NOTAS SOBRE GADAMER: TEORIA DO DIREITO

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NOTAS SOBRE GADAMER: TEORIA DO DIREITO, JURISPRUDÊNCIA E
HERMENÊUTICA
João Henrique Vasconcelos Arouck1 (ESTÁCIO/FCAT)
RESUMO: No presente trabalho seguimos três referenciais teóricos para responder à
pergunta “o que é jurisprudência”. Na teoria pura de Kelsen delimitamos a
jurisprudência como atividade ou aplicação de um juízo normativo por parte do
intérprete. Em seguida, no realismo de Ross, notamos que, pelo menos sob seus
aspectos empíricos, a jurisprudência é um fenômeno coletivo uma vez que vinculada
à utilização de precedentes judiciais. Até então, a teoria que a autoriza o uso
“prudencial” de precedentes, como será exposto, é a doutrina do stare decisis. O
cotejo das perspectivas de Kelsen e Ross, a primeira de caráter teórico-transcendental
e a última de consideração realista e empírica, exigiu uma abordagem mais
abrangente da jurisprudência de modo que pudéssemos considerá-la como o
elemento prático do pensamento jurídico: o elemento que resiste ao modelo
epistemológico da ciência jurídica. Vimos daí que, enquanto a ciência enfatiza o
método, a jurisprudência compreende seu discurso a partir da retórica. Isso explica,
ademais, porque a jurisprudência apresenta uma representação mais afinada com o
que o senso comum assume como natureza ou distinção específica do Direito na
prática social das disciplinas humanísticas. Daí porque, com o auxílio do conceito de
“tradição” revisitamos alguns dos elementos formadores do pensamento jurídico sob
a ótica dos “conceitos básicos” em Gadamer a partir da leitura da “ciência nova” de
Vico.
PALAVRAS-CHAVES: Gadamer. Interpretação. Teoria do Direito. Jurisprudência.
Hermenêutica
ABSTRACT: In this work we follow three theoretical frameworks to answer the
question "what is law." In pure theory of Kelsen delimit jurisprudence as activity or
application of a normative judgment on the part of the interpreter. Then in Ross realism,
we note that, at least under its empirical aspects, the case is a collective phenomenon
as linked to the use of judicial precedents. Until then, the theory that authorizes the
use of "prudential" precedent, as will be explained, is the doctrine of stare decisis. The
comparison of the perspectives of Kelsen and Ross, the first theoretical and
transcendental character and the last realistic and empirical consideration, required a
more comprehensive approach to jurisprudence so that we could regard it as the
practical element of legal thinking: the element resists the epistemological model of
legal science. We saw then that while science emphasizes the method, the case
comprises his speech from rhetoric prejudices. This explains, in addition, because the
law has a more refined representation with what common sense takes as nature or
1
Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará. Professor da ESTÁCIO/FCAT.
Amazônia em Foco, Castanhal, v. 5, n.8, p. 68-88, jan./jul., 2016 | |
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Notas sobre Gadamer: teoria do Direito, jurisprudência e hermenêutica
specific distinction of law in social practice of humanistic disciplines. That is why, with
the help of the concept of "tradition" revisit some of the elements that form of legal
thinking from the perspective of the "basics" in Gadamer from reading the "new
science" of Vico.
KEYWORDS: Gadamer. Interpretation. Theory of Law. Jurisprudence. Hermeneutics.
1 INTRODUÇÃO
De um modo geral, a doutrina do Civil Law concebe a jurisprudência como uma
fonte do direito revelado por uma sucessão harmônica de decisões reconhecidas
como ajustadas às peculiaridades de um caso. Em teorias normativas, como a teoria
pura, a jurisprudência, mais do que um elemento de integração, caracteriza uma
“função constitutiva” molduras seriadas o suficiente para fechar o campo de aplicação
de normas abertas intencionalmente pelo “escalão constitucional” que assim poderá
prover a sua própria atualização pela seriação escalonada da interpretação (KELSEN,
2009). Nesse ato de preenchimento operam fatores de concreção que, relativos à
constituição do caso (da mihi factum, dabo tibi jus) influem diretamente nas molduras
da interpretação. Se é verdade que a norma jurídica só pode ser um resultado da
interpretação/aplicação do direito, isso significa que uma norma jurídica comportaria
uma “diferença” ou um “excedente” em relação às hipóteses reveladas pela exegese
pueril de um texto jurídico. Concebemos nesse ponto a primeira consequência de
uma aproximação progressiva que fazemos entre hermenêutica e jurisprudência.
Partimos do princípio que a constituição do “suporte fático” é o nó de toda a discussão;
o elemento que desestabiliza a pretensão metodológica sobre a interpretação jurídica,
questionando, na mesma medida, a aplicação do arcabouço teórico como “verdade”
ou “dogmática jurídica”.
Diante da imprevisibilidade dos elementos que surgem na “concreção no
instante” a jurisprudência nada mais seria do que uma função pretoriana, uma
reabilitação do jus singulare, uma “facticidade” e um saber-para-si. Se imperscrutável
à pretensão sistemática da ciência jurídica a realização decisória se tornaria um tema
da política judiciária. Disputando sua pretensão de validade com o extremo oposto da
exegese (ratio legis), a jurisprudência já não corresponderia ao discurso da razão
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prática; seria tão somente uma arte liberal ligada à implacável regra de
reconhecimento que liga o direito ao fato da jurisdição: a base do funcionamento do
direito representado como efeito de normalização (BOURDIEU, 2012). O liame entre
hermenêutica e jurisprudência se estende à dogmática e teoria do direito quando
ousamos questionar o modo como as consequências jurídicas são demonstradas e
justificadas em uma ratio decidendi. É este, ademais, o plano de eficácia que conforma
o conceito de direito como um conceito da jurisprudência. Nesse quesito, a
perspectiva normativa (Kelsen) e a social-empírica (Ross) disputam critérios de
validade que servirão como base para possíveis extensões no tocante aos critérios de
validade para o cálculo ou formato das consequências jurídicas. Se para Kelsen
(2009) o critério universal de validade do direito é uma norma hipotética fundamental
(“a constituição deve ser observada”), para Ross (2011) a validade é empiricamente
mensurável por uma certa “consciência jurídica popular” ou pelo respeito e aprovação
que uma “norma” sugere à maioria das pessoas. Na perspectiva realista uma norma
se torna propriamente “vigente” se além de sua validade empírica “há fundamentos
suficientes para supor que será aceita pelos tribunais como base para suas decisões”
(ROSS 2011, p. 101).
Uma
segunda
consequência da
aproximação
entre
hermenêutica
e
jurisprudência é a compreensão do discurso prático geral que está na base da
dogmática jurídica e nos propósitos descritivos da teoria do direito. Hermenêutica e
jurisprudência operam conjuntamente porque tendem a produzir um mesmo conceito
de interpretação. A hipótese se comprova quando ambas admitem e partem de um
mesmo problema, algo geralmente ligado à diferença encontrada entre a generalidade
da lei e a matéria concreta. A finalidade de ambas é o ponto de integração da
experiência jurídica no plano da realização decisória cujo espectro engloba desde o
modelo da escolha racional até a justificação consequencialista da razão prática
adotada na base do funcionamento do direito. A matéria visada nessa aproximação é
sempre a ideia base do direito, a igualdade jurídica sob um propósito capaz de
questionar os automatismos da subtilitas applicandi. Até aqui vemos uma média
interessante resulta da diferença relativa que há entre hermenêutica e jurisprudência.
Partimos do ponto em que a hermenêutica jurídica é revisitada por paradigmas
próximos ao discurso da filosofia prática (Gadamer). A hermenêutica revisitada admite
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os excessos racionalistas da escola da exegese e da fundação utilitarista das escolhas
racionais não apenas em sentido histórico ou como crítica do método moderno, mas
porque ainda enfrenta o padrão unilateral das fontes autorizadas e compreendidas
numa teoria essencialmente objetiva. É tal a razão porque na média das opiniões o
conceito de jurisprudência venha a ser concebido em uma teoria das fontes. Por
jurisprudência entende-se daí o conjunto de padrões de reconhecimento do “direito”
judicial em decidir conforme a construção autorreferente de suas próprias decisões.
Isto significa o retorno da jurisprudência à lógica do princípio de autoridade cujo
princípio de identidade é o monopólio estatal, no caso, o direito dos tribunais em
reconhecer e fixar regras de reconhecimento para a aplicação do direito que se torna,
no âmbito de um “direito judiciário”, um procedimento cumprido através de orientações
objetivas. A teoria objetiva, que reifica padrões e orienta o conteúdo a ser aplicado na
realização decisória, tem como causa a uniformização da interpretação ser realizada
sobre a matéria legal. No trânsito entre compreensão e aplicação, a interpretação é o
intermédio entre a hermenêutica e a jurisprudência. Ao tempo em que a interpretação
se desloca para o cumprimento das regras de reconhecimento (e já não propriamente
da tarefa pueril em delimitar hipóteses analíticas sobre um texto jurídico) uma reflexão
intitulada como “hermenêutica” é invocada unicamente para satisfazer a teoria objetiva
que separa a base do funcionamento do direito de especulações que coloquem em
risco as regras de reconhecimento e os algoritmos decisórios.
Ainda assim, uma hermenêutica revisitada não sucede necessariamente em
uma doutrina da desconfiança. Levada dessa forma a tarefa do tradutor também
aprofundaria o risco da facticidade e do retorno à lógica do imprevisível. Como função
crítica a hermenêutica poderia conceber a jurisdição como um estamento relativo aos
questionamentos que colocam em discussão o “sujeito” ou as condições empíricas da
interpretação. Talvez não seja esse propriamente o objetivo da hermenêutica, pelo
menos se considerada como intérprete e tradutor da razão prática. É preciso dizer
que diante disso o approach entre os discursos hermenêutico e jurisprudencial tem
como propósito reconhecer a própria regra de reconhecimento. Aprecia-se nesse
reconhecimento o padrão comum da decisão judicial correta que convalida e autoriza
o uso arbitrário da teoria objetiva das fontes. Em Hart (2007, p. 320) vemos que
reconhecer significa identificar as fontes do direito de forma autorizada: é a regra que
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“pode fornecer teses relacionados não com o conteúdo factual da lei e sim com a sua
conformidade a valores ou com princípios morais essenciais”. Passaríamos, neste
ponto, para o domínio da validade, compreendendo, conseguinte, que o âmbito da
vigência é um domínio factual, ou seja, uma legalidade exterior e não
necessariamente um imperativo moral essencial.
A busca criteriosa de Hart (2007) por interpretações cognoscitivas que
especifiquem os critérios de validade jurídica em conflito com afirmações internas de
validade nos parecem um fio condutor para estabelecer um conceito hermenêutico
para a jurisprudência. O liame progride questionando o critério de validade utilizado
para escolher entre possibilidades para definir o standard ou parâmetro de aplicação
de regras de julgamento. A hermenêutica tem como meta conferir hipóteses
construtivas sobre a regra primária que está efetivamente na base de funcionamento
do direito. Uma teoria da experiência hermenêutica como jurisprudência acredita, por
isso, que mesmo os prejuízos teóricos dominantes devem ser acordados de alguma
forma com o elemento básico da moral partilhada de um grupo social – é este o ponto
de partida e chegada de um provável círculo hermenêutico: a busca por “cláusulas”
corretas construídas como o resultado das decisões complementárias ou
aperfeiçoadoras do direito (GADAMER, 2002).
Sendo a medida determinada entre a “base arbitrária” do funcionamento do
direito e o fundamentalismo de valores encontramos na proposta antidogmática da
fenomenologia uma referência mais razoável do os opostos extremos. O
reconhecimento progressivo de formas imperativas da obrigação e do dever social em
meio às regras secundárias de alteração e julgamento (teoria objetiva da
jurisprudência) admite que padrões críticos comuns, por exemplo, são mais
interessantes para a compreensão da medida adequada do sistema jurídico (em que
a regra de julgamento está no centro) do que uma refundação dogmática de valores
fundamentais ou de uma “jurisprudência política, disfarçada na necessidade de
mediação e integração os valores presentes na ordem constitucional” (CANOTILHO
2003, p. 1197). Ao invés da “base arbitrária” que está na base do funcionamento do
direito (BOURDIEU, 2012), a hermenêutica se pergunta pelo tipo de “tradição” que se
faz refletir em nosso horizonte de interpretação.
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Propor um significado pela aplicação exige o trabalho sobre o que o texto nos
diz em nossa situação particular: o âmbito de aplicação da hermenêutica como
arcabouço teórico para a reflexão de soluções que partem de uma “interpretação”. A
tradição subsiste nisso porque as pretensões de valor e justiça dialogam sempre com
uma ontologia referida a algum aspecto da tradição, isto é, os prejuízos e hábitos
interpretativos provenientes de algum lugar-comum que se nos apresentam como
“sentido” da tradição. Uma fenomenologia da interpretação é necessária, de sua vez,
para captar a transformação e transposição de sentidos que um texto jurídico provoca
ao coexistir com o presente do intérprete. Daí porque as variáveis do horizonte de
sentido do intérprete expliquem, à sua maneira, as dessemelhanças no terreno da
jurisprudência. Neste trabalho nos limitamos apenas a apontar algumas molduras
plausíveis que podem provocar uma discussão conceitual sobre a jurisprudência. O
enfoque é hermenêutico, mas o ponto de partida são os discursos da teoria do direito.
Nosso propósito, embora neste caso, ainda, é apenas o de que prefigurar uma base
para pensar um método de investigação que possa compreender duas atividades que
acreditamos pertencer à mesma ontologia.
2 JURISPRUDÊNCIA SEGUNDO A TEORIA DO DIREITO
A teoria pura de Kelsen (2009) tem o mérito de conciliar os princípios da
democracia com uma teoria eficiente sobre normas escalonadas por uma constituição
vigente. Como teoria positivista, a teoria pura assegura a fenomenologia do raciocínio
jurídico que interage entre a (1) proposição juridicamente válida; (2) o fato subsumido
na razão jurídica e o (3) juízo normativo concluído em referência às proibições e
permissões constitucionais. Na teoria pura a jurisprudência é conceituada como
“aplicação do direito”. Antagonizando com a criação livre do direto, a tarefa da
jurisprudência consiste na definição de um juízo normativo logicamente fundado – o
que não supõe que opere necessariamente por declarações exegéticas. Aplicar a
norma significa para Kelsen constituir uma decisão capaz de representar o estádio
final de um processo iniciado com a constituição (KELSEN 2009, p. 263). Ao subtrair
os juízos ético-políticos da interpretação, o juízo normativo da aplicação jurídica
garante a previsibilidade racional das decisões (KELSEN 2009, p. 275). Trata-se de
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uma proposição que corrobora com a tendência das primeiras instâncias em, por
exemplo, seguir os precedentes superiores ao invés de criarem um direito ex novo
excepcionado por circunstâncias subjetivas de interpretação. Na teoria pura a
jurisprudência não pode ser uma função subjetiva. É um resultado da aplicação
correta que se acrescenta ao conjunto das normas escalonadas pela constituição.
Como as demais normas a jurisprudência se alinha às normais gerais da ordem
jurídica, mas com certa prerrogativa. A jurisprudência é, em todo caso, um precedente
que vincula a decisão de um modo especial. Ao reconhecer essa vinculação, Kelsen
propõe que jurisprudência seja acompanhada do registro formal de elementos que
seriam utilizados em uma identificação comum de casos aceitos com referência, por
exemplo, à mesma hipótese normativa (KELSEN 2009, p. 278). A confiança no caráter
normativo da jurisprudência é justificada pela teoria das fontes do direito. Mas, em
uma definição tradicional do conceito, a decisão judicial consiste para Kelsen em uma
fonte de direitos e deveres para partes litigantes cujo resultado é a atribuição de
competências ao órgão que deve executar a decisão (KELSEN 2009, p. 259). Kelsen
acredita em sua teoria pura superar a jurisprudência dos conceitos, a teoria que
pretende identificar e reconstruir conceitos ideologicamente pressupostos na ordem
jurídica (ROSS 2005, p. 192). A teoria pura antagoniza com o conceitualismo em razão
da postura cognoscitiva que tonaria a jurisprudência uma tarefa menos aplicativa e
mais subjetiva (KELSEN 2009, p. 395). Como teoria da ciência jurídica a teoria pura
visa o estabelecimento das múltiplas significações compreendidas na norma jurídica.
Como tarefa prática a interpretação deve resolver o conteúdo das normas e do
precedente escalonando as fontes do direito no sentido da ordem jurídica. Por isso, a
jurisprudência é, além da aplicação, uma operação teórica do conhecimento
certificado em um ato de vontade, o ato que sustenta uma decisão sólida dentre um
plano de possibilidades. A vontade assegura no plano da pluralidade o preenchimento
correto do “aberto”, isto é, do espaço delimitado por uma moldura que define o limite
do conteúdo. (KELSEN 2009, p. 391). Portanto, ao contrário do que Kelsen denomina
de “jurisprudência tradicional” a teoria pura acredita na pluralidade das decisões e não
apenas em uma única decisão correta.
O empirismo de Alf Ross discorda da teoria pura de Kelsen quanto à subtração
dos aspectos valorativos que precedem ao juízo normativo. Na perspectiva realista,
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Notas sobre Gadamer: teoria do Direito, jurisprudência e hermenêutica
tal como no jogo de xadrez, a jurisprudência não está motivada pelas regras, mas
pelos propósitos do jogo (ROSS 2005, p. 193). Para Ross importa à ciência do direito
perceber o tipo de relação que as regras jurídicas exercem diante das exigências
sociais empíricas. A teoria realista tem por objeto uma ciência de predições capaz de
representar o conceito da interpretação vigente, ou seja, o modo pelo qual se pode
dizer como as regras serão de fato aplicadas pelos tribunais. O método de Ross
procura enfatizar os princípios que efetivamente conduzem o trânsito da regra geral
ao caso particular resultando em uma teoria descritiva das práticas empíricas que
revelam o comportamento dos tribunais na aplicação do direito (ROSS 2005, p. 145).
Diferentemente da teoria pura, não interessa ao realismo identificar o escalonamento
normativo do precedente na ordem jurídica, mas descrever o papel motivador que
desempenha nas decisões. O conceito de jurisprudência em Ross pode extraído da
análise histórica que realiza sobre o desenvolvimento dos sistemas do common law e
do civil law.
Ross inicia com a referência a uma antiga proibição de Justiniano sobre o
fundamento dos precedentes utilizado em decisões judiciais. Compreendendo o
direito na escritura da lei (non exemplis, sed legibus judicandum est) a ciência romana
do período tardio desconsiderava o fundamento dos precedentes para priorizar a
exegese do texto como fonte do direito (ROSS 2005, p. 115). Na verdade, o sistema
do common law estabiliza sua conhecida doutrina apenas no século XVII, embora no
século XIII os precedentes já estivessem utilizados para racionalizar um sistema
judicial heterogêneo. Apenas no século XIX a vinculação dos precedentes é justificada
em uma doutrina jurídica dos costumes judiciais: o stare decisis. Ainda que distantes
da prática atual, são os princípios do stare decisis que exemplificam o conceito prático
dos precedentes tanto no sistema do common law quanto no civil law. Da mesma
forma, a doutrina do stare decisis esclarece o modo como o direito anglo-americano
racionaliza a prática jurídica em precedentes de jurisprudência e, por outro lado, em
um conceito de lei instrumentalizado por exigências empíricas. Alf Ross resume a
doutrina do stare decisis pelos seguintes princípios que aqui destacamos: 1) Uma
decisão só se torna obrigatória quanto a sua ratio decidendi. 2) Um precedente não
perde vigência mesmo que não pareça aplicável às circunstâncias empíricas do caso.
3) Toda decisão, ditada por qualquer tribunal, pode ser considerado como argumento
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relevante para que os demais tribunais a levem em conta. 4) Um tribunal encontra-se
obrigado a observar as decisões de tribunais superiores. Na Inglaterra, a presente
regra obriga os próprios tribunais (p. ex, o Tribunal de Apelações – “Court of Appeal”)
a seguirem decisões que estabelecem a priori. Portanto, a regra geral é a de que
instâncias judiciais interpretem as decisões à luz de suas próprias razões levando em
conta o conteúdo jurídico da ratio decidendi. Ross destaca que, nesse ponto, os
dilemas hermenêuticos do common law em nada diferem do problema da
interpretação da lei nos sistemas do civil law. Com efeito, o common law se vê apenas
“mais” obrigado aos precedentes em comparação com as reservas legais do civil law.
Diferentemente do experimentalismo metodológico da doutrina jurídica do common
law, Ross destaca no civil law a natureza escolástica das doutrinas jurídicas voltadas
ao esclarecimento do conteúdo normativo do direito à maneira das resenhas glosais
(ROSS 2005, p. 116). Concluímos com Ross que a influência do precedente depende
de sua aproximação com a hermenêutica jurídica na medida em que são cultivados
como textos jurídicos. O common law pode fornecer um exemplo. Segundo Ross os
precedentes ingleses resultam do amplo exame dos pontos de vistas jurídicos que
fundamentam a decisão fornecendo o material utilizado como guia da aplicação para
casos semelhantes juntamente com repertórios analíticos que resumem as decisões
em grande escala. Por isso, é preciso conciliar o pragmatismo da commom law com
os costumes do civil law caracterizado por termos concretos e não comprometedores,
ou seja, por um conceito particularizado de prudência (ROSS, 2005, p. 121), razão
por que avançamos a uma breve exposição hermenêutica dos elementos psicológicos
que envolvem a aplicação do direito enquanto jurisprudência.
3 A JURISPRUDÊNCIA NA TEORIA HERMENÊUTICA
Seguimos a presente questão: de que forma a hermenêutica de Gadamer
dialoga com a Teoria do Direito? É conhecida a cruzada da teoria hermenêutica contra
os padrões metodológicos da ciência moderna aplicado à tradição das humaniora.
Partimos da crítica hermenêutica para, neste sentido, propor a complementação do
conceito de jurisprudência a partir de elementos psicológicos que acompanham a
aplicação lógica do direito. Destacamos de Verdade e Método que a jurisprudência,
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Notas sobre Gadamer: teoria do Direito, jurisprudência e hermenêutica
assim como a hermenêutica jurídica, ocupa nas humaniora uma significação
paradigmática uma vez que o propósito ético da interpretação justa – uma tarefa que
extravasa a ciência do direito – encontra na jurisprudência o solo concreto que
exemplifica a atuação normativa das humaniora em todos os planos da ética. Através
da complementação hermenêutica dos elementos implícitos que acompanham a
atuação da jurisprudência, a moldura da aplicação lógica é estendida para sua
autocompreensão. A isso devemos acrescentar uma necessária revalorização da
retórica. Neste contexto a retórica é o meio de formação em que a ciência do direito
encontra condições para compreender conceitos que operam como base de
sustentação de um discurso fundamentado. Gadamer considera que, com boas
razões, o conhecimento do direito continua a chamar-se de “jurisprudência”, ou seja,
literalmente, a “prudência jurídica” que recorda o legado da filosofia prática, tradição
em que a prudentia é a virtude suprema de uma racionalidade prática comum
(GADAMER 2002, p. 360). Devemos no entanto considerar que o fato mesmo de a
expressão “ciência do direito” ter prevalecido no final do século XIX indica para
Gadamer a perda da peculiaridade metodológica desse saber e de sua determinação
no conceito de prática concebido pelas ciências.
É possível que a formação retórica seja compreendida na teoria hermenêutica
do humanismo em função do mesmo propósito que conduz a primeira parte de
Verdade e Método: a superação da dimensão estética. Portanto, para além de sua
dimensão estetizada a retórica deve assumir um propósito contemporâneo; deve por
seu medium certificar a monologia científica “em um nível prático, social e político”
(GADAMER 2002, p. 569). Isto significa constituir acessos outros para o diálogo entre
a ciência teórica e os elementos pré-científicos do humanismo. Gadamer argumenta
que “é possível que o conceito científico das ciências do espírito dependa mais do tato
do que de sua metodologia” (GADAMER 2008, p. 42). A formação retórica atuaria no
sentido da compreensão da sensibilidade que percebe situações constituídas no nível
pré-lógico. Por isso trata não apenas dos juízos subjetivos de valor, mas do que beira
o inexprimível, isto é, o limite não recepcionado pelo método da ciência. Sem a
referência a princípios universais o tato acompanha a formação retórica como uma
espécie de contorno; um saber por natureza prudente e periférico sobre (περι) algo
que busca acomodação. Em Gadamer o contorno “não significa desviar a vista de
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algo, mas atentar para não esbarrar nele e assim poder passar ao lado” (GADAMER
2008, p. 52). Como fenômeno da linguagem o tato é também uma medida de distância;
a distância em que contornamos um objeto e o compreendemos por sua
verossimilhança e não apenas sob o esclarecimento de sua verdade teórica. Como
fundamento prévio dos conteúdos de sentido, a verossimilhança encontra condições
metódicas na formação retórico-humanista da pesquisa filológica. Vico, em especial,
encontrou neste ideal de formação a condição teórica para o trato do senso comum
enquanto verdade edificante. Vico, no entanto, não prioriza a constituição lógica do
juízo, mas os padrões alternativos que desvelam através da linguagem a
determinação do senso comum na vida civil dos povos. Neste sentido, é o fundamento
do senso comum e nem tanto a estrutura lógica da aplicação da legalidade que
efetivamente padronizam as formas de julgamento sobre questões cruciais como o
justo e o injusto; o factível e o infactível. Contra o cartesianismo do círculo jansenista,
Vico recorda o senso comum dos antigos romanos em uma Nápoles orgulhosa de
suas tradições. Ao se opor à “art de penser” do cartesianismo a formação retóricohumanista de Vico confere vitalidade às criações humanas que resultam no legado
que institui a comunidade. O juízo do senso comum corresponde, portanto, ao juízo
correto, isto é, ao conjunto de pontos de vistas sadios que encontram uma capacidade
de julgamento. Em razão do senso comum a todos pode-se exigir a solidariedade
ético-civil (GADAMER 2008, p. 71).
Como fenômeno da linguagem o tato tem por conteúdo a verossimilhança. Por
isso se encontra no âmbito da Tópica. Na tradição de Aristóteles a Tópica consiste na
arte que elenca argumentos geralmente aceitos e reconhecidos em sua conveniência.
Na Ciência Nova, por sua vez, Vico define a Tópica como “faculdade em tornar as
mentes engenhosas, assim como a crítica torna as mentes exatas” (VICO 1988, p.
231). Com efeito, desde sua primeira dissertação (De nostri temporis studiorum
ratione) a retórica é revalorizada por Vico contra a pretensão monopolizante do
referencial cartesiano que denominava como “crítica”. Em Gadamer a defesa da
retórica significa não apenas um meio de formação do senso comum, mas algo que a
hermenêutica compartilha em seus princípios: a função do argumento persuasivo
como aptidão própria da hermenêutica. Vico encontra no método tópico a
possibilidade de que um estado de coisas seja analisado sob pontos de vistas plurais
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Notas sobre Gadamer: teoria do Direito, jurisprudência e hermenêutica
e divergentes, mas que partindo de uma verdade geralmente admitida (primum verum)
deve distinguir-se de exames fantasiosos (VIEHWEG 1986, p. 32). Para a teoria
hermenêutica a retórica humanista é relevante por destacar o valor próprio da copia;
da riqueza dos pontos de vistas em que o apelo dos afetos não implica o abandono
da razão (GADAMER 2002, p. 318). O antagonismo de Vico à crítica cartesiana tem
por princípio a natureza do saber que é o senso comum; um saber verdadeiro que não
se baseia nas razões produzidas pelo método, mas que precede à razão como algo
plausível (verisimile). Uma vez que precede as evidências teóricas, o conceito de
senso comum em Vico tem suas bases plantadas nas tradições civis que sob o
conceito romano adquirem a tonalidade estoica da Antiguidade. Disto podemos inferir
duas consequências importantes para a teoria hermenêutica: 1) o senso comum tem
como primado epistemológico o mundo da história: o humanismo em suas próprias
tradições. 2) a formação retórico-humanista é mais do que um método de leitura dos
textos clássicos: é o sentido que trabalha institivamente com pontos de vistas que
contornam a evidência do método.
A tradição retórico-humanista tem como vantagem a acessibilidade de todos os
que se encontram em uma mesma ordenação social histórica. É sob tal pressuposto
que o conceito de tato passa a operar sua função epistemológica complementadora.
No mundo social histórico é importante antes destacar o resgate realizado por Vico
sobre os elementos fundamentais da jurisprudência. Trata-se aqui da natureza comum
dos pontos de vistas utilizadas na ciência do direito a partir do ideal da prudência e da
eloquência estoica recuperada da Antiguidade. É o caso, por exemplo, da razão pela
qual os latinos derivam ius de Ious referido a Júpiter como razão de piedade (VICO
1988, p. 119). Da mesma forma, do coletor de águas (aquilex) provém a Lex entendida
posteriormente como o parlamento público que solenizava testamentos na presença
dos cidadãos (VICO 1988, p. 155). A conveniência que justifica que no direito civil
romano chamem-se autores (auctor) àqueles que tem razão de direito (proprius)
decorre do significado primitivo da autoridade (auctoritas) como aquele que se
encontra (suus ipsius) na posse da propriedade (VICO 1988, p. 186). A distinção entre
nómos que no sentido grego é a norma da lei com relação ao nomen que segundo o
direito civil romano significava o direito ao uso de um sobrenome (qui possunt nomine
ciere patriem) recorda, segundo Tito Lívio, as lutas da plebe diante dos privilégios civis
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da aristocracia (VICO 1988, p. 206). O conceito da jurisprudência também encontra
no discernimento filológico
de Vico uma
autocompreensão mitológica da
jurisprudência. Três conceitos são destacados: a 1) jurisprudência mística, formada
pela poesia teológica e concentrada na interpretação dos mistérios oraculares. Sobre
o caráter hermético das leis arcaicas, Vico rememora o conceito arcano perdido ao
tempo em que as leis eram redigidas em línguas vulgares (VICO 1988, p. 160). A 2)
jurisprudência heroica, formada na prudência de Ulisses e notabilizada por um uso
escrupulosíssimo das palavras de onde se origina a razão de estado (aequitas civilis)
e o desígnio da lei. Vico faz alusão ao início das repúblicas formadas por cidadãos
heroicos, tempo em que se dá a demarcação do domínio civil e das consequentes
potestades aristocráticas (VICO 1988, p. 124). Por fim, a 3) jurisprudência natural que
tem por fim o bem particular de cada um (aequum bonum). A equidade natural consiste
em uma prática de sabedoria sobre questões de utilidade: uma ciência de fazer uso
das coisas segundo o uso que têm no estado natural (VICO 1988, p. 169). Diante da
tendência humana em conservar a memória das leis e das ordenações, antagoniza,
por outro lado, a máxima natural da liberdade e dos costumes nativos (VICO, 1988, p.
156), algo que retrata o direito das antigas províncias romanas que resistiam ao edito
do Pretor romano (VICO 1988, p. 132). Em geral, a Ciência Nova tem por objetivo
configurar uma doutrina do arbítrio humano. Gadamer reestrutura essa tradição com
o ideal de “formação para o humano” desenvolvido pela filosofia idealista do século
XIX (GADAMER 2008, p. 44). Refletindo sobre o sentimento universal da formação
prática e da reconciliação reminiscente da memória no pensamento Gadamer projeta
na teoria hermenêutica a formação substancial compreendida no conjunto dos
idiomas, dos costumes e das instituições de um povo. Vico já acreditava haver um
senso comum do gênero humano que serviria como critério pedagógico do direito
natural (VICO 1988, p. 141). A ideia de acordo, inerente ao senso comum, permanece
de na história efeitual do conceito. Na Inglaterra e nos demais países românicos o
conceito de senso comum reflete a qualidade filosófica do cidadão. Na Alemanha o
senso comum transcende o lema crítico da cidadania para se tornar uma faculdade
filosófica figurada ao lado da consciência da ética e do gosto (GADAMER 2008, p.
64). Essa divergência de concepções aponta para uma ligação estreita entre o senso
comum e o conceito de juízo. Por isso, a compreensão comum é caracterizada
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definitivamente pelo juízo. A introdução da palavra “juízo” no século XVIII reproduz um
conceito mais aprofundado para o termo iudicium de modo que a faculdade de julgar
se torna uma virtude; uma virtude filosófica que problematiza a demonstração lógica
do juízo em sua perplexidade. Isto em razão da falta de um princípio geral capaz de
guiar a aplicação (GADAMER 2008, p. 69).
Um dos legados reconhecidos Aufklärung é, por conseguinte, a inclusão do
senso comum na faculdade do juízo e do gosto, o que implica, de outra parte, em um
certo afastamento do sentido romano da sensus communis. Ao superar a dimensão
estética – algo que aliás recorda o antagonismo de Aristóteles em relação à metafísica
platônica do belo – o conceito de gosto encontra na Aufklärung sua dimensão moral.
É o que possibilita que ao conceito aplicativo da jurisprudência se acrescente o
iudicium sobre o bom e o mau gosto. No entanto, assim o como o tato, o gosto não é
demonstrável; exigindo por isso mesmo o cultivo dos sentidos que combinam-se para
se ajustarem ao sentido coletivo do gosto. Como capacidade espiritual do
discernimento, o juízo do gosto se eleva dos interesses e preferências privadas para
alçar um sentido unânime. Hegel reflete este processo como elevação do espírito de
cobiça em direção a um gênero de universalidade. Como conceito fenomenológico o
gosto não é uma teoria do objeto, mas um uma tendência ajustada a um ideal de
concordância. Por isso Gadamer relaciona o gosto à abrangência dos costumes
(GADAMER 2008, p. 79). Por outro lado, deve-se considerar que o conceito de
costumes nunca está dado como um todo, nem determinado de maneira unívoca,
razão que destaca a necessidade da problematização filosófica do juízo. Na
Alemanha, a reflexão transcendental sobre gosto se deve às leituras de Balthasar
Gracian, referidas nas obras de F. Nietzsche. Conforme Balthasar Gracian a história
do gosto indica nada mais que a história da formação cultural. O bom gosto equivale
ao conceito da boa sociedade e ao compartilhamento de julgamentos comuns. Por
isso, todas as decisões éticas exigem uma certa consciência sobre o gosto. O conceito
de tato opera como o meio para redimensionar a disciplina da razão em sua conclusão
autoconsciente. Assim, concluímos com Gadamer que o gosto não é a base do juízo
ético, mas “por certo seu mais elevado complemento” (GADAMER 2008, p. 80). Tratase do ideal supremo da jurisprudência como conceito paradigmático das ciências do
espírito: a possibilidade em compreender-se na elevação do bem, aceitando o bom e
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repudiando o mau da mesma forma que é capaz de escolher ou repudiar um alimento.
Supondo o ideal de formação como meio que assimila, integra, e aperfeiçoa aptidões
e faculdades; a consciência ética do gosto contorna a formação da consciência
científica sustentando um juízo comum. A subsunção do particular ao universal para
reconhecer a regra do caso deve, portanto, se deparar com sua perplexidade. Deve
sempre questionar os princípios que guiam a aplicação, o processo que Hegel define
como a reconciliação do espírito consigo mesmo.
4 O JUÍZO NA PERSPECTIVA EMPÍRICA
Considerando o tema da aplicação do Direito, ter juízo significa reconhecer em
um caso a exigência da aplicação de uma ou mais regras. Subsumir corretamente é
uma atividade que caracteriza o juízo. No Direito, especialmente, o juízo é responsável
pela aplicação de um conhecimento: a ciência jurídica que opera com regras tal como
os lógicos operam com “universais” diante de “particulares”. Logo percebemos,
todavia, que o juízo nos revela problemas hermenêuticos quanto aos princípios que
orientam a aplicação das regras diante de um caso. Em geral, pode-se dizer as
divergências entre juristas ocorrem porque a escolha das regras a serem aplicadas;
aquilo que cada jurista “julga” como a exigência do caso (aquilo que o caso pede)
dependem, ao cabo, do arbítrio de cada jurista. Ao tratar sobre a interpretação, Kelsen
(2011) compreende o arbítrio como a função voluntária do direito: um critério
inexplicável que nos permite escolher entre uma regra e não outra regra que no
entender de outro jurista poderia igualmente ser aplicada. A regra escolhida por um
jurista não deve pressupor uma validade absoluta, pois determinada regra pode, em
alguns casos, ser impugnada diante de um entendimento diferente proposto por outro
jurista ao entender que a regra aplicada pelo primeiro não é adequada ao caso da
maneira como o percebe num determinado momento. Escolher entre regras e aplicálas ao caso, definindo o direito para as partes (suum cuique atribuere) intriga-nos e
nos impele a refletir atualmente sobre temas variados, desde a abrangência da
subjetividade no Direito – um tema da filosofia e da hermenêutica jurídica –, passando
pela racionalidade argumentativa de suas decisões; pela necessidade de sistemas
recursais, sobre os aspectos construtivos das decisões colegiadas, e outros tantos
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Notas sobre Gadamer: teoria do Direito, jurisprudência e hermenêutica
temas facilmente encampados por aquilo que até então concebemos como teoria do
direito.
De outro lado, se debatermos sobre o estatuto metodológico da ciência jurídica,
podemos verificar dois caminhos até abertos para fazer segui-la na história de sua
autofundamentação. Assim, poderia a ciência jurídica tanto seguir avolumando-se em
uma perspectiva meramente factual e ocasional quanto descobrir um elemento
funcional capaz de assegurar aplicações de regras as mais corretas possíveis ou as
regras mais razoáveis diante das circunstâncias mais exigentes. Tratando da
problemática do juízo e suas consequências, Gadamer (2014, p. 69) observa que “o
juízo se encontra sempre em uma situação de perplexidade fundamental devido à falta
de um princípio que poderia guiar sua aplicação”. Se fecharmos o foco sobre a
aplicação do direito – a problematização do juízo é um meio para essa discussão –,
teremos, no primeiro plano, o terreno da hermenêutica jurídica e, em seguida, o solo
fértil da jurisprudência como o princípio de racionalidade capaz de reunir as ocasiões
mais importantes da teoria e da prática.
A anotação de Gadamer demonstra que não poderíamos estabelecer regras
sobre aplicação de regras de maneira genérica e universal porque as exigências de
cada caso nos impelem a juízos diferentes e não previstos pelo fictício “manual” de
aplicação de regras sobre regras. Podemos, no entanto, pensar sobre critérios que
possam, mesmo que transitoriamente, definir um princípio capaz de guiar o juízo como
aplicação da ciência jurídica e, consequentemente, a escolha de regras adequadas
segundo as exigências de cada caso. Ao tratar sobre os conceitos básicos do
humanismo em Verdade e Método, Gadamer (2014) nos apresenta três referenciais
teóricos que podem abrir horizontes variados de pesquisa sobre o tema do juízo e a
aplicação do Direito. Uma das mais importantes é a do senso comum empírico.
Essa tradição reforça a ideia de que o juízo no Direito é, acima de tudo, um
julgamento moral. Aqui o juízo não caracteriza não apenas a sã compreensão de um
indivíduo hábil em aplicar conhecimentos adquiridos, mas a compreensão de um
“senso comum” significativo para a sociedade e para o Estado. Por trazer uma
atribuição moral, o juízo pode não seguir necessariamente a operação lógica dos
princípios universais deslocados, contudo, da vida comunitária. O aspecto distintivo
dessa tradição é que nela o juízo tende a agregar sentimentos relativos a gostar ou
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não gostar de algo que ao obterem significação social acabam por se tornar critérios
coletivos para o arbitramento que obteria, com isso, obteria a validade dos critérios do
bom gosto e do mau gosto. Logo, também exercemos o juízo, por exemplo, quando
repudiamos algo considerado pela sociedade como de manifesto de mau gosto. A
tradição que aludimos remonta à filosofia escocesa do século XVII notabilizada pelas
cartas de Shaftesbury. Daí extraímos a ênfase geralmente conferida ao sentimento
moral nas questões de juízo, pois seria esse o sentimento capaz de assegurar
instituições de senso comum, instituindo o “sentido” de uma comunidade como o
critério formador: aquele que institui o juízo. David Hume sucessor de Shaftesbury na
filosofia escocesa enfatizaria de sua parte o aspecto empírico do julgamento moral,
revelando uma ligação ainda mais estreita entre o conceito de senso comum e o
conceito de juízo. A influência de Shaftesbury é marcante no século XVIII – impacto
que alcançaria a filosofia na Alemanha – talvez pela renúncia que impusera aos
dispositivos melancólicos do direito natural para realçar, de outro lado, o
embasamento moral de onde surgem as formas mais desenvolvidas de solidariedade.
Mais do que uma virtude do trato social, o senso comum, para ser instituído
como sentido da comunidade, também precisa de conceitos humanísticos como o
“bom humor”. Através do elemento moral da espirituosidade Gadamer (2015, p.62)
encontra em Shaftesbury o ideal de humanidade (humanitas) que agradavam aos
estoicos. Seria esse o ideal do varão seguro que não age apenas por protocolos
formais, mas por um acordo tácito de solidariedade e bons tratos. Logo,
diferentemente da intervenção coerciva dos maus humores, o bom humor
apresentaria um juízo desenvolvido porque é aquele capaz de reatar a solidariedade
através da profunda confiança que pode despertar em um interlocutor. O humor
também revela uma aptidão moral porque aquele que possui tais qualidades
geralmente é capaz de criar laços próximos à amizade reforçando, ao cabo, a coesão
social. Essa abordagem inovadora das virtudes do bom gosto colocaria o bom senso
como um assunto pertinente ao campo da moral e não apenas à análise compreensiva
dos costumes. O senso comum configura a hipótese de que existem, sim, condições
originárias para o fenômeno que institui comunidade:
“Shaftesbury tem em mente a virtude espiritual e social da simpatia, sobre a
qual edificou não somente a moral mas toda uma metafísica estética. Seus
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Notas sobre Gadamer: teoria do Direito, jurisprudência e hermenêutica
sucessores, principalmente Hutcheson e Hume, aperfeiçoaram seus
estímulos para uma doutrina do moral sense, que mais tarde iria servir como
pano de fundo à ética kantiana [...] O conceito de common sense ocupa uma
função realmente central e sistemática na filosofia dos escoceses, que
polemizam tanto contra a metafísica quanto contra sua dissolução cética e
edificam seu novo sistema sobre juízos originários e naturais do common
sense (Thomas Reid)” (GADAMER 2014, p. 63).
Daí adiante, uma pesquisa sobre o desempenho cognitivo dos sentidos sociais
teria como finalidade demonstrar que o senso comum é construído por aptidões que
fazem justiça à vida da sociedade, embora o apreço dessas significações não estejam
em geral abarcadas pelos dispositivos dogmáticos do direito natural. Essas aptidões,
reduzidas, todas, no termo “bom senso”, funcionam, assim, como guias que tanto
corrigem os exageros da especulação filosófica quanto servem para orientar os
afazeres cotidianos particularmente quando as faculdades da razão natural parecem
não corresponder às suas bases humanísticas. Relaciona-se, fundamentalmente,
com o que podemos depurar do sentido clássico e do sobretom estoico conferido à
noção de cortesia. Anota Gadamer que na França, o país do bom senso, Henri
Bergson se utilizava do mesmo conceito para criticar as abstrações da linguagem e
do pensamento jurídico. Podemos então concluir que o bom senso constitui, na
verdade, a base sobre a qual formamos o tato da verdade prática, algo que não é
menos um dom do que um ajustamento de princípios gerais à realidade apresentada
por meio de situações sempre novas. É este também o motivo porque podemos crer
que o bom senso existe como juízo formado sempre para o proveito da sociedade.
Em uma discussão metodológica, o bom senso compreende aptidões necessárias
para atenuar os excessos das leis sociais quando prefiguradas em dogmas.
No Direito, sob a influência kantiana do positivismo como ciência normativa, a
questão do juízo vinculou-se a aptidões exclusivamente formais (em prejuízo das
ilações sobre o sentido histórico da validade normativa ou sobre a compreensão dos
padrões morais externos à formação do juízo). Nesse diapasão, o juízo caracterizaria
nada mais do que uma operação de faculdades construtivas aptas a abstrair um
contexto normas com valor em si, embora esse conjunto de normas compreendam,
antes, uma complexa interpretação sobre circunstâncias e do que estas exigem como
matéria decisória ou escolhas a referendar pelo ato do juízo. Desde então, o juízo
normativo aventa como objeto desde uma resposta suficiente para sanar uma
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“questão de direito” até a consideração da única forma disponível ou, senão, ao
menos, da forma mais razoável para delimitar uma série de padrões éticos diante do
incontornável império da realidade desprovida de sua forma jurídica. Por isso a
aplicação do conhecimento adquirido da ciência jurídica – o conceito rigoroso de juízo
– encontrar-se frequentemente justificada por critérios fundamentados no próprio
sistema jurídico: um juízo é correto apenas se corresponde ao Direito abstraído
formalmente pelo juízo. Mas o que explica, em outro sentido, a pluralidade de juízos
possíveis sobre um mesmo objeto ou caso concreto? Por que os juristas tendem a
divergir em suas repostas sobre o padrão do que parece como o mais correto?
Poderíamos definir critérios de certeza sobre a decisão correta apenas retrocedendo
ao arcabouço normativo ordem jurídica? Como justificar a delimitação mais ou menos
arbitrárias dos fatos que servirão de suporte à aplicação do juízo? Diante dessas
questões, o conceito do juízo deve compreender uma tarefa mais abrangente: é
preciso saber, antes de tudo, dos conteúdos que de fato estamos utilizando para
escolher entre alternativas; entre um conjunto de regras que se apresentam, na
compreensão do juízo, com a mesma posição de validade frente a um caso que exige
uma solução adequada inclusive em relação à previsão racional das consequências
(do que uma ou outra decisão poderia provocar como coisa julgada).
5 CONCLUSÃO
1) Precisamos de sucessivos referenciais teóricos para demarcar a jurisprudência
em uma tradição coerente. A “teoria do direito” e os “conceitos básicos do
humanismo” são meros exemplos de um vasto campo exploratório que a
jurisprudência pode tomar como base.
2) A hermenêutica é uma metodologia do saber teórico. Sem que tenhamos a
precipitação de tê-la arbitrariamente como um “paradigma”, é o referencial que
ainda
serve
para
organizar
discursos
condicionados
a
tradições
“reconhecíveis” em uma modalidade (geralmente uma modalidade retórica do
discurso, como o texto que pertenceria a um determinado gênero literário).
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Notas sobre Gadamer: teoria do Direito, jurisprudência e hermenêutica
3) Reconhecemos uma tradição pela história de seus efeitos em teorias
consecutivas. A história efeitual pode responder a algumas dificuldades quando
é capaz de prover um feedback sobre algo que já possui uma resposta ou um
repertório de soluções melhores do que a encontrada no instante.
4) A jurisprudência não é ao todo uma linguagem de padrões. Mas isso não a
impede de apresentar nexos implícitos passíveis de sistematização, algo que
pode ser realizado numa abordagem sistêmica.
5) Sendo um saber da “concreção no instante”, os sistemas do direito construídos
pela fonte da “jurisprudência” tendem a apresentar uma margem de erro
(imprevisibilidade). Daí porque a tarefa hermenêutica se limite a explicar
apenas a história dos conceitos que são preservados ou modificados pela
retórica judicial que forma a base da jurisprudência como “texto”.
6) Na verdade, a hermenêutica é uma metodologia do saber adquirido e do
arcabouço teórico. Isso explica a recusa de Gadamer ao empirismo e ao
utilitarismo de um modo geral. Como princípio organizador dos bens culturais,
a hermenêutica é filosófica porque preserva o que foi erigido pela filosofia
continental como experiência da arte de um modo geral (p.ex. a “função
literária” do Direito como “jurisdicismo”).
7) É possível que a jurisprudência seja, enfim, uma arte sobre o que não se deve
ou não se pode dizer ou esclarecer pela ciência. A jurisprudência recai, assim,
no tipo de saber que a retórica preserva e que lhe confere uma racionalidade
distinta quando comparada à “ciência monológica” do método moderno.
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de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.
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KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. – 8ª
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VICO, Giambattista. Princípios de uma ciência nova: acerca da natureza
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Enterría. Tradução Luis Díez-Picazo Ponce de Léon. Madrid: Taurus, 1986.
Amazônia em Foco, Castanhal, v. 5, n.8, p. 68-88, jan./jul., 2016 | |
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