Baixar este arquivo PDF

Propaganda
REVISITANDO OS FENÔMENOS DE GRAMATICALIZAÇÃO E LEXICALIZAÇÃO
Júlia Langer de Campos1
RESUMO: Este artigo se propõe a elucidar dois importantes fenômenos de mudança linguística
dentro da linha teórica da Linguística Centrada no Uso (nova terminologia dos estudos
Funcionalistas), a Gramaticalização e a Lexicalização. O objetivo geral é pontuar semelhanças e
divergências entre os dois processos e, assim, auxiliar as pesquisas sobre os assuntos. Além disso,
este artigo traz uma nova roupagem dos estudos em gramaticalização, evidenciando novas
tendências da teoria funcionalista da linguagem.
PALAVRAS-CHAVE: Gramaticalização, Lexicalização, Gramaticalização de construções.
ABSTRACT: This paper aims to elucidate two important language change phenomena within the
theoretical line Used Based Model (new terminology of Functionalists studies), the
Grammaticalization and Lexicalization. The overall goal is to point similarities and differences
between the two processes and thus help the research subjects. Moreover, this article brings a new
idea of studies in grammaticalization, highlighting new trends in functionalist theory of language.
KEY-WORDS
Linguistc
Change,
Gramaticalization,
Lexicalization,
Construction
gramaticalization.
INTRODUÇÃO
A gramaticalização e a lexicalização são fenômenos mais específicos de uma grande área
dos estudos linguístico, que é a mudança linguística. Ambos são processos graduais e apresentam
características semelhantes no que diz respeito à direção natural da mudança que veiculam, mas se
distinguem quanto ao escopo e ao resultado do processo de mudança. Faz-se necessário diferenciar
os fenômenos citados, pois, por apresentarem características que os aproximam, muitas vezes são
confundidos quando nos deparamos com dados linguísticos. Elucidaremos melhor essa questão nos
tópicos a seguir, definindo as características de ambos os fenômenos. No entanto, antes, vejamos a
distinção entre categorias lexicais e gramaticais:
Léxico: É constituído de elementos que estabelecem uma relação de referência com dados
do universo biossocial: designam entidades, ações e qualidades (Martelotta, Votre e Cezario, 1996).
Esses elementos possuem valor referencial, e, portanto, um caráter objetivo, uma vez que refletem
uma associação mais direta com fatos do mundo extralinguístico. São consideradas categorias
lexicais: substantivos, verbos plenos, adjetivos.
Gramática: É formada de elementos que organizam os itens do léxico no discurso,
adequando-se a restrições morfossintáticas ou veiculando estratégias pragmático-discursivas. Esses
elementos possuem um valor estrutural ou funcional, que, por assumirem um papel referente à
organização interna do discurso, possuem caráter mais subjetivo. Exemplos: preposições,
conjunções, artigos, verbos auxiliares e marcadores discursivos.
No entanto, a distinção entre categorias lexicais e gramaticais não é tão simples, alguns
elementos não se encaixam totalmente em nenhum dos dois pólos, como os advérbios, por exemplo,
que, ao expressarem circunstâncias, aproximam-se das categorias lexicais, mas também exibem
características de classes fechadas, confundindo-se, em alguns casos, com conjunções. A questão é,
1
Doutoranda em Linguística - UFRJ - [email protected]
REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 01 - Nº 01 – jan./jun 2016
portanto, bastante complexa, uma vez que, dentro das diferentes classes, se encontram elementos de
natureza diferente (Lehman, 2002). Isso nos leva a concluir, com base, sobretudo, em Traugott e
Dasher (2005), que a distinção entre léxico e gramática não é categórica, devendo ser entendida
como um continuum, que apresenta, de um lado, elementos prototipicamente lexicais, como o
substantivo e o verbo pleno, e de outro, elementos prototipicamente gramaticais, como a preposição
e a conjunção.
A seguir, será discutida a questão do continuum entre léxico e gramática e dos processos de
mudança linguística que envolvem elementos desta ou daquela categoria, a fim de delimitar o
objeto e resultado de cada fenômeno. Passemos, então, a definir gramaticalização e lexicalização.
GRAMATICALIZAÇÃO
Sob a perspectiva da Linguística Centrada no Uso, a gramática é um organismo maleável
que, por um lado possui mecanismos estáveis, e por outro está susceptível a mudanças advindas da
necessidade de criar formas mais expressivas e que atendam às exigências discursivas, originando
formas emergentes. A gramaticalização está associada aos mecanismos emergentes da gramática; à
necessidade de refazer-se.
Em linhas gerais, a teoria da Gramaticalização (Hopper e Traugott, 2003; Traugott e
Dasher, 2005; Heine e Kuteva, 2007) diz que itens lexicais ou construções gramaticais, num
determinado contexto e numa trajetória unidirecional2, passam a assumir funções gramaticais e uma
vez já gramaticais, podem assumir funções ainda mais gramaticais.
Nesse sentido, entende-se que a gramaticalização pode atuar de duas formas: (i) léxico >
gramática (Ex: substantivo mente > sufixo –mente); (ii) dentro da própria gramática: menos
gramatical > mais gramatical (Ex: aí anafórico > aí conclusivo). Além disso, o processo de
gramaticalização pode estar para além do item, envolvendo construções gramaticais. Nesses casos,
normalmente, há a coalescência dos elementos e a perda de material fonético, como ocorre, por
exemplo, com a passagem de em boa hora (locução adverbial temporal) > embora (conjunção
concessiva), como vê-se no cline a seguir:
(1) Vay-te embora, ou na má hora. (sentido 1- Loc. Adv. Temporal)
(2) Ria embora quem quiser, que eu em meu siso estou. (Ambíguo entre 1 e 2)
(3) Embora esteja chovendo, eu vou à praia. (sentido 2- conjunção concessiva)
Nos exemplos acima, vemos um cline de mudança que caminha de um sentido menos
gramatical (sentido 1) para um sentido mais funcional e gramatical (sentido 2); no entanto, entre um
e outro, a língua, geralmente, passa por um estágio de ambiguidade, em que o interlocutor pode
interpretar a construção embora tanto como uma locução de tempo, pois entende-se que seria uma
boa hora para rir, quanto como uma conjunção de sentido concessivo, em que não importa quem
queira rir, pois o locutor permanecerá em seu siso. Isto ocorre até que o sentido 2 se firme na língua,
o que também não anula a coexistência entre a forma nova e a de origem.
Além do exemplo expresso acima, podemos pensar também no sufixo de formação de
advérbios na língua portuguesa, o sufixo -mente (ex: tranquilamente). Este sufixo também é
resultado do processo de gramaticalização, uma vez que a palavra que o originou foi um substantivo
latino mens, no ablativo mente, categoria prototipicamente lexical, que designa atividade mental,
psíquica, e que com a história e evolução das línguas românicas fixou-se como uma categoria
gramatical - de afixo - para formação de advérbios no português e em outras línguas românicas.
Com a análise deste fenômeno, entende-se que ocorrem dois movimentos envolvendo o
processo de gramaticalização: o primeiro que afeta apenas o item mente, em que este elemento
migra de uma categoria representacional (substantivo) para uma categoria funcional (sufixo), e o
segundo que engloba o contexto de uso, isto é, a construção adjetivo + mente, em que há a
2
A unidirecionalidade é uma das características do processo de gramaticalização, no sentido de que elementos
representacionais se tornam funcionais, e não ao contrário.
Júlia Langer de Campos
REVISITANDO OS FENÔMENOS DE GRAMATICALIZAÇÃO...
univerbação3 entre esses elementos, não havendo perdas fonéticas, mas sim a redução de dois
vocábulos fonológicos para apenas um. Sendo assim, no primeiro movimento descrito, os elementos
envolvidos na gramaticalização preservam seu caráter composicional, ou seja, o falante reconhece
os elementos formadores da construção e o valor semântico é resultado da soma das partes
formadoras. Vejamos um exemplo ilustrativo:
(4) sagaci mente locarunt (Lucrécio, p:11022/ L.C)
Falem com a mente sagaz.
No exemplo acima, o sentido da construção é totalmente composicional, isto é, a semântica
da construção é resultado da composição (soma) dos sentidos do adjetivo sagaci e do substantivo
mente que, juntos, formam um sintagma adjetival e desempenham função sintática de adjunto
adverbial, função atribuída ao caso ablativo no latim. Sendo assim, uma das traduções possíveis
para o adjunto adverbial é a apresentada acima, em que demonstra a maneira como a mente humana
deve estar no momento da ação verbal. Já no segundo movimento de gramaticalização, em que
consideramos o contexto discursivo, toda a construção se gramaticaliza e gradativamente vai
perdendo seu caráter composicional, isto é, a semântica da construção não é mais o resultado da
soma das partes que a compõe, como se vê em qualquer advérbio qualitativo, como por exemplo:
(5) Ele caminha tranquilamente pelas ruas da cidade.
Neste caso, o item mente não possui mais o sentido de atividade psíquica, pensamento,
intelecto, etc, mas é a parte preenchida de uma construção mais ou menos esquemática Xmente, em
que X é um adjetivo (parcela que forma o slot da construção4) mais o elemento mente, esta
construção resulta num valor qualitativo (ou tradicionalmente de modo) modificando o núcleo
verbal. No exemplo (5) vemos isto acontecer, a forma adverbial tranquilamente modifica o verbo
caminha e não mais a forma como se encontra a mente do locutor no momento em que caminha.
Este mecanismo passa a ser produtivo na língua para formação de advérbios qualitativos. O falante,
na observação sincrônica da língua, não recupera o sentido dos elementos formadores da
construção.
Na gramaticalização, os elementos podem perder a liberdade sintática e tornam-se mais
fixos e regulares. Assim, o vocábulo mente, que era relativamente livre no latim, como qualquer
substantivo, passa a ter uma posição fixa em relação ao adjetivo quando este se gramaticaliza como
sufixo, gerando um processo previsível e regular de formação de novas construções. É importante
ressaltar que um substantivo passa a assumir função de sufixo e não ao contrário, o que corrobora o
fato de processos de gramaticalização serem unidirecionais.
Entende-se que elementos gramaticais (funcionais ou interpessoais) não fazem referência
ao mundo biossocial, não nomeiam seres, ações ou qualidades, mas são elementos que tem função
discursiva, que organizam a comunicação. Funcionam no nível interpessoal, pois refletem a posição
do falante em relação ao que diz, isso engloba marcas morfossintáticas como: tempo, aspecto,
número, pessoa, modo, etc, bem como estratégias discursivo-pragmáticas: modalização, intenção,
pressuposição e outras que indicam a perspectiva do falante em relação ao conteúdo transmitido.
Nesse sentido, a gramaticalização utiliza formas linguísticas com sentido mais concreto na
designação de conceitos mais abstratos. Portanto, podemos afirmar que a gramaticalização segue o
continuum do concreto > abstrato, em que estruturas do léxico (+ concreto) passam a assumir
valores gramaticais (+ abstrato) ou ainda, como já dito, estruturas já gramaticais podem assumir
funções ainda mais funcionais, como são os clíticos, morfemas e afixos. Para ilustrar este ponto,
pensemos na desinência modo temporal -re-, que indica futuro do presente no português. Este
morfema é resultado da gramaticalização de estrutura perifrástica de futuro composta pelo verbo
3
Univerbação é a transformação de uma construção num único vocábulo.
Uma construção tem níveis de esquematicidade, ou seja, pode apresentar mais ou menos partes a serem preenchidas
pelos falantes (os slots) ou podem ainda ter partes que já são previamente determinadas pela construção.
4
3
REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 01 - Nº 01 – jan./jun 2016
auxiliar haver e um verbo principal e que, na história da língua, passou pela seguinte trajetória: hei
de amar > amar hei > amrei. Aqui vemos uma categoria gramatical (verbo auxiliar) se tornar mais
gramatical por ser mais presa e dependente (desinência).
A tendência é que a gramaticalização ocorra com itens ou construções muito frequentes,
como ressalta Bybee (2003), pois assim o(s) elemento(s) em questão pode(m) sofrer desgaste
fonético, perder expressividade, deixar de fazer referência a entidades do mundo biossocial e passar
a assumir funções mais abstratas ou mais funcionais. Segundo a autora, a frequência não é apenas o
resultado da gramaticalização, mas também o fator primário que contribui para o processo, uma
força que instiga a mudança.
Além do papel da frequência, outros fatores contribuem para que ocorra a
gramaticalização. Heine e Kuteva (2007) propõem quatro parâmetros atuantes na mudança por
gramaticalização. Nestes parâmetros, existe a interação de aspectos pragmáticos, semânticos,
morfológicos e fonéticos. São eles: Extensão, Dessemantização, Decategorização e Erosão.
Vejamos mais detalhadamente cada um deles:
a) Extensão: é o uso das expressões recrutadas em novos contextos. Ou seja, uma
expressão que é usada apenas em determinados contextos, tem seu uso estendido, passando a
ocorrer em novos contextos, até então, não esperados. Conforme já foi dito, para criarmos novos
rótulos não criamos novas formas, mas recrutamos formas já existentes na língua para
desenvolverem novas funções.
b) Dessemantização (bleaching, redução semântica): é uma consequência imediata da
extensão, pois o uso de uma expressão em um novo contexto implica a perda de significados não
compatíveis com esse contexto e passa a assumir novos valores semânticos. Os elementos
envolvidos no processo de gramaticalização perdem valor referencial, e, ao assumir a nova função
gramatical, adquirem valores de natureza pragmático-discursiva. A dessemantização também pode
ser consequência de uma possível perda de expressividade, proveniente da frequência de uso. Vale
ressaltar que uma forma recrutada para gramaticalização perde material semântico, mas, ao menos
tempo, ganha material semântico proveniente de novo contexto. Então, há, na verdade, uma troca.
c) Decategorização: envolve a perda de propriedades morfológicas e sintáticas que deixam
de ser relevantes para o uso gramaticalizado, incluindo a perda do status de forma independente
(clitização, afixação), bem como mudança de classe gramatical. Com isso, os elementos perdem a
liberdade sintática, característica dos itens lexicais, deixando de ser opcionais e tornando-se
obrigatórios.
d) Erosão (redução fonética): perda de substância fonética, tendendo a sofrer coalescência
(fusão de formas adjacentes) e condensação (diminuição de forma).
Visto as principais características do fenômeno da gramaticalização, passaremos agora a
caracterização dos elementos representacionais e do processo de lexicalização.
LEXICALIZAÇÃO
Seguindo os critérios descritos por Brinton e Traugott (2005), os autores defendem que,
embora haja semelhanças entre os processos de gramaticalização e lexicalização, como o fato de
serem processos graduais; considerarem o contexto de uso e promoverem a perda de fronteiras e de
composiconalidade, estes são fenômenos distintos, pois abrangem categorias distintas e, como não
poderia ser diferente, geram resultados (output) diferentes na língua.
Tradicionalmente, lexicalização é definida como um processo de criação de novas formas
lexicais, modificando ou combinando elementos já existentes. Na visão de Brinton e Traugott
(2005), este fenômeno é definido como um processo de mudança linguística que ocorre em
contextos específicos. Vejamos as palavras dos autores:
Júlia Langer de Campos
REVISITANDO OS FENÔMENOS DE GRAMATICALIZAÇÃO...
“os falantes utilizam uma construção sintática ou processos de formação de
palavras como uma nova forma significativa, contendo propriedades formais
e semânticas que não são completamente deriváveis ou previsíveis a partir
dos constituintes da construção ou do padrão da formação de palavras.
Através do tempo, pode ocorrer mais perda da constituição interna e o item
pode se tornar mais lexical” (2005: 96).
A principal divergência entre gramaticalização e lexicalização está no resultado dos
processos. Enquanto aquele gera elementos mais funcionais, abstratos e não-referenciais; este
resulta em elementos de caráter representacional e de alto grau de idiomaticidade. Assim,
expressões idiomáticas são consideradas resultantes do processo de lexicalização, como por
exemplo: olho de sogra (doce), colher de chá (mais uma chance), mal estar (incomodo), etc.
Brinton e Traugott (2005) ressaltam que não se confundir a lexicalização com os processos comuns
de formação de palavras como derivação, composição e conversão, pois estes são processos
instantâneos de formar novas palavras e não graduais, em que as formas em questão sofrem
pressões diacrônicas e vão assumindo novos valores semânticos ao longo do tempo, incluindo perda
de composicionalidade e de fronteiras.
Ramat (2012) também chama atenção para o fato de que a lexicalização não ocasiona
impacto no sistema morfológico das línguas. O autor dá como exemplo para este fenômeno os itens
lexicais oggi, no italiano, e hoy, no espanhol, alegando que esses itens foram formados
gradativamente, sofreram univerbação e perderam a composicionalidade. Ao passo que as formas
de futuro no inglês will e shall serviram como meio de agrupamento para constituir uma forma
gramatical no paradigma verbal desta língua.
Estas considerações teóricas são importantes para pesquisas na área. Voltando ao caso da
construção Xmente, Gramáticas tradicionais (GTs), por exemplo, consideram a formação de
advérbios pelo acréscimo do sufixo -mente como um processo de derivação sufixal (processo
comum de formação de palavras), o que vai contra do que pesquisas indicam sobre este caso
(Campos, no prelo). Ao mesmo tempo, este fenômeno também não se enquadra em um estudo de
lexicalização, pois o resultado do processo não é um item lexical de caráter representacional, que
precisa ser aprendido pelos falantes, mas sim em um mecanismo produtivo, que está disponível no
sistema gramatical de línguas como o português, italiano, espanhol e francês. Logo, afeta o sistema
morfológico, característica da gramaticalização, segundo Ramat (2012).
A fim de definir ainda mais os mecanismos de gramaticalização e lexicalização,
recorremos mais uma vez a Brinton e Traugott (2005), em que dizem estes são processos paralelos,
porém operam em níveis diferentes da língua. Ao passo que a lexicalização envolve um sintagma
que se torna mais lexical (ex: mother-in-low), a gramaticalização envolve um sintagma que se torna
mais gramatical (ex: be going to; in front of). No nível semântico, quando um sintagma ou vocábulo
sofre lexicalização, um componente semântico específico é adicionado, mas quando um termo é
gramaticalizado “um componente semântico específico é perdido e um significado operacional ou
categorial é gerado” (p: 68). Podemos visualizar o que foi proposto pelos autores com o seguinte
esquema:
LEXICALIZAÇÃO
(–) Lexical > (+) Lexical
GRAMATICALIZAÇÃO
Lexical > Gramatical OU (–) Gramatical > (+)
Gramatical
Sendo assim, a formação da construção Xmente é tratada como um estudo de
gramaticalização e não de lexicalização ou de derivação sufixal por atender aos critérios desse
mecanismo de mudança. Em relação à gramaticalização do item mente, não há questionamentos de
que se trata de um fenômeno de gramaticalização, pois é uma trajetória de mudança unidirecional
5
REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 01 - Nº 01 – jan./jun 2016
que vai do léxico para a gramática (substantivo > sufixo). A dúvida recai, portanto, quando
pensamos em toda a construção, quando esta se torna um mecanismo de formação de novas formas
linguísticas.
Retomando o que diz os autores Brinton e Traugott (2005), processos de formação de
palavras como a sufixação, por exemplo, são processos instantâneos e que acumulam conteúdo
lexical, isto é, o sufixo carrega informações semânticas que são adicionadas à base, e esse somatório
gera uma nova forma também de caráter representacional. Ex: sufixo -ada + feijão = feijoada (prato
típico feito de feijão). Mas os autores ressaltam que estes mecanismos são diferentes do fenômeno
da lexicalização. Segundo eles, este processo envolve gradualidade e implica na fusão de formas,
mais conhecido como blending5, em que duas ou mais formas se fundem formando uma terceira,
com sentido novo e não-composicional. Em outras palavras, essa nova forma perde a identidade
semântica das formas que a compõem, fazendo com que possuam um alto grau de idiomacidade.
Como já foi exemplificada anteriormente, a construção olho de sogra refere-se a um tipo de doce e
não ao olho da sogra de alguém (sentido composicional). Neste caso, percebemos que a semântica
da construção não é o somatório das partes que a compõem, mas é o resultado de um processo
gradual que envolve frequência de uso e rotinização, gerando em novo item de valor
representacional.
Para resumir o que foi dito até aqui, propomos o seguinte quadro comparativo entre os dois
processos:
LEXICALIZAÇÃO
Resulta em formas +representacionais,
+lexical, +concretas.
São formas +idiomáticas e –composicionais
Não provoca impacto no sistema
morfológico
Reflete baixa regularidade
Conteúdo semântico é adicionado
Reduz a classe hospedeira
GRAMATICALIZAÇÃO
Resulta em formas +funcionais,
+gramaticais, +abstratas.
São formas –idiomáticas e + discursivas
Provoca impacto no sistema morfológico
É altamente regular
Ocorre dessemantização
Aumenta a classe hospedeira
Quadro comparativo entre os processos de mudança por lexicalização e gramaticalização.
GRAMATICALIZAÇÃO DE CONSTRUÇÕES
É importante para a proposta desenvolvida neste subitem entendermos o conceito de
construção. Goldberg, em 1995, publica um livro dedicado aos estudos de construções6 e nele
propõe que qualquer elemento formal, diretamente associado a algum sentido, é uma construção
gramatical. A partir dessa noção, ela apresenta um modelo de gramática baseada em construções,
chamada de Gramática das Construções (GC). Essa abordagem abandona totalmente a separação
rígida entre léxico e sintaxe e é também a principal alternativa teórica ao modelo proposto por
Chomsky (1957).
Goldberg (1995) afirma que as construções não devem ser marginalizadas, como vinham
sendo no estudo das línguas. Ao contrário, diz que construções são unidades básicas da língua e
devem ser reconhecidas como entidades teóricas que carregam significados em si mesmas,
independentemente dos elementos que as compõe, sendo necessário analisar as estruturas que
formam a língua.
Conforme a Gramática das Construções (GC):
5
6
O uso da palavra blending neste caso, não se refere ao fenômeno da mesclagem proposto pela Linguística Cognitiva.
O livro é intitulado como: Constructions: A Construction Grammar Aproach to Argument Structure.
Júlia Langer de Campos
REVISITANDO OS FENÔMENOS DE GRAMATICALIZAÇÃO...
“C é uma construção se e somente se C é
um pareamento de forma e significado <Fi Si> tal
que nenhum aspecto de Fi ou de Si não é estritamente
predizível das partes componentes de C ou de outras
construções previamente estabelecidas.7” (apud
Goldberg 1995:04)
A partir da definição acima, percebemos também o caráter não-composicional das
construções, pois o significado resultante delas não se trata da soma das unidades lexicais que as
compõe. A ligação entre forma e conteúdo é convencionalmente construída em termos semânticos e
internos à construção, por isso são consideradas unidades simbólicas.
A GC trouxe muitas contribuições para os estudos de gramaticalização, principalmente no
que diz respeito ao caráter translinguístico desta teoria. Croft (2001) estabelece uma relação entre a
GC e a gramaticalização, o autor faz as seguintes observações: (i) no processo de gramaticalização,
a construção como um todo, muda de significado; (ii) a construção emergente se torna polissêmica
em relação ao sentido original; (iii) a extensão da construção para novos usos é o reflexo da
mudança na distribuição desta construção na língua. O autor ressalta ainda que essas mudanças são
teorizadas para seguir caminhos conectados no espaço conceptual do falante.
Himmelmmann (2004) também defende que a gramaticalização se aplica à construções,
pois focaliza o contexto morfossintático e não apenas um elemento. Segundo ele, é um movimento
de expansão de contexto. Nesse sentido, parece haver uma consonância entre as duas propostas, isto
é, entre a GC e a teoria da gramaticalização, pois o processo de formação de novas construções
pode ser advindo de um fenômeno de gramaticalização.
Na verdade, mesmo numa visão mais tradicional, a teoria da Gramaticalização sempre
privilegiou o contexto de uso e é neste contexto, restrito e determinado, que há a gramaticalização.
Consoante a Hopper e Traugott (2003), gramaticalização é um processo de mudança que, em
contextos morfossintáticos e pragmáticos altamente restritos, é atribuída uma função gramatical ao
material lexical. Essa visão aponta para uma unidade mais complexa do que o item lexical em si.
Noël (2007) propõe uma visão diacrônica sobre os estudos da GC, cuja maioria dos
trabalhos tem caráter sincrônico. De acordo com a visão do autor, teóricos de ambas as áreas
poderiam integrar a gramaticalização na CG ou mesmo fundir as duas disciplinas, no que ele
chamaria de diachronic construction grammar (gramática diacrônica das construções) com o
grande objetivo de responder a seguinte pergunta: como as línguas adquirem construções?
Embora na GC morfemas e palavras sejam, por si mesmos, construções, a maior
importância das construções se apresentou mais tarde: não são apenas morfemas e palavras que se
tornam gramaticais, mas também expressões (com mais de uma palavra) como no inglês: instead of
(de in stede of), indeed (de in dede), anyway (de any way), etc e no português: apenas (de a penas),
agora (de hac ora), embora (de em boa hora), etc.
É isso que a palavra construction quer dizer na definição de Hopper e Traugott (2003):
“the change whereby lexical items and constructions come in certain linguistic contexts to serve
grammatical functions and, once grammaticalized, continue to develop new grammatical functions”
(2003: 18)8 . Seguindo este raciocínio, é mais correto dizer que o item se gramaticalizou dentro de
um contexto ou que determinado contexto se tornou gramatical.
Muitos teóricos da gramaticalização admitem a existência de construções em seus estudos,
como Bybee, Haspelmath e Givón, que incluem a ordenação vocabular, por exemplo, como casos
de gramaticalização. Se gramaticalização é a criação de novas construções (e seus
desenvolvimentos subsequentes), então a teoria pode incluir mudanças que não envolvem apenas
7
Tradução livre de: “C is a construction iffdef C is a form-meaning pair <Fi Si> such that some aspect of Fi or some
aspect of Si is not predictable from C’s component parts or from other previously established constructions.”
8
Tradução livre: “é a mudança pela qual itens lexicais e construções passam, em determinados contextos lingüísticos, a
desempenhar funções gramaticais e, uma vez já gramaticalizados, continua a desenvolver novas funções gramaticais”
(2003:18).
7
REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 01 - Nº 01 – jan./jun 2016
morfemas específicos, mas as que criam padrões na língua. Assim, entendemos que a
gramaticalização acarreta mudanças sistemáticas na língua, reorganizando aspectos centrais da
linguagem, tanto de forma sintagmática, quanto paradigmática.
Admitindo a existência de construções e que o desenvolvimento do material gramatical é
caracterizado pela co-evolução dinâmica de forma e significado, Hilmmelmann (apud Traugott,
2011) diz que a gramaticalização é caracterizada por três tipos de expansão:
a)Host-class (classe hospedeira): uma forma em gramaticalização amplia a classe
hospedeira, aumenta seu nível de produtividade;
b) sintática: extensão da posição de argumentos para adposições;
c) semântico-pragmática: uma forma em gramaticalização desenvolve polissemias em
novos contextos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o que vimos aqui, chega-se a conclusão de que Gramaticalização, Lexicalização e
Gramaticalização de Construções convergem em alguns pontos, mas se diferenciam em muitos
outros. Por muitos anos os estudos funcionalistas da linguagem lideravam pesquisas em
gramaticalização sob a perspectiva do item, sem considerar a noção de que a língua é uma rede
cognitiva de construções linguísticas, isto é, pares de forma e sentido que se organizam e se
relacionam nesta rede. Uma vez a teoria dotada desta noção, o processo de gramaticalização passou
a ser entendido da seguinte forma: construções menos esquemáticas (ou mais substantivas) passam
a ser mais esquemáticas (ou menos substantivas). Quanto mais esquemática uma construção, mais
produtiva ela será. Por outro lado, o processo de lexicalização resulta em construções mais
representacionais, mais lexicais. Este, portanto, diferencia-se daquele, sobretudo, no resultado do
processo, naquilo que fica como output na língua.
Contudo, vale ressaltar que qualquer processo de mudança linguística, sob a perspectiva
teórica da Linguística Centrada no Uso, ocorre de forma gradual e não abrupta. Além disso, como a
língua é um conjunto de pares forma-sentido organizadas numa rede conceptual e que formam um
todo coeso, as categorias linguísticas não são fechadas, mas sim de fronteiras fluidas, o que permite
que um elemento atue em diferentes contextos discursivos, perca material semântico, ganhe novos
significados, mude suas propriedades morfológicas e/ou fonológicas, sua disposição sintática,
dentre outros e, assim, mude seu status. A Linguística Centrada no Uso, além de fatores estruturais,
também considera como fundamental para que haja mudança nas línguas questões ligadas ao
contexto discursivo, como as intenções comunicativas, conhecimento compartilhado entre locutor e
interlocutor, conhecimento de mundo, representatividade, frequência, etc. Não só isso, como
também e de tamanha importância, habilidades cognitivas gerais que estão na base do conhecimento
da espécie humana, tais como: atenção, memória, categorização, conhecimento analógico, dentre
outros (Bybee, 2010). Tudo isso deve ser considerado quando se analisa um processo de mudança
linguística sob a ótica funcionalista da linguagem.
REFERÊNCIAS:
BARLOW, Michael e KEMMER, Suzanne (eds.). Usage based models of language. Stanfornd,
California: CSLI Publications, 2000.
BYBEE, Joan. Language, usage and cognition. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.
BYBEE, Joan. Mechanisms of change in grammaticization: the role of frequency. In: JOSEPH, B.,
JANDA, R. (Org.). A handbook of historical linguistics. Malden, MA: Blackweel Publishing, 2003.
Júlia Langer de Campos
REVISITANDO OS FENÔMENOS DE GRAMATICALIZAÇÃO...
CAMPOS, J. A origem latina dos advérbios em -mente: um processo de gramaticalização. Revista
Guavira Letras, vol.13, p. 109-123, 2011.
CAMPOS, J., CEZARIO,M. M, ALONSO, K. Formação da construção Xmente. Revista Delta, vol.
Documentação de estudos em Linguística teórica e aplicada (Online). No prelo.
CROFT, W. Radical Construction grammar: syntactic theory in typological perspective. Oxford:
Oxford University Press, 2001.
FURTADO DA CUNHA, M. A., RIOS DE OLIVEIRA, M. & MARTELOTTA, M. (Orgs.)
Lingüística funcional: teoria e prática.Rio de Janeiro: DP&A, 2003
GOLBERG, A. E. Constructions: a construction grammar approach to argument structure.
Chicago: The University of Chicago Press, 1995.
HEINE, Bernd e KUTEVA, Tânia. The genesis of grammar: a reconstruction. Oxford: University
Press, 2007.
HIMMELMANN, Nikolaus P. Lexicalization and Gammaticalization: Opposite or orthogonal? In:
Bisang Himmelmann & Wiemer (ed.), 2004.
HOPPER, Paul J. & TRAUGOTT, Elizabeth-Closs. Grammaticalization. Cambridge: Cambridge
University Press, 2003.
MARTELOTTA, Mário E. Mudança Linguística: uma abordagem baseada no uso. São Paulo:
Cortez, 2011.
NOËL, D. Diachronic construction grammar vs. Grammaticalization theory. 2006. Disponível em:
<:// http hub.hku.hk/handle/123456789/38694>. Acesso em: 10 jul. 2014.
TRAUGOTT, Elizabeth C. e BRINTON, Laurel J. Lexicalization and language change.
Cambrige: Cambridge University Press, 2005.
9
Download