RELIGIÃO COMO FENÔMENO NATURAL EM DANIEL C. DENNETT Agemir Bavaresco1 e Zelmar A. Guiotto2 Face ao fenômeno da Religião, pode-se elencar uma série de perguntas, tais como são expostas abaixo, que, no fundo, remetem ao problema clássico da relação entre ciência e fé, problema a ser abordado no presente artigo. Porém, aqui a religião é apresentada apenas como fenômeno natural. Portanto, seguindo o autor Daniel Dennett, o enfoque não é a análise da experiência da fé sob o aspecto sobrenatural, mas, enquanto fenômeno, puramente, natural, apreendido pela ciência, decorrendo disso as seguintes questões: A Religião é, como qualquer outro fato, um fenômeno que se insere num processo de evolução, tal como foi elaborado por Darwin? A Religião é um fenômeno de evolução cultural? Por que as religiões evoluem? Será que o método científico de entender o mundo tornou a fé religiosa intelectualmente implausível? A ciência exclui a existência de um Deus pessoal, como sustentou Albert Einstein? A evolução torna indigna de crédito toda a idéia da providência divina? A vida e a mente podem ser reduzidas à química? Podemos continuar a afirmar plausivelmente que o mundo é criado por Deus ou que Deus realmente quer que os seres humanos estejam aqui? É possível que toda a complexa padronização, que ocorre na natureza, seja simplesmente o produto do acaso cego e da necessidade física? Numa era da ciência, podemos crer sinceramente que o universo tem um propósito? Após a apresentação do problema cabe apresentar Daniel Clement Dennett, para compreender as suas teses situadas no contexto de sua trajetória intelectual. Ele é filósofo americano, nascido em 28 de março de 1942, em Boston, Massachusetts. Em 1963, formou-se bacharel em Filosofia pela Universidade de Harvard. Em 1965, recebeu o título de doutor (PhD), com o estudo sobre a linguagem, do filósofo Gilbert Ryle (Universidade de Oxford, Reino Unido). Suas investigações estão centradas na Filosofia da Mente, Filosofia da Ciência e Filosofia da Biologia, particularmente aquelas que dizem respeito aos domínios da Biologia Evolutiva e Ciência Cognitiva. 1 Doutor em Filosofia por Paris I (Panthéon-Sorbonne). Professor de Filosofia da PUCRS. Site: www.abavaresco.com.br 2 Advogado e Juiz do Tribunal Eclesiástico do Regional Sul 03. 1 Atualmente, é co-diretor do Centro de Estudos Cognitivos da Austin B. Fletcher e professor de Filosofia na Tufts University (EUA). Dennett denomina-se autodidata, ateu e defensor do movimento Brights (Brilhantes: cosmovisão e ética naturalista; livre de elementos sobrenaturais e místicos). Preocupa-se em proporcionar uma filosofia da mente, alicerçada na investigação empírica. Em sua dissertação original Conteúdo e Consciência, expõe o problema de explicar a mente como uma necessidade de conteúdos e de uma teoria da consciência. Defende a teoria conhecida por alguns como Neurais darwinismo. Tem uma abordagem, além de naturalista, também, funcionalista, no sentido de que os organismos humanos são máquinas biológicas cujo comportamento é controlado por seus cérebros. No dizer do professor Margutti Pinto: “Ele é impressionante, capaz de oferecer novas idéias de um modo que é acessível não apenas a filósofos profissionais, mas também ao grande público em geral. Isto é geralmente feito através de seu método de contar estórias elucidativas, cheias de imaginação que ele chama de “bombeamento de intuição”(intuiton pumps), para tornar suas idéias claras” (Pinto, 2009, 1). O trabalho tem por objetivo apresentar no primeiro capítulo uma resenha instigante da obra Quebrando o Encanto. A religião como fenômeno natural. Procura-se reproduzir as idéias e temas de Dennett para que se compreenda seu ponto de vista empírico no diagnóstico do fenômeno religioso. Depois, no segundo capítulo, retomamos o livro para apontar os pressupostos que sustentam sua teoria sobre a religião como fenômeno natural. Ou seja, veremos como Dennett se apóia na biologia evolutiva para investigar o fenômeno da religião. 1 – DESCRIÇÃO DO FENÔMENO RELIGIOSO EM DENNETT Ninguém tenha seus próprios deuses, quer novos quer estranhos, além dos instituídos pelo Estado. A ninguém se autoriza promover reuniões noturnas na cidade. [Cícero. Lei das Doze tábuas] Dennett, é contador de histórias (empirista nato), das quais retira, intuitivamente, os seus postulados. Demonstra, com certa leveza, os tabus que envolvem as religiões e que estas tendem a manter seus consumidores encantados e que existe uma relutância tradicional em investigar cientificamente os fenômenos religiosos. Centrando suas 2 pesquisas nesse olhar científico, busca descobrir como deveremos lidar com as religiões no século XXI. Dennett vê a religião como fenômeno global – algo tão interessante para que não nos mantenhamos ignorantes a seu respeito – e interroga: “Será que uma análise tão exaustiva não danificaria o próprio fenômeno? Não quebraria o encanto?” É o que vai demonstrar. Como filósofo, afirma que essa classe de gente é melhor em fazer perguntas do que em respondê-las. O público alvo de seus livros são os leitores norte-americanos e justifica, quando pergunta e responde: “Como filósofo, não deveria tentar abranger um público-alvo mais universal? Não” (Dennett, 2006, 7). 1.1 – Fenômenos naturais evolutivos O Senhor Deus tomou o homem e o colocou no parque de Éden, para que o guardasse e o cultivasse. [Gn 2,15] 1.1.1 – O encanto-feitiço O autor inicia sua descrição dos fenômenos naturais evolutivos assim: Observe uma formiga em um prado, laboriosamente subindo por uma folha de capim, cada vez mais alto, até que cai, depois sobe outra vez e mais outra, como Sísefo rolando sua pedra, sempre tentando chegar ao topo. Por que ela faz isso? Que benefício estará buscando para si própria nessa estranha e extenuante atividade?” Então ele conclui a história cientificamente: “[...] é que o cérebro da formiga foi dominado por um parasita minúsculo, Dicrocelium dendriticum, que precisa entrar no estômago de um carneiro ou de uma vaca para completar seu ciclo reprodutivo. Esse verme cerebral é que dirige a formiga a uma situação que beneficia sua progênie, e não a da formiga (id. p. 14). De fato, o verme cerebral se beneficia. Esses parasitas manipuladores infectam peixes e camundongos, entre outras espécies. Esses caronas fazem com que seus hospedeiros se comportem de modo bizarro - até mesmo suicidas – para benefício do parasita, não do hospedeiro. Dennett transporta essa ideia para os seres humanos, que também, não poucas vezes, deixam família, saúde, oportunidades positivas na vida, para promoverem uma ideia que se fixou em seu cérebro. Essas pessoas morrem por essas ideias que não invadem os cérebros humanos, mas são criadas por cérebros, o que nos diferencia, nós humanos, dos outros animais. Somos criadores de idéias, e a religiões têm mantido, nós, seres humanos, enfeitiçados há milhares de anos. Em síntese, na 3 formiga, é o verme que invade o cérebro. No homem, o cérebro cria a ideia-vermemanipuladora (o meme – replicador cultural), que o faz agir, matar, alegrar-se [...]. Entre eles, há os tóxicos, e é onde ele inclui a religião e a conseqüente metáfora: Palavra de Deus é um Dicrocelium dentriticum (o parasita). Esse encanto-feitiço ou parasita-divino só será quebrado mediante o estudo científico da religião. É o que Dennett anuncia. 1.1.2 – Busca de uma definição de religião Eu te darei as chaves do Reino do Céu, e o que tu ligares na terra será ligado no céu, e o que tu desligares na terra será desligado no céu. [Mt 16, 19] Sem tentar esculpir em pedra para ser defendido até a morte, Dennett propõe definir as religiões como um “sistema social cujos participantes confessam a crença em um agente ou agentes sobrenaturais cuja aprovação eles buscam” (id. p. 19). Seguindo com o seu método de contar histórias, recorre ao reino da música e ilustra com Elvis Presley: “De acordo com essa definição, um devotado fã-clube de Elvis Presley não é uma religião, porque embora os membros possam, em um sentido bastante óbvio, adorar Elvis, ele não é considerado por eles literalmente sobrenatural, mas apenas um ser humano sobremaneira grandioso. Se alguns fã-clubes resolverem que Elvis é realmente imortal e divino, então estarão no caminho de iniciar uma nova religião” (id. p. 19). Outra idéia que parece estar embasada na vida moderna, e que Dennett chama atenção, são as pessoas, hoje muito comum, que, depois de passar por várias religiões organizadas, igrejas, credos, preferiram não somar em suas fileiras, e vivem, com grande sinceridade e devoção, experiências particulares e que ele chama de pessoas espirituais, mas não religiosas; ele as define, biologicamente, como vertebrados honorários (cf. p. 21). Descarta, em seu estudo, os “cultos satânicos” que ele chama de “tipo de bobagem”, que as pessoas envolvidas não podem ser chamadas de devoto, porque ele vê, nas pessoas religiosas, boas intenções e que tentam levar uma vida moralmente boa, honestas em seus desejos de não fazerem o mal e reparar suas transgressões. Assim, estas pessoas, que fazem o pacto com o mal, não merecem o mesmo respeito daquelas que buscam o bem. 4 1.1.3– Quebrar o encanto sem danificar o fenômeno. Hem? Hem? O que mais penso, texto e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. [Guimarães Rosa. Grande Sertão Veredas] É com sobriedade que me dou conta de que vivi quase a metade da vida com O gene egoísta – para o bem ou para o mal. [Richard Dawkins. O gene egoísta] Posso querer dizer que a religião não é um artefato, não é um produto da atividade intelectual humana. Espirrar e arrotar são naturais. Recitar sonetos, não. Mas é evidentemente falso que a religião seja natural nesse sentido; andar nu – au naturel – é natural; usar roupas, não. Mas é obviamente falso que a religião seja natural nesse sentido. As religiões são transmitidas culturalmente, por intermédio da linguagem e do simbolismo, não por meio dos genes. Você pode receber o nariz do seu pai e aptidão para música de sua mãe por intermédio dos genes, mas se você adquirir a religião de seus pais, adquire-a do mesmo modo como adquire a linguagem, por meio da educação. Então, é claro que isso não é o que quero dizer com o termo natural. Então o que o nosso autor quer dizer? “Posso querer dizer que a religião é natural como oposta ao sobrenatural, que é um fenômeno humano composto de eventos, organismos, objetos, estruturas, padrões e coisas parecidas, que obedecem, todos, às leis da Física ou da Biologia, que, portanto, não envolvem milagre. É isso que eu quero dizer.” E chama a atenção: “ Note que pode ser verdade que Deus exista, que Deus seja mesmo o criador inteligente, consciente e amoroso de todos nós, e no entanto, ainda assim, a religião em si, como um conjunto complexo de fenômenos, é perfeitamente natural (id. p. 35ss) Seguindo, Dennett debruça-se para espiar o abismo “religião-natural”. Como professor e já dentro do abismo, vai na busca de aprender alguma coisa importante. O que seria importante, quando somos criados, gerados, amamentados no que nosso autor chama de abismo? Todo abismo tem o sentido de fascinar como também de causar terror, quando visualizado em suas entranhas. Claro que o abismo, para Dennett, é a religião que tende a resistir a uma investida científica em seus dogmas. Quando esse “abismo-religião” for posto sob as luzes fortes de um microscópio, pode o abismo ser dissipado, e o encanto, quebrado? O fenômeno então, ferido pelas luzes da razão, torna-se inteligível, e o inteligível não teria 5 o seu encanto? Vê-se que a hipótese levantada por Dennett, implica elementos especulativos, aliás, inevitáveis, para quem vê tudo sob os holofotes da razão. Com argumentos empíricos, segue o autor sustentando a religião como fenômeno natural da religião. Não busca certezas, mas é coerente na direção de “limpar” a religião do sobrenatural. Onde estão os encantos do abismo-religião, para Dennett? Ele nos fornece dois encantos: o tabu e a religião em si mesma. Parece difícil separar os dois, que ele diz estarem entrelaçados curiosamente. O tabu bloqueia a ciência impedindo-a que através de métodos científicos investigue o fenômeno religioso, pois a religião só tem poder enquanto o encanto do tabu existir. E arrisca afirmar: “Um indefensável pressuposto mútuo pode se manter hegemônico durante anos, ou até séculos, porque se acha que alguém tem algum motivo muito bom para mantê-lo, e ninguém ousa desafiá-lo” (id. p.29). Não restam dúvidas que Dennett busca desafiar esses tabus hegemônicos e, talvez, gerar em sua higienização de ideias novos tabus. Ele afirma, nós filósofos, “somos melhores em fazer perguntas do que em respondê-las” (id. p.29). 1.1.4 – A sisuda Ciência faz hipóteses sobre a iluminada Religião O mundo é inintelegível, mas é bom. [Adélia Prado] Deus (ou foi a Morte?) golpeou com sua pesada foice o coração do meu amado. [Lya Luft. O lado fatal] As perguntas de Dennett são, geralmente, ilustradas com fatos e histórias provocantes. Não poderia ser diferente quando ele fornece cinco hipóteses para o futuro das religiões (cf. p. 44s). Seriam evolutivas? Vejamos: a) O iluminismo acabou já faz tempo. A arrepiante “secularização” das sociedades modernas, que foi prevista durante dois séculos, está se evaporando diante de nossos olhos. A maré está virando, e a religião continua mais importante que nunca, e conclui uma fé fundamental varre o planeta. b) A religião está em seus estertores de morte; as explosões de fervor e fanatismo de hoje não passam de uma transição breve e desajeitada para uma sociedade realmente moderna, na qual a religião represente, no máximo, um papel de cerimônia. c) Religiões se transformam em instituições diferentes de qualquer outra coisa vista antes no planeta: basicamente, associações sem credos que vendem 6 auto-ajuda e capacitam grupos de trabalhos morais, usando a cerimônia e a tradição para cimentar relacionamentos e construir “fidelidade de fãs de longo prazo”. Nesse caso, Dennett vê os membros de uma religião semelhantes a um torcedor do Flamengo ou do Corinthians. d) As religiões diminuem em prestígio e visibilidade. O ensino religioso para crianças é desaprovado na maioria das sociedades e até mesmo proibido em outras. e) O Dia do Julgamento chega. Os abençoados sobem corporalmente ao céu e o resto fica para trás para sofrer a agonia dos condenados, já que o Anticristo foi vencido. Diante destas hipóteses, muitas outras poderiam ser criadas, mas o autor diz que “muitas pessoas acham que sabem qual hipótese é a verdadeira, mas ninguém sabe” (id. p. 47). A reflexão segue pedindo um esforço orquestrado para que a religião se torne um adequado objeto de estudo científico. Em resumo: a religião, para o autor, deve submeter-se à luz e análises da ciência e que, sem esta presença científica, estaríamos passando aos nossos descendentes um legado de formas cada vez mais tóxicas de religião (cf. p. 49). 1.2 – Sobre Fenômenos religiosos O cristianismo alterou a alma pagã. [Salvatore Natoli. I nuovi pagani] A fé na criação é compatível com a teoria da evolução de Darwin. [John Polkinghorne, físico, teólogo e pastor da Igreja Anglicana] Já adentrando a parte dois do livro de Dennett, onde discorre sobre a evolução da religião, vamos nos deparar com a teoria dos simbiontes (parasitas) culturais que conseguem vicejar, pulando de um hospedeiro humano para o outro; e mais a teoria do dinheiro (as religiões são artefatos culturais tanto como os sistemas monetários: sistemas desenvolvidos nas comunidades que evoluíram, culturalmente, muitas vezes) (cf. p.101). Se nada satisfizer e se considerar que a religião, como as teorias das pérolas, a religião não é para nada, do ponto de vista da Biologia; ela não beneficia nenhum gene ou indivíduo, ou grupo, ou simbionte cultural. Uma pérola começa com um cisco insignificante de material estranho (ou provavelmente um parasita). Só depois que a ostra acrescentou cada camada, a pérola passa a ter algo de valor. Só então Dennett vai apontar três objetivos preferidos ou razão de ser das religiões (cf. p. 114): a) Confortar nos sofrimentos e acalmar nosso medo da morte; b) Explicar coisas que não conseguimos explicar de outro modo e 7 c) Encorajar a cooperação em grupo diante de problemas e inimigos. Prosseguindo, Dennett vê na Biologia da evolução, elementos que podem explicar a evolução das religiões. E esta evolução inicia no cérebro de todos os animais. O ambiente social e a linguagem em processo de evolução tornaram o cérebro humano diferente das outras espécies. Isso deu aos seres humanos poderes que nenhuma outra espécie desfruta. Por conseguinte, a evolução do cérebro ajudou as religiões na solução de problemas, contribuindo, desta maneira, para uma evolução cultural. Neste caminho evolutivo cultural da religião, Dennett segue argumentando que esta evolução não se dá por um gene divino. Assim sendo, abre um capítulo do livro – Deus existe? – para argumentar a favor da existência de Deus. Aqui, então, surgem argumentos lógicos, filosóficos, ontológicos e cosmológicos, para demonstrar a favor da existência de Deus (cf. p. 256ss). O que chama a atenção é a citação que Dennett faz de si mesmo, referindo-se ao seu livro Darwin’s Dangerous Idea, 1995, p. 520: A Árvore da Vida não é nem perfeita nem infinita no espaço ou no tempo, mas é real, e se não for o “Ser tal que não se pode conceber nada maior que ele”, certamente é um ser maior do que qualquer coisa que qualquer um de nós jamais chegará a conceber em um detalhe digno de seus detalhes. É alguma coisa sagrada? Sim, digo eu com Nietzsche. Eu não poderia rezar para ela, mas posso afirmar sua magnificência com segurança. O mundo é sagrado (id. p. 260). Seguindo em sua razão, pergunta: “Será que isso faz de mim um ateu?” E responde, sem duvidar: “Certamente, no sentido óbvio” (id. p. 260). Em resumo, a meta de Dennett não é provar ou refutar a existência de Deus, mas buscar argumentos para provar que a religião é fenômeno natural. 1.2.1 - Religião e amor a Deus A manipulação de temas religiosos se tornou tão ostensiva no terreno da política e da economia, nos anos recentes, que se torna imperioso estudar as formas concretas – organizacionais, financeiras e de explosiva “luta ideológica” – que esse fenômeno vem assumindo. [Hugo Assman e Franz J. Hinkelammert. A idolatria do Mercado] Tudo serve a essa obsessão de verdade a que chamamos amor. [Inês Pedrosa. Fazes-me falta] Na terceira parte do livro, Dennett acrescenta um guia do consumidor de religiões, e constata que a maioria das pessoas possuem uma crença em Deus e põem-se a serviço de Deus, porque querem ser boas. Compara a linguagem do amor romântico como idêntica à linguagem da devoção religiosa (cf. p. 267). De um lado, o autor 8 percebe que a religião é amada por muitas pessoas, e ele se inclina a dizer: “que nada poderia ter maior importância do que aquilo que as pessoas amam” (id. p.269). De outro, o autor diz: “Só amor não basta. Porque para as pessoas apaixonadas, muitas vezes, torna-se questão de honra reagir irracional e violentamente a qualquer desconsideração percebida em relação ao seu amado” (id. p. 270). Diante desta violência com que o amado reage às criticas do seu amor Dennett indaga: “Será que a nossa capacidade evoluída para o amor romântico foi explorada pelos memes3 religiosos? Assim “faria com que as pessoas pensassem que era, de fato, uma coisa nobre ofender-se, atacar todos os céticos com fúria, atacar com selvageria, sem preocupação com a própria segurança – menos ainda, pela segurança das pessoas que estão atacando” (id. p. 272). Creio que o autor vê isso no fanatismo religioso. Acrescenta ao capítulo uma visão política quando alude ao perigo dos símbolos, porque estes podem passar a ser “sagrados” demais, e mostra uma tarefa que considera importante para todos os credos do século XXI: “Será que espalhar a convicção de que não existem atos menos honrados do que fazer mal a “infiéis” de uma cor ou de outra por “desrespeitar” uma bandeira, uma cruz, um texto sagrado” (id. p. 273). Seguindo com suas interrogações, pergunta também: “o que sua religião pode fazer por você?” (id. p. 286). Sem deixar de ser uma questão, o autor alude aos benefícios que parece haver para a saúde, não deixando de apontar efeitos colaterais. (cf. p. 288ss). 1.2.2 – Religião e Moralidade Em todo homem dorme um profeta, e quando ele acorda há um pouco mais de mal no mundo... [Emile M. Cioran. Breviário de decomposição] Dennett diz que muitas pessoas pensam que a moralidade é o papel mais importante da religião motivando-as a serem boas. Segue o raciocínio que, sem o incentivo divino, as pessoas ficariam por aí sem metas, ou se entregariam a seus desejos mais baixos. Dennett aponta dois problemas para esse raciocínio: “(1) não parece ser verdadeiro o que é uma boa notícia, já que (2) é uma visão muito degradante da natureza humana” (id. p. 296). Ele toma o exemplo da população carcerária nos Estados Unidos, dizendo que a mesma é formada por diversos credos, o que não comprova ser o comportamento moral influenciado pela religião. Com certa ironia, Dennett diz: “se 3 O termo meme é um neologismo utilizado por Daniel C. Dennett. Seu significado encontra-se abaixo no item 2.1, letra “d”. 9 Deus for justo, misericordioso, clemente, amoroso e o Ser mais maravilhoso imaginável, então qualquer pessoa, que o ame, gostaria de ser justo, misericordioso, clemente, amoroso por amor à bondade” (id. p. 300). Ao tocar no fanatismo, Dennett assim se expressa: “As religiões são certamente a fonte mais prolífica das “certezas morais” e dos “absolutos”, dos quais o fanatismo depende” (id. p. 302). Enfim, para Dennett a opinião de que a religião é a bandeira da moralidade é, na melhor das hipóteses, problemática, e que a crença de uma recompensa celeste, faria uma pessoa boa, é degradante. Seguindo nesse questionamento da moralidade da religião, Dennett também questiona se é a religião que dá significado à vida. Muitas pessoas hoje diriam que a vida não teria significado sem a sua religião, o que Dennett não refuta, mas questiona: “Será que qualquer religião dá significado às vidas? E se a religião for uma “fraude”, como as que caem nas garras de líderes religiosos vigaristas que enganam, será que a vida delas ainda tem significado? (cf. p. 303). Igualmente, o autor vê que muitos seguem a religião por tradição, e compara essa fidelidade a um time esportivo, que também pode dar significado a uma vida (cf. p. 309). Porém, não deixa de afirmar que as pessoas “deveriam refletir sobre o fato de que a própria religião, a que são tão leais, é de fato o produto evolutivo de muitos ajustes, firme, mas delicadamente elaborados por amantes anteriores da mesma tradição” (id.p.309). Continua dizendo que não é fácil ser moral, e parece que está ficando cada vez mais difícil nos dias de hoje. E acrescenta: Antes era porque a maior parte dos males do mundo – doença, fome, guerra – estavam muito além das capacidades que as pessoas comuns tinham de melhorar. Eram impotentes para evitálas e viviam com algumas poucas máximas simples, aplicáveis localmente, podia garantir mais ou menos que se levasse uma vida boa quando possível na época. Hoje, segundo Dennett, já não é possível pelo fato da tecnologia, o que quase qualquer um pode fazer foi multiplicado milhares de vezes, e nosso entendimento moral a respeito do que deveríamos fazer não se manteve no mesmo passo (id. p. 310). Seguindo nessa direção, Dennett vai afirmar que a religião é diversas coisas para muitas pessoas. Para alguns, os memes da religião são mutualistas, provendo benefícios inegáveis de tipos que não podem ser encontrados em nenhum outro lugar. Não nega que a religião dá a algumas pessoas uma motivação organizada para fazer grandes coisas – trabalhar por justiça social, educação, ação política, reforma econômica e assim por diante. Para outras, os memes da religião são mais tóxicos, explorando aspectos menos atraentes de sua psicologia, jogando com a culpa, a solidão, o anseio por auto- 10 estima e o status. E conclui: “Só quando conseguirmos estruturar uma visão abrangente dos diversos aspectos da religião é que poderemos formular políticas defensivas como reagir às religiões no futuro.” (id. p. 329). Dennett, não especificando quais seriam as políticas defensivas para reagir às religiões do futuro e evitar os seus efeitos tóxicos, segue sustentando a sua investigação empírica, com base na Biologia, e dita uma receita que denomina de única: pesquisem mais. Acredita o autor que sua tarefa foi demonstrar que há motivos suficientes para questionarmos os preceitos de fé, convocando a não voltar às costas aos fatos relevantes disponíveis ou passíveis de serem descobertos, ou, como ele denomina “vias a serem exploradas”. Creio que a caixa de Pandora está aberta, há muito tempo, na história. Todavia, Dennett organizou, com instigação, perguntas e histórias que continuarão estimulando a busca de respostas e que a sua investigação segue estimulando uma pesquisa séria e tolerante, como vamos ver, no capítulo II, que segue. 11 2 - TEORIA DA EVOLUÇÃO: PRESSUPOSTO EM DANNETT Após termos exposto as principais idéias e temas que Dennett desenvolve em seu livro Quebrando o encanto, apresentamos, abaixo, alguns pressupostos que sustentam suas idéias sobre a religião como fenômeno natural. Dennett trabalha o tema da biologia evolutiva, bem como é defensor da filosofia para o estudo empírico da evolução e da natureza da mente. Mais conhecido pelos trabalhos na filosofia da mente, direcionou, ultimamente, sua pesquisa para a da investigação do fenômeno da religião. Por isso, de início, vejamos, brevemente, alguns aspectos da teoria da evolução e seus desdobramentos e aplicações para a ética e a cultura. 2.1 – Pressupostos evolucionistas a) Teoria da evolução: Charles Darwin (1809-1882) elaborou a teoria da evolução, segundo a qual, as espécies biológicas evoluem, primariamente por meio das variações do acaso e pela seleção natural. Os contemporâneos de Darwin qualificam a sua teoria de materialista e casual, porque nenhuma força sobrenatural ou teológica influencia o desenvolvimento evolutivo (Cf. Audi, 2006, 204-205). O livro A origem das espécies teve o mérito de organizar os dados empíricos favoráveis à teoria da evolução e não tanto por explicar a mudança genética. Darwin procurou mecanismos adicionais, embora pensasse que a seleção natural fosse essencial à mudança genética. No entanto, apenas com a descoberta do gene enquanto unidade da hereditariedade, é que o neodarwinismo se transformou na teoria ortodoxa da evolução das ciências biológicas (cf. Blackburn, 1994, 88). b) Criacionismo e evolucionismo: Para o criacionismo, segundo a Biologia, aquilo que não pode ser explicado pela evolução por seleção natural, postula-se uma intervenção divina, criadora de novas espécies. O criacionismo atribui uma causa divina para toda lacuna explicativa. Por isso, não é uma doutrina científica que exige uma previsão falsificável (id. p. 83). c) Ética evolucionista: Spencer fundamenta a melhora dos agentes éticos no fato da evolução. Por isso, os elementos mais recentes, num processo evolutivo, são melhores do que os anteriores. Aplicando isso à sociedade ocidental, afirma-se que esta 12 é mais evoluída que as formas sociais mais primitivas. O darwinismo social é uma versão da ética evolucionista, afirmando que a luta pela seleção natural deve ser estimulada pelas relações competitivas e agressivas entre as pessoas na sociedade ou entre as sociedades (id. p. 131). d) Os memes e a evolução cultural: Dennett retoma o princípio do processo de seleção natural, elaborado por Darwin, que determina a evolução quando três condições são satisfeitas: a) replicação; b) variação (mutação) e c) aptidão diferencial (competição). Nas taxonomias da teoria evolutiva, há controvérsias sobre como desenhar os ramos e como lhe atribuir nomes. O zoólogo Richard Dawkins elaborou o termo meme no seu livro O gene egoísta, de 1976. O termo foi introduzido no Oxford English Dictionary, sendo assim definido: “Um elemento de cultura que pode ser considerado transmitido por meios não genéticos”. O meme é, portanto, um replicador de base cultural (id. p. 365). Não obstante este conceito, permanece certo ceticismo, e muitos comentadores opõem-se a “reformular questões nas ciências sociais e humanas em termos de evolução cultural, e essa oposição é, muitas vezes, expressa em termos de um desafio para provar que os “os memes existem”: Os genes existem [admitem os críticos], mas o que são os memes? De que são eles feitos? Genes são feitos de DNA. Serão os memes feitos de modelos de neurônios no cérebro de pessoas aculturadas? Qual é o substrato material dos memes?” (id. p. 369). 2.2 – Síntese das teses do livro Dennett apresenta, após cada capítulo, uma síntese das teses apresentadas, e lança as hipóteses para o capítulo subseqüente. Vamos retomar estas sínteses e fazer uma apresentação recapitulativa, para compreender sua análise da religião enquanto um fenômeno natural. a) Parte I: Abertura da caixa de Pandora ou a religião nos limites da ciência Esta parte é composta de três capítulos. No capítulo 1, Dennett reconhece que as religiões são fenômenos naturais poderosos. Por isso ele decide deixar de lado uma “relutância tradicional em investigar, cientificamente, os fenômenos religiosos”, tendo como finalidade compreender por que as religiões têm tanta força para “descobrir como deveríamos lidar com todas no século XXI” (Dennett, 2006, 38). 13 Tratar de modo científico a religião é um campo de muitas críticas, porém, o autor defende que é possível estudar a religião, sob este ponto de vista, no capítulo 2: “A religião não está fora dos limites da ciência, apesar da propaganda em contrário” (id. p. 63). Evolução ou base racional descomprometida: Analisando a história da evolução do planeta, percebe-se que a humanidade constrói valores, tais como “açúcar, sexo, dinheiro, música, amor e religião”. Estes valores originam-se por algum motivo: “Por trás disso, e diferentes de nossas razões, há razões evolutivas, bases racionais descomprometidas que foram endossadas pela seleção natural” (id. p. 105). O autor afirma que, para além das razões ou motivos da criação destes valores, há o processo da evolução, que determina esses valores. Há uma evolução fundada na base racional descomprometida, ou seja, “processos evolutivos cegos, sem direção “descobrem” projetos que funcionam” (id. p. 70). Ora, a religião é um valor que foi criado, e submete-se à evolução como os outros valores que surgiram na história da humanidade. b) Parte II: A evolução da religião O cérebro de todos os animais, incluindo o do homem, evoluiu, tendo como finalidade resolver os problemas das circunstâncias em que vive, afirma Dennett. O ambiente social e a linguagem evoluíram, juntamente, com o cérebro humano, tornandoo diferente de outras espécies. Se de um lado isto dá ao ser humano uma vantagem, por outro, provoca problemas. Neste sentido, as religiões populares, com suas várias práticas, surgem para ajudar na solução destes problemas. Para Dennett, a Biologia da evolução pode explicar a evolução das religiões. As razões da religião: O capítulo 4, começa apontando três objetivos da religião: a) Confortar os sofrimentos e acalmar o medo da morte; b) Explicar o que não conseguimos explicar; c) E encorajar a cooperação em grupo para enfrentar os problemas e os inimigos (id. p. 114). No entanto, ele questiona estes três objetivos como não sendo suficientes para compreender o fenômeno religioso. Verificando, na história humana, através da Biologia, pode-se constatar que: As religiões populares e as línguas surgiram sem plano consciente ou deliberado, apenas através de uma evolução biológica e cultural. A natureza lida, diante dos problemas, através de um estratagema, que Dennett, chama de postura intencional, ou seja, “é uma perspectiva útil a ser adotada por um 14 animal em um mundo hostil” (id. p. 123). Ora, na raiz da crença humana em deuses está este instinto pronto a agir através de crenças e desejos e outros estados mentais, diante de qualquer coisa ou problema emergente (cf. p. 126). Religião popular e religião organizada: As religiões populares crescem onde há elementos adversos, porém, só as variantes melhores se propagam, porque atendem as necessidades psicológicas e físicas, aprimorando-se pelo processo de seleção (cf. capítulo 5). Por religião popular, entende o autor o tipo de religião que não tem credos escritos, teólogos, nem hierarquia ou funcionários. As religiões organizadas emergiram daquelas. No entanto, a cultura humana evolui, e as pessoas tornam-se mais reflexivas. Então, a religião popular transforma-se numa religião organizada. Dennett argumenta, assim, que esta evolução da religião não se deve ao fato de um gene divino, mas uma evolução cultural: “Se os neurocientisas encontraram um „centro de Deus‟ no cérebro, os cientistas darwinianos como eu queremos saber por que o centro de Deus evoluiu. Por que aqueles dentre os nossos ancestrais que apresentaram uma tendência genética a criar um centro de Deus sobreviveram melhor que os rivais, que não tinham?” (Dawkins, apud Dennet, 2006, 153). Então, conclui Dennett, “agora, temos uma resposta finalmente testável para a questão de Dawkins, e ela invoca não apenas os fatos bioquímicos, mas todo o mundo da antropologia cultural. Porque eles, ao contrário dos que não têm o gene, tinham seguro de saúde! Nos dias anteriores à medicina moderna, a cura xamanística era o único recurso da pessoa que ficava doente” (id. p. 153). Evolução dos guardiães ou a domesticação da religião: No capítulo 6, apresenta-se a evolução da intendência, ou seja, “na mesma época da domesticação de animais e plantas, houve um processo gradual, no qual os memes selvagens (autosustentáveis) da religião popular se tornaram inteiramente domesticados. Eles adquiriram intendentes”. Ora, esses responsáveis ou guardiães da religião criam uma relação de dependência religiosa: “Os memes domesticados, em contraste, dependem da ajuda dos guardiães humanos para continuar a existir” (id. p. 185). Assim, a transmissão da religião passa pelos intendentes das idéias, que domesticam os seguidores pelo segredo e a impostura de seus interesses. Invenção do espírito de equipe: O capítulo 7, responde à pergunta: Por que as pessoas participam de grupos? Será que há uma decisão racional ou será que há forças irracionais de seleção de grupos em funcionamento? Dennet responde: “Por diversos motivos, incluindo o óbvio: para proteção mútua e segurança econômica, para promover eficiência nas colheitas e outras atividades necessárias, para obter projetos em grande 15 escala que, de outro modo, seriam impossíveis” (id. p. 193). No entanto, ele questiona: “Será que a religião é o produto de um instinto evolucionário cego, ou uma escolha racional?” (id. p. 195). Porém, conclui que a “tendência humana a formar grupos é menos calculada e prudente do que parece em alguns modelos econômicos, mas também mais complicada que o instinto de rebanho desenvolvido em alguns animais. O que complica o quadro é a linguagem e a cultura humanas, e a perspectiva dos memes nos permite compreender como os fenômenos da lealdade humana são influenciados por uma mistura de raciocínios generalizados e bem amarrados” (id. p. 213). Portanto, a dinâmica de alguém participar de um grupo, desde as condições de entrada e saída, fidelidade e reforço através da disciplina ou punição etc., é um fenômeno de cooperação e altruísmo, tanto em meios seculares como religiosos. Porém, o fenômeno religioso se distingue de outras instituições por diferentes necessidades e gostos. Crença na crença: A gestão de idéias religiosas cria o fenômeno da crença na crença, afirma Dennett no capítulo 8, transformando o conteúdo das crenças subjacentes, dificultando uma investigação racional: “Uma vez que nossos ancestrais se tornaram reflexivos (e hiper-reflexivos a respeito de suas próprias crenças) e se autonomearam intendentes das crenças que julgaram mais importantes, o fenômeno de acreditar na crença tornou-se uma força social em si, algumas vezes eclipsando os fenômenos de ordem inferior, que eram seus objetos” (id. p. 215). O fenômeno de acreditar na crença torna Deus um objeto intencional, como um dogma da fé. Porém, as proposições sobre esta crença são misteriosas, tanto para peritos como leigos. Então, Dennet questiona: “Por que alguém aceita isso? A resposta é evidente: crença na crença.” Continua, “muitas pessoas acreditam em Deus. Muitas pessoas acreditam na crença em Deus. Qual é diferença? As pessoas que acreditam em Deus têm certeza de que Deus existe [...] e as pessoas que acreditam na crença em Deus têm certeza de que a crença em Deus existe. Deve-se acreditar em Deus” (id. p. 236). E assim as crenças religiosas persuadem seus próprios filhos de suas crenças: “Desde que as fórmulas sejam transmitidas ao longo das eras, os memes irão sobreviver e florescer” (id. p. 240). Conclui o autor que aqui estamos diante de um problema epistemológico: “Descobrimos que é quase impossível distinguir os que genuinamente acreditam dos que (apenas) acreditam na crença”(id. p. 307). Deus existe ou existe o acaso? : Ao concluir a parte II do seu livro, Dennett repõe a pergunta clássica: Deus existe? Face à questão, elenca algumas respostas: a) O Argumento do Projeto afirma que, observando o mundo, conclui-se que isto é resultado 16 de um Projetista Inteligente, ou seja, não pode ser obra do acaso; b) Argumento do Princípio Antrópico: Admitindo que a evolução, por seleção natural, explique o projeto das coisas vivas, “o ajuste fino” das leis da Física, para que toda essa evolução seja possível exige um Afinador Inteligente (cf. p. 258). O autor contesta estes argumentos remetendo ao seu livro A idéia perigosa de Darwin: “A maravilhosa particularidade ou individualidade da criação deve-se, não a um gênio inventivo shakespeariano, mas às incessantes contribuições do acaso” (id. p. 259). Pergunta ele: “Será que isso faz de mim um ateu? Certamente, no sentido óbvio. Se aquilo que é sagrado para você, não for algum tipo de Pessoa para quem você possa rezar, ou considerar um recipiente adequado de gratidão (ou raiva, quando um ser querido morre sem sentido), você é um ateu, no meu livro”. Basta de crença em Deus ou a militância atéia: Ele se declara não apenas ateu, bem como conclama à adesão: “Basta de crença em Deus. E a crença na crença em Deus? Ainda não investigamos todas as bases dessa crença na crença. Não será ela verdadeira? Ou seja, não é verdade que exista Deus ou não, a crença religiosa é pelo menos tão importante quanto a crença na democracia, no domínio da lei, no livrearbítrio? A opinião muito disseminada (mas longe de universal) é que a religião é o bastião da moralidade e do valor. Sem religião, cairíamos na anarquia e no caos, em um mundo em que “qualquer coisa vale” ” (id. p. 261). Assim, Dennet conclui a segunda parte tomando partido para abandonar a crença em Deus, uma vez que os adeptos não sabem realmente o que estão professando. Ora, isto “torna a meta de provar ou refutar a existência de Deus uma busca quixotesca – mas também, exatamente por esse motivo, não muito importante” (id. p. 262). c) Parte 3: A religião hoje O autor parte da constatação de que muitas pessoas amam suas religiões acima de qualquer coisa na vida, e pergunta: “Será que a religião deles merece essa adoração”? Método das ciências e método interpretativo: No capítulo 9, ele discute a objeção clássica de que a ciência não dispõe de um método apropriado para analisar o fenômeno religioso: “Uma cortina de fumaça é a declaração mais geral de que os métodos das ciências naturais não apresentam possibilidade de progresso na cultura humana, que não exige experiências, mas “semiótica” e “hermenêutica”. Ou seja, a cultura é uma teia de significados, portanto, a análise dela, “não pode ser como uma 17 ciência experimental em busca de leis, mas uma ciência interpretativa em busca de significados”. Ele ataca este argumento, qualificando-o de “inteiramente desatualizado”, porque essas teias podem ser “analisadas por métodos que decisivamente envolvem experiências e pelos métodos disciplinados das ciências naturais. A interpretação, nas ciências naturais, não está em oposição à experiência, e a ciência não é toda subsunção sob a cobertura de alguma lei. Tudo, nas ciências cognitivas e tudo na Biologia evolutiva, por exemplo, é interpretativo, de tal forma que está em paralelo muito próximo às estratégias interpretativas das humanidades e da antropologia” (id. p. 277278). “Eu também quero que o mundo seja um lugar melhor”: Por que acreditamos na crença em Deus? Por que aquilo em que você crê tem importância? A resposta é que as pessoas “querem que o mundo seja um lugar melhor”. “Acham que fazer com que outros compartilhem de suas crenças a respeito de Deus é o melhor meio de alcançar aquela meta, e isso está longe de ser evidente” (id. p. 284). Dennet responde: “Eu também quero que o mundo seja um lugar melhor. Por esse motivo, quero que as pessoas compreendam e aceitem a teoria da evolução: eu acredito que a salvação pode depender disso! Como assim? Abrindo-lhes os olhos para os perigos de pandemias, degradação do ambiente e perda da biodiversidade, e informando a elas sobre algumas das fraquezas da natureza humana. Então a minha crença de que a crença na evolução é um caminho para a salvação não é uma religião? Não, existe uma grande diferença. Por isso, sinto como um imperativo moral disseminar a palavra da evolução, mas a evolução não é a minha religião. Eu não tenho religião” (id. p. 284). Prós e contras da religião: Será que a religião nos torna melhores, pergunta Dennett? William James responde: a) Pode fazer com que as pessoas sejam mais eficazes em sua vida diária, mais saudáveis, tanto física como mentalmente, mais constantes e compostas, com maior força de vontade contra a tentação, menos atormentadas pelo desespero, mais capazes de suportar suas infelicidades sem se abandonarem. b) E pode tornar as pessoas moralmente melhores, através da santidade (id.p. 286). A religião é boa para as pessoas? A resposta é sim e não: Parece, diz Dennett, haver alguns benefícios para a saúde, porém, os efeitos colaterais negativos contrabalançam os benefícios (id. p. 293). Religião e moralidade: No capítulo 10, o autor analisa se a religião é a base da moralidade. É verdade que se recebe o conteúdo da moralidade por intermédio da 18 religião, ou seja, ela é uma infra-estrutura para organizar a ação moral. Porém, a religião nos torna morais? Dennett responde: “Não encontrei nenhuma evidência que sustente a alegação de que as pessoas, religiosas ou não, que não acreditam na recompensa no céu e/ou na punição no inferno, têm mais propensão a matar, estuprar, roubar ou quebrar suas promessas do que as pessoas que acreditam”. Para provar sua resposta, cita o exemplo dos presos: “A população carcerária, nos Estados Unidos, é formado por católicos, protestantes, judeus, muçulmanos e outros – inclusive os sem filiação religiosa -, representados mais ou menos na mesma proporção que na população em geral” (id. p. 296). Será que é a religião que dá significado à sua vida? De um lado, afirma Dennett, “a maior parte das pessoas no mundo diz que a religião é muito importante em suas vidas”. De outro, questiona o autor, “será que qualquer religião dá significado às vidas de um modo que devemos honrar e respeitar? E as pessoas que caem nas garras de líderes de cultos, ou que são enganadas para dar a poupança de sua vida inteira a vigaristas religiosos? Será que a vida delas ainda tem significado, mesmo que sua “religião” particular seja uma fraude” (id. p. 303)? Há um juízo moral preconceituoso, afirma Dennett: “Passei a aceitar que esse alinhamento da bondade moral com a “espiritualidade”, e do mal moral com o “materialismo”, é apenas um fato frustrante da vida. Nós, os materialistas, somos os caras maus, e aqueles que acreditam em qualquer coisa sobrenatural [...] estão do „lado dos anjos‟” (id. p. 322). Enfim, conclui o autor que a opinião difundida de que a religião é o baluarte da moralidade é, na melhor das hipóteses, problemática, porque a idéia de que a recompensa celeste é o que motiva as pessoas serem melhores é desnecessária. A outra afirmação de que a religião dá sentido à vida está ameaçada pela hipocrisia em que caímos. Ainda, a idéia de que a autoridade religiosa fundamenta nossos julgamentos morais é inútil, na medida em que esses líderes são ineficazes em lidar com os intransigentes mais radicais de seus próprios credos (cf. p. 314-315). E, por fim, “a suposta relação entre a espiritualidade e a bondade moral é uma ilusão” (id. p. 324). O autor conclui afirmando que a pesquisa está apenas começando, pois será necessário mais pesquisa sobre a história evolutiva da religião e os seus fenômenos contemporâneos. 19 3 – Dennett: Ateísmo naturalista e fundamentalismo Dennett afirma que existem questões religiosas urgentes, por exemplo, como lidar com os excessos da criação religiosa e o recrutamento de terroristas? Isto exige analisar as convicções e as práticas religiosas. Porém, conclama o autor, “precisamos garantir nossa sociedade democrática, a base original desta pesquisa, contra as subversões daqueles que usariam a democracia como uma escada para a teocracia, e depois a jogariam fora” (id. p. 325). O autor e outros tantos que adotam a posição do ateísmo naturalista tem a preocupação com o fundamentalismo religioso atual: Aqueles que sustentam religiões devem também ser considerados responsáveis pelos danos causados àqueles a quem elas atraem. Os defensores de religião são rápidos em dizer que os terroristas em geral têm agendas políticas, e não religiosas. As agendas políticas dos fanáticos violentos muitas vezes os levam a adotar um disfarce religioso, a explorar a infra-estrutura organizacional e a tradição de lealdade sem questionamentos de qualquer religião que esteja à mão. É verdade que esses fanáticos raramente são inspirados ou orientados pelos mais profundos e melhores dogmas da tradição dessas religiões. E daí, pergunta Dennett? O terrorismo da Al Quaeda ainda é responsabilidade do islã; o bombardeio de clínicas de abortos ainda é responsabilidade do cristianismo; as atividades assassinas dos extremistas hindus ainda é responsabilidade de hinduísmo (id. p. 317). John F. Haught, filósofo americano, criador do conceito de teologia evolucionista, explica que essa idéia “sustenta que o retrato da vida proposto por Darwin constitui um convite para que ampliemos e aprofundemos nossa percepção do divino. A compreensão de Deus, que muitos e muitas de nós adquirimos em nossa formação religiosa inicial, não é suficientemente grande para incorporar a Biologia e a Cosmologia evolucionistas contemporâneas”. O fílósofo afirma, além disso, que “o benigno designer [projetista] divino da teologia natural tradicional não leva em consideração, como o próprio Darwin observou, os acidentes, a aleatoriedade e o patente desperdício presentes no processo da vida”. E completa: “Uma teologia da evolução, por outro lado, percebe todas as características perturbadoras contidas na explicação evolucionista da vida”. Sobre as idéias de Richard Dawkins, Haught dispara: “A crítica da crença teísta, feita por Dawkins, se equipara, ponto por ponto, ao fundamentalismo que ele está tentando eliminar” (Haught, 2007, 19). 20 Portanto, cabe aqui perguntar: Será que os que defendem um ateísmo naturalista, com a intenção de criticar o fundamentalismo religioso não acabam caindo no mesmo reducionismo que pretendem criticar? A preocupação com o fundamentalismo religioso e seus desdobramentos patológicos, no mundo contemporâneo, pode justificar a negação completa de todo o fenômeno religioso? Ou ainda, é válido descrevê-lo, meramente, como um fenômeno cultural, reduzindo-o a uma análise evolucionista? É plausível o diagnóstico de Dennett sobre “a religião como fenômeno natural”, aplicando-o a todas as religiões, indistintamente? REFERÊNCIAS AUDI, Robert (ed.). Dicionário de Filosofia de Cambridge. São Paulo: Paulus, 2006. BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. DAHLBOM, B. Dennett and his Cambridge/Massachutts/Oxford: Blackwell, 1995. Critics. Demystifying Mind. DAWKINS, R. The Selfish Gene. N. York/Oxford: Oxford University Press, 1978. DENNETT, Daniel C. Quebrando o Encanto. A religião como fenômeno natural (Trad. Helena Londres). São Paulo: Editora Globo, 2006. _________________. A perigosa Idéia de Darwin. A evolução e os significados da vida (Trad. Talita M. Rodrigues). Rio de Janeiro: Rocco, 1998. DENNETT, D. Content and Consciousness. London/N. York: Humanities Press, 1969. DENNETT, D. Darwin’s Dangerous Idea. New York: Simon and Schuster, 1995. DENNETT, D. Kinds of Minds: Towards an Understanding of Consciousness. N. York: Basic Books, 1996. HAUGHT, John F. Uma teologia da evolução precisa mostrar que a fé bíblica não contradiz o caráter evolutivo do mundo. Revista IHU. São Leopoldo, Edição 245, p. 1923, 26.11.2007. Disponível em <http://www.unisinos.br/ihuonline>. Acesso em 12 de junho 2009. PINTO, Paulo R. Margutti. Daniel C. Dennett. s.d. <http://www.fafich.ufmg.br/~margutti> Acesso em 11 junho 2009. 21 Disponível em 22