335 Internacional Journal of Cardiovascular Sciences. 2015;28(4):335-337 PONTO DE VISTA Literatura e Cardiologia Literature and Cardiology Ana Luisa Rocha Mallet1,2, Luciana Andrade1, Maria Clara Marques Dias3 Universidade Estácio de Sá – Faculdade de Medicina – Rio de Janeiro, RJ – Brasil, Universidade Federal do Rio de Janeiro – Hospital Universitário Clementino Fraga Filho – Rio de Janeiro, RJ – Brasil 2 Universidade Estácio de Sá – Faculdade de Medicina – Rio de Janeiro, RJ – Brasil 3 Universidade Federal do Rio de Janeiro – Departamento de Filosofia – Rio de Janeiro, RJ – Brasil 1 Resumo No 64º encontro de Cardiologia do American College of Cardiology, realizado em março de 2015 na Califórnia, a palestra de abertura foi realizada pelo Dr. Abraham Verghese, certamente não conhecido pelas suas publicações em revistas de cardiologia. Por meio da leitura de um poema, esse professor de Medicina Interna da Universidade de Stanford, discutiu a relação entre a ciência e a literatura, levando os cardiologistas a um momento único de reflexão sobre a atuação e relação diária dos profissionais médicos com o coração dos pacientes. Palavras-chave: Ensino; Ciências Humanas; Cardiologia; Medicina na literatura Abstract (Full texts in English - www.onlineijcs.org) In the 64th Cardiology Session of the American College of Cardiology, held in March 2015 in California, the opening lecture was given by Dr. Abraham Verghese, certainly not known for his publications in cardiology journals. By reading a poem, this professor of Internal Medicine at Stanford University discussed the relationship between science and literature, encouraging the cardiologists to entertain a unique moment of deep thinking about the work and the daily connection of medical professionals with the hearts of patients. Keywords: Teaching; Humanities; Cardiology; Medicine in literature Introdução A cardiologia é das especialidades médicas que mais tem utilizado os avanços tecnológicos dos últimos anos, muitas vezes até com uma inserção questionável do ponto de vista de benefício real para o paciente. Sendo inquestionável o avanço tecnológico, é também inquestionável um afastamento e deterioração da relação médico-paciente. Existe uma insatisfação dos pacientes em relação à atenção e o cuidado que estão recebendo dos médicos em todos os níveis de atenção à saúde. Isso não é diferente na cardiologia. O paciente é desmembrado em seus vários órgãos, vai a vários especialistas; tem um neurologista, um cardiologista, um endocrinologista, um gastroenterologista... E talvez não tenha aquele que ele considere o seu médico. Na cardiologia pode ser que tenha um cardiologista que cuide da sua pressão, um de sua arritmia, um outro da sua anticoagulação e ainda outro que trate de sua coronariopatia. E quem cuida do paciente? Essa situação é angustiante também para os profissionais de saúde e tem motivado muitas discussões sobre a educação médica. Uma iniciativa na tentativa de reaproximação do profissional médico daquele que o procura tem sido a introdução de estudos das humanidades Correspondência: Ana Luisa Rocha Mallet Rua Riachuelo 27 – Centro – 20230-010 – Rio de Janeiro, RJ – Brasil E-mail: [email protected] DOI: 10.5935/2359-4802.20150048 Artigo recebido em 14/08/2015, aceito em 18/09/2015, revisado em 28/09/2015. 336 Mallet et al. Literatura e Cardiologia no currículo médico. Dentre elas, a literatura aparece como uma possibilidade privilegiada de um redimensionamento da perspectiva predominantemente técnica da formação médica, que passa por visível esgotamento. Abraham Verghese iniciou a palestra de abertura do 64º encontro de Cardiologia do American College of Cardiology lendo o poema “I carry your heart with me (I carry it in) de E.E. Cunning. Quem é Abraham Verghese? Nascido na Etiópia, atualmente professor da Stanford University, é autor de “11º Mandamento”, um best-seller. Sua palestra foi precedida por uma conversa com Eric Topol, em outubro de 20141. Com esse poema de amor ele lembrou que quando se fala do coração, está se falando de dois “corações”. Um coração que é randomizado, participa de meta-análises, é submetido a exames de alta tecnologia, recebe vários medicamentos e procedimentos, e um outro coração – aquele capaz de se emocionar com um poema, o coração que sofre, o coração de cada paciente, que muitas vezes é inatingível. O primeiro coração tem recebido muita atenção na medicina moderna. E o segundo coração? Talvez essa chamada por humanidade tenha sido a causa do grande impacto da palestra. A literatura, através da expansão da experiência humana, da ampliação do imaginário, da emoção estética, permite que se imaginem outras realidades e outras histórias, vivências novas que possam facilitar uma reaproximação com o outro. Literatura e medicina enquanto disciplina acadêmica emergiu em 1972 na Universidade da Pensilvânia. A revista Literature and Medicine, publicada pela John Hopkins, em 1982, contribuiu para seu reconhecimento. Desde 1995, 30% das universidades americanas oferecem cursos de literatura nas escolas de medicina2. Trechos literários abordando situações médicas poderiam ser uma primeira tentativa de introdução no ensino. Os dois textos a seguir expressam com muito mais força e realidade algumas situações comuns na medicina. Marguerite Yourcenar descreve, em “Memórias de Adriano”3 a insuficiência cardíaca com muito mais detalhes e vigor do que os tradicionais “dispneia, edema, hepatomegalia” – uma tradução visceral da principal epidemia em cardiologia: “Meu caro Marco, Estive esta manhã com meu médico Hermógenes... Deitei-me sobre um leito depois de me haver despojado do manto e da túnica. Poupo-te Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(4):335-337 Ponto de Vista detalhes que te seriam tão desagradáveis quanto a mim mesmo, omitindo a descrição do corpo de um homem que avança em idade e prepara-se para morrer de uma hidropisia do coração. É difícil permanecer imperador na presença do médico e mais difícil permanecer homem. O olho do clínico não via em mim senão um amontoado de humores, triste amálgama de linfa e sangue. Esta manhã, pela primeira vez, ocorreu-me a ideia de que meu corpo, este fiel companheiro, este amigo mais seguro e mais meu conhecido do que minha própria alma, não é senão um monstro sorrateiro que acabará por devorar seu próprio dono. [..] minhas pernas intumescidas já não me podem sustentar durante as longas cerimônias romanas. Sufoco! Esse fim tão próximo não é necessariamente imediato: deito-me ainda, cada noite, com a esperança de acordar pela manhã. […] Dizer que meus dias estão contados nada significa! Assim foi sempre. E assim sempre será para todos nós. Mas a incerteza do lugar, da ocasião e do modo, incerteza que nos impede de ver distintamente esse fim para o qual avançamos inexoravelmente, diminui para mim à medida que progride minha mortal enfermidade. Qualquer um de nós pode morrer a qualquer instante, mas um enfermo sabe, por exemplo, que não mais estará vivo dentro de dez anos. Minha margem de hesitação já não abrange anos, apenas alguns meses. [...] o feiticeiro que me predisse morte por afogamento parece não ter tido razão… uma crise de sufocação se encarregará da tarefa. Serei abatido pela décima ou pela centésima crise? Aí está toda a questão. [...] Correr, mesmo no mais curto percurso, ser-me-ia hoje tão impossível quanto para a pesada estátua de um César de pedra. Posso, entretanto, lembrar-me de minhas carreiras de criança [...] seguro de que o coração perfeito e os pulmões intactos restabeleceriam o equilíbrio”. No clássico “A morte de Ivan Ilitch”4, de Leon Tolstoi, a experiência do adoecimento e da morte é descrita com uma dramaticidade não encontrada em livros textos que tratam da finitude da vida. “O que mais atormentava Ivan Ilitch era o fingimento, a mentira, que por alguma razão eles todos mantinham, de que ele estava apenas doente e não morrendo e que bastava que ficasse quieto e seguisse as ordens médicas que ocorreria uma grande mudança para melhor. Mas ele sabia que nada do que eles fizessem teria outro resultado que não mais agonia, mais sofrimento e a morte. E a farsa desgostava-o profundamente: atormentava-o o fato de que se recusassem a admitir o que eles e ele próprio bem sabiam, mas insistiam em ignorar e forçavam-no a participar da mentira. Esse fingimento que se estabeleceu em torno dele até a véspera de sua morte, essa mentira que só fazia colocar no mesmo nível o solene ato de sua morte, suas visitas, suas cortinas, seu caviar para o jantar...eram-lhe terrivelmente dolorosos. [...] O horrível, terrível ato de sua morte, estava sendo reduzido por aqueles que o rodeavam ao nível de um acidente fortuito, desagradável e um pouco indecente...[...]. Notava que ninguém se compadecia dele porque ninguém estava com disposição nem mesmo para pensar em sua situação.[...] em alguns momentos, depois de um período prolongado de sofrimento, desejava, mais do que outra coisa – envergonhava-se de confessá-lo -, alguém que sentisse pena dele como se tem pena de uma criança doente. Ansiava ser cuidado e beijado como as crianças são cuidadas e confortadas quando doentes. Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(4):335-337 Ponto de Vista Conclusão Exemplos literários podem ser utilizados com os estudantes durante sua formação médica para que no seu dia a dia cada vez mais atarefado e desgastante eles não deixem de perceber que as doenças acontecem em pessoas reais e que cada uma delas reage de forma diferente ao processo de adoecimento. A tentativa de se aproximar do coração muitas vezes inatingível não impede de tentar realizar essa conexão, conexão essa que pode ser feita pela palavra. “A ciência é grosseira, a vida é sutil - e para corrigir essa distância é que a literatura nos importa” Roland Barthes5. Mallet et al. Literatura e Cardiologia Potencial Conflito de Interesses Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes. Fontes de Financiamento O presente estudo não teve fontes de financiamento externas. Vinculação Acadêmica Este artigo é parte da pesquisa de Pós-doutorado em Literatura Comparada de Ana Luisa Rocha Mallet pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ponto de Vista As opiniões apresentadas neste artigo são somente as dos autores. O International Journal of Cardiovascular Sciences acolhe pontos de vista diferentes a fim de estimular discussões com o intuito de melhorar o diagnóstico e o tratamento dos pacientes. Referências 1. 2. Topol EJ, Verghese AC. Cutting for Stone’s Verghese talks prose, patients with Topol. 2014. [Internet]. [cited 2015 Jul 5]. Available from: <http://www.medscape.com/viewarticle/832853> Hawkins AH, McEntyre MC, eds. Teaching literature and medicine. New York: Modern Language Association; 2000. 3. 4. 5. Yourcenar M. Memórias de Adriano. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2005. Tolstoi L. A morte de Ivan Ilitch. São Paulo: Editora 34; 2006. Barthes R. Aula. 14a ed. São Paulo: Cultrix; 1996. 337