NOTAS SOBRE GADAMER: TEORIA DO DIREITO, JURISPRUDÊNCIA E HERMENÊUTICA João Henrique Vasconcelos Arouck1 (ESTÁCIO/FCAT) RESUMO: No presente trabalho seguimos três referenciais teóricos para responder à pergunta “o que é jurisprudência”. Na teoria pura de Kelsen delimitamos a jurisprudência como atividade ou aplicação de um juízo normativo por parte do intérprete. Em seguida, no realismo de Ross, notamos que, pelo menos sob seus aspectos empíricos, a jurisprudência é um fenômeno coletivo uma vez que vinculada à utilização de precedentes judiciais. Até então, a teoria que a autoriza o uso “prudencial” de precedentes, como será exposto, é a doutrina do stare decisis. O cotejo das perspectivas de Kelsen e Ross, a primeira de caráter teórico-transcendental e a última de consideração realista e empírica, exigiu uma abordagem mais abrangente da jurisprudência de modo que pudéssemos considerá-la como o elemento prático do pensamento jurídico: o elemento que resiste ao modelo epistemológico da ciência jurídica. Vimos daí que, enquanto a ciência enfatiza o método, a jurisprudência compreende seu discurso a partir da retórica. Isso explica, ademais, porque a jurisprudência apresenta uma representação mais afinada com o que o senso comum assume como natureza ou distinção específica do Direito na prática social das disciplinas humanísticas. Daí porque, com o auxílio do conceito de “tradição” revisitamos alguns dos elementos formadores do pensamento jurídico sob a ótica dos “conceitos básicos” em Gadamer a partir da leitura da “ciência nova” de Vico. PALAVRAS-CHAVES: Gadamer. Interpretação. Teoria do Direito. Jurisprudência. Hermenêutica ABSTRACT: In this work we follow three theoretical frameworks to answer the question "what is law." In pure theory of Kelsen delimit jurisprudence as activity or application of a normative judgment on the part of the interpreter. Then in Ross realism, we note that, at least under its empirical aspects, the case is a collective phenomenon as linked to the use of judicial precedents. Until then, the theory that authorizes the use of "prudential" precedent, as will be explained, is the doctrine of stare decisis. The comparison of the perspectives of Kelsen and Ross, the first theoretical and transcendental character and the last realistic and empirical consideration, required a more comprehensive approach to jurisprudence so that we could regard it as the practical element of legal thinking: the element resists the epistemological model of legal science. We saw then that while science emphasizes the method, the case comprises his speech from rhetoric prejudices. This explains, in addition, because the law has a more refined representation with what common sense takes as nature or 1 Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará. Professor da ESTÁCIO/FCAT. Amazônia em Foco, Castanhal, v. 5, n.8, p. 68-88, jan./jul., 2016 | | 68 Notas sobre Gadamer: teoria do Direito, jurisprudência e hermenêutica specific distinction of law in social practice of humanistic disciplines. That is why, with the help of the concept of "tradition" revisit some of the elements that form of legal thinking from the perspective of the "basics" in Gadamer from reading the "new science" of Vico. KEYWORDS: Gadamer. Interpretation. Theory of Law. Jurisprudence. Hermeneutics. 1 INTRODUÇÃO De um modo geral, a doutrina do Civil Law concebe a jurisprudência como uma fonte do direito revelado por uma sucessão harmônica de decisões reconhecidas como ajustadas às peculiaridades de um caso. Em teorias normativas, como a teoria pura, a jurisprudência, mais do que um elemento de integração, caracteriza uma “função constitutiva” molduras seriadas o suficiente para fechar o campo de aplicação de normas abertas intencionalmente pelo “escalão constitucional” que assim poderá prover a sua própria atualização pela seriação escalonada da interpretação (KELSEN, 2009). Nesse ato de preenchimento operam fatores de concreção que, relativos à constituição do caso (da mihi factum, dabo tibi jus) influem diretamente nas molduras da interpretação. Se é verdade que a norma jurídica só pode ser um resultado da interpretação/aplicação do direito, isso significa que uma norma jurídica comportaria uma “diferença” ou um “excedente” em relação às hipóteses reveladas pela exegese pueril de um texto jurídico. Concebemos nesse ponto a primeira consequência de uma aproximação progressiva que fazemos entre hermenêutica e jurisprudência. Partimos do princípio que a constituição do “suporte fático” é o nó de toda a discussão; o elemento que desestabiliza a pretensão metodológica sobre a interpretação jurídica, questionando, na mesma medida, a aplicação do arcabouço teórico como “verdade” ou “dogmática jurídica”. Diante da imprevisibilidade dos elementos que surgem na “concreção no instante” a jurisprudência nada mais seria do que uma função pretoriana, uma reabilitação do jus singulare, uma “facticidade” e um saber-para-si. Se imperscrutável à pretensão sistemática da ciência jurídica a realização decisória se tornaria um tema da política judiciária. Disputando sua pretensão de validade com o extremo oposto da exegese (ratio legis), a jurisprudência já não corresponderia ao discurso da razão Amazônia em Foco, Castanhal, v. 5, n.8, p. 68-88, jan./jul., 2016 | | 69 AROUCK, João Henrique Vasconcelos prática; seria tão somente uma arte liberal ligada à implacável regra de reconhecimento que liga o direito ao fato da jurisdição: a base do funcionamento do direito representado como efeito de normalização (BOURDIEU, 2012). O liame entre hermenêutica e jurisprudência se estende à dogmática e teoria do direito quando ousamos questionar o modo como as consequências jurídicas são demonstradas e justificadas em uma ratio decidendi. É este, ademais, o plano de eficácia que conforma o conceito de direito como um conceito da jurisprudência. Nesse quesito, a perspectiva normativa (Kelsen) e a social-empírica (Ross) disputam critérios de validade que servirão como base para possíveis extensões no tocante aos critérios de validade para o cálculo ou formato das consequências jurídicas. Se para Kelsen (2009) o critério universal de validade do direito é uma norma hipotética fundamental (“a constituição deve ser observada”), para Ross (2011) a validade é empiricamente mensurável por uma certa “consciência jurídica popular” ou pelo respeito e aprovação que uma “norma” sugere à maioria das pessoas. Na perspectiva realista uma norma se torna propriamente “vigente” se além de sua validade empírica “há fundamentos suficientes para supor que será aceita pelos tribunais como base para suas decisões” (ROSS 2011, p. 101). Uma segunda consequência da aproximação entre hermenêutica e jurisprudência é a compreensão do discurso prático geral que está na base da dogmática jurídica e nos propósitos descritivos da teoria do direito. Hermenêutica e jurisprudência operam conjuntamente porque tendem a produzir um mesmo conceito de interpretação. A hipótese se comprova quando ambas admitem e partem de um mesmo problema, algo geralmente ligado à diferença encontrada entre a generalidade da lei e a matéria concreta. A finalidade de ambas é o ponto de integração da experiência jurídica no plano da realização decisória cujo espectro engloba desde o modelo da escolha racional até a justificação consequencialista da razão prática adotada na base do funcionamento do direito. A matéria visada nessa aproximação é sempre a ideia base do direito, a igualdade jurídica sob um propósito capaz de questionar os automatismos da subtilitas applicandi. Até aqui vemos uma média interessante resulta da diferença relativa que há entre hermenêutica e jurisprudência. Partimos do ponto em que a hermenêutica jurídica é revisitada por paradigmas próximos ao discurso da filosofia prática (Gadamer). A hermenêutica revisitada admite Amazônia em Foco, Castanhal, v. 5, n.8, p. 68-88, jan./jul., 2016 | | 70 Notas sobre Gadamer: teoria do Direito, jurisprudência e hermenêutica os excessos racionalistas da escola da exegese e da fundação utilitarista das escolhas racionais não apenas em sentido histórico ou como crítica do método moderno, mas porque ainda enfrenta o padrão unilateral das fontes autorizadas e compreendidas numa teoria essencialmente objetiva. É tal a razão porque na média das opiniões o conceito de jurisprudência venha a ser concebido em uma teoria das fontes. Por jurisprudência entende-se daí o conjunto de padrões de reconhecimento do “direito” judicial em decidir conforme a construção autorreferente de suas próprias decisões. Isto significa o retorno da jurisprudência à lógica do princípio de autoridade cujo princípio de identidade é o monopólio estatal, no caso, o direito dos tribunais em reconhecer e fixar regras de reconhecimento para a aplicação do direito que se torna, no âmbito de um “direito judiciário”, um procedimento cumprido através de orientações objetivas. A teoria objetiva, que reifica padrões e orienta o conteúdo a ser aplicado na realização decisória, tem como causa a uniformização da interpretação ser realizada sobre a matéria legal. No trânsito entre compreensão e aplicação, a interpretação é o intermédio entre a hermenêutica e a jurisprudência. Ao tempo em que a interpretação se desloca para o cumprimento das regras de reconhecimento (e já não propriamente da tarefa pueril em delimitar hipóteses analíticas sobre um texto jurídico) uma reflexão intitulada como “hermenêutica” é invocada unicamente para satisfazer a teoria objetiva que separa a base do funcionamento do direito de especulações que coloquem em risco as regras de reconhecimento e os algoritmos decisórios. Ainda assim, uma hermenêutica revisitada não sucede necessariamente em uma doutrina da desconfiança. Levada dessa forma a tarefa do tradutor também aprofundaria o risco da facticidade e do retorno à lógica do imprevisível. Como função crítica a hermenêutica poderia conceber a jurisdição como um estamento relativo aos questionamentos que colocam em discussão o “sujeito” ou as condições empíricas da interpretação. Talvez não seja esse propriamente o objetivo da hermenêutica, pelo menos se considerada como intérprete e tradutor da razão prática. É preciso dizer que diante disso o approach entre os discursos hermenêutico e jurisprudencial tem como propósito reconhecer a própria regra de reconhecimento. Aprecia-se nesse reconhecimento o padrão comum da decisão judicial correta que convalida e autoriza o uso arbitrário da teoria objetiva das fontes. Em Hart (2007, p. 320) vemos que reconhecer significa identificar as fontes do direito de forma autorizada: é a regra que Amazônia em Foco, Castanhal, v. 5, n.8, p. 68-88, jan./jul., 2016 | | 71 AROUCK, João Henrique Vasconcelos “pode fornecer teses relacionados não com o conteúdo factual da lei e sim com a sua conformidade a valores ou com princípios morais essenciais”. Passaríamos, neste ponto, para o domínio da validade, compreendendo, conseguinte, que o âmbito da vigência é um domínio factual, ou seja, uma legalidade exterior e não necessariamente um imperativo moral essencial. A busca criteriosa de Hart (2007) por interpretações cognoscitivas que especifiquem os critérios de validade jurídica em conflito com afirmações internas de validade nos parecem um fio condutor para estabelecer um conceito hermenêutico para a jurisprudência. O liame progride questionando o critério de validade utilizado para escolher entre possibilidades para definir o standard ou parâmetro de aplicação de regras de julgamento. A hermenêutica tem como meta conferir hipóteses construtivas sobre a regra primária que está efetivamente na base de funcionamento do direito. Uma teoria da experiência hermenêutica como jurisprudência acredita, por isso, que mesmo os prejuízos teóricos dominantes devem ser acordados de alguma forma com o elemento básico da moral partilhada de um grupo social – é este o ponto de partida e chegada de um provável círculo hermenêutico: a busca por “cláusulas” corretas construídas como o resultado das decisões complementárias ou aperfeiçoadoras do direito (GADAMER, 2002). Sendo a medida determinada entre a “base arbitrária” do funcionamento do direito e o fundamentalismo de valores encontramos na proposta antidogmática da fenomenologia uma referência mais razoável do os opostos extremos. O reconhecimento progressivo de formas imperativas da obrigação e do dever social em meio às regras secundárias de alteração e julgamento (teoria objetiva da jurisprudência) admite que padrões críticos comuns, por exemplo, são mais interessantes para a compreensão da medida adequada do sistema jurídico (em que a regra de julgamento está no centro) do que uma refundação dogmática de valores fundamentais ou de uma “jurisprudência política, disfarçada na necessidade de mediação e integração os valores presentes na ordem constitucional” (CANOTILHO 2003, p. 1197). Ao invés da “base arbitrária” que está na base do funcionamento do direito (BOURDIEU, 2012), a hermenêutica se pergunta pelo tipo de “tradição” que se faz refletir em nosso horizonte de interpretação. Amazônia em Foco, Castanhal, v. 5, n.8, p. 68-88, jan./jul., 2016 | | 72 Notas sobre Gadamer: teoria do Direito, jurisprudência e hermenêutica Propor um significado pela aplicação exige o trabalho sobre o que o texto nos diz em nossa situação particular: o âmbito de aplicação da hermenêutica como arcabouço teórico para a reflexão de soluções que partem de uma “interpretação”. A tradição subsiste nisso porque as pretensões de valor e justiça dialogam sempre com uma ontologia referida a algum aspecto da tradição, isto é, os prejuízos e hábitos interpretativos provenientes de algum lugar-comum que se nos apresentam como “sentido” da tradição. Uma fenomenologia da interpretação é necessária, de sua vez, para captar a transformação e transposição de sentidos que um texto jurídico provoca ao coexistir com o presente do intérprete. Daí porque as variáveis do horizonte de sentido do intérprete expliquem, à sua maneira, as dessemelhanças no terreno da jurisprudência. Neste trabalho nos limitamos apenas a apontar algumas molduras plausíveis que podem provocar uma discussão conceitual sobre a jurisprudência. O enfoque é hermenêutico, mas o ponto de partida são os discursos da teoria do direito. Nosso propósito, embora neste caso, ainda, é apenas o de que prefigurar uma base para pensar um método de investigação que possa compreender duas atividades que acreditamos pertencer à mesma ontologia. 2 JURISPRUDÊNCIA SEGUNDO A TEORIA DO DIREITO A teoria pura de Kelsen (2009) tem o mérito de conciliar os princípios da democracia com uma teoria eficiente sobre normas escalonadas por uma constituição vigente. Como teoria positivista, a teoria pura assegura a fenomenologia do raciocínio jurídico que interage entre a (1) proposição juridicamente válida; (2) o fato subsumido na razão jurídica e o (3) juízo normativo concluído em referência às proibições e permissões constitucionais. Na teoria pura a jurisprudência é conceituada como “aplicação do direito”. Antagonizando com a criação livre do direto, a tarefa da jurisprudência consiste na definição de um juízo normativo logicamente fundado – o que não supõe que opere necessariamente por declarações exegéticas. Aplicar a norma significa para Kelsen constituir uma decisão capaz de representar o estádio final de um processo iniciado com a constituição (KELSEN 2009, p. 263). Ao subtrair os juízos ético-políticos da interpretação, o juízo normativo da aplicação jurídica garante a previsibilidade racional das decisões (KELSEN 2009, p. 275). Trata-se de Amazônia em Foco, Castanhal, v. 5, n.8, p. 68-88, jan./jul., 2016 | | 73 AROUCK, João Henrique Vasconcelos uma proposição que corrobora com a tendência das primeiras instâncias em, por exemplo, seguir os precedentes superiores ao invés de criarem um direito ex novo excepcionado por circunstâncias subjetivas de interpretação. Na teoria pura a jurisprudência não pode ser uma função subjetiva. É um resultado da aplicação correta que se acrescenta ao conjunto das normas escalonadas pela constituição. Como as demais normas a jurisprudência se alinha às normais gerais da ordem jurídica, mas com certa prerrogativa. A jurisprudência é, em todo caso, um precedente que vincula a decisão de um modo especial. Ao reconhecer essa vinculação, Kelsen propõe que jurisprudência seja acompanhada do registro formal de elementos que seriam utilizados em uma identificação comum de casos aceitos com referência, por exemplo, à mesma hipótese normativa (KELSEN 2009, p. 278). A confiança no caráter normativo da jurisprudência é justificada pela teoria das fontes do direito. Mas, em uma definição tradicional do conceito, a decisão judicial consiste para Kelsen em uma fonte de direitos e deveres para partes litigantes cujo resultado é a atribuição de competências ao órgão que deve executar a decisão (KELSEN 2009, p. 259). Kelsen acredita em sua teoria pura superar a jurisprudência dos conceitos, a teoria que pretende identificar e reconstruir conceitos ideologicamente pressupostos na ordem jurídica (ROSS 2005, p. 192). A teoria pura antagoniza com o conceitualismo em razão da postura cognoscitiva que tonaria a jurisprudência uma tarefa menos aplicativa e mais subjetiva (KELSEN 2009, p. 395). Como teoria da ciência jurídica a teoria pura visa o estabelecimento das múltiplas significações compreendidas na norma jurídica. Como tarefa prática a interpretação deve resolver o conteúdo das normas e do precedente escalonando as fontes do direito no sentido da ordem jurídica. Por isso, a jurisprudência é, além da aplicação, uma operação teórica do conhecimento certificado em um ato de vontade, o ato que sustenta uma decisão sólida dentre um plano de possibilidades. A vontade assegura no plano da pluralidade o preenchimento correto do “aberto”, isto é, do espaço delimitado por uma moldura que define o limite do conteúdo. (KELSEN 2009, p. 391). Portanto, ao contrário do que Kelsen denomina de “jurisprudência tradicional” a teoria pura acredita na pluralidade das decisões e não apenas em uma única decisão correta. O empirismo de Alf Ross discorda da teoria pura de Kelsen quanto à subtração dos aspectos valorativos que precedem ao juízo normativo. Na perspectiva realista, Amazônia em Foco, Castanhal, v. 5, n.8, p. 68-88, jan./jul., 2016 | | 74 Notas sobre Gadamer: teoria do Direito, jurisprudência e hermenêutica tal como no jogo de xadrez, a jurisprudência não está motivada pelas regras, mas pelos propósitos do jogo (ROSS 2005, p. 193). Para Ross importa à ciência do direito perceber o tipo de relação que as regras jurídicas exercem diante das exigências sociais empíricas. A teoria realista tem por objeto uma ciência de predições capaz de representar o conceito da interpretação vigente, ou seja, o modo pelo qual se pode dizer como as regras serão de fato aplicadas pelos tribunais. O método de Ross procura enfatizar os princípios que efetivamente conduzem o trânsito da regra geral ao caso particular resultando em uma teoria descritiva das práticas empíricas que revelam o comportamento dos tribunais na aplicação do direito (ROSS 2005, p. 145). Diferentemente da teoria pura, não interessa ao realismo identificar o escalonamento normativo do precedente na ordem jurídica, mas descrever o papel motivador que desempenha nas decisões. O conceito de jurisprudência em Ross pode extraído da análise histórica que realiza sobre o desenvolvimento dos sistemas do common law e do civil law. Ross inicia com a referência a uma antiga proibição de Justiniano sobre o fundamento dos precedentes utilizado em decisões judiciais. Compreendendo o direito na escritura da lei (non exemplis, sed legibus judicandum est) a ciência romana do período tardio desconsiderava o fundamento dos precedentes para priorizar a exegese do texto como fonte do direito (ROSS 2005, p. 115). Na verdade, o sistema do common law estabiliza sua conhecida doutrina apenas no século XVII, embora no século XIII os precedentes já estivessem utilizados para racionalizar um sistema judicial heterogêneo. Apenas no século XIX a vinculação dos precedentes é justificada em uma doutrina jurídica dos costumes judiciais: o stare decisis. Ainda que distantes da prática atual, são os princípios do stare decisis que exemplificam o conceito prático dos precedentes tanto no sistema do common law quanto no civil law. Da mesma forma, a doutrina do stare decisis esclarece o modo como o direito anglo-americano racionaliza a prática jurídica em precedentes de jurisprudência e, por outro lado, em um conceito de lei instrumentalizado por exigências empíricas. Alf Ross resume a doutrina do stare decisis pelos seguintes princípios que aqui destacamos: 1) Uma decisão só se torna obrigatória quanto a sua ratio decidendi. 2) Um precedente não perde vigência mesmo que não pareça aplicável às circunstâncias empíricas do caso. 3) Toda decisão, ditada por qualquer tribunal, pode ser considerado como argumento Amazônia em Foco, Castanhal, v. 5, n.8, p. 68-88, jan./jul., 2016 | | 75 AROUCK, João Henrique Vasconcelos relevante para que os demais tribunais a levem em conta. 4) Um tribunal encontra-se obrigado a observar as decisões de tribunais superiores. Na Inglaterra, a presente regra obriga os próprios tribunais (p. ex, o Tribunal de Apelações – “Court of Appeal”) a seguirem decisões que estabelecem a priori. Portanto, a regra geral é a de que instâncias judiciais interpretem as decisões à luz de suas próprias razões levando em conta o conteúdo jurídico da ratio decidendi. Ross destaca que, nesse ponto, os dilemas hermenêuticos do common law em nada diferem do problema da interpretação da lei nos sistemas do civil law. Com efeito, o common law se vê apenas “mais” obrigado aos precedentes em comparação com as reservas legais do civil law. Diferentemente do experimentalismo metodológico da doutrina jurídica do common law, Ross destaca no civil law a natureza escolástica das doutrinas jurídicas voltadas ao esclarecimento do conteúdo normativo do direito à maneira das resenhas glosais (ROSS 2005, p. 116). Concluímos com Ross que a influência do precedente depende de sua aproximação com a hermenêutica jurídica na medida em que são cultivados como textos jurídicos. O common law pode fornecer um exemplo. Segundo Ross os precedentes ingleses resultam do amplo exame dos pontos de vistas jurídicos que fundamentam a decisão fornecendo o material utilizado como guia da aplicação para casos semelhantes juntamente com repertórios analíticos que resumem as decisões em grande escala. Por isso, é preciso conciliar o pragmatismo da commom law com os costumes do civil law caracterizado por termos concretos e não comprometedores, ou seja, por um conceito particularizado de prudência (ROSS, 2005, p. 121), razão por que avançamos a uma breve exposição hermenêutica dos elementos psicológicos que envolvem a aplicação do direito enquanto jurisprudência. 3 A JURISPRUDÊNCIA NA TEORIA HERMENÊUTICA Seguimos a presente questão: de que forma a hermenêutica de Gadamer dialoga com a Teoria do Direito? É conhecida a cruzada da teoria hermenêutica contra os padrões metodológicos da ciência moderna aplicado à tradição das humaniora. Partimos da crítica hermenêutica para, neste sentido, propor a complementação do conceito de jurisprudência a partir de elementos psicológicos que acompanham a aplicação lógica do direito. Destacamos de Verdade e Método que a jurisprudência, Amazônia em Foco, Castanhal, v. 5, n.8, p. 68-88, jan./jul., 2016 | | 76 Notas sobre Gadamer: teoria do Direito, jurisprudência e hermenêutica assim como a hermenêutica jurídica, ocupa nas humaniora uma significação paradigmática uma vez que o propósito ético da interpretação justa – uma tarefa que extravasa a ciência do direito – encontra na jurisprudência o solo concreto que exemplifica a atuação normativa das humaniora em todos os planos da ética. Através da complementação hermenêutica dos elementos implícitos que acompanham a atuação da jurisprudência, a moldura da aplicação lógica é estendida para sua autocompreensão. A isso devemos acrescentar uma necessária revalorização da retórica. Neste contexto a retórica é o meio de formação em que a ciência do direito encontra condições para compreender conceitos que operam como base de sustentação de um discurso fundamentado. Gadamer considera que, com boas razões, o conhecimento do direito continua a chamar-se de “jurisprudência”, ou seja, literalmente, a “prudência jurídica” que recorda o legado da filosofia prática, tradição em que a prudentia é a virtude suprema de uma racionalidade prática comum (GADAMER 2002, p. 360). Devemos no entanto considerar que o fato mesmo de a expressão “ciência do direito” ter prevalecido no final do século XIX indica para Gadamer a perda da peculiaridade metodológica desse saber e de sua determinação no conceito de prática concebido pelas ciências. É possível que a formação retórica seja compreendida na teoria hermenêutica do humanismo em função do mesmo propósito que conduz a primeira parte de Verdade e Método: a superação da dimensão estética. Portanto, para além de sua dimensão estetizada a retórica deve assumir um propósito contemporâneo; deve por seu medium certificar a monologia científica “em um nível prático, social e político” (GADAMER 2002, p. 569). Isto significa constituir acessos outros para o diálogo entre a ciência teórica e os elementos pré-científicos do humanismo. Gadamer argumenta que “é possível que o conceito científico das ciências do espírito dependa mais do tato do que de sua metodologia” (GADAMER 2008, p. 42). A formação retórica atuaria no sentido da compreensão da sensibilidade que percebe situações constituídas no nível pré-lógico. Por isso trata não apenas dos juízos subjetivos de valor, mas do que beira o inexprimível, isto é, o limite não recepcionado pelo método da ciência. Sem a referência a princípios universais o tato acompanha a formação retórica como uma espécie de contorno; um saber por natureza prudente e periférico sobre (περι) algo que busca acomodação. Em Gadamer o contorno “não significa desviar a vista de Amazônia em Foco, Castanhal, v. 5, n.8, p. 68-88, jan./jul., 2016 | | 77 AROUCK, João Henrique Vasconcelos algo, mas atentar para não esbarrar nele e assim poder passar ao lado” (GADAMER 2008, p. 52). Como fenômeno da linguagem o tato é também uma medida de distância; a distância em que contornamos um objeto e o compreendemos por sua verossimilhança e não apenas sob o esclarecimento de sua verdade teórica. Como fundamento prévio dos conteúdos de sentido, a verossimilhança encontra condições metódicas na formação retórico-humanista da pesquisa filológica. Vico, em especial, encontrou neste ideal de formação a condição teórica para o trato do senso comum enquanto verdade edificante. Vico, no entanto, não prioriza a constituição lógica do juízo, mas os padrões alternativos que desvelam através da linguagem a determinação do senso comum na vida civil dos povos. Neste sentido, é o fundamento do senso comum e nem tanto a estrutura lógica da aplicação da legalidade que efetivamente padronizam as formas de julgamento sobre questões cruciais como o justo e o injusto; o factível e o infactível. Contra o cartesianismo do círculo jansenista, Vico recorda o senso comum dos antigos romanos em uma Nápoles orgulhosa de suas tradições. Ao se opor à “art de penser” do cartesianismo a formação retóricohumanista de Vico confere vitalidade às criações humanas que resultam no legado que institui a comunidade. O juízo do senso comum corresponde, portanto, ao juízo correto, isto é, ao conjunto de pontos de vistas sadios que encontram uma capacidade de julgamento. Em razão do senso comum a todos pode-se exigir a solidariedade ético-civil (GADAMER 2008, p. 71). Como fenômeno da linguagem o tato tem por conteúdo a verossimilhança. Por isso se encontra no âmbito da Tópica. Na tradição de Aristóteles a Tópica consiste na arte que elenca argumentos geralmente aceitos e reconhecidos em sua conveniência. Na Ciência Nova, por sua vez, Vico define a Tópica como “faculdade em tornar as mentes engenhosas, assim como a crítica torna as mentes exatas” (VICO 1988, p. 231). Com efeito, desde sua primeira dissertação (De nostri temporis studiorum ratione) a retórica é revalorizada por Vico contra a pretensão monopolizante do referencial cartesiano que denominava como “crítica”. Em Gadamer a defesa da retórica significa não apenas um meio de formação do senso comum, mas algo que a hermenêutica compartilha em seus princípios: a função do argumento persuasivo como aptidão própria da hermenêutica. Vico encontra no método tópico a possibilidade de que um estado de coisas seja analisado sob pontos de vistas plurais Amazônia em Foco, Castanhal, v. 5, n.8, p. 68-88, jan./jul., 2016 | | 78 Notas sobre Gadamer: teoria do Direito, jurisprudência e hermenêutica e divergentes, mas que partindo de uma verdade geralmente admitida (primum verum) deve distinguir-se de exames fantasiosos (VIEHWEG 1986, p. 32). Para a teoria hermenêutica a retórica humanista é relevante por destacar o valor próprio da copia; da riqueza dos pontos de vistas em que o apelo dos afetos não implica o abandono da razão (GADAMER 2002, p. 318). O antagonismo de Vico à crítica cartesiana tem por princípio a natureza do saber que é o senso comum; um saber verdadeiro que não se baseia nas razões produzidas pelo método, mas que precede à razão como algo plausível (verisimile). Uma vez que precede as evidências teóricas, o conceito de senso comum em Vico tem suas bases plantadas nas tradições civis que sob o conceito romano adquirem a tonalidade estoica da Antiguidade. Disto podemos inferir duas consequências importantes para a teoria hermenêutica: 1) o senso comum tem como primado epistemológico o mundo da história: o humanismo em suas próprias tradições. 2) a formação retórico-humanista é mais do que um método de leitura dos textos clássicos: é o sentido que trabalha institivamente com pontos de vistas que contornam a evidência do método. A tradição retórico-humanista tem como vantagem a acessibilidade de todos os que se encontram em uma mesma ordenação social histórica. É sob tal pressuposto que o conceito de tato passa a operar sua função epistemológica complementadora. No mundo social histórico é importante antes destacar o resgate realizado por Vico sobre os elementos fundamentais da jurisprudência. Trata-se aqui da natureza comum dos pontos de vistas utilizadas na ciência do direito a partir do ideal da prudência e da eloquência estoica recuperada da Antiguidade. É o caso, por exemplo, da razão pela qual os latinos derivam ius de Ious referido a Júpiter como razão de piedade (VICO 1988, p. 119). Da mesma forma, do coletor de águas (aquilex) provém a Lex entendida posteriormente como o parlamento público que solenizava testamentos na presença dos cidadãos (VICO 1988, p. 155). A conveniência que justifica que no direito civil romano chamem-se autores (auctor) àqueles que tem razão de direito (proprius) decorre do significado primitivo da autoridade (auctoritas) como aquele que se encontra (suus ipsius) na posse da propriedade (VICO 1988, p. 186). A distinção entre nómos que no sentido grego é a norma da lei com relação ao nomen que segundo o direito civil romano significava o direito ao uso de um sobrenome (qui possunt nomine ciere patriem) recorda, segundo Tito Lívio, as lutas da plebe diante dos privilégios civis Amazônia em Foco, Castanhal, v. 5, n.8, p. 68-88, jan./jul., 2016 | | 79 AROUCK, João Henrique Vasconcelos da aristocracia (VICO 1988, p. 206). O conceito da jurisprudência também encontra no discernimento filológico de Vico uma autocompreensão mitológica da jurisprudência. Três conceitos são destacados: a 1) jurisprudência mística, formada pela poesia teológica e concentrada na interpretação dos mistérios oraculares. Sobre o caráter hermético das leis arcaicas, Vico rememora o conceito arcano perdido ao tempo em que as leis eram redigidas em línguas vulgares (VICO 1988, p. 160). A 2) jurisprudência heroica, formada na prudência de Ulisses e notabilizada por um uso escrupulosíssimo das palavras de onde se origina a razão de estado (aequitas civilis) e o desígnio da lei. Vico faz alusão ao início das repúblicas formadas por cidadãos heroicos, tempo em que se dá a demarcação do domínio civil e das consequentes potestades aristocráticas (VICO 1988, p. 124). Por fim, a 3) jurisprudência natural que tem por fim o bem particular de cada um (aequum bonum). A equidade natural consiste em uma prática de sabedoria sobre questões de utilidade: uma ciência de fazer uso das coisas segundo o uso que têm no estado natural (VICO 1988, p. 169). Diante da tendência humana em conservar a memória das leis e das ordenações, antagoniza, por outro lado, a máxima natural da liberdade e dos costumes nativos (VICO, 1988, p. 156), algo que retrata o direito das antigas províncias romanas que resistiam ao edito do Pretor romano (VICO 1988, p. 132). Em geral, a Ciência Nova tem por objetivo configurar uma doutrina do arbítrio humano. Gadamer reestrutura essa tradição com o ideal de “formação para o humano” desenvolvido pela filosofia idealista do século XIX (GADAMER 2008, p. 44). Refletindo sobre o sentimento universal da formação prática e da reconciliação reminiscente da memória no pensamento Gadamer projeta na teoria hermenêutica a formação substancial compreendida no conjunto dos idiomas, dos costumes e das instituições de um povo. Vico já acreditava haver um senso comum do gênero humano que serviria como critério pedagógico do direito natural (VICO 1988, p. 141). A ideia de acordo, inerente ao senso comum, permanece de na história efeitual do conceito. Na Inglaterra e nos demais países românicos o conceito de senso comum reflete a qualidade filosófica do cidadão. Na Alemanha o senso comum transcende o lema crítico da cidadania para se tornar uma faculdade filosófica figurada ao lado da consciência da ética e do gosto (GADAMER 2008, p. 64). Essa divergência de concepções aponta para uma ligação estreita entre o senso comum e o conceito de juízo. Por isso, a compreensão comum é caracterizada Amazônia em Foco, Castanhal, v. 5, n.8, p. 68-88, jan./jul., 2016 | | 80 Notas sobre Gadamer: teoria do Direito, jurisprudência e hermenêutica definitivamente pelo juízo. A introdução da palavra “juízo” no século XVIII reproduz um conceito mais aprofundado para o termo iudicium de modo que a faculdade de julgar se torna uma virtude; uma virtude filosófica que problematiza a demonstração lógica do juízo em sua perplexidade. Isto em razão da falta de um princípio geral capaz de guiar a aplicação (GADAMER 2008, p. 69). Um dos legados reconhecidos Aufklärung é, por conseguinte, a inclusão do senso comum na faculdade do juízo e do gosto, o que implica, de outra parte, em um certo afastamento do sentido romano da sensus communis. Ao superar a dimensão estética – algo que aliás recorda o antagonismo de Aristóteles em relação à metafísica platônica do belo – o conceito de gosto encontra na Aufklärung sua dimensão moral. É o que possibilita que ao conceito aplicativo da jurisprudência se acrescente o iudicium sobre o bom e o mau gosto. No entanto, assim o como o tato, o gosto não é demonstrável; exigindo por isso mesmo o cultivo dos sentidos que combinam-se para se ajustarem ao sentido coletivo do gosto. Como capacidade espiritual do discernimento, o juízo do gosto se eleva dos interesses e preferências privadas para alçar um sentido unânime. Hegel reflete este processo como elevação do espírito de cobiça em direção a um gênero de universalidade. Como conceito fenomenológico o gosto não é uma teoria do objeto, mas um uma tendência ajustada a um ideal de concordância. Por isso Gadamer relaciona o gosto à abrangência dos costumes (GADAMER 2008, p. 79). Por outro lado, deve-se considerar que o conceito de costumes nunca está dado como um todo, nem determinado de maneira unívoca, razão que destaca a necessidade da problematização filosófica do juízo. Na Alemanha, a reflexão transcendental sobre gosto se deve às leituras de Balthasar Gracian, referidas nas obras de F. Nietzsche. Conforme Balthasar Gracian a história do gosto indica nada mais que a história da formação cultural. O bom gosto equivale ao conceito da boa sociedade e ao compartilhamento de julgamentos comuns. Por isso, todas as decisões éticas exigem uma certa consciência sobre o gosto. O conceito de tato opera como o meio para redimensionar a disciplina da razão em sua conclusão autoconsciente. Assim, concluímos com Gadamer que o gosto não é a base do juízo ético, mas “por certo seu mais elevado complemento” (GADAMER 2008, p. 80). Tratase do ideal supremo da jurisprudência como conceito paradigmático das ciências do espírito: a possibilidade em compreender-se na elevação do bem, aceitando o bom e Amazônia em Foco, Castanhal, v. 5, n.8, p. 68-88, jan./jul., 2016 | | 81 AROUCK, João Henrique Vasconcelos repudiando o mau da mesma forma que é capaz de escolher ou repudiar um alimento. Supondo o ideal de formação como meio que assimila, integra, e aperfeiçoa aptidões e faculdades; a consciência ética do gosto contorna a formação da consciência científica sustentando um juízo comum. A subsunção do particular ao universal para reconhecer a regra do caso deve, portanto, se deparar com sua perplexidade. Deve sempre questionar os princípios que guiam a aplicação, o processo que Hegel define como a reconciliação do espírito consigo mesmo. 4 O JUÍZO NA PERSPECTIVA EMPÍRICA Considerando o tema da aplicação do Direito, ter juízo significa reconhecer em um caso a exigência da aplicação de uma ou mais regras. Subsumir corretamente é uma atividade que caracteriza o juízo. No Direito, especialmente, o juízo é responsável pela aplicação de um conhecimento: a ciência jurídica que opera com regras tal como os lógicos operam com “universais” diante de “particulares”. Logo percebemos, todavia, que o juízo nos revela problemas hermenêuticos quanto aos princípios que orientam a aplicação das regras diante de um caso. Em geral, pode-se dizer as divergências entre juristas ocorrem porque a escolha das regras a serem aplicadas; aquilo que cada jurista “julga” como a exigência do caso (aquilo que o caso pede) dependem, ao cabo, do arbítrio de cada jurista. Ao tratar sobre a interpretação, Kelsen (2011) compreende o arbítrio como a função voluntária do direito: um critério inexplicável que nos permite escolher entre uma regra e não outra regra que no entender de outro jurista poderia igualmente ser aplicada. A regra escolhida por um jurista não deve pressupor uma validade absoluta, pois determinada regra pode, em alguns casos, ser impugnada diante de um entendimento diferente proposto por outro jurista ao entender que a regra aplicada pelo primeiro não é adequada ao caso da maneira como o percebe num determinado momento. Escolher entre regras e aplicálas ao caso, definindo o direito para as partes (suum cuique atribuere) intriga-nos e nos impele a refletir atualmente sobre temas variados, desde a abrangência da subjetividade no Direito – um tema da filosofia e da hermenêutica jurídica –, passando pela racionalidade argumentativa de suas decisões; pela necessidade de sistemas recursais, sobre os aspectos construtivos das decisões colegiadas, e outros tantos Amazônia em Foco, Castanhal, v. 5, n.8, p. 68-88, jan./jul., 2016 | | 82 Notas sobre Gadamer: teoria do Direito, jurisprudência e hermenêutica temas facilmente encampados por aquilo que até então concebemos como teoria do direito. De outro lado, se debatermos sobre o estatuto metodológico da ciência jurídica, podemos verificar dois caminhos até abertos para fazer segui-la na história de sua autofundamentação. Assim, poderia a ciência jurídica tanto seguir avolumando-se em uma perspectiva meramente factual e ocasional quanto descobrir um elemento funcional capaz de assegurar aplicações de regras as mais corretas possíveis ou as regras mais razoáveis diante das circunstâncias mais exigentes. Tratando da problemática do juízo e suas consequências, Gadamer (2014, p. 69) observa que “o juízo se encontra sempre em uma situação de perplexidade fundamental devido à falta de um princípio que poderia guiar sua aplicação”. Se fecharmos o foco sobre a aplicação do direito – a problematização do juízo é um meio para essa discussão –, teremos, no primeiro plano, o terreno da hermenêutica jurídica e, em seguida, o solo fértil da jurisprudência como o princípio de racionalidade capaz de reunir as ocasiões mais importantes da teoria e da prática. A anotação de Gadamer demonstra que não poderíamos estabelecer regras sobre aplicação de regras de maneira genérica e universal porque as exigências de cada caso nos impelem a juízos diferentes e não previstos pelo fictício “manual” de aplicação de regras sobre regras. Podemos, no entanto, pensar sobre critérios que possam, mesmo que transitoriamente, definir um princípio capaz de guiar o juízo como aplicação da ciência jurídica e, consequentemente, a escolha de regras adequadas segundo as exigências de cada caso. Ao tratar sobre os conceitos básicos do humanismo em Verdade e Método, Gadamer (2014) nos apresenta três referenciais teóricos que podem abrir horizontes variados de pesquisa sobre o tema do juízo e a aplicação do Direito. Uma das mais importantes é a do senso comum empírico. Essa tradição reforça a ideia de que o juízo no Direito é, acima de tudo, um julgamento moral. Aqui o juízo não caracteriza não apenas a sã compreensão de um indivíduo hábil em aplicar conhecimentos adquiridos, mas a compreensão de um “senso comum” significativo para a sociedade e para o Estado. Por trazer uma atribuição moral, o juízo pode não seguir necessariamente a operação lógica dos princípios universais deslocados, contudo, da vida comunitária. O aspecto distintivo dessa tradição é que nela o juízo tende a agregar sentimentos relativos a gostar ou Amazônia em Foco, Castanhal, v. 5, n.8, p. 68-88, jan./jul., 2016 | | 83 AROUCK, João Henrique Vasconcelos não gostar de algo que ao obterem significação social acabam por se tornar critérios coletivos para o arbitramento que obteria, com isso, obteria a validade dos critérios do bom gosto e do mau gosto. Logo, também exercemos o juízo, por exemplo, quando repudiamos algo considerado pela sociedade como de manifesto de mau gosto. A tradição que aludimos remonta à filosofia escocesa do século XVII notabilizada pelas cartas de Shaftesbury. Daí extraímos a ênfase geralmente conferida ao sentimento moral nas questões de juízo, pois seria esse o sentimento capaz de assegurar instituições de senso comum, instituindo o “sentido” de uma comunidade como o critério formador: aquele que institui o juízo. David Hume sucessor de Shaftesbury na filosofia escocesa enfatizaria de sua parte o aspecto empírico do julgamento moral, revelando uma ligação ainda mais estreita entre o conceito de senso comum e o conceito de juízo. A influência de Shaftesbury é marcante no século XVIII – impacto que alcançaria a filosofia na Alemanha – talvez pela renúncia que impusera aos dispositivos melancólicos do direito natural para realçar, de outro lado, o embasamento moral de onde surgem as formas mais desenvolvidas de solidariedade. Mais do que uma virtude do trato social, o senso comum, para ser instituído como sentido da comunidade, também precisa de conceitos humanísticos como o “bom humor”. Através do elemento moral da espirituosidade Gadamer (2015, p.62) encontra em Shaftesbury o ideal de humanidade (humanitas) que agradavam aos estoicos. Seria esse o ideal do varão seguro que não age apenas por protocolos formais, mas por um acordo tácito de solidariedade e bons tratos. Logo, diferentemente da intervenção coerciva dos maus humores, o bom humor apresentaria um juízo desenvolvido porque é aquele capaz de reatar a solidariedade através da profunda confiança que pode despertar em um interlocutor. O humor também revela uma aptidão moral porque aquele que possui tais qualidades geralmente é capaz de criar laços próximos à amizade reforçando, ao cabo, a coesão social. Essa abordagem inovadora das virtudes do bom gosto colocaria o bom senso como um assunto pertinente ao campo da moral e não apenas à análise compreensiva dos costumes. O senso comum configura a hipótese de que existem, sim, condições originárias para o fenômeno que institui comunidade: “Shaftesbury tem em mente a virtude espiritual e social da simpatia, sobre a qual edificou não somente a moral mas toda uma metafísica estética. Seus Amazônia em Foco, Castanhal, v. 5, n.8, p. 68-88, jan./jul., 2016 | | 84 Notas sobre Gadamer: teoria do Direito, jurisprudência e hermenêutica sucessores, principalmente Hutcheson e Hume, aperfeiçoaram seus estímulos para uma doutrina do moral sense, que mais tarde iria servir como pano de fundo à ética kantiana [...] O conceito de common sense ocupa uma função realmente central e sistemática na filosofia dos escoceses, que polemizam tanto contra a metafísica quanto contra sua dissolução cética e edificam seu novo sistema sobre juízos originários e naturais do common sense (Thomas Reid)” (GADAMER 2014, p. 63). Daí adiante, uma pesquisa sobre o desempenho cognitivo dos sentidos sociais teria como finalidade demonstrar que o senso comum é construído por aptidões que fazem justiça à vida da sociedade, embora o apreço dessas significações não estejam em geral abarcadas pelos dispositivos dogmáticos do direito natural. Essas aptidões, reduzidas, todas, no termo “bom senso”, funcionam, assim, como guias que tanto corrigem os exageros da especulação filosófica quanto servem para orientar os afazeres cotidianos particularmente quando as faculdades da razão natural parecem não corresponder às suas bases humanísticas. Relaciona-se, fundamentalmente, com o que podemos depurar do sentido clássico e do sobretom estoico conferido à noção de cortesia. Anota Gadamer que na França, o país do bom senso, Henri Bergson se utilizava do mesmo conceito para criticar as abstrações da linguagem e do pensamento jurídico. Podemos então concluir que o bom senso constitui, na verdade, a base sobre a qual formamos o tato da verdade prática, algo que não é menos um dom do que um ajustamento de princípios gerais à realidade apresentada por meio de situações sempre novas. É este também o motivo porque podemos crer que o bom senso existe como juízo formado sempre para o proveito da sociedade. Em uma discussão metodológica, o bom senso compreende aptidões necessárias para atenuar os excessos das leis sociais quando prefiguradas em dogmas. No Direito, sob a influência kantiana do positivismo como ciência normativa, a questão do juízo vinculou-se a aptidões exclusivamente formais (em prejuízo das ilações sobre o sentido histórico da validade normativa ou sobre a compreensão dos padrões morais externos à formação do juízo). Nesse diapasão, o juízo caracterizaria nada mais do que uma operação de faculdades construtivas aptas a abstrair um contexto normas com valor em si, embora esse conjunto de normas compreendam, antes, uma complexa interpretação sobre circunstâncias e do que estas exigem como matéria decisória ou escolhas a referendar pelo ato do juízo. Desde então, o juízo normativo aventa como objeto desde uma resposta suficiente para sanar uma Amazônia em Foco, Castanhal, v. 5, n.8, p. 68-88, jan./jul., 2016 | | 85 AROUCK, João Henrique Vasconcelos “questão de direito” até a consideração da única forma disponível ou, senão, ao menos, da forma mais razoável para delimitar uma série de padrões éticos diante do incontornável império da realidade desprovida de sua forma jurídica. Por isso a aplicação do conhecimento adquirido da ciência jurídica – o conceito rigoroso de juízo – encontrar-se frequentemente justificada por critérios fundamentados no próprio sistema jurídico: um juízo é correto apenas se corresponde ao Direito abstraído formalmente pelo juízo. Mas o que explica, em outro sentido, a pluralidade de juízos possíveis sobre um mesmo objeto ou caso concreto? Por que os juristas tendem a divergir em suas repostas sobre o padrão do que parece como o mais correto? Poderíamos definir critérios de certeza sobre a decisão correta apenas retrocedendo ao arcabouço normativo ordem jurídica? Como justificar a delimitação mais ou menos arbitrárias dos fatos que servirão de suporte à aplicação do juízo? Diante dessas questões, o conceito do juízo deve compreender uma tarefa mais abrangente: é preciso saber, antes de tudo, dos conteúdos que de fato estamos utilizando para escolher entre alternativas; entre um conjunto de regras que se apresentam, na compreensão do juízo, com a mesma posição de validade frente a um caso que exige uma solução adequada inclusive em relação à previsão racional das consequências (do que uma ou outra decisão poderia provocar como coisa julgada). 5 CONCLUSÃO 1) Precisamos de sucessivos referenciais teóricos para demarcar a jurisprudência em uma tradição coerente. A “teoria do direito” e os “conceitos básicos do humanismo” são meros exemplos de um vasto campo exploratório que a jurisprudência pode tomar como base. 2) A hermenêutica é uma metodologia do saber teórico. Sem que tenhamos a precipitação de tê-la arbitrariamente como um “paradigma”, é o referencial que ainda serve para organizar discursos condicionados a tradições “reconhecíveis” em uma modalidade (geralmente uma modalidade retórica do discurso, como o texto que pertenceria a um determinado gênero literário). Amazônia em Foco, Castanhal, v. 5, n.8, p. 68-88, jan./jul., 2016 | | 86 Notas sobre Gadamer: teoria do Direito, jurisprudência e hermenêutica 3) Reconhecemos uma tradição pela história de seus efeitos em teorias consecutivas. A história efeitual pode responder a algumas dificuldades quando é capaz de prover um feedback sobre algo que já possui uma resposta ou um repertório de soluções melhores do que a encontrada no instante. 4) A jurisprudência não é ao todo uma linguagem de padrões. Mas isso não a impede de apresentar nexos implícitos passíveis de sistematização, algo que pode ser realizado numa abordagem sistêmica. 5) Sendo um saber da “concreção no instante”, os sistemas do direito construídos pela fonte da “jurisprudência” tendem a apresentar uma margem de erro (imprevisibilidade). Daí porque a tarefa hermenêutica se limite a explicar apenas a história dos conceitos que são preservados ou modificados pela retórica judicial que forma a base da jurisprudência como “texto”. 6) Na verdade, a hermenêutica é uma metodologia do saber adquirido e do arcabouço teórico. Isso explica a recusa de Gadamer ao empirismo e ao utilitarismo de um modo geral. Como princípio organizador dos bens culturais, a hermenêutica é filosófica porque preserva o que foi erigido pela filosofia continental como experiência da arte de um modo geral (p.ex. a “função literária” do Direito como “jurisdicismo”). 7) É possível que a jurisprudência seja, enfim, uma arte sobre o que não se deve ou não se pode dizer ou esclarecer pela ciência. A jurisprudência recai, assim, no tipo de saber que a retórica preserva e que lhe confere uma racionalidade distinta quando comparada à “ciência monológica” do método moderno. REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. – 16ª ed. –. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. – 7ª ed. – Coimbra: Almedina, 2003. HART, H. L.A. O conceito de direito. Trad. A. Ribeiro Mendes. – 5ª ed. – Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. 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