Maria Aparecida da Silva - cchla

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INTERFACE SINTAXE, SEMÂNTICA E CONTEXTO DISCURSIVO
NA CONSTRUÇÃO SENDO QUE.
Maria Aparecida da Silva Andrade (IFESP)1
[email protected]
INTRODUÇÃO
O uso da construção sendo que não é um fato novo na língua haja vista o
emprego considerável dessa forma, tanto na fala quanto na escrita, em diversas
situações comunicativas, das mais informais até as formais. O presente trabalho tem por
objetivo fazer uma discussão acerca do uso dessa construção em contextos reais de uso
da língua tanto orais como escritos. Para isso destacamos para estudo algumas
ocorrências do corpus D&G-Natal2 bem como exemplos retirados de três sites que
trataram dessa questão.
Pretendemos investigar quais motivações orientam o interlocutor na seleção da
construção sendo que para desempenhar funções gramaticais. Há quem considere,
fundamentados numa perspectiva normativista da língua, que essa estrutura trata-se de
um gerundismo, alegando que essa construção está ocupando o lugar de formas
consideradas de bom uso, aquelas que se aproximam mais da forma culta, como
pronomes relativos, conjunções e até mesmo o uso do ponto e vírgula.
Porém, acreditamos que o emprego dessa estrutura não se trata de erro, mas de
um mecanismo adotado pelo usuário da língua para não só assumir as mesmas funções
sintáticas exercidas por elementos gramaticais, mas também imprimir a atitude do
falante acerca do que diz. Portanto acreditamos existir uma inter-relação entre sintaxe,
semântica e pragmática ao se eleger construções.
Essa ocorrência em estudo é constituída por elementos já existentes no sistema
lingüístico português, o que caracteriza a maleabilidade desse sistema, que possibilita ao
usuário eleger estruturas lingüísticas já disponíveis para atender necessidades
comunicativas. Assim, procuramos na investigação: a) analisar a relação entre a
construção sendo que e sequência textual, e b) descrever as funções sintática, semântica
e pragmática exercidas pela construção sendo que nos contextos em que ocorrem.
A fundamentação teórica que embasa a nossa análise se insere no quadro da
Linguística Funcional Norte Americana Contemporânea que concebe a língua como
uma estrutura maleável, sujeita a pressões vindas de diferentes situações comunicativas
que colaboram para determinar sua estrutura gramatical. Assim, a codificação do
sistema lingüístico é influenciada pelas funções que a língua desempenha, portanto não
constituindo um conhecimento autônomo, mas reflete uma adaptação, pelo usuário, às
diferentes situações comunicativas. E, estudar a língua em uso, significa vê-la como
produto de uma atividade interativa social e historicamente construída, e a codificação
lingüística é resultante, em grande parte, dessa atividade.
Destacamos dessa corrente linguística o paradigma da gramaticalização que,
numa acepção mais clássica, concebe que categorias lexicais podem se desenvolver para
categorias gramaticais. É o que acreditamos que ocorra com o verbo ser, no gerúndio,
acompanhado do item que, e ao formar a construção sendo que, seus elementos
1
Professora do Instituto de Educação Superior Presidente Kennedy-IFESP
O D&G é um banco de dados constituído por textos orais e escritos produzidos por estudantes
natalenses, da alfabetização ao último período do ensino superior. Esses textos configuram-se em
gêneros, a saber: narrativa de experiência pessoal, narrativa recontada, descrição de local, relato de
procedimento e relato de opinião.
2
componentes perdem suas características individuais enquanto item lexical e item
gramatical respectivamente, e a nova estrutura passa a assumir uma função gramatical
idêntica a de conjunções e pronome relativo.
Destacamos também para o estudo dessa estrutura a contribuição da
Linguística Cognitiva, que compreende a gramática como representação cognitiva das
experiências humanas com a linguagem Dessa corrente, selecionamos a Gramática de
Construções que analisa a integração entre estruturas lingüísticas e processos
cognitivos, e na acepção de Goldberg (1995, 2006) designa um pareamento entre forma
e significado por existir uma correspondência simbólica entre ambos.
A LINGUÍSTICA FUNCIONAL
A Linguística Funcional é uma corrente cujo foco de análise é a língua em uso.
Segundo o funcionalismo, os fenômenos lingüísticos devem ser explicados a partir de
um contexto de uso, ou seja, a codificação morfossintática é, em grande parte, resultado
da fixação de estratégias discursivas num dado contexto e numa dada situação
comunicativa. Assim, procura-se explicar a forma da língua, isto é, sua gramática, por
meio do uso que se faz dela num processo negociado ao longo do tempo entre falantes,
levando-se em conta os componentes sintático, semântico e pragmático.
O funcionalismo concebe a linguagem como um instrumento de interação
social, logo o foco de análise lingüística ultrapassa os limites da estrutura gramatical,
buscando-se na situação comunicativa motivações para os fatos linguísticos. Ou seja, a
vertente funcionalista procura explicar as regularidades observadas no uso interativo da
língua, analisando as condições discursivas em que se verifica esse uso. Portanto,
interessa a essa abordagem trabalhar com dados reais da língua falada ou escrita
retirados de contextos efetivos de comunicação. (FURTADO DA CUNHA &
TAVARES, 2007e FURTADO DA CUNHA, 2008).
A gramática, segundo a abordagem funcionalista, é entendida como um sistema
formado por um conjunto de regularidades decorrentes, sobretudo, de pressões de uso,
cuja estrutura está num processo contínuo de variação, adaptação e regularização.
Assim, a gramática apresenta uma maleabilidade nas formações, quer através do uso, do
discurso ou das interações, e isso recebe influência de princípios de ordem cognitiva e
comunicativa que possibilitam ao falante processar a informação relacionando-a com o
que já tem na memória. Portanto, a gramática é o resultado da regularização ou
rotinização de estratégias discursivas recorrentes. (GIVÓN, 1979 e 2001).
Na concepção de Givón (1979), a linguagem humana evoluiu do modo
pragmático para o modo sintático, assim, a gramática tem a sua origem no discurso,
entendido como um conjunto de estratégias criativas empregadas pelo falante para
organizar funcionalmente o seu texto tendo em vista um determinado ouvinte e uma
determinada situação comunicativa. Assim, a forma em que se apresenta a
morfossintaxe deve-se em razão das estratégias discursivas recorrentes.
A linguística funcional tem colaborado consideravelmente no tocante ao
entendimento de gramática. Thompson e Couper-Kuhlen apud Furtado da Cunha &
Tavares (2007), destacam principais contribuições dessa corrente no que concerne à
compreensão de gramática: a) padrões gramaticais rotinizados existem para representar
as ações no mundo; b) a gramática é o conhecimento de como fazer coisas em conjunto;
c) a explicação para como as pessoas usam efetivamente a língua deve-se levar em
consideração a gramática como interacionalmente sensível e cognitivamente realística.
Assim, contemplam-se, nos estudos gramaticais, de cunho funcionalista, qualquer forma
lexical ou construção que se tornou rotinizada no uso da língua.
Portanto, ao se analisar a forma que uma língua toma, deve-se fazê-la
considerando-se o contexto em que ela se realiza. Um exemplo bem claro disso é o que
Silva (2000) discute sobre o emprego do verbo ir, cuja expressão original de movimento
espacial é estendida para indicar a noção abstrata de tempo futuro. Por um processo de
transferência metafórica, o usuário procura exprimir o porvir motivado por sua
experiência concreta. Na construção sendo que, o verbo ser, nesse caso, é reanalisado
como item gramatical, com posição mais fixa na sentença, perdendo suas características
originais enquanto item lexical.
A GRAMATICALIZAÇÃO DE CONSTRUÇÕES
A gramaticalização é um parâmetro retomado pela Linguística Funcional para
explicar a variação e a mudança, bem como a estabilização do sistema lingüístico.
Designa um processo unidirecional, segundo o qual itens lexicais (livres no discurso) e
construções sintáticas, em determinados contextos, passam a assumir funções
gramaticais (com posições mais fixas e dependentes). Esse processo de mudança na
estrutura linguística é motivado por necessidades de ordem interacional e cognitivas dos
usuários da língua, que transmitem seus objetivos comunicativos fazendo uso de formas
já disponíveis no sistema e atribuindo-lhes novos significados e funções.
Assim, essas motivações levam os indivíduos a estabelecer uma relação de
identidade entre o que já existe e o novo conteúdo a ser veiculado. Isso ocorre com
elementos que se referem a dados do mundo biossocial: entidades, ações e qualidades
que passam a assumir funções gramaticais, seja para ligar partes do texto, indicar
categorias gramaticais (tempo de um verbo; gênero de um nome), etc. A exemplo disso,
citamos a trajetória de verbo para morfema como ocorre com a locução amar hei, cuja
forma verbal haver (hei) integra-se a um verbo principal como desinência verbal de
futuro: amarei.
A mudança de categoria (de lexical para gramatical) de um determinado item é
provocada, entre outras razões, pela necessidade de expressividade do usuário.
Concordamos com Meillet (1912, p. 140) quando diz que as línguas seguem um tipo de
desenvolvimento em espiral:
acrescentam-se palavras extras para intensificar expressões; estas
palavras enfraquecem, perdem a força expressiva, decaem e chegam
ao nível de simples instrumentos gramaticais; novas palavras são
acrescidas para indicar novos sentidos mais expressivos, o
enfraquecimento recomeça e assim o ciclo continua indefinidamente.
Bybee (1998), seguindo similarmente o pensamento de Meillet, concebe que o
uso freqüente contribui para a automatização das estruturas enquanto unidade de
processamento, e a ampliação de contextos de uso acaba concorrendo para a
abstratização e, consequentemente, a generalização promovendo assim o processo de
gramaticalização. Um ponto levado em consideração no processo de gramaticalização é
que conceitos gramaticais abstratos derivam de relações espaciais, e isso se percebe
claramente no emprego do verbo ir (tipicamennte espacial) para representar o futuro
como em “Você vai saber logo”, substituindo a forma sintética “saberá”.(SILVA, 2000)
Na construção sendo que, o usuário empregou o que já estava disponível no
sistema lingüístico, no caso o verbo ser acompanhado do item que para desempenhar
outra função, mais gramatical. Assim, o verbo ser, nesse caso, perdeu seu status de
elemento lexical enquanto verbo, com sentido concreto e passou a assumir uma função
gramatical própria de outras categorias como conjunção e pronome relativo, e, em
decorrência disso e do componente pragmático, a estrutura ocupa uma posição mais fixa
na sentença, isto é, nesse caso, passa a ser empregada como introdutor de contra
expectativa por parte do locutor. Portanto, a construção em estudo não ocupa o lugar
que seria, segundo a perspectiva normativista, destinado a categorias já consagradas,
mas a nova forma tanto desempenha a função sintática enquanto conector de orações
bem como manifesta a atitude e crenças do locutor a respeito do que diz em seu
discurso. E no que diz respeito à atitude do usuário em expressar novos sentidos
baseando-se em formas já existentes na língua, apoiamo-nos em Bybee (1998, p. 260)
quando afirma que
a ideia não é de os conceitos abstratos estejam sempre relacionados
aos conceitos mais concretos, mas apenas que eles têm sua fonte na
experiência física concreta. [...] As origens conceptuais desses
processos de gramaticalização são aspectos mais básicos e mais
concretos da experiência humana.
Portanto, a seleção do verbo ser na estrutura sendo que para representar
funções gramaticais não se deve por existir exatamente uma relação icônica como
ocorre no verbo ir na representação de espaço e tempo, mas pelo fato de o verbo ser
ocorrer com maior freqüência, ou seja, o uso rotinizado de uma determinada estrutura
lingüística em um dado contexto de uso contribui para sua automatização e,
consequentemente, sua entrada para a gramática. Portanto, a fixação de estruturas
lingüísticas se deve, em grande parte, pelas rotinas neuromotoras, e a repetição contribui
para que se tornem mais fluentes. (BYBEE, 2010)
Há um processo cognitivo bastante produtivo de inovação lingüística que
conhecemos por metaforização, um dos mecanismos importantes envolvidos no
processo de gramaticalização, pois se associa a processos que envolvem a abstratização
de significados que vão de domínios lexicais ou menos gramaticais para domínios
gramaticais ou mais gramaticais. Heine et al. (1991) assevera que, nesse caso, a
metáfora, diferentemente da figura de linguagem, é pragmaticamente motivada e
voltada para a função na gramática. Nessa ótica, a mudança se dá seguindo uma
trajetória: do mais concreto para o mais abstrato. Assim, na construção sendo que, o
verbo ser migra de um contexto concreto, enquanto verbo, e passa a ter seu uso
estendido para representações mais abstratas assumindo uma função de item gramatical.
Vale destacar que, embora nosso foco seja a construção sendo que, o verbo ser ocorre
com grande freqüência compondo outras construções com sentidos e funções diferentes
como ocorre em “a não ser”, “ou seja/isto é” e “pois é”, porém percebemos que o verbo
ser nessas estruturas é um elemento importante na manifestação da atitude do locutor
sobre o conteúdo do seu dizer.
A CONSTRUÇÃO SENDO QUE: O QUE DIZEM A RESPEITO?
Procuramos investigar se há algum estudo a respeito dessa estrutura, para isso,
fomos pesquisar em gramáticas, revistas e sites, e o pouco que encontramos,
procuramos trazer para fazermos uma reflexão pautando-nos nos pressupostos teóricos
adotados neste trabalho.
Ao acessar dois sites que se configuram como consultórios gramaticais,
percebemos que a estrutura sendo que é analisada sob uma perspectiva normativista da
língua, conforme reproduzimos os exemplos e as sugestões, a seguir:
Exemplo 1: “O enfoque é outro, sendo que a justiça constitui a legitimação da norma.”3
Sugestões : 1ª O enfoque é outro, e a justiça constitui a legitimação da norma.
2ª O enfoque é outro; a justiça constitui a legitimação da norma.
Exemplo 2: “Em 1997 o curso à distância já contava com 160 mil alunos, sendo que
70% deles trabalhavam meio período.”
Sugestão : “Em 1997 o curso à distância já contava com 160 mil alunos, 70% dos quais
trabalhavam meio período.”
Os exemplos acima são apontados no site como casos de gerundismo e por isso
são vistos como maus exemplos de uso da língua. A nosso ver, não consideramos que se
trata de uso simplesmente de gerundismo até porque essa visão de língua foca somente
a forma, desconsiderando o caráter dinâmico e comunicativo, e essa forma engessada de
conceber a língua aparece nas sugestões de reescrita. O que observamos nas sugestões
apresentadas como correção é que ocorre uma perda de expressividade conforme pode
se verificar nas sugestões apresentadas para “correção”.
Como focamos nossa análise com base no uso, acreditamos que a primeira
sugestão apresentada com o conectivo e não seja a preferência do usuário porque
geralmente, ao empregar recursos gramaticais, o faz estabelecendo uma relação sintática
e semântica. Nesse caso, acreditamos que o fato de não empregar o conector e se deve
por esse ser associado à ideia de junção, de adição para um mesmo sujeito. Na verdade,
em casos como esse, com sujeitos diferentes, esse conector atua somente no nível
sintático, o que exige do usuário um conhecimento gramatical sistematizado e,
geralmente, adquirido na escola.
Na segunda sugestão de reescrita apresentada com o emprego do ponto e
vírgula, embora, sintaticamente, possa parecer correto, porém, semanticamente e
cognitivamente percebemos uma lacuna entre as duas orações, parece não haver
nenhuma relação entre ambas. Então, por não ser hábito o uso desse tipo de pontuação,
visto ser um recurso de ordem sintática, é natural que ocorra o desconhecimento desse
mecanismo.
A sugestão apresentada para o exemplo 2 com o uso do pronome relativo, a
nosso ver, apenas ocorre uma substituição do elemento referencial “deles” para “dos
quais”, além disso. Consideramos, do ponto de vista cognitivo, que o emprego dessa
construção é mais complexa para o usuário, visto que seu emprego é mais restrito à
escrita. O uso da construção sendo que, nesse caso, não está ocupando o espaço que
seria reservado ao pronome relativo, nem muito menos revela uma inadequação, um
desconhecimento de regras de escrita por parte do usuário. Antes, expressa uma atitude
do falante perante o que está sendo tratado. Nesse caso há a necessidade de fazer uma
ressalva com a finalidade de chamar a atenção para destacar uma parte do universo
descrito. Portanto, ao fazer uso da reescrita pautando-se na forma culta, deve-se
observar se a substituição não vai acarretar perdas de ordem cognitiva, semântica e
pragmática.
3
Os exemplos bem como as sugestões foram extraídos do sítio www.kplus.com.br/materia.asp?co=24.
Acesso em 02 jun. 2011.
Um outro site4 também faz referência à construção sendo que classificando-a
como locução conjuntiva causal e equivaleria a “uma vez que”, “visto que”, “porque”,
devendo, segundo o site, ser empregada somente nesse caso, e ilustra essa afirmação
com o seguinte exemplo:
3 “Sendo que a classe política perde credibilidade a cada dia, aumenta a tendência do
voto nulo nas eleições deste ano.”
O que percebemos no emprego de sendo que como locução conjuntiva causal é
que essa noção não está expressa na própria locução, mas sim nas orações nas quais é
possível perceber as relações de causa e consequência, porque há elementos lingüísticos
e extralinguísticos que orientam para essa compreensão: a competência enciclopédica e
a competência linguística, que permitem ao usuário da língua fazer suas escolhas no
léxico que melhor expressem o seu discurso. Se analisarmos do ponto de vista sintático,
veremos que é possível retirar a locução sendo que e mesmo assim, a relação causa e
consequência permanecerá. Por outro lado, analisando do ponto de vista pragmático, a
ausência dessa construção ocultará crenças e valores do usuário perante o que diz.
Ao mencionar outras ocorrências as quais não se enquadram nessa
classificação, a construção sendo que é vista como caso de gerundismo e sugerem que
essa estrutura seja substituída por e ou por ponto e vírgula, conforme pode se verificar
na sugestão de correção que apresentam e reproduzimos, a seguir:
4 “Encerrou-se o prazo para a entrega das declarações do imposto de renda, sendo que
os contribuintes que as enviaram pela internet serão os primeiros a receber a
restituição.”
Sugestão de correção: “Encerrou-se o prazo para a entrega das declarações do imposto
de renda; os contribuintes que as enviaram pela internet serão os primeiros a receber a
restituição.”
Há que se considerar que a construção sendo que é um exemplo de variação já
consagrada pelos usuários que a empregam sem nenhum problema para a compreensão
daquilo que se deseja transmitir.
Acreditamos que a escolha por esse uso se deva
por razões principalmente de ordem pragmática e cognitiva mediados pela sintaxe.
Bechara (2011), em artigo publicado em um jornal eletrônico do Rio de
Janeiro, destaca a naturalidade com que ocorre a estrutura sendo que, e não a considera
errada nem muito menos necessário evitá-la na escrita.
Realmente, a construção aparece repetida e condenada em
consultórios gramaticais, dicionários de dúvidas de linguagem e
manuais de redação, quando a sequência é usada como equivalente à
conjunção aditiva "e" ou à adversativa "mas". A crítica chega a
considerá-la tão pobre de força expressiva, que recomenda a supressão
ou, se se considera imprenscindível à ideia, que seja na oração
substituída por um gerúndio ou particípio do verbo ou, ainda, por um
pronome relativo ou conjunção subordinativa. Não falta quem a
considere agramatical, isto é, contrária à estrutura do idioma.
Esse gramático destaca ainda que a possibilidade de substitutos para essa
construção é possível pelo fato de as orações reduzidas de infinitivo, gerúndio e
particípio terem uma elasticidade semântica a ponto de cobrir diversas necessidades
expressivas do falante.
4
Os exemplos 3 e 4foram reproduzidos do site
http://www.escolainterativa.com.br/canais/18_vestibular/estude/portu/tem/por_038.asp.
Bechara, baseando-se em Augusto Epifânio da Silva Dias (1993), ainda ressalta
que essa construção surgiu entre os séculos XVI e XVII para dar maior ênfase, vindo a
substituir um particípio absoluto, e, portanto, a mera substituição pode implicar na falta
de clareza sobre o que é dito como ocorre, por exemplo, com o que se segue: “Os
autores concordam com essa teoria e os nacionais são ainda mais enfáticos" por "Os
autores concordam com essa teoria, sendo que os nacionais são ainda mais enfáticos".
Cunha (1986, p. 456 e 462) refere-se ao verbo ser como verbo de ligação e
como auxiliar, não encontramos nenhuma referência à construção que estamos
estudando. Encontramos informações no que diz respeito ao emprego do gerúndio e
assevera que essa forma nominal do verbo “apresenta o processo verbal em curso e
desempenha funções exercidas pelo advérbio ou pelo adjetivo”.
Ainda afirma que o gerúndio, posposto à oração principal, indica uma ação
posterior e equivale a uma oração coordenada iniciada pela conjunção “e”.
“Estávamos à porta de casa; deram-me uma carta, dizendo que vinha de uma
senhora” (M. de Assis, OC, I, 538, in CUNHA, 1986, p. 462)
Pode até ser que, em alguns contextos, as afirmações acima sejam válidas,
porém nos exemplos que vimos até agora, o verbo ser, no gerúndio, não se enquadra
nessa perspectiva, ou seja, não é advérbio, adjetivo nem mesmo apresenta o processo
verbal em curso.
FUNÇÕES DO SENDO QUE
Os exemplos que transcrevemos, a seguir, foram retirados do corpus D&GNatal, e a classificação que propomos leva em consideração a presença da estrutura
sendo que nos contextos de uso em que aparece nesse corpus. Assim, entendemos que a
análise tornar-se-á mais substancial se a construção for analisada no texto, a unidade
significativa de análise e não somente tomando-se a frase isolada.
Introdutor de consequência, resultado
A construção sendo que, no exemplo a seguir, a nosso ver, sintaticamente
assume o papel idêntico ao de uma conjunção ou locução conjuntiva por estar
estabelecendo gramaticalmente um encadeamento entre duas orações. Pragmaticamente,
vale destacar o valor enfático dessa expressão, a qual, semanticamente, introduz
consequência, resultado, o que pode ser percebido no que se segue à construção, quando
o informante justifica a atitude do chefe do acampamento ao recolher o alimento trazido
por todos os participantes, para, posteriormente, oportunizar a todos comer de tudo um
pouco.
1) (...) então feito uma fogueira ... depois da fogueira ... as pessoas sentaram ao redor
formando aquela roda ... e começou a divisão de alimentos ... cada um levou um
alimento na sua mochila ... pensando que ia comer sozinho ... mas quando chegou lá ...
o tenente que era o chefe de todos ... que ... era militar ... ele começou a revistar as
mochilas se ia tirando das mochilas as comidas ... e juntou tudo dentro de uma bolsa ...
quando chegou no acampamento ... ele pegou a comida que tava tudo junto e dividiu ...
sendo que ... cada pessoa comia de cada coisa uma ... ou seja ... o que eu levei ... eu não
comi sozinho ... eu tive que dividir com todos os amigos ... depois (D&G-NATAL,
narrativa de experiência pessoal oral, p. 142)
Também acreditamos que o usuário da língua, ao usar a construção nesse
contexto, e de posse da palavra, antecipa-se a qualquer juízo de valor que, por acaso, o
interlocutor venha a fazer. Podemos observar que, embora no fragmento predomine a
sequência narrativa, há uma manifestação argumentativa por parte do locutor sobre a
atitude do chefe do acampamento e caracteriza, nesse exemplo, a subjetividade do
indivíduo.
Oposição/contraste
No exemplo 2, um relato de procedimento na forma oral, observa-se que,
embora o foco do texto seja o “como fazer”, o informante introduz nesse relato seu
ponto de vista acerca da arte de desenhar, um comentário de força argumentativa,
portanto subjetivo, e a construção sendo que, nesse caso, reforçada também pelo
emprego da negação, denota oposição, nesse caso, ao ato de reprodução colocando o
papel sobre o desenho. O falante deixou transparecer que reproduzir olhando para a
figura é mais complexo, portanto teria um maior valor do que sobrepor o papel para
copiar o desenho. É interessante observar que o locutor parece também antever-se a
qualquer juízo por parte do interlocutor em torno do que representa a cópia em nossa
cultura e que ele valoriza, nesse caso, o que exige maior complexidade cognitiva, maior
destreza.
2) (...) a diferença entre uma cor e outra ... e o desenho se torna mais real ... então desenho pra
mim é coisa fundamental ... é a coisa que eu mais gosto de fazer ... ampliar ... é cópia ... sendo
que não botar papel em cima do desenho e fazer ... ampliar o desenho ... pode ter um de dez
centímetros e transformar em trinta centímetros ... e também ... sem esquecer os animais ... eu
não costumo desenhar animais ... mas ... quem desenha ... desenha tudo .... então pra mim
desenhar animais é como desenhar qualquer objeto ... porque o desenhista ... qualquer coisa que
vem na frente dele ... ele consegue desenhar ... porque ... a gente não vê assim ... ali é uma
pessoa ... ali é um animal ... (D&G-Natal, relato de procedimento oral, p. 146.)
No terceiro exemplo, uma narrativa recontada na forma escrita, cuja tipologia
se destaca por apresentar uma sequenciação de ações ocorridas no passado, ou seja, a
narração é predominante, observa-se que a construção sendo que configura-se como um
introdutor de um dado novo, a figura, e, ao mesmo tempo, o interlocutor intervém em
seu próprio relato para justificar a aproximação entre Batman e a Mulher-Gato que, na
ficção, representam dois valores morais antagônicos; ele, o bem e ela, o mal.
3) O climax da história acontece no momento em que Batman se apaixona pela mulher
gato.Sendo que, os dois não sabiam a sua identidade secreta. Pingüim por sua vez tem
um plano para detonar Gotham City. Este plano utilizava os pinguins como arma
secreta, onde cada pingüim levava um míssel que seria detonado automaticamente.
(D&G-NATAL, narrativa recontada escrita, p.149).
Sintaticamente, sendo que atua como um conector entre os dois períodos e, ao
mesmo tempo em que realiza a ligação, estabelece uma relação de sentido que, do ponto
de vista semântico, denota oposição, e para perceber essa relação, é necessário que o
interlocutor tenha um mínimo conhecimento sobre a história dos dois personagens, ou
seja, ative a sua competência enciclopédica
Explicação/restrição
A construção sendo que, no quarto exemplo, um texto que se configura como
uma descrição de local, na forma oral, atua sintaticamente, nesse contexto, como
elemento coesivo com o valor equivalente ao de uma locução pronominal relativa como
“dos quais” conforme pode se verificar, a seguir:
4) E: Carlos ... hoje nós vamos fazer uma:: na/ uma descrição ... você pode me descrever
um lugar que você gosta de ficar ... um ... um ... até que você não goste ... mas você tem
que descrever esse local bem minuncioso ... com bas/ bem detalhes ... você tem que
desenhar esse local na minha cabeça né? depois eu vou lá e confirmo se é mesmo
((riso)) qual que ... o que que você vai descrever?
I: é ... eu vou descrever a ... a UNIPEC né ... onde eu passo ... eu passo o dia todo em
casa e eu ... o melhor lugar que eu acho pra ... o melhor lugar que eu passo durante o dia
... quando eu saio é na ... na ... lá na ... na faculdade mesmo ... onde eu tenho meus
amigos lá e tudo ... é a UNIPEC ... são é ... é composto de três prédios ... quatro prédios
... sendo que três é num local e outro é ... um fora do ... do ... do local aonde a gente
estuda né ... o primeiro prédio ... o primeiro prédio um ... chamado prédio um é o prédio
velho ... ele na ... na entrada tem jardim bem grande né ... ( D&G-NATAL, descrição de
local oral, p. 09)
Semanticamente, a expressão sendo que introduz uma explicação, e nesse
exemplo, pragmaticamente o usuário procura esclarecer melhor sobre a divisão e
localização dos prédios, antevendo-se assim a qualquer julgamento por parte do
interlocutor. Percebemos também que embora a sequência descritiva seja a
predominante, há a manifestação subjetiva por parte do locutor imprimindo sua
impressão sobre o que diz.
Diante da análise empreendida aqui, percebemos que em todas as ocorrências
analisadas tanto dos sites como as do D&G, independentemente da sequência textual, o
locutor não se limita apenas à transmissão de uma informação seguindo os padrões de
produção textual configurado em um gênero. Seu discurso não é neutro, o usuário da
língua se faz presente imprimindo seus valores e crenças, e a construção sendo que é
um exemplo disso quando manifesta a atitude do falante em antecipar-se a um possível
julgamento do interlocutor que não seja condizente com a prevista pelo locutor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A construção sendo que é um exemplo dos muitos casos de uso da língua que
ilustra o caráter maleável da gramática, um sistema adaptativo, resultante da fixação de
padrões provenientes do processamento cognitivo, cuja fonte é a experiência humana
com a linguagem, experiência essa que se insere em um contexto sociointeracional e
cultural.
Essa estrutura não é relativamente nova, haja vista sabermos de sua presença a
partir do século XVI (SILVA DIAS, 1993), portanto esse uso já está cristalizado na
língua o que o evidencia como um caso de gramaticalização de construções. Não
obstante ainda não tenhamos empreendido uma pesquisa nos textos daquele século,
percebemos, nos textos mais atuais (séculos XX e XXI), que essa estrutura é uma
variante de uso mais coloquial, embora já tenhamos encontrado o emprego produtivo
dessa construção em um artigo acadêmico.
Observamos também que o uso da construção sendo que ocorre em qualquer
sequência textual: narrativa, descritiva, argumentativa, e essa estrutura atua como
conector gramatical, seja interfrásica ao estabelecer conexão entre as orações, seja
referencial, quando retoma um referente no texto. Ao mesmo tempo em que
desempenha um papel sintático, a construção imprime crenças e valores do usuário da
língua, portanto gramática e discurso interagem entre si, os aspectos semânticos e
pragmáticos motivam a criação de novos padrões de uso, fruto de uma negociação
constante entre locutor e interlocutor.
Diante do exposto, concluímos que se faz necessário atentar para um ensino
que não valorize a perspectiva normativista da língua, mas que, diante do
reconhecimento da inter-relação discurso e gramática, o docente possa oportunizar um
estudo reflexivo sobre a língua, reconhecendo a dinamicidade desse sistema que permite
criar bem como aproveitar o que já existe e acrescentar-lhe novas possibilidades de uso.
Isso não ocorre meramente pela invenção criativa do usuário, mas por existir uma
relação de identidade, sintática, semântica e pragmática e seria coerente que o professor
apresentasse as possibilidades de realizações que a língua oferece para que assim o
usuário possa fazer suas escolhas de forma consciente e que venha atender seus
propósitos de se fazer entender pelo outro.
REFERÊNCIAS
BECHARA, I. “Sendo que" e uma crítica infundada. O Dia (RJ), 10/4/2011.
Disponível
em:
http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?from_info_index=26&info
id=11409&sid=771. Acesso em 20 jun. 2011.
BYBEE, J. Language, usage and cognition. Cambridge: CUP, 2010.
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