento representava a vontade da nação, que não se confundia com o povo ou
com o eleitorado. A conquista do sufrágio universal, portanto, teve a virtude de conciliar
as idéias de liberalismo e democracia, que, em suas origens, não são coincidentes.
Mas ainda mesmo nos Estados de Direito em que não se
verificaram tendências totalitárias, demonstrou-se que o individualismo e o neutralismo
do Estado liberal resultaram em grandes injustiças, deflagradoras de importantes
movimentos sociais, ocorridos em especial nos dois últimos séculos. O qualificativo
“liberal”, desse modo, não era mais “bem visto” ao Estado de Direito, o qual não mais
poderia justificar-se de tal forma. Como conseqüência, percebeu-se o abandono da visão
meramente formal do Estado de Direito, nascendo de tal transição paradigmática um
Estado material de Direito, acrescendo, à positivação jurídica das liberdades, o “plus”
dos direitos sociais, donde nasce o Estado Social de Direito.
Entretanto, JOSÉ AFONSO DA SILVA anota que, embora a
concepção liberal do Estado de Direito tenha servido de apoio aos direitos do homem,
transformando os súditos em cidadãos livres, verificou-se a existência de concepções
deformadoras, “(...) pois é perceptível que seu significado depende da própria idéia que
se tem do Direito”, do que resulta sua ambigüidade quando apartado de outro
qualificativo que indique qual é o seu conteúdo material. Diante disso, e apoiado em
construções formalistas e normativistas do Direito, infelizmente serviu a interesses de
regimes totalitários e ditatoriais, como ocorreu na Alemanha nazista.5
A limitação jurídica estatal cede espaço diante da necessidade do
Estado de assumir novas funções. Os direitos fundamentais, antes restritos à idéia de
liberdades negativas (dever de abstenção do Estado), agora incluem os chamados
direitos econômicos, sociais e culturais (prestações positivas pelo Estado). Fatores como
5
Curso..., op. cit., p. 113-114.
4
a crise capitalista, sufrágio universal, reivindicações dos trabalhadores, revoluções
socialistas, redução das empresas, oligopólio, sociedade de massas, urbanização etc.,
acabaram por exigir o nascimento do Estado Social de Direito, fenômeno que não pôde
ser ignorado pelo direito constitucional, tendo como primeiros modelos a Constituição
mexicana de 1917 e a alemã de 1919 (Weimar), surgindo, no Brasil, com a Constituição
de 1934.
Diante das numerosas exigências que lhe são feitas, e em
decorrência das profundas modificações sofridas no meio social, o Estado avolumou-se,
inchou. E é o mesmo Estado quem tem o dever de assegurar as liberdades, abstendo-se
muitas vezes de ultrapassar certos limites. A liberdade outrora existente, não é mais
imaginável hoje. Os indivíduos dependem do Estado para quase tudo, além de
dependerem uns dos outros. Além de indivíduos, a sociedade é formada hoje por
grandes grupos – sindicatos, igreja, partidos políticos, grandes empresas, bancos etc. –
cada um com interesses muitas vezes conflitantes com outros grupos ou com o próprio
Estado. Assim, tem o Estado a função de quebrar o domínio dos grupos e corporações.
Em um Estado social, o Executivo vê ampliada sua atuação, pois
é um Estado de serviços, o que lhe dificulta uma conciliação com o Estado de Direito,
pois “(...) a separação de poderes só tem sentido em um Estado de Direito”.6 Não
faltam exemplos de Estados sociais que se tornaram totalitários. É que, diante da
ambigüidade da expressão “social”, o modelo do “Estado Social de Direito”,
infelizmente, serviu de justificativa para a implantação de uma série de regimes em que
se verificou total desrespeito à vontade popular e aos mínimos direitos humanos. Foram,
assim, “Estados Sociais”, a Alemanha nazista, a Itália fascista, e inclusive o Brasil, na
época do Estado novo. O Estado “Social” comporta, portanto, a coexistência de regimes
políticos antagônicos, como a democracia, o fascismo e o nacional-socialismo. O
“social” deve qualificar o Direito, e não o Estado. Conclui-se, portanto, que, nem o
Estado liberal de Direito, nem o Estado social de Direito, garantem a existência de um
Estado Democrático, regime fundado na soberania popular, exigindo a participação
formal e material do povo, não só na formação das instituições representativas, mas,
além disso, na gestão da coisa pública, visando “(...) realizar o princípio democrático
como garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana”.7
6
7
CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, Atividade legislativa..., op. cit., p. 34.
JOSÉ AFONSO DA SILVA, Curso..., op. cit., p. 115-117.
5
Como bem observou BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS,
“(...) entre as ruínas que se escondem atrás das fachadas, podem pressentir-se os
sinais, por enquanto vagos, da emergência de um novo paradigma”; ou dizendo de
outro modo, os novos paradigmas sempre nascem das mazelas dos velhos paradigmas.8
Assim, do Estado absoluto, nasceu o Estado Liberal, e desse surgiu o Estado Social.
Mas, após o fim da Segunda Guerra Mundial, o Estado social e o Estado de Direito
reencontraram-se, com a união do novo papel do Estado à já conquistada sujeição do
Estado ao Direito. É quando nascem os Estados Democráticos de Direito.
Do princípio republicano democrático, portanto, bem assim dos
fundamentos do Estado de Direito, surgem, para o cidadão, direitos fundamentais, entre
nós, positivados no rol do artigo 5° da Constituição de 1988, assim como vários direitos
sociais, indicados no artigo 7º da Lei Maior. Dentro do Direito Tributário, porém,
sempre foi dado destaque aos direitos à liberdade, à igualdade, à segurança jurídica e à
propriedade, devido em grande parte à estreita vinculação desse ramo jurídico com o
princípio da legalidade.9
É importante, no entanto, atentar para os novos conteúdo e
alcance do princípio da legalidade, renovado com novos matizes, após o advento do
Estado Democrático de Direito, como expressa com propriedade JOSÉ AFONSO DA
SILVA, constitucionalista que defende ser a legalidade um princípio basilar do Estado
Democrático de Direito, modelo que, como todo Estado de Direito, sujeita-se ao
império da lei, mas da lei que realize o princípio da igualdade e da justiça, não pela sua
generalidade, mas pela busca da equalização das condições dos socialmente desiguais.
Mais adiante, ressalta que o Estado Democrático de Direito “(...) tem que estar em
condições de realizar, mediante lei, intervenções que impliquem diretamente uma
alteração na situação da comunidade”, pois “(...) a lei não deve ficar numa esfera
puramente normativa (...), pois precisa influir na realidade social”.10 Não se poderia
chegar a outra conclusão, pois se a Constituição é o berço legítimo das transformações
8
Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática, v.1, A
crítica da razão indolente: contra o desperdiço de experiência, p. 16.
9
O direito à vida, direito fundamental por excelência, é patrimônio primeiro do cidadão, devendo ser
priorizado em qualquer circunstância. Apenas não o citamos, aqui, em razão de que a tributação atual,
apesar de agressiva, felizmente não tem ocasionado violações à vida, pelo menos não diretamente, pois
se poderia defender que, do regime tributário do país, resultam as mazelas sociais e econômicas, e que
por via reflexa, portanto, a tributação seria a causa das mortes ocorridas, devido a estados extremos de
pobreza e subnutrição.
10
Curso..., op. cit., p. 121-122.
6
políticas, econômicas e sociais almejadas pela sociedade brasileira, a lei terá
importância fundamental, posto que, na qualidade de expressão clássica do direito
positivo, fruto do desdobramento do conteúdo constitucional, revela-se como
instrumento de transformação democrática da sociedade.
No presente trabalho, essa nova perspectiva, resultante do advento
do Estado Democrático de Direito, implica uma necessidade de uma nova consciência
político-tributária, tanto para os representantes do povo como para os contribuintes.
Esse novo contexto é marcado, de forma especial, pelo influxo, no âmbito tributário, do
valor constitucional da solidariedade social, previsto no artigo 3º da Constituição
Federal de 1988.
2. Sistema Tributário Nacional
A análise jurídica de qualquer tributo, inserido no ordenamento
jurídico pátrio, não pode ser feita somente a partir de seus dispositivos específicos, o
que pressuporia a interpretação isolada dos textos normativos, como se eles gozassem
de uma autonomia normativa. “Não há norma jurídica avulsa, como que pairando no
ar...”, dizia, com autoridade científica, GERALDO ATALIBA, acrescendo que não é
possível entender o texto, “(...) sem inseri-lo no contexto do qual faz parte”.11
Com efeito, não há outra opção hermenêutica válida, legítima,
senão aquela que privilegie uma interpretação sistemática de toda e qualquer norma,
dentro do seu respectivo sistema. O maior ou menor sucesso nessa empreitada
dependerá, ainda, de um correto e coerente dimensionamento axiológico dos princípios
maiores que informam o ordenamento jurídico, é dizer, há que se saber aplicar, em cada
caso, qual é o princípio que revela o vetor constitucional mais indicado para que a
solução final seja consentânea com os valores prestigiados no sistema, aqui e agora.
A razão disso está no entendimento de que não há relação de
hierarquia entre os princípios constitucionais, em especial entre aqueles de maior
envergadura – com graus de generalidade e abstração equivalentes – senão um campo
de aplicação específico para cada um, hipótese em que todos os demais deverão ser,
11
Imposto sobre serviços: competência tributária é, eminentemente, legislativa – matéria constitucional –
função das normas gerais de direito tributário – ampla autonomia tributária do Município – tributação
dos serviços de vigilância bancária, Revista de Direito Tributário, n. 35, p. 69.
7
para aquele caso único, desconsiderados, posto ser aquele princípio eleito o único que
realiza, por meio de uma só norma, o Direito como um todo.
Há casos, por exemplo, em que o valor da segurança jurídica
determinará a aplicação do princípio da legalidade tributária ou de seu corolário
imediato, a tipicidade fechada da norma tributária, e a conclusão pela inaplicabilidade
do princípio da isonomia tributária. Em outra situação, nada impede que, por exigência
inafastável de prestígio ao cânone da capacidade contributiva, a isonomia tributária deva
ser a opção do intérprete. Quando se fala em “aplicação de um princípio”, ou “opção
por um princípio”, parte-se da premissa implícita de que essa “aplicação” ou “opção” é
efetivada com uma independência parcial do intérprete, pois em razão de os valores já
estarem positivados no sistema, àquele somente resta, no plano pragmático da
linguagem jurídica, subsumir seus valores pessoais à ideologia encampada pela
Constituição. É lógico que, devido ao elevado grau de abstração e generalidade das
normas que revelam princípios, evidencia-se uma verdadeira e legítima “folga
interpretativa”, espaço no qual se justifica a convivência de conclusões diferentes sobre
o mesmo tema, assim como é o que permite às expressões e vocábulos, constantes dos
textos normativos, adaptarem-se às peculiaridades fáticas, no tempo e no espaço.
Essa “flexibilidade” existente no sistema jurídico, verificável,
como se disse, somente no nível pragmático da linguagem jurídica, e que peculiariza a
lógica da Ciência do Direito (“dever-ser”) diante da lógica inerente às ciências naturais
(“ser”) é a única justificativa legítima para resultados interpretativos divergentes. Fora
dessa perspectiva, qualquer análise de um texto normativo resulta falsa, não podendo
nem mesmo ser qualificada como interpretação, pois, ou a interpretação é sistemática,
ou de interpretação não se trata. É o caso clássico da interpretação literal (gramatical)
que, apesar de válida como um primeiro estágio hermenêutico, não é bastante em si para
chegar a qualquer resultado verdadeiro. De resto, o caráter sistemático e unitário do
Direito é, em rigor, verdadeiro axioma, que por essa razão dispensa maiores esforços em
sua demonstração.
O Sistema Tributário Nacional é expressão que abrange todas
as normas, constantes do ordenamento jurídico, que disciplinam as relações jurídicas
tributárias. Constitui-se, portanto, em verdadeiro subsistema, em razão das
peculiaridades que esse ramo jurídico apresenta. Não se quer com isso afirmar a
existência de foros de autonomia científica para o Direito Tributário, pois já é cediço
8
que o caráter unitário do Direito impede possa um determinado ramo jurídico pretender
ser titular de institutos e conceitos próprios, desvinculados do restante do sistema
jurídico.
Quando muito, há uma autonomia tão-só didática, e que não passa
de relativa, pois não há ramo jurídico cujo ensino prescinda do recurso às demais áreas
do Direito. O Direito Tributário, além de não poder ser diferente, é intensamente
marcado por essa característica. Basta um breve lançar de olhos a qualquer norma
jurídica tributária, em cuja hipótese de incidência são facilmente identificáveis
conceitos e institutos advindos de outros ramos, em especial do Direito Civil e do
Direito Comercial. No plano do Direito Tributário formal, onde estão inseridas as
normas jurídicas que tratam da exigibilidade dos tributos, destacam-se as participações
do Direito Administrativo e do Direito Processual. Não por outra razão o Direito
Tributário é denominado de “direito de superposição”.
O Sistema Tributário Nacional, assim como o sistema jurídico,
pode ser vislumbrado como a clássica figuração da pirâmide jurídica. No ápice estão as
normas jurídicas que, não obstante existirem em menor número, são as mais importantes
do ponto de vista axiológico, o que lhes confere a posição hierárquica superior. A cada
degrau da pirâmide, reduzindo-se o grau de abstração e generalidade, as normas
tributárias vão aumentando em quantidade e concreção, mas sempre tendo a forma e o
conteúdo vinculados ao que dispõem as normas superiores, que lhes servem de
fundamento de validade.
São as normas constitucionais, portanto, que ocupam o mais alto
nível na hierarquia normativa. Dentre elas, ainda se podem classificar as mais
relevantes, e que condicionam a interpretação do restante do ordenamento jurídico,
inclusive
das
demais
normas
constitucionais.
São
os
chamados
princípios
constitucionais e, para o que interessa ao presente estudo, os princípios constitucionais
que orientam a aplicação de todo o Direito Tributário brasileiro. Com essa afirmação
não se quer defender que apenas os princípios constitucionais previstos no Capítulo I do
Título VI (Do Sistema Tributário Nacional) orientam a aplicação do Direito Tributário
no Brasil. Isso implicaria franca contradição com a anterior afirmação da inexistência de
autonomia do Direito Tributário.
Essa
exigência
hermenêutica
foi
bem
demonstrada
por
HUMBERTO ÁVILA, em acertada crítica sobre a “combinação de princípios” levada a
9
efeito pela tradicional interpretação sistemática do Direito Tributário, onde a descrição,
pela doutrina, das limitações ao poder de tributar abrange, em geral, as limitações
negativas, sem uma investigação mais profunda e conjunta das limitações positivas,
como, por exemplo, a proporcionalidade e os princípios e direitos fundamentais.12
3. Princípios Constitucionais Tributários13
O artigo 150, da Constituição Federal de 1988, antes de enumerar
em seus incisos as mais importantes “limitações constitucionais ao poder de tributar”,
dispõe, em seu caput, o seguinte:“Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao
contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:...”
(grifamos). Ou seja, a expressão “outras garantias” confere a certeza de que os
princípios constitucionais tributários subsumem-se entre os “direitos e garantias
individuais” previstos no artigo 60, § 4°, IV, da Constituição Federal de 1988, o que os
qualificam como cláusulas pétreas. E não poderia ser de outra forma. São os princípios
que presidem o funcionamento de todo o sistema jurídico. Se assim não fosse, o Direito
seria um amontoado de normas, cuja aplicação em cada caso dependeria do humor
momentâneo do magistrado, instaurando-se o caos da insegurança jurídica e da
inexistência de certeza do Direito. Dessume-se, então, que as noções de sistema
jurídico e princípio são indissociáveis. É da essência de todo e qualquer sistema a
existência de elementos mais importantes que comandam a intelecção e aplicação dos
demais.
No sistema jurídico brasileiro, os princípios são a mais legítima
expressão da vontade popular, sendo compromisso ético e moral dos representantes do
povo, tanto no Poder Legislativo como no Poder Executivo, a luta incessante pela sua
eficácia, mediante a irradiação de seus valores sobre a legislação infraconstitucional.
GERALDO ATALIBA, publicista que se destacou como um dos maiores defensores
dos princípios constitucionais, revela esse pensamento, nos seguintes termos: “Olvidar
o cunho sistemático do Direito é admitir que suas formas de expressão mais salientes,
12
13
Sistema constitucional tributário, p. 21-22.
Alguns princípios, que aqui serão analisados, não são de aplicação exclusiva no Direito Tributário,
como é o caso dos princípios republicano, federativo e da autonomia municipal, valores supremos que
se irradiam por todo o ordenamento jurídico. Não há, nesse sentido, princípio específico e exclusivo de
algum ramo jurídico, senão manifestações específicas dos princípios gerais de Direito, que ganham
nova roupagem em cada área do jurídico.
10
as normas, formam um amontoado caótico, sem nexo, nem harmonia, em que cada
preceito ou instituto pode ser arbitrária e aleatoriamente entendido e aplicado,
grosseiramente indiferente aos valores jurídicos básicos resultantes da decisão
popular”.14
No entanto, como bem adverte JOSÉ ROBERTO VIEIRA, “É
extensa e larga a diversidade semântica da palavra ‘princípio’(...)”, sendo comum na
seara do Direito, lembra o autor, referi-los metaforicamente como alicerces do edifício
jurídico, ou ainda como bases ou pilares do ordenamento. Em razão dessa
multiplicidade de sentidos da expressão “princípios constitucionais”, o jurista
paranaense nos adverte da necessidade de “(...) elucidar o sentido em que a estamos
utilizando, de modo mais específico do que a noção muito ampla de fundamentos do
sistema (...)”, e, amparado nas quatro acepções arroladas por PAULO DE BARROS
CARVALHO, o autor adota a expressão, nesse seu estudo, com os sentidos de “(...)
normas jurídicas de posição privilegiada, portadoras de valor expressivo ou que
estipulam limites objetivos”.15 Em virtude da boa síntese, e da sua aderência com os
nossos objetivos, adotamos também, neste trabalho, a expressão “princípios
constitucionais” com essa conotação.
3.1. Princípios: Republicano, Federativo e da Autonomia Municipal
A Constituição Federal, já em seu artigo 1º, estabelece: “A
República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem
como fundamentos...”. A circunstância de os primados da República e da Federação já
constarem do primeiro artigo da Constituição não é mera coincidência. Antes, é fruto da
solidificação jurídico-cultural desses que estão entre os mais importantes princípios de
nosso sistema jurídico, pois deitam luzes sobre todas as demais normas do ordenamento
jurídico, inclusive sobre os demais princípios constitucionais, os quais têm eficácia na
medida exata em que, com eles, entrem em harmonia.
14
15
República e Constituição, p. 15.
Bocage e o terrorismo constitucional das medidas provisórias tributárias: A emenda pior do que o
soneto, in ROBERTO FERRAZ (coord.), Princípios e limites da tributação, p. 685-688.
11
Segundo a definição irretocável de GERALDO ATALIBA,
República é o “(...) regime político em que os exercentes de funções políticas
(executivas e legislativas) representam o povo e decidem em seu nome, fazendo-o com
responsabilidade, eletivamente e mediante mandatos renováveis periodicamente”.16 As
características da República, para o autor, são, portanto, a eletividade (instrumento de
representação), a periodicidade (asseguradora da fidelidade aos mandatos) e a
responsabilidade (penhor da idoneidade da representação popular).
Verifica-se que, para o referido autor, a tônica do ideal
republicano está na exigência de que a tomada de decisões seja feita pelo povo, através
de seus representantes. Ou seja, o Direito que disciplina a sociedade e o próprio Estado
é fruto da vontade popular. Quer parecer que a principal conseqüência desse
posicionamento será a necessidade de rigorosa observância, pelo Estado e pela própria
sociedade, dos valores prestigiados pelo povo, e que, por essa razão, erigiram-se como
os magnos princípios constitucionais, com destaque para o princípio da legalidade.
ROQUE ANTONIO CARRAZZA tem definição semelhante,
cujo traço distintivo, no entanto, parece ser a ênfase na idéia da igualdade, como reflexo
principal da república: “República é o tipo de governo, fundado na igualdade formal
das pessoas, em que os detentores do poder político exercem-no em caráter eletivo,
representativo (de regra), transitório e com responsabilidade”.17 Como decorrência de
seu raciocínio, ressaltam, como principais reflexos do princípio republicano no campo
tributário, o princípio da isonomia tributária (artigo 150, II, da Constituição) e o cânone
da capacidade contributiva (artigo 145, § 1º, também da Constituição). Não restam
dúvidas, todavia, que, no seu raciocínio, também se manifesta a idéia da legalidade,
fruto do exercício do poder político por meio dos representantes. O mesmo
entendimento é defendido por SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO.18
Tamanha é a força e intensidade axiológica do princípio
republicano que todo o restante do ordenamento jurídico tem seu sentido dirigido em
razão de seus postulados. De outra forma, pode-se afirmar que o princípio republicano
influi, de modo decisivo, na interpretação de todas as demais normas constitucionais,
sejam as que revelam verdadeiros princípios, sejam as que revelam simplesmente
16
República..., op. cit., p. 13.
Curso de direito constitucional tributário, p. 52.
18
Comentários à Constituição de 1988: Sistema tributário, p. 4-5.
17
12
regras. Com mais razão, todas as normas infraconstitucionais devem ter seu sentido
condicionado à conformidade com suas exigências.19
O principal reflexo do princípio republicano no Direito Tributário
é a exigência inafastável de que todo tributo só pode ser criado ou aumentado tendo em
vista o bem-comum, o que se estende, por força de pura lógica, às isenções tributárias,
as quais não podem ser concedidas ou revogadas em detrimento desse supremo valor
constitucional. Disso decorre o princípio da destinação pública dos valores arrecadados
mediante a tributação, assim como a proibição de vantagens tributárias a determinadas
pessoas sem respaldo constitucional, como no passado ocorria, por exemplo, com
aqueles que possuíam títulos de nobreza ou que faziam parte do clero.20
ROQUE ANTONIO CARRAZZA também ressalta que o
princípio republicano leva ao princípio da generalidade na tributação, pelo qual “(...)
todos os que realizam o fato imponível tributário venham a ser tributados com
igualdade”.21 O princípio republicano, portanto, leva à igualdade na tributação, o que
exige tratamento tributário isonômico para todos os que se encontram na mesma
situação jurídica. Por via de conseqüência, o princípio da capacidade contributiva,
previsto no artigo 145, § 1º, de nossa Carta Magna, também é manifestação do ideal
republicano, pois é o discrímen que permite atribuir tratamento desigual aos
contribuintes. Ou seja, os iguais e os desiguais, no Direito Tributário, são os que
revelam a mesma ou diversa capacidade contributiva.22
GERALDO
ATALIBA
leciona
que
os
princípios
mais
importantes são os da Federação e o da República, razão pela qual “(...) exercem função
capitular da mais transcendental importância, determinando inclusive como se devem
interpretar os demais, cuja exegese e aplicação jamais poderão ensejar menoscabo ou
detrimento para a força, eficácia e extensão dos primeiros”.23
Tão cristalizada está a certeza da importância desses princípios no
ordenamento jurídico, que a Constituição Federal, no § 4º do seu artigo 60, tratou de
petrificá-los, não podendo, diante desse dispositivo, nem mesmo ser objeto de
deliberação, no Congresso Nacional, a proposta de emenda que tão-somente tenda a
19
GERALDO ATALIBA, República..., op. cit., p. 32.
ALIOMAR BALEEIRO, Limitações constitucionais ao poder de tributar, p. 258 et seq.
21
Curso..., op. cit., p. 73.
22
Curso..., op. cit., p. 80-81.
23
República..., op. cit., p. 36.
20
13
aboli-los.24 Ainda que a vedação somente seja expressa em relação à “forma federativa
de Estado” (inciso I), a Constituição alberga outras inequívocas manifestações do ideal
republicano, sendo o “voto direto, secreto, universal e periódico” (inciso II),
certamente, a principal delas, por representar a idéia essencial de representação. Em
seguida, pode-se ainda citar a “separação dos Poderes” (inciso III) e “os direitos e
garantias individuais” (inciso IV).
Dentre os dois princípios, pode-se ainda afirmar que a noção de
república vem em primeiro lugar, posto que a federação é um instrumento de sua
realização. A autonomia dos entes federados e a descentralização política em que se
traduz a federação, fazem com que melhor funcione a representatividade e o exercício,
pelo povo, de suas prerrogativas de cidadania e de autogoverno, nas palavras de
GERALDO ATALIBA, que, amparado em Rui Barbosa, lembra que a expressão regime
“republicano-federativo” denuncia a íntima e necessária relação entre os dois
princípios.25
A divisão do Estado brasileiro em pessoas políticas – União
Federal, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios – deve-se aos princípios
constitucionais do federalismo e da autonomia municipal. MISABEL DE ABREU
MACHADO DERZI, amparada em MIGUEL REALE, afirma que:
(...) a todo poder social corresponde uma ordem jurídica, sendo a ordenação
do Direito a forma de organização da coerção social. Por conseguinte, com a
descentralização política própria do Estado federal se dá, necessariamente,
uma descentralização jurídica. O enfoque estritamente jurídico da questão,
leva-nos a constatar o inverso. À descentralização jurídica corresponderá a
política, já que o poder estatal, sob tal ângulo, é mera validade e eficácia da
ordem jurídica [sic].26
No âmbito tributário, em face de previsões como, por exemplo, a
do artigo 146, caput, da Constituição Federal de 1988, o conhecimento amplo dos
primados do federalismo e da autonomia municipal será crucial para a análise do
espectro de atuação da lei complementar de normas gerais em matéria tributária. A
expressão “normas gerais” já denuncia tratar-se de normas de âmbito nacional. A
existência das leis nacionais – complementares ou ordinárias, conforme a matéria – não
24
“§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa
de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os
direitos e garantias individuais.”
25
República..., op. cit., p. 43-44.
26
Fundamentos da competência tributária municipal, Revista de Direito Tributário, n. 13/14, p. 105.
14
só para o Direito Tributário, mas também em relação a outros ramos do Direito Público,
deve-se a uma necessidade, prevista pelo legislador constituinte, de que a Constituição
Federal fosse observada por todas as pessoas políticas de uma forma harmônica, quando
do exercício de suas competências, preservando assim a unidade dos interesses
nacionais.
Inafastável é a conclusão de que a autonomia dos Municípios é
conseqüência direta não apenas do princípio federativo, como também do princípio
republicano, o que a posiciona dentre os mais importantes princípios de Direito Público
previstos na Constituição. Afirma ATALIBA que “(...) por meio da autonomia
municipal realizam-se os ideais republicanos de maneira excelente e conspícua no que
concerne à vida política local e no exercício das liberdades políticas, em matéria
própria do ‘círculo de vizinhos’, em que se funda a instituição municipal”.27 Acresce
ainda o autor:
Realiza-se no Município brasileiro, com notável extensão, o ideal republicano
da representatividade política, com singular grau de intensidade. Aí, a
liberdade de informação, a eficácia da fiscalização sobre o governo, o amplo
debate das decisões políticas, o controle próximo dos mandatários pelos
eleitores, dão eficácia plena a todas as exigências do princípio republicano
representativo. (...) Todos os preceitos constitucionais direta ou indiretamente
aplicáveis aos Municípios têm a dupla finalidade de: a) dar eficácia ao
princípio republicano, garantindo o autogoverno local; e b) assegurar
mecanismos republicanos de funcionamento do Município, nas suas relações
internas. (...) O modo pelo qual foi constitucionalmente tratado o Município
no Brasil só faz esplender, com maior intensidade e brilho, as virtudes
notáveis da república representativa, com seus postulados democráticos.28
Do raciocínio lúcido e inatacável do referido autor, resulta a
inviabilidade da pretensão da União Federal de, quando no exercício de competências
de âmbito nacional, pretender amesquinhar a autonomia municipal, como é o caso da
competência para editar, por meio de lei complementar, as normas gerais de direito
tributário, instrumento que não pode ser invocado para invadir a competência
municipal, pois nem mesmo o legislador constituinte derivado tem essa prerrogativa.
27
28
República..., op. cit., p. 45.
Ibidem, p. 46.
15
3.2. Princípio da Legalidade Tributária
O artigo 5°, II, da Constituição, estabelece a máxima pela qual
“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de
lei”. É o princípio da legalidade, em sua disposição genérica, que pode ser traduzido
como a mais clássica noção de liberdade, no sentido de que o cidadão é livre para fazer
tudo aquilo que a lei não proíba.
Tão grande é a importância e expressão do Princípio da
Legalidade, que o mesmo foi incluído entre os direitos e garantias individuais, o que lhe
garante a condição de cláusula pétrea, estando vedada qualquer deliberação sobre
proposta de emenda à Constituição que até mesmo tenda a abolir essa garantia,
conforme disposição do artigo 60, § 4°, IV da Constituição Federal de 1988. O termo
“tenda” significa que a vedação de deliberação de propostas de emenda à Constituição
não alcança somente aquelas que violem frontalmente a legalidade, mas impede também
as que indiretamente venham a conflitar, seja com que intensidade for, com o primado
da legalidade.
No campo tributário, tamanha é a sua importância, que a grande
maioria dos países, de uma forma ou de outra, o adotou em suas constituições,
revelando que a sua essência constitui verdadeiro princípio geral de Direito. RAMÓN
VALDÉS COSTA, ex-professor titular da Faculdade de Direito da Universidade da
República do Uruguai, em acurado estudo sobre o Princípio da Legalidade no sistema
uruguaio, ante o Direito Comparado, confirma esse entendimento, conforme se verifica
desse seu raciocínio:
Seguramente ningún principio jurídico ha acumulado a través de siglos
mayores adhesiones en la doctrina y en los Derechos Positivos, que el de la
legalidad em materia tributaria. Con razón ha sido calificado como ‘principio
común de Derecho Constitucional Tributario’ en virtud de su recepción
expresa o implícita en las constituciones del Estado de Derecho
Contemporáneo. Esta raigambre constitucional permite afirmar, como lo
hemos hecho en repetidas oportunidades, que se trate de la proyección de un
principio general de Derecho, en el campo específico de la rama juridíca que
en este siglo hemos categorizado como Derecho Tributario.29
Quando visto sob a óptica da liberdade, o princípio da legalidade
expressa uma permissão, visto, portanto, com um conteúdo positivo. Mas do ponto de
29
El Principio de Legalidad, Revista de Direito Tributário, n. 38, p. 93-94.
16
vista de uma garantia, encerra uma proibição, que tem por destinatário o próprio
Estado, no sentido de impedir que atos estatais não fundamentados em lei venham a
atingir a liberdade ou a propriedade das pessoas – dever de abstenção. A legalidade está,
dessa forma, dentre aqueles direitos que ROBERT ALEXY denomina de “derechos a
acciones negativas” ou “derechos de defensa”.30
E, mais do que isso, a lei que fundamenta todo e qualquer ato
estatal deve estar em consonância com as diretrizes maiores veiculadas pelos princípios
constitucionais. Mesmo porque, do contrário, não seria lei, teria apenas aparência de
lei, pois a expressão lei inconstitucional, em rigor, encerra uma contradictio juris.
Ao contrário, portanto, do sentido que o princípio veicula quando
os destinatários são os cidadãos – relação de compatibilidade com a lei, pode-se fazer
tudo o que a lei não proíba – quando o destinatário é o Poder Público, surge
obrigatoriamente uma relação de conformidade com a lei, o que se traduz na exigência
de que toda e qualquer atividade realizada pelo Estado deva estar prevista em lei.
Como
observa
VICTOR
UCKMAR,
o
surgimento
do
parlamentarismo ocorreu na Europa da Idade Média, tendo em vista impedir que
qualquer prestação pecuniária pudesse ser imposta sem anterior deliberação pelos
órgãos legislativos. Para o autor italiano, é errônea a idéia generalizada de que a
legalidade tributária tenha surgido com a Magna Charta, quando, durante o reinado de
João sem Terra, os barões rebelaram-se contra a onerosidade dos tributos, citando o
autor vários países nos quais, em épocas anteriores, já existiam formas de aprovação
legislativa para a cobrança de tributos. O parlamentarismo surge, acrescenta o autor,
tendo em vista a “(...) necessidade de se adequar entradas e despesas públicas”.31
Sendo a cobrança de tributos atividade que invade sobremaneira
tanto a esfera da propriedade, como também a da liberdade dos cidadãos, é de concluirse pela acentuada necessidade de que todas as fases inerentes à tributação, desde a sua
instituição, passando pelos procedimentos de fiscalização, lançamento, recolhimento e
também de sanção nos casos de descumprimento, rigorosamente obedeçam ao que foi
estabelecido na lei em sentido formal e material, ou seja, lei que obedeceu aos requisitos
constitucionais de elaboração e de aprovação. Dizendo de outra forma, a lei deve ser
constitucional tanto no conteúdo como na forma.
30
31
Teoria de los derechos fundamentales, p. 189.
VICTOR UCKMAR, Princípios comuns de direito constitucional tributário, p. 21-22.
17
Por essas razões, a exigência de lei em matéria de tributos é
representada pelo brocardo nullum tributum sine lege, à semelhança do existente no
Direito Penal, onde nullum crimen nulla poena sine lege. Ressalte-se, contudo, que, no
Direito Tributário, o princípio ganhou maior intensidade, conforme se depreende da
leitura do artigo 108, §§ 1° e 2°, do Código Tributário Nacional, os quais,
respectivamente, estabelecem que “O emprego da analogia não poderá resultar na
exigência de tributo não previsto em lei” e “O emprego da eqüidade não poderá
resultar na dispensa do pagamento de tributo devido”.
Essa maior intensidade do Princípio da Legalidade da Tributação
é, também, demonstrada pela expressão reserva absoluta de lei32, o que significa dizer
que não basta a existência de lei formal como fundamento da instituição de um tributo,
sendo necessário que essa lei esteja revestida de características especiais, ou seja, que
traga em seu conteúdo todos os elementos necessários a identificar, com previsibilidade,
todos os fatos que se subsumam na previsão normativa, assim como todos os que com
ela não se compatibilizem, por não se adequarem ao tipo tributário em todos os seus
aspectos.
Em 1988 essa garantia foi consagrada pela nova Constituição, que
além de prever a legalidade tributária no artigo 150, I, o qual estabelece que “sem
prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: exigir ou aumentar tributo sem lei que o
estabeleça”, foi além, no seu artigo 146, III, “a”, dispositivo que reservou à lei
complementar a competência absoluta para definir, em relação aos impostos, seus
elementos essenciais: “Cabe à lei complementar: estabelecer normas gerais em matéria
de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas
espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos
respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes”.
É por decorrência, portanto, da reserva absoluta de lei formal que
o Princípio da Legalidade assume conteúdo extremamente rígido, que se manifesta
32
Registre-se que, no Direito brasileiro, por força do Princípio da Legalidade genérica, previsto no artigo
5º, II, da Constituição de 1988, pelo qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa senão em virtude de lei”, a expressão “reserva absoluta de lei” não pode resultar na conclusão de
que algumas matérias estão reservadas à previsão legal, enquanto outros assuntos poderiam ser
previstos em norma infralegal, como os decretos, por exemplo, pois todos os direitos e deveres devem
ter previsão na lei, salvo se já estiverem previstos, de forma suficiente, em norma de hierarquia
superior.
18
através de outro princípio, o da Tipicidade da Tributação, que deverá ser observado
tanto na criação, como na majoração dos tributos.
A cada um dos entes políticos caberá, através de suas respectivas
leis ordinárias, decidir se instituem ou não os tributos que lhe couberam na repartição de
competências, podendo até mesmo ficar aquém do que dispôs a lei complementar,
nunca podendo, entretanto, ir além, sob pena de instituir-se tributos sobre fatos que não
se encontram dentro de sua faixa de competência, tal como estabelecida pela
Constituição.
E quais são as razões do rigor com que se expressa o Princípio da
Legalidade na tributação? Com a conquista do Estado Democrático de Direito, o
cidadão recebeu da Constituição prerrogativas, positivadas sob a rubrica de direitos
fundamentais – artigo 5° da Constituição Federal de 1988 – e que certamente possuem
hierarquia superior à de qualquer norma relativa à tributação. O setor da tributação, por
sua vez, sempre se revelou “generoso” em desrespeitar os direitos e garantias dos
cidadãos, e, como a atividade de tributar atinge diretamente o direito de propriedade das
pessoas, podendo afetar drasticamente também o seu direito à liberdade – seja a clássica
de ir e vir, como também a livre iniciativa, prevista no artigo 170 da Constituição –
necessário foi que o Princípio da Legalidade fosse qualificado por regras que
vinculassem estritamente tanto o aplicador da lei, como o próprio legislador, tudo com o
fim maior de assegurar a observância ao Princípio da Segurança Jurídica e que, em
síntese, visa garantir a previsibilidade nas relações jurídicas.33
É nesse sentido o raciocínio de OCTÁVIO CAMPOS FISCHER,
conforme se observa nessa sua crítica:
(...) chama-nos a atenção que, em um Estado Democrático de Direito, a cada
inovação fiscal, ainda temos que nos preocupar com normas basilares do
direito tributário e que há muito já deveriam ter sido incorporadas à atuação
dos poderes públicos. Se hoje descobrimos a importância para a tributação de
princípios como a boa-fé, a moralidade, a eficiência, a proporcionalidade, por
outro lado, ainda não conseguimos superar a fase da legalidade tributária. Há
um eterno retorno a esse princípio cada vez que nova legislação é produzida.
Não só porque o executivo passou a amealhar uma maior gama de funções
legislativas, mas porque se verificou que o Legislativo também é capaz de ser
tão agressor da Constituição quanto aquele.34
33
34
PAULO DE BARROS CARVALHO, Curso de direito tributário, p. 148.
A tributação dos serviços de registros públicos, cartorários e notariais, in HELENO TAVEIRA
TÔRRES (coord.), Imposto Sobre Serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na
Constituição, p. 455-456.
19
Interessante observar que, mesmo com o advento do Estado
Social de Direito, e, após, com a sua evolução para um Estado Democrático de
Direito, quando ao Executivo foi atribuída uma imensidão de novas responsabilidades,
não houve enfraquecimento do primado da Legalidade Tributária. Ao contrário, como
se pode observar em nossa Constituição, as disposições em matéria tributária, ao invés
de serem reduzidas, foram substancialmente aumentadas, vinculando a atividade de
tributar às disposições de um verdadeiro Estatuto do Contribuinte. Como aspecto
negativo, temos, infelizmente, o histórico do indiscriminado e abusivo uso de medidas
provisórias em matéria tributária, problema que não foi resolvido, mesmo com o
advento da Emenda Constitucional n° 33/2001, a qual objetivou minimizar os
problemas da utilização em massa desse instrumento normativo.
Não se quer, porém, defender uma posição ultrapassada do
Princípio da Legalidade Tributária, como se fosse um instrumento perverso a justificar,
por exemplo, negócios jurídicos praticados em flagrante exercício abusivo do direito. É
importante, entretanto, compreender que o Princípio da Legalidade Tributária, como,
aliás, ocorre em qualquer outro ramo do direito, deve ser interpretado de forma
condizente com as novas exigências advindas do Estado Democrático de Direito,
modelo que, como todo Estado de Direito, sujeita-se ao império da lei, mas da lei que
realize o princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade, mas pela busca
da equalização das condições dos socialmente desiguais, como ensina JOSÉ AFONSO
DA SILVA, pois se a Constituição é a origem das aspirações às transformações
políticas, econômicas e sociais, a lei, como desdobramento do conteúdo constitucional,
é instrumento de transformação democrática da sociedade.35 O desafio reside em
consolidar esse novo paradigma da Legalidade Tributária no Direito brasileiro, sem
prejuízo das garantias já conquistadas pelos contribuintes, em defesa dos abusos
constantemente cometidos pelos fiscos federal, estaduais e municipais.
É nesse novo contexto que parte da doutrina passou a defender
que a possibilidade de o fisco desconsiderar planejamentos tributários não se restringe
mais às tradicionais hipóteses do artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional, ou
seja, quando restarem demonstrados o dolo, a fraude ou a simulação. Com o advento do
atual Código Civil, que positivou as figuras do abuso de direito (como ato ilícito) e da
fraude à lei (como ato nulo), surgiu a tese de que o fisco passou a ter o poder-dever de
35
Curso..., op. cit., p. 121-122.
20
lançar o tributo também nessas novas hipóteses.36 Isso implica uma nova definição dos
limites em que o planejamento deixa de ser hipótese de elisão tributária (lícita) para
tipificar caso de evasão tributária (ilícita). Nesse sentido é o pensamento de MARCO
AURÉLIO GRECO37 e de DOUGLAS YAMASHITA38, por exemplo.
No entanto, essa tese ainda está longe de ser pacífica, havendo
boa parte da doutrina que defende só haver evasão fiscal nas hipóteses de dolo, fraude e
simulação, posto que previstas no seio do Direito Tributário – artigo 149, VII, do
Código Tributário Nacional. Esse é o entendimento, por exemplo, de ALBERTO
XAVIER.39
Contudo, entende-se que o abuso de direito e a fraude à lei não
são figuras de aplicação restrita às relações privadas, o que alguns defendem em razão
da positivação desses institutos no Código Civil. Uma premissa importante e também
inafastável reside no entendimento de que os dispositivos do Código Civil não
pertencem apenas ao Direito Privado. Deve-se lembrar que a Lei de Introdução ao
Código Civil, e a parte geral do próprio código, por exemplo, tratam de temas que
dizem respeito a todos os ramos jurídicos, inclusive os ramos do direito público, não
sendo o Direito Tributário exceção a essa regra.
Nesse contexto estão, por exemplo, as regras sobre a vigência e a
eficácia das normas jurídicas, as disposições sobre os fatos, atos e negócios jurídicos,
regime das pessoas naturais e pessoas jurídicas, inclusive as de direito público etc. Esse
é o entendimento de MIGUEL REALE, para quem “(...) nada mais errôneo do que
pensar que o que se encontra num livro de Direito Civil seja sempre Direito Civil”.40
Seria ilógico, portanto, que alguém pudesse defender que um
planejamento tributário é legítimo, ainda que fundamentado em negócio nulo e/ou
ilícito, apenas porque não há norma especificamente tributária que o tipifique dessa
forma. A questão relaciona-se intimamente com o princípio da legalidade tributária,
porque, regra geral, as hipóteses de planejamento tributário, contaminadas por abuso de
direito e/ou fraude à lei, têm, como fundamento uma interpretação da norma tributária
36
“Artigo 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes.”
“Artigo 166. É nulo o negócio jurídico quando: (...) VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa.”
37
Planejamento tributário.
38
Elisão e evasão de tributos: limites à luz do abuso do direito e da fraude à lei.
39
Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva.
40
Lições preliminares de direito, p. 15.
21
que conclui pela não incidência e/ou incidência reduzida, mas que, apesar de ser um dos
sentidos literais possíveis, é violadora de algum princípio jurídico de maior hierarquia.
Ou seja, o contribuinte não pode invocar o Princípio da Estrita Legalidade Tributária
diante de uma interpretação literal que contraria, por exemplo, o Princípio da Isonomia
Tributária. Esse é o entendimento, por exemplo, de RICARDO LOBO TORRES.41
Nesse sentido é o acórdão proferido nos autos da Apelação Cível
nº 115.478/RS, do extinto Tribunal Federal de Recursos. Nesse processo, discutiu-se a
viabilidade da criação de oito sociedades pelos mesmos sócios de uma única indústria
fornecedora, com o fim de possibilitar a opção pelo lucro presumido, regime a que a
mesma não teria direito por ser de grande porte. Embora não tenha considerado a
operação nem simulada nem fraudulenta, definiu-a como ilícita e evasiva, por ofensa ao
Princípio da Igualdade:
AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL. IMPOSTO DE RENDA.
LUCRO PRESUMIDO. OMISSÃO DE RECEITA. Legitimidade da atuação
do Fisco, em face dos elementos constantes dos autos. Constituídas foram, no
mesmo dia, de uma só vez, pelas mesmas pessoas físicas, todas sócias da
autora, 8 (oito) sociedades com o objetivo de explorar comercialmente, no
atacado e no varejo, calçados e outros produtos manufaturados em plástico,
no mercado interno e no internacional. Tais sociedades, em decorrência de
suas características e pequeno porte, estavam enquadradas no regime
tributário de apuração e resultados com base no lucro presumido, quando sua
fornecedora única, a autora, pagava o tributo de conformidade com o lucro
real. Reconhece-se à recorrente, apenas, o direito de compensação do
Imposto de Renda pago pela aludidas empresas. Reforma parcial da
sentença.42
41
42
A norma antielisão, seu alcance e as peculiaridades do sistema tributário nacional: objeto da norma,
efeitos na aplicação, fundamentos e limites, abrangência, pressupostos, avaliação de motivos, condição
de aplicação, in Escola de Administração Fazendária - ESAF (coord.), Anais do Seminário
Internacional sobre Elisão Fiscal, p. 208.
Apelação Cível no 115.478-RS, Ac. da 6ª Turma do Tribunal Federal de Recursos, de 18.2.87, Rel.
Min. Américo Luz, Revista do Tribunal Federal de Recursos 146: 217, 1987. Às fls. 5 do voto consta o
entendimento de que a operação violou o princípio da igualdade de tratamento tributário: “As
respostas do laudo não infirmam essa conclusão (a de que as oito sociedades não teriam finalidade
própria), porquanto enfatizam o envoltório jurídico das operações cuja finalidade era acobertar a
receita representada pela diferença financeira resultante da justaposição de regimes tributários,
privilegiados (lucro presumido), de um lado, do lucro real de outro. Eis um efeito tributário ilícito,
não meramente elisivo, conclusão a que se chega inclusive pela via do absurdo que representa o
garantir à autora o beneplácito a um procedimento que quebra o princípio da igualdade de
tratamento tributário perante a comunidade de contribuintes”.
22
3.3. Princípios da Isonomia Tributária e da Capacidade Contributiva
A Constituição da República, em seu artigo 150, II, prescreve que
“Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) II - instituir tratamento desigual
entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer
distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida,
independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”.
Verifica-se que este dispositivo recepcionou a tradicional visão aristotélica, pela qual o
princípio da isonomia consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os
desiguais, na razão de suas desigualdades.
Embora a legitimidade do princípio o constitua em primado
inafastável, seu alto grau de abstração é insuficiente para que tenha eficácia satisfatória
junto ao mundo fenomênico, posto não estabelecer quais os critérios hábeis a identificar
as desigualdades em cada caso. CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, a partir
dessa verificação, a que ele resume afirmando que, apesar de reconhecer nesta
afirmação “(...) sua validade como ponto de partida, deve-se negar-lhe o caráter de
termo de chegada”, o que leva à imprescindibilidade de saber, para fins jurídicos, quem
são os iguais e quem são os desiguais.43
O referido autor, após questionar qual espécie de igualdade veda e
que tipo de desigualdade faculta a discriminação de situações e de pessoas, sem
violação aos objetivos do princípio constitucional da isonomia, conclui que “(...) as
discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e
tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade
diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função
dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses
prestigiados na Constituição”.44
A Igualdade Tributária, no ensinamento de PAULO DE
BARROS CARVALHO, está intimamente ligada ao conteúdo econômico dos fatos
escolhidos pela lei impositiva, os quais são mensurados pela base de cálculo. Quando o
legislador, ao escolher os fatos tributários, opta pelos que expressem signos de riqueza
43
44
Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 10-11.
Ibidem, p. 17.
23
econômica, observa a chamada capacidade contributiva absoluta ou objetiva. Quando,
ato contínuo, ao distribuir a carga tributária, estabelece o grau de contribuição dos
participantes de forma proporcional às dimensões de cada fato ocorrido, realiza a
capacidade contributiva relativa ou subjetiva. Com efeito, é dessa forma que se realiza o
Princípio da Igualdade previsto no artigo 5º, caput da Constituição Federal.45 Confirma
o raciocínio AIRES BARRETO: “Lanço por lanço, dispositivo por dispositivo, vê-se na
Constituição a afirmação e reiteração de que a outorga de competência para a criação
de tributo se circunscreve a manifestações de capacidade contributiva”.46
Portanto, no âmbito do direito tributário, de regra, o critério a ser
utilizado para estabelecer discriminações, pelo menos no que tange aos impostos,
somente pode ser o critério da Capacidade Contributiva, conforme, aliás, explicita o §
1º do artigo 145 da Lei Maior, o qual exige que “Sempre que possível, os impostos
terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do
contribuinte (...)”.
Dizemos “de regra”, e a expressão constitucional “sempre que
possível” confirma a assertiva, em razão de haver, na própria Constituição, autorização
para que sejam instituídos impostos cuja maior ou menor intensidade, na cobrança,
tenha finalidade extrafiscal, como é exemplo o caso das alíquotas progressivas do
imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana – IPTU, visando o atendimento
da função social da propriedade, afastando-se, nesses casos, a Capacidade Contributiva.
No entanto, a extrafiscalidade, como bem adverte JOSÉ ROBERTO VIEIRA, “(...) é
uma medida excepcional em face da via regular dos tributos que é a finalidade
arrecadatória, que é o abastecimento dos cofres públicos”.47
Em matéria tributária, ensina AIRES BARRETO, a agressão ao
princípio verifica-se de forma mais constante pela inadequação da base de cálculo,
como ocorre, por exemplo, com os chamados “tributos fixos”. É que a análise do
Princípio da Capacidade Contributiva, em conjunto com a função constitucional da base
de cálculo de servir de critério de distinção das espécies tributárias, assim como o de
indicar os limites das competências tributárias – conforme ilustra o artigo 154, da
45
Curso..., op. cit., p. 336-337.
AIRES FERNANDINO BARRETO, Base de Cálculo, alíquota e princípios constitucionais, p. 26.
47
IPI e extrafiscalidade, Revista de Direito Tributário, n. 91, p. 76.
46
24
Constituição Federal de 1988 – revela a inconstitucionalidade dessa sistemática
impositiva.48
3.4. Solidariedade Social e Tributação
Com o advento do Estado Democrático de Direito, ganhou força a
tese que defende a necessidade de interpretar a relação jurídica tributária de forma
contextualizada com o valor constitucional da solidariedade social. Ainda que em todo o
capítulo da Constituição Federal de 1988, dedicado ao Sistema Tributário Nacional –
Capítulo I, Título VI – não se encontre disposição expressa sobre o assunto, é de rigor
concluir que o preceito contido no artigo 3º, I, da Lei Maior, pelo qual “Constituem
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade
livre, justa e solidária; ...”, tem aplicação obrigatória em relação a todos os demais
dispositivos constitucionais. Registre-se também a expressão constante do seu
preâmbulo, a qual indica o ideal de uma “sociedade fraterna”. Isso não significa, porém,
que a busca da solidariedade social prevalecerá sempre sobre todas as demais normas
constitucionais, pois sempre existirão situações onde restará configurada a supremacia
de outros valores, também positivados no texto constitucional.
De início, é relevante identificar o significado da expressão
“solidariedade social”. MARCIANO SEABRA DE GODOI esclarece que o termo
solidariedade, apesar de plurívoco, “(...) aponta sempre para a idéia de união, de
ligação entre as partes de um todo...”, e que etimologicamente, “(...) o termo remonta a
termos latinos que indicam a condição de sólido, inteiro, pleno”. Mas, em seu sentido
jurídico – que é o que interessa ao nosso trabalho – a solidariedade social “(...) remonta
à idéia próxima de justiça social, conceito típico do início do século XX”.49
A solidariedade de que trata a Constituição, no entanto, é a
solidariedade genérica, referente à sociedade como um todo, em oposição à
solidariedade de grupos sociais homogêneos, a qual se refere a direitos e deveres de um
grupo social específico. Por força da solidariedade genérica, é lógico concluir que cabe
48
49
Ibidem, p. 134.
Tributo e solidariedade social, in MARCO AURÉLIO GRECO e MARCIANO SEABRA DE GODOI
(coord.), Solidariedade social e tributação, p. 142.
25
a cada cidadão brasileiro dar a sua contribuição para o financiamento do “Estado Social
e Tributário de Direito”.50
Vários autores que se debruçaram sobre o tema identificaram o
Princípio da Capacidade Contributiva, previsto no artigo 145, § 1º, da Constituição,
como o vínculo essencial entre a tributação e a solidariedade social.51 Ou seja, o
contribuinte cumpre com seu dever de solidariedade, no meio social, quando
efetivamente contribui para a manutenção dos gastos estatais – através do recolhimento
dos tributos que lhe são exigíveis – na exata medida de sua capacidade contributiva.
Nas palavras de JOSÉ CASALTA NABAIS, professor da
Faculdade de Direito de Coimbra, “(...) a simples existência de um Estado Fiscal
convoca desde logo uma idéia de justiça, que se não contém nos estritos quadros de
uma justiça comutativa, como seria a concretizada num Estado financeiramente
suportado por tributos bilaterais ou taxas, figura tributária cuja medida se pauta pela
idéia de equivalência”.52 O autor lusitano acrescenta que tal não ocorre em um “Estado
Fiscal”, que é suportado por todos ou, em especial, por aqueles que revelem capacidade
contributiva. Disso resulta que o conjunto dos contribuintes deva suportar o custeio de
todos os serviços públicos, que beneficiam todos os cidadãos, sejam ou não
contribuintes, do que surge a idéia de justiça distributiva, traduzida na redistribuição dos
rendimentos dos contribuintes para os que não sejam contribuintes. Conclui que essa
situação tem, como importante aspecto, o fato de que a lei criadora do tributo teve a
participação democrática tanto dos representantes dos contribuintes, como dos não
contribuintes, o que não ocorria durante a vigência do sufrágio censitário. Com efeito,
entende o autor que a máxima inglesa “no taxation without representation” passou a ter
um sentido mais democrático do que a clássica noção da “autotributação”.53
Na doutrina brasileira, MARCO AURÉLIO GRECO é um dos
autores que mais se destacam no exame dessa questão:
Esta mudança do perfil do Estado repercute, também, no âmbito da
tributação, que deixa de ser vista da perspectiva do confronto entre
contribuinte e Fisco – a partir do que as respectivas normas constitucionais
assumem o papel de instrumentos de limitação do poder do Estado e
50
DOUGLAS YAMASHITA, Princípio da Solidariedade em Direito Tributário, in MARCO AURÉLIO
GRECO e MARCIANO SEABRA DE GODOI (coord.), Solidariedade..., op. cit., p. 59-60.
51
DOUGLAS YAMASHITA, Princípio da Solidariedade..., op. cit., p. 160.
52
Solidariedade Social, Cidadania e Direito Fiscal, in MARCO AURÉLIO GRECO e MARCIANO
SEABRA DE GODOI (coord.), Solidariedade social e tributação, p. 128.
53
JOSÉ CASALTA NABAIS, Solidariedade Social..., op. cit., p. 128-129.
26
proteções ao patrimônio do indivíduo – para ser vista como instrumento de
viabilização da solidariedade no custeio do próprio Estado. Daí a capacidade
contributiva ser guindada à condição de princípio geral do sistema tributário,
a teor do § 1º do art. 145 da CF.54
Infelizmente, é um fato cultural e histórico o contribuinte
desconfiar do Estado, assim como ver na arrecadação dos tributos uma “subtração”, em
vez de uma contribuição a um Erário comum. Diante disso, o tema da solidariedade é
fundamental, porque leva a uma reflexão sobre as razões pelas quais se pagam tributos,
ou porque deva existir uma lealdade tributária. Inegável, todavia, que esse “mal-estar”
em pagar tributos resulta de uma gestão corrupta das receitas arrecadadas, serviços
públicos ineficientes, assim como de uma carga tributária muitas vezes distribuída de
forma não equânime.55
Para CLÁUDIO SACCHETTO, catedrático de Direito Tributário
e Internacional, Comunitário e Comparado da Universidade de Turim, “Como corolário
da solidariedade, no campo fiscal, surgiu a reconstrução do dever tributário como um
dever de concorrer para a própria subsistência do Estado e não como uma prestação
correspectiva-comutativa diante da distribuição de vantagens específicas para o
obrigado”.56 Pagar tributos, portanto, é um dever constitucional, que deve ter como
perspectiva não o caráter impositivo, porque oriundo do império da lei, mas da
consciência jurídica de que a lei criadora do tributo reflete a vontade e a decisão de
todos, quanto à necessidade de custeio dos encargos estatais por todos os cidadãos, na
medida da capacidade econômica de cada um. Daí a noção do vocábulo “contribuinte”,
pois o dever de contribuir para as despesas públicas é um dever individual de
solidariedade social, pela simples razão de pertencer a uma comunidade.
O autor citado defende, com acerto, que não é mais possível
considerar o tributo como prestação coercitiva apenas porque sua instituição está
submetida à reserva de lei, pois “(...) legalidade e autoridade não são mais correlatas”.
O Princípio da Legalidade passou a representar, nos Estados Republicanos, a vontade
expressa de forma democrática pelo povo, que é o único titular da soberania.
Acrescenta o autor: “Um dever de solidariedade fiscal só pode ter como referência a
54
Planejamento tributário, p. 284.
CLÁUDIO SACCHETTO, O Dever de Solidariedade no Direito Tributário: o Ordenamento Italiano, in
MARCO AURÉLIO GRECO e MARCIANO SEABRA DE GODOI (coord.), Solidariedade..., op.
cit., p. 11.
56
Ibidem, p. 21.
55
27
comunidade. A repartição das despesas públicas só pode ser, in primis, perante bens e
serviços indivisíveis, portanto, bens e serviços que devem ser colocados à disposição de
todos. Não faz sentido um tributo a cargo de um único indivíduo beneficiário do serviço
público;...”.57
Do raciocínio do professor italiano resulta clara a idéia de que a
solidariedade social, no âmbito tributário, aplica-se também na exigência de os tributos
– com destaque para os impostos – serem suportados por todas as pessoas que revelem
capacidade contributiva, não tendo a Constituição estabelecido uma contrapartida direta
a ser suportada pelo Estado, o que somente ocorre com os chamados tributos
vinculados, como a taxa e a contribuição de melhoria. A idéia ganha coerência quando
lembramos de certos serviços sociais impossíveis de serem sempre custeados pelos
próprios beneficiários, como a educação e os serviços de assistência social.
A imposição tributária não pode mais ser vista como tendo apenas
caráter fiscal, ou que esse prevaleça, pois a arrecadação tributária não é um fim em si
mesmo. Nesse novo paradigma, prestigiou-se a natureza extrafiscal dos tributos, os
quais passaram a servir de instrumento para atingir outros fins de ordem econômica e
social encampados pela Constituição, os quais, por sua vez, somente são legítimos na
medida em que viabilizam os ideais republicanos e democráticos.
Essa nova perspectiva, entretanto, não autoriza a instituição de
tributos – e muito menos a sua cobrança – com base apenas em princípios
constitucionais, em virtude da existência de normas constitucionais que condicionam as
atividades do Estado no campo da tributação, dentre as quais o Princípio da Legalidade
tributária, previsto no artigo 150, I, da Lei Maior, e as regras que distribuem as
competências tributárias, são os exemplos mais relevantes. Nessa perspectiva,
HUMBERTO ÁVILA tece argumentos indispensáveis no trato da matéria:
Na perspectiva da espécie normativa que as exterioriza, as normas de
competência possuem a dimensão normativa de regras, na medida em que
descrevem o comportamento a ser adotado pelo Poder Legislativo,
delimitando o conteúdo das normas que poderá editar. O decisivo é que a
Constituição Brasileira não permitiu a tributação pelo estabelecimento de
princípios, o que deixaria parcialmente aberto o caminho para a tributação de
todos e quaisquer fatos condizentes com a promoção dos ideais
constitucionalmente traçados. Em vez disso, a Constituição optou pela
atribuição de poder por meio de regras especificadoras, já no plano
constitucional dos fatos que podem ser objeto de tributação. Essa opção pela
57
Ibidem, p. 23.
28
atribuição de poder por meio de regras implica a proibição de livre
ponderação do legislador a respeito dos fatos que ele gostaria de tributar, mas
que a Constituição deixou de prever. Ampliar a competência tributária com
base nos princípios da dignidade humana ou da solidariedade social é
contrariar a dimensão normativa escolhida pela Constituição.58
Uma tributação com fundamento tão-somente em princípios,
acabaria por conflitar com as regras constitucionais que outorgam as competências
tributárias e as demarcam entre as pessoas políticas, como, por exemplo, a divisão das
materialidades tributáveis pelos impostos, com base nos artigos 153, 154, 155 e 156 da
Constituição Federal, entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios. A idéia de
que os princípios são normas de maior importância pode levar à falsa conclusão de que
os mesmos devem prevalecer sobre as regras, no caso em exame, as que tratam de
competências tributárias.
A questão, na verdade, refere-se à diferente eficácia entre essas
normas, ou seja, “(...) as regras têm uma eficácia que os princípios não têm. (...) Em
primeiro lugar, a eficácia das regras é decisiva, ao passo que a dos princípios apenas
contributiva, não cabendo ao intérprete, por conseqüência, afastar, sem mais, a decisão
tomada pela Constituição Federal pela sua própria decisão pessoal.” Em síntese: “(...)
não há poder de tributar com base no princípio da solidariedade social de acordo com
a Constituição de 1988”.59 Admitir o contrário implicaria a contrariedade com outras
normas constitucionais, como as referidas regras de competência e o sobreprincípio da
Segurança Jurídica, bem como os seus corolários da Legalidade, Irretroatividade e
Anterioridade.
Como anota HUMBERTO ÁVILA, esse entendimento tem sido
prestigiado pelo Supremo Tribunal Federal, inclusive em relação às contribuições
sociais, tributos previstos na Constituição especificamente como instrumentos de busca
do ideal da solidariedade social. Encontramos um bom exemplo desse posicionamento
no Recurso Extraordinário nº 150.764-1, onde a Suprema Corte decidiu que a
seguridade social, ainda que deva ser financiada por toda a sociedade, só o poderá, em
relação às contribuições, mediante bases de incidência próprias60 – as previstas no artigo
195 da Constituição – e não apenas com base no princípio da universalidade do
58
Sistema constitucional tributário, p. 159-160.
HUMBERTO ÁVILA, Limites à Tributação com Base na Solidariedade Social, in MARCO AURÉLIO
GRECO e MARCIANO SEABRA DE GODOI (coord.), Solidariedade..., op. cit., p. 70-71.
60
DJ 02 abr. 1993 – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
59
29
financiamento.61 Se esse raciocínio se aplica às contribuições, com maior razão deve
refletir, também, sobre a interpretação das regras de competência relativas aos impostos,
os quais se submetem, nesse contexto, apenas ao princípio da capacidade contributiva,
conforme o artigo 145, § 1º da Constituição.
Ainda que a linguagem utilizada pela Constituição possa ser
indeterminada, isso não autoriza concluir pela inexistência, em qualquer caso, de
núcleos de determinação, ou que ela não possa sofrer determinação pelo próprio sistema
no qual esteja inserida. As normas constitucionais que atribuem competências indicam
os critérios materiais das hipóteses de incidência dos tributos e, assim o fazendo,
estabelecem conceitos, “(...) cujos núcleos de significado não podem ser desprezados
pelo intérprete, nem mesmo a pretexto de prestigiar algum valor constitucional,
supostamente de maior hierarquia”. Felizmente o Supremo Tribunal Federal tem
prestigiado esse entendimento, como se pode verificar na decisão proferida no Recurso
Extraordinário nº 117.887-662; que, ao analisar a incidência de imposto sobre a renda na
distribuição de dividendos pelas sociedades, concluiu não ter havido auferimento de
renda, raciocínio que partiu do conceito constitucional dessa materialidade como
“acréscimo patrimonial”.63
Com base na análise das decisões do Supremo Tribunal Federal,
HUMBERTO ÁVILA conclui que essa Corte tem prestigiado de forma firme e reiterada
o entendimento de que as regras constitucionais atributivas de competência, quando
utilizam expressões com conotação dada pela própria Constituição ou pela legislação
infraconstitucional vigente à época de sua promulgação, “(...) prevêem ou incorporam
conceitos que fixam balizas instransponíveis ao legislador infraconstitucional”, não
havendo espaço para entender essas normas como constitucionalmente abertas.64
A eficácia do Princípio da Solidariedade Social no âmbito
tributário deve, portanto, restringir-se a informar a aplicação do cânone da Capacidade
Contributiva e, por seu intermédio, consagrar a Isonomia Tributária, estabelecida no
artigo 150, II, da Constituição, pelo qual é vedado às pessoas políticas “(...) instituir
tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente,
proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles
61
HUMBERTO ÁVILA, Limites à Tributação..., op. cit., p. 72.
DJ 23 abr. 1993 – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
63
HUMBERTO ÁVILA, Limites à tributação..., op. cit., p. 73-74.
64
Ibidem, p. 77.
62
30
exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou
direitos”.
De forma especial, entendemos que a maior eficácia da
solidariedade social, em relação ao Direito Tributário, resulta da observância da
aplicação da progressividade nas alíquotas dos impostos, instrumento ótimo no
atendimento do caráter extrafiscal da tributação, ou seja, promover o bem-estar social,
tendo em vista que a tributação apenas proporcional, além de atender apenas ao aspecto
fiscal da imposição tributária, cria situação de extrema injustiça, ao onerar na mesma
intensidade contribuintes em situação desigual. Partindo desse raciocínio, concorrer de
modo progressivo e não proporcional, significa fazê-lo em função das necessidades não
só próprias, mas também das alheias, do que decorre a estreita ligação entre
solidariedade e progressividade. A não valorização do Princípio da Solidariedade
certamente explica a queda presenciada na defesa da progressividade tributária.65
Ao lado da progressividade, a exigência de alguns impostos estará
em sintonia com a solidariedade social mediante o atendimento da seletividade, como
são exemplos, no Sistema Tributário Nacional, o IPI e o ICMS, por força,
respectivamente, do disposto nos artigos 153, § 3º, I, e 155, § 2º, III, da Constituição
Federal. Em que pese o dispositivo relativo ao ICMS prescrever literalmente que esse
imposto “poderá” ser seletivo, ROQUE ANTONIO CARRAZZA, de forma acertada,
defende que a seletividade é instrumento de extrafiscalidade obrigatório, tanto para o
ICMS como para o IPI.66
É verdade que a receita tributária é condicionada à existência da
economia privada e também à garantia dos direitos dos particulares. Por outro lado, o
contrário também é verdade, pois é a receita obtida com a tributação que possibilita a
existência e manutenção do direito à propriedade, ao patrimônio privado, à livre
iniciativa etc. “Se estas premissas são aceitas, então todos aqueles que têm direitos, e
todos são titulares de direitos – são obrigados à solidariedade e à solidariedade
fiscal”.67
Essa tomada de posição não implica aceitar a tese de que a
eficácia jurídica do Princípio da Capacidade Contributiva autorizaria o Fisco a exigir
tributos com base na chamada “interpretação econômica do fato gerador”. Da mesma
65
CLÁUDIO SACCHETTO, O Dever de solidariedade..., op. cit., p. 28.
Curso..., op. cit., p. 89.
67
CLÁUDIO SACCHETTO, O Dever de solidariedade..., op. cit., p. 36.
66
31
forma, não nos parece possa a Capacidade Contributiva servir de fundamento para
desconsiderar negócios jurídicos lícitos, apenas porque celebrados com o propósito
isolado de economia tributária. A evasão tributária somente pode resultar de ilicitudes
que contaminam o planejamento tributário, e a economia tributária, em si mesma, não
pode tipificar um ato como ilícito, ainda que se admita a recepção, no Direito
Tributário, das figuras da fraude à lei e do abuso de direito, previstas, respectivamente,
nos artigos 166, VI e 187, ambos do Código Civil – Lei nº 10.406/2002.
Diante de tais argumentos, entendemos que a solidariedade social
é, efetivamente, um valor a ser atendido, inclusive no âmbito tributário. No entanto, essa
efetivação deve ter como instrumento, de forma especial, a eleição, pelo legislador, de
hipóteses de incidência que revelem capacidade contributiva – aqui em sua acepção
objetiva – assim como através da progressividade e da seletividade em relação aos
impostos, o que viabiliza o atendimento da chamada capacidade contributiva subjetiva.
Obviamente, o Poder Judiciário poderá e deverá, sempre que provocado, desconsiderar
atos e negócios jurídicos contaminados por alguma ilicitude, tendo em vista a
necessidade de coerência interna no ordenamento jurídico.
4. Conclusões
O Sistema Tributário Nacional constitui-se em subsistema,
inserido no sistema geral do Direito Positivo. Disso decorre a exigência de que a
aplicação de toda e qualquer norma tributária seja precedida da valoração dos princípios
constitucionais que se revelem os mais adequados em cada caso concreto. Nesse
sentido, os princípios Republicano, Federativo e da Autonomia Municipal são
princípios gerais de Direito Público cuja aplicação, no Direito Tributário, é
constitucionalmente inafastável, pois todos se constituem em instrumentos de realização
dos objetivos do Estado Democrático de Direito.
Dentre as “limitações constitucionais ao poder de tributar”, o
Princípio da Legalidade Tributária é de fundamental importância, constituindo
instrumento legítimo de auto-regulação social e, ao mesmo tempo, de protetor da
liberdade do contribuinte de planejar sua vida econômica, de modo a sofrer o menor
ônus tributário possível, sempre dentro da licitude. O novo contexto em que a
32
Legalidade Tributária está situada resultou na possibilidade de o fisco desconsiderar
planejamentos tributários não mais ficando restrito às tradicionais hipóteses do artigo
149, VII, do Código Tributário Nacional, ou seja, quando restarem demonstrados o
dolo, a fraude ou a simulação. Com o advento do atual Código Civil, que positivou as
figuras do abuso de direito – como ato ilícito – e da fraude à lei – como ato nulo –,
ganhou força a tese de que o fisco passou a ter o poder-dever de lançar o tributo também
nessas novas hipóteses. Isso implica uma nova definição dos limites em que o
planejamento deixa de ser hipótese de elisão tributária (lícita) para tipificar caso de
evasão tributária (ilícita).
Já o Princípio da Isonomia Tributária, em relação aos impostos,
efetiva-se através da observância da Capacidade Contributiva objetiva – pela qual o
legislador, ao escolher os fatos tributários para as hipóteses normativas, deve optar pelos
que expressem signos de riqueza econômica – e da Capacidade Contributiva subjetiva,
pela qual o legislador, ao distribuir a carga tributária, estabelece o grau de contribuição
dos participantes de forma proporcional às dimensões de cada fato ocorrido.
Com o advento do Estado Social e Democrático de Direito, a
interpretação da relação jurídica tributária deve ser feita de forma contextualizada com o
valor constitucional da solidariedade social. A efetivação desse valor constitucional tem
na Capacidade Contributiva subjetiva – viabilizada especialmente pelos critérios da
progressividade e da seletividade – um de seus instrumentos mais eficazes, o que
implica uma evolução da tradicional concepção de Legalidade Tributária, onde esse
princípio deixa de ser visto apenas como uma “limitação constitucional ao poder de
tributar”, para passar a ser visualizado como a manifestação da consciência políticojurídica do cidadão como contribuinte. Entretanto, a solidariedade social, por si só, não
autoriza a cobrança de tributos, em violação das regras constitucionais atributivas de
competência tributária.
33
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzón
Valdés. Centro de Estudios Constitucionales. Madrid: 1997.
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. atual. São Paulo: Malheiros,
2001.
______. Imposto Sobre Serviços: Competência tributária é, eminentemente, legislativa –
Matéria constitucional – Função das normas gerais de direito tributário – Ampla
autonomia tributária do Município – Tributação dos serviços de vigilância bancária.
Revista de Direito Tributário, São Paulo, RT, n. 35, p. 68-93, jan./mar. 1986.
ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
2006.
. Limites à Tributação com Base na Solidariedade Social. In GRECO, Marco
Aurélio e GODOI, Marciano Seabra de (coord.), Solidariedade social e tributação.
São Paulo: Dialética, 2005, p. 68-88.
BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 5. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1977.
BARRETO, Aires. Base de cálculo, alíquota e princípios constitucionais. 2. ed. São
Paulo: Max Limonad, 1998.
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. São Paulo: Saraiva,
1963.
BESTER, Gisela Maria. Direito Constitucional, v.1: fundamentos teóricos. São Paulo:
Manole, 2005.
BORGES, José Souto Maior. Lei complementar tributária. São Paulo: RT, 1975.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição.
2. ed. Coimbra: Almedina, 1998.
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 20. ed. São
Paulo: Malheiros, 2004.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 15. ed. São Paulo:
Saraiva, 2003.
CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo. 2. ed. São
Paulo: RT, 2000.
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 6. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2001.
______. Comentários à Constituição de 1988: Sistema Tributário. 10. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2006.
34
COSTA, Ramón Valdés. El principio de legalidad. Revista de Direito Tributário. São
Paulo, RT, n. 38, p. 93-128, out./dez. 1986.
DERZI, Misabel de Abreu Machado. Fundamentos da competência tributária municipal.
Revista de Direito Tributário, São Paulo, RT, n. 13/14, p. 99-113, jul./dez. 1980.
FISCHER, Octávio Campos. A tributação dos serviços de registros públicos, cartorários
e notariais. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto Sobre Serviços – ISS na
Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição. São Paulo: Manole, 2004, p. 453472.
GODOI, Marciano Seabra de. Tributo e solidariedade social. In GRECO, Marco
Aurélio e GODOI, Marciano Seabra de (coord.), Solidariedade social e tributação.
São Paulo: Dialética, 2005, p. 141-167.
GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tributário. São Paulo: Dialética, 2004.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. Atual. Izabel Camargo Lopes
Monteiro e Yara Darcy Police Monteiro. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1993.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade.
3. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
NABAIS, José Casalta. Solidariedade Social, Cidadania e Direito Fiscal. In GRECO,
Marco Aurélio e GODOI, Marciano Seabra de (coord.), Solidariedade social e
tributação. São Paulo: Dialética, 2005, p. 110-140.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.
SACCHETO, Cláudio. O Dever de Solidariedade no Direito Tributário: o Ordenamento
Italiano. In GRECO, Marco Aurélio e GODOI, Marciano Seabra de (coord.),
Solidariedade social e tributação. São Paulo: Dialética, 2005, p. 9-52.
SANTOS, Boaventura de Souza. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a
política na transição paradigmática. V.1. A crítica da razão indolente: contra o
desperdiço de experiência. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo:
Malheiros, 2002.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. Rio de Janeiro:
Forense, 2003.
TORRES, Ricardo Lobo. A norma antielisão, seu alcance e as peculiaridades do sistema
tributário nacional: objeto da norma, efeitos na aplicação, fundamentos e limites,
abrangência, pressupostos, avaliação de motivos, condição de aplicação. In: Escola de
Administração Fazendária - ESAF (coord.). Anais do Seminário Internacional sobre
Elisão Fiscal. Brasília: ESAF, 2002, p. 197-210.
UCKMAR, Victor. Princípios comuns de direito constitucional tributário. Trad.
Marco Aurélio Greco. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1999.
35
VIEIRA, José Roberto. Legalidade tributária ou lei da selva: sonho ou pesadelo.
Revista de Direito Tributário, São Paulo, Malheiros, n. 84, p. 96-108, 2002.
______. IPI e extrafiscalidade. Revista de Direito Tributário, São Paulo: Malheiros, n.
91, p. 74-80, 2003.
______. Bocage e o Terrorismo Constitucional das Medidas Provisórias Tributárias: A
Emenda Pior do que o Soneto. In: FERRAZ, Roberto (coord.). Princípios e Limites da
Tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 683-714.
XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. São
Paulo: Dialética, 2001.
YAMASHITA, Douglas. Elisão e evasão de tributos: limites à luz do abuso do direito
e da fraude à lei. São Paulo: Lex, 2005.
. Princípio da Solidariedade em Direito Tributário. In GRECO, Marco Aurélio e
GODOI, Marciano Seabra de (coord.), Solidariedade social e tributação. São Paulo:
Dialética, 2005, p. 53-67.
36
Download