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UNIVERSIDADE DO OESTE DE SANTA CATARINA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
MESTRADO EM DIREITOS FUNDAMENTAIS
PATRICIA LUZIA STIEVEN
O DIREITO AO CONHECIMENTO DA IDENTIDADE GENÉTICA NA
REPRODUÇÃO HUMANA HETERÓLOGA
CHAPECÓ – SC
2016
1
PATRICIA LUZIA STIEVEN
O DIREITO AO CONHECIMENTO DA IDENTIDADE GENÉTICA NA
REPRODUÇÃO HUMANA HETERÓLOGA
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação Stricto Sensu – Mestrado em Direito da
Universidade do Oeste de Santa Catarina, como
requisito parcial para obtenção do grau de Mestra em
Direito.
Orientadora: Profa. Dra. Riva Sobrado de Freitas
CHAPECÓ – SC
2016
2
PATRICIA LUZIA STIEVEN
O DIREITO AO CONHECIMENTO DA IDENTIDADE GENÉTICA NA
REPRODUÇÃO HUMANA HETERÓLOGA
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação Stricto Sensu – Mestrado em Direito da
Universidade do Oeste de Santa Catarina, como
requisito parcial para a obtenção do grau de Mestra
em Direito e aprovada pela seguinte banca
examinadora:
________________________________________________
Profa. Dra. Riva Sobrado de Freitas – Orientadora
Universidade do Oeste de Santa Catarina
________________________________________________
Prof. Dr. Marco Aurélio Rodrigues da Cunha Cruz – membro interno
Universidade do Oeste de Santa Catarina
________________________________________________
Prof. Dr. Robison Tramontina – membro interno
Universidade do Oeste de Santa Catarina
________________________________________________
Profa. Dra. Silvana Beline Tavares – membro externo
Chapecó, 05 de maio de 2016.
3
Dedico este trabalho à minha rainha, minha mãe,
que entregou todo sua vida às filhas e ao marido, te amo
eternamente!
4
AGRADECIMENTO
Ao meu amado filho, Miguel, e meu marido, Jean Pablo, de valor inestimável na
minha vida, por me darem força nas horas necessárias, terem paciência e compreensão em
outras, entenderem minhas ausências, compartilhando de forma integral essa conquista
especial na minha vida.
Aos meus pais, Leonir e Dalmira (in memorian), e à minha irmã, Camila, pelo amor
incomensurável que me proporcionam.
Aos meus amigos de jornada, Pablo e André, pelas viagens, conversas e experiências
compartilhadas, amizade consolidada e companheirismo nestes dois anos de muita batalha.
Aos meus colegas pela convivência harmoniosa dessa nossa jornada, especialmente,
ao Jhonatan e a Kelly, pelo companheirismo, pelo carinho e dedicação que só fizeram crescer
nesse período acadêmico, sem vocês nada seria igual.
À minha orientadora, Professora Dra. Riva, um MUITO OBRIGADO, todo especial,
pela amizade, carinho e compreensão, com certeza a empreitada tornou-se mais leve com seu
apoio, sempre me incentivando e acreditando que eu conseguiria!
A todos os professores que, no decorrer destes dois anos, dedicaram-se a nos ajudar a
construir o conhecimento.
À Universidade do Oeste de Santa Catarina - UNOESC, pela qualidade de ensino do
curso, pela qualificação dos professores e de todos os funcionários que corroboram no bom
desenvolvimento da instituição, proporcionando aos mestrandos todo o apoio necessário para
uma boa formação material, humana e social.
- A todos, muito obrigada!
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RESUMO
Esta Dissertação objetiva analisar se o indivíduo, advindo de reprodução artificial heteróloga,
tem direito à identidade genética sob a luz dos direitos fundamentais civis, analisando-se a
ponderação entre os direitos da personalidade do nascido destas técnicas e o direito ao sigilo
da identidade do doador. A pesquisa está alocada no âmbito do Programa de Mestrado em
Direito da UNOESC, área de concentração Dimensões Materiais e Eficaciais dos Direitos
Fundamentais, na Linha de Pesquisa Direitos Fundamentais Civis. A Dissertação traz o
desenvolvimento científico e formativo de Direitos Fundamentais, evidenciando a dimensão
eficacial do direito à identidade genética por meio de questões analítico-conceituais, buscando
a densificação material das pretensões associadas a ele. O estudo em pauta possui um aporte
teórico, qualitativo e descritivo, de pesquisa bibliográfica. Para a abordagem utilizou-se o
método indutivo. Assim, no primeiro capítulo estudam-se os reflexos da constitucionalização
do direito civil nos direitos de personalidade, buscando entender a constitucionalização do
direito no Brasil, assim como analisar os direitos da personalidade e a efetivação da dignidade
pessoal. No segundo capítulo explicam-se as técnicas de reprodução humana assistida,
estudam-se os aspectos bioéticos e as implicações da reprodução humana heteróloga no
direito de família. No terceiro capítulo, discute-se propriamente o direito à identidade
genética, ponderando-se o direito à identidade genética versus o direito ao sigilo do doador,
procurando entender as consequências jurídicas da reprodução assistida em face do
anonimato. Nesse contexto, são encontrados diversos desafios que possuem uma estreita
relação entre eles quando se estuda o direito à identidade genética nos casos de reprodução
assistida heteróloga, sendo que estes desafios se caracterizam pela afronta, em linhas gerais,
ao direito de personalidade do nascido por essas técnicas de reprodução. Em termos de
conclusões, defende-se que é possível evidenciar muitas dificuldades para concretizar os
Direitos Fundamentais Civis dessas pessoas, visto que, num primeiro momento, está
resguardado o direito do doador ao sigilo de sua identidade, em detrimento do direito da
pessoa advinda dessas técnicas de reprodução em conhecer sua origem genética, uma vez que
não há regulamentação no Brasil quanto a isso, ferindo seu direito fundamental à informação
e à personalidade, motivo pelo qual se deve encontrar uma solução a ser aplicada a cada caso
concreto.
Palavras-chave: Direitos fundamentais. Direitos civis. Identidade genética. Reprodução
humana. Constitucionalização. Direitos da personalidade.
6
ABSTRACT
This objective Dissertation analyze the individual, arising heterologous artificial reproduction,
has the right to genetic identity in the light of fundamental civil, analyzing the balance
between the born of the personality rights of these techniques and the right to confidentiality
of the identity of the donor . The research is allocated in the Master's Program in Law
UNOESC, concentration area Dimensions Materials and Eficaciais of Fundamental Rights on
Line Research Fundamental Civil Rights. The Master brings the scientific and formative
development of Fundamental Rights, highlighting the eficacial dimension of the right to
genetic identity through analytical and conceptual issues, seeking material densification of
claims associated with it. The study in question has a theoretical, qualitative and descriptive
approach, bibliographical research. For the approach we used the inductive method. Thus, in
the first chapter we study the constitutionalisation of the reflexes of civil law on personal
rights, seeking to understand the constitutionalization of law in Brazil, as well as analyze the
rights of the personality and the realization of personal dignity. In the second chapter are
explained the assisted human reproduction techniques are studied bioethical aspects and
implications of human reproduction heterologous in family law. In the third chapter, we
discuss exactly the right genetic identity, the right to genetic identity is weighting versus the
right to confidentiality of the donor, trying to understand the legal consequences of assisted
reproduction in the face of anonymity. In this context, they are found several challenges that
have a close relationship between them when studying the right to genetic identity in cases of
heterologous assisted reproduction, and these challenges are characterized by the affront, in
general, the right personality born of by these breeding techniques. In terms of conclusions, it
is argued that it is possible to show a lot of difficulties to achieve the Civil Fundamental
Rights of these people because, at first, is entitled to the right of the donor to the
confidentiality of their identity, to the detriment of the person's right arising out of these
breeding techniques to know their genetic origin, since there is no regulation in Brazil about
it, injuring his fundamental right to information and personality, which is why you should find
a solution to be applied to each case.
Keywords: Fundamental rights. Civil rights. Genetic identity. Human reproduction.
Constitutionalization. Personality rights.
7
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 09
2 OS REFLEXOS DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL NOS
DIREITOS DE PERSONALIDADE .................................................................................... 12
2.1 A constitucionalização do direito civil no Brasil ............................................................... 12
2.1.1 O papel da constitucionalização do direito civil na formação do novo sujeito de direitos .
...................................................................................................................................................14
2.2 Direitos da personalidade e efetivação da dignidade pessoal ............................................. 15
2.2.1 Especificidades dos direitos da personalidade................................................................. 18
2.2.2 Classificação dos direitos de personalidade .................................................................... 19
2.2.3 Direito a vida e a integridade física ................................................................................. 20
2.2.4 Direito à vida e à honra ................................................................................................... 21
2.2.5 Direito a vida e à autonomia ............................................................................................ 22
2.3 O direito de personalidade e suas garantias constitucionais ............................................... 24
3 A REPRODUÇÃO HUMANA ARTIFICIAL .................................................................. 36
3.1 Da finalidade da inseminação e da fecundação .................................................................36
3.2 As diferentes técnicas de reprodução humana medicamente assistida ............................... 38
3.2.1 Inseminação artificial ...................................................................................................... 40
3.2.2 Fertilização in vitro .......................................................................................................... 43
3.2.3 Transferência intratubária de gametas (GIFT) ................................................................ 44
3.2.4 Transferência de zigoto nas trompas de Falópio (ZIFT) ................................................. 44
3.2.5 Transferência uterina de zigoto (ZUT) ............................................................................ 45
3.2.6 As mães de substituição ................................................................................................... 45
3.3 As recentes técnicas de reprodução humana ...................................................................... 45
3.4 As formas de reprodução assistida previstas no Código Civil Brasileiro...........................47
457
3.5 Aspectos bioéticos da reprodução humana assistida .......................................................... 49
3.6 As implicações da reprodução rtificial heteróloga no direito de família ............................ 54
3.6.1 A origem e evolução da família ....................................................................................... 54
3.6.2 A paternidade e a maternidade socioafetiva na reprodução artificial heteróloga ............ 58
4 O DIREITO À IDENTIDADE GENÉTICA ..................................................................... 66
4.1 O anonimato no Brasil ........................................................................................................ 66
4.1.1 Considerações gerais ....................................................................................................... 66
4.1.2 O doador e o anonimato .................................................................................................. 69
4.2 O Anonimato no Direito Estrangeiro: França, Espanha, Portugal e Alemanha ................. 71
4.2.1 Uma breve visão do anonimato no Direito comparado ................................................... 71
4.2.2 As especificidades do Direito Alemão ............................................................................ 73
4.3 Consequências jurídicas da reprodução assistida em face do anonimato ......................... ..75
775
4.3.1 Dos vínculos familiares ................................................................................................... 75
4.3.2 Do direito a alimentos ................................................................................................... ..77
777
4.3.3 Do direito à sucessão hereditária ..................................................................................... 77
4.3.4 Dos impedimentos matrimoniais ..................................................................................... 78
4.4 Proibição do anonimato e direito ao conhecimento da identida genética........................... 78
4.5 Técnicas de reprodução artificial heteróloga e a obrigatoriedade do sigilo ....................... 85
4.6 A prevalência do vínculo parental com a família afetiva ................................................... 89
8
4.7 A colisão entre direitos: o direito à identidade genética versus direito ao sigilo do
doador..... .................................................................................................................................. 92
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 97
6 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 101
ANEXO A – RESOLUÇÃO N. 2.121/2015 DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
.................................................................................................................................................109
ANEXO B – RESOLUÇÃO N. 2.013/2013 DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
................................... ............................................................................................................. 118
ANEXO
C
–
VOTO
DO
SUPERIOR
TRIBUNAL
ALEMÃO
(BUNDESGERICHTSHOF) ............................................................................................... 128
9
1 INTRODUÇÃO
Nosso ordenamento jurídico, assim como os fatos sociais, vão se moldando e se
adaptando ao longo do tempo, em razão das constantes mudanças e evoluções vividas pela
sociedade. Em razão disso, o Direito não pode ser estático, tendo o papel importante de
atender às novas necessidades impostas pelo progresso social.
Isso porque, a separação entre essas esferas, que impunha ao direito público a tutela
dos interesses gerais e ao privado a tutela dos direitos inerentes ao indivíduo, foi substituída
pela valoração e interpretação em conjunto dos diplomas legais, sempre a par da Constituição
Federal, que acabou por unificar o sistema.
Nesse passo, destaca-se que as técnicas de reprodução humana assistida, no Brasil,
são reguladas pelo Conselho Federal de Medicina, ocorre, todavia, que sobredita resolução é
ato meramente administrativo e serve para os profissionais da área médica saberem como
devem proceder no uso das técnicas de procriação artificial, sendo, assim norma ética e não
jurídica.
Portanto, essa resolução não tem o condão de resultar em sanção jurisdicional em
caso de descumprimento, ensejando tão somente a instauração de procedimento
administrativo.
Ocorre, porém, que este é o único dispositivo vigente no Brasil sobre o assunto,
motivo pelo qual merece uma análise, sobretudo, no que diz respeito à doação de gametas ou
pré-embriões e o anonimato, cerne deste trabalho.
Assim, no primeiro capítulo estudam-se os reflexos da constitucionalização do
direito civil nos direitos de personalidade, buscando entender a constitucionalização do direito
no Brasil, assim como analisar os direitos da personalidade e a efetivação da dignidade
pessoal.
Já no segundo capítulo explicam-se as técnicas de reprodução humana assistida,
estudam-se os aspectos bioéticos e as implicações da reprodução humana heteróloga no
direito de família.
Por fim, no terceiro capítulo, discute-se propriamente o direito à identidade genética,
ponderando-se o direito à identidade genética versus o direito ao sigilo do doador, procurando
entender as consequências jurídicas da reprodução assistida em face do anonimato.
10
Nesse contexto, são encontrados diversos desafios que possuem uma estreita relação
entre eles quando se estuda o direito à identidade genética nos casos de reprodução assistida
heteróloga, sendo que estes desafios se caracterizam pela afronta, em linhas gerais, ao direito
de personalidade do nascido por essas técnicas de reprodução.
Há que se esclarecer que a busca pelo direito à identidade genética procura tão
somente o seu reconhecimento como um direito de personalidade, sendo que a presente
pesquisa demonstrará se isso é ou não possível sem que hajam efeitos patrimoniais ou
sucessórios decorrentes dessa relação.
Com efeito, um dos ramos que mais se modifica no tempo é a ciência biomédica,
sempre com descobertas importantes para a vida dos indivíduos, assim como de toda a
sociedade. Essa evolução, consequentemente, traz consigo um leque de discussões éticas e
jurídicas, uma vez que, muitas vezes, não existem normas reguladoras sobre aquele
determinado assunto que está atingindo a esfera individual e coletiva da sociedade.
Conquanto, não é mister do Direito abraçar o mundo científico e seu
desenvolvimento, mas sim prescrever normas que sirvam de proteção aos direitos individuais
e coletivos que possam vir a ser maculados em razão da evolução bioética e da ciência
biomédica do mundo atual, o que resulta, então, no surgimento do Biodireito, que serve para
impor esses limites jurídicos à condutas biomédicas.
Assim, o biodireito associado à bioética servirá como um dos fundamentos na busca
das respostas para a presente pesquisa, estudando-se as relações jurídicas entre o direito e os
avanços tecnológicos conectados à medicina e à biotecnologia, além de suas peculiaridades
relacionadas à dignidade da pessoa humana.
É nessa conjuntura que o direito de família destaca-se, uma vez que as atuais técnicas
de reprodução humana artificial não se referem mais, tão somente, à biologia e à medicina,
mas também ao Direito, ao mundo jurídico do direito de família, superando a instituição
tradicional centrada no casamento e nas relações sexuais, construindo uma família baseada no
afeto e na vontade de constituir família, de ter filhos, independentemente dos dogmas
históricos, gerando, então, grandes e polêmicas situações a serem discutidas.
Isso porque a constitucionalização do direito civil, abandonou o patrimônio como
núcleo dos direitos tutelados, para elevar a centro desses direitos a pessoa. A partir disso,
todas as formas de família passaram a ser reconhecidas juridicamente como entidades
familiares, possuindo a proteção do Estado em suas relações.
11
Todavia, o que se buscará discutir é a possibilidade de o Estado interferir diretamente
na dignidade pessoal dos indivíduos, impedindo-os de se reconhecerem como tais, a troco da
suposta proteção de direitos patrimoniais dos doadores nas reproduções artificiais heterólogas.
De tal modo, torna-se necessário um estudo sobre as consequências que essas
técnicas científicas de procriação artificial geram na esfera individual de cada pessoa e no seio
familiar, uma vez que os efeitos não são apenas médicos e biológicos, mas jurídicos também,
pois as pessoas que fazem parte dessa relação são titulares de direitos e deveres em nossa
sociedade e não cabe ao Estado dizer “quem eu sou” ou “com quem devo me relacionar”, mas
sim tutelar os interesses decorrentes dessas situações.
Nesse lastro, o estudo que ora se apresenta tem o objetivo de promover uma das
discussões mais polêmicas do momento sobre a reprodução humana assistida e o direito de
família, o direito do indivíduo advindo da reprodução artificial heteróloga conhecer sua
identidade genética, tudo isso a par dos reflexos da constitucionalização do direito privado,
reconhecendo o direito à origem genética como um direito de personalidade, balizado no
reconhecimento e dignidade pessoal, ante a supremacia dos princípios constitucionais.
Ademais, considerando o direito à identidade genética como alargamento dos direitos
de personalidade, verifica-se, pois, que são exatamente esses direitos que tutelam nossa
própria intimidade e o nosso poder de autodeterminação, fundamentais na busca da dignidade
pessoal, nos tornando seres individuais, seres diferentes entre si, com características próprias
e direitos únicos a serem tutelados para cada um.
Assim, o que se busca é o reconhecimento do direito à identidade genética em face
do direito ao sigilo do doador (privacidade), procurando refletir sobre as consequências
jurídicas da reprodução assistida em face do anonimato, utilizando-se para tanto a teoria da
ponderação de Robert Alexy.
De tal modo, o presente trabalho caracteriza-se por ser uma pesquisa alocada no
âmbito do Programa de Mestrado em Direito da UNOESC, área de concentração Dimensões
Materiais e Eficaciais dos Direitos Fundamentais, na Linha de Pesquisa Direitos
Fundamentais Civis. A Dissertação traz o desenvolvimento científico e formativo de Direitos
Fundamentais, evidenciando a dimensão eficacial do direito à identidade genética por meio de
questões analítico-conceituais, buscando a densificação material das pretensões associadas a
ele. O estudo em pauta possui um aporte teórico, qualitativo e descritivo, de pesquisa
bibliográfica. Para a abordagem utilizou-se o método indutivo.
12
2 OS REFLEXOS DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL NOS
DIREITOS DE PERSONALIDADE
2.1 A constitucionalização do direito civil no Brasil
O Código Napoleônico trouxe o individualismo patrimonial para nossa legislação
civil, inspirando, então, o Código Civil de 1916, onde as relações privadas eram o centro da
proteção jurídica, excluindo por vezes, inclusive, o Estado de qualquer espécie de
intervenção.
Interessante frisar, nesse sentido, que o código civilista de 1916, embora nascido em
meio a I Guerra Mundial, não trouxe consigo os valores nascentes na Europa, mantendo-se
devotado ao individualismo jurídico do Código de Napoleão, onde se verificava que o homem
era o núcleo da organização jurídica da sociedade, por ser dotado de direitos naturais,
“inalienáveis e imprescritíveis”, como ensina GOMES (1961, p. 22).
Assim, restava cristalina a separação entre direito público e privado, esferas que não
se tocavam, não se cruzavam naquele ordenamento, impondo-se ao direito público a tutela
dos interesses gerais, ao passo que o privado restringia-se à tutela dos direitos inerentes ao
indivíduo, seus direitos naturais.
Todavia, com a evolução social, o ordenamento jurídico viu-se obrigado a ampliar o
campo de atuação do Estado, permitindo que este agora assumisse papéis antes apenas dados
à iniciativa privada. Isso porque, a industrialização, a mudança do conceito de contratos, a
ocorrência de movimentos sociais, levaram o século XIX a uma mudança no panorama
jurídico-social, saindo das relações estritamente privadas, onde se primava pela defesa única e
exclusiva do patrimônio, para se dar espaço ao Estado, como garantidor dos direitos
fundamentais do cidadão.
Indubitavelmente, houve um redirecionamento do Direito Civil em seu conteúdo,
visto que as lacunas existentes deram azo às leis extravagantes e especiais, para regulamentar
temas não disciplinados pelo Código Civil, a fim de disciplinar temas específicos, de forma
extensa e especializada, o que descaracterizou o cunho exclusivo de relações patrimoniais
privadas, outrora colimadas pelo então Código Civil, dando espaço aos microssistemas
jurídicos, a exemplo do Código de Defesa do Consumidor.
13
É nesse momento histórico que a Constituição Federal, através de seus princípios,
passa a redefinir a autonomia privada, estabelecendo deveres e garantias sociais a todos os
indivíduos em suas atividades particulares. A partir de então, o Código Civil assumiu um
novo papel no sistema jurídico, sendo valorado e interpretado em conjunto com outros
diplomas legais, sempre a par da Constituição Federal, que acabou por unificar o sistema.
Denota-se que, em razão da releitura do Direito Civil e suas relações privadas, esses
valores materiais foram substituídos pela valorização da pessoa, de sua dignidade humana,
tornando-se, assim, o centro do ordenamento jurídico em detrimento do patrimônio, outrora
consagrado como máximo direito a ser garantido pelo direito brasileiro.
Ora, a prevalência das regras de cunho constitucional fez com que nos voltássemos
para a necessidade de restaurar nas relações civis a primazia do ser humano. Vislumbra-se,
por outro lado, que nem sempre se falou em direito civil constitucional ou
constitucionalização do direito civil, por muito tempo o direito civil e o direito constitucional
foram considerados ramos totalmente dissociados, chegando, todavia, ao atual e intenso
convívio jurídico.
Sobre essa evolução, muito bem leciona Luiz Roberto Barroso quando separa em três
fases. A primeira fase, chamada de Mundos apartados, refere que no início do
constitucionalismo moderno, na Europa, a Constituição era vista como uma Carta Política,
que servia de referência para as relações entre o Estado e o cidadão, ao passo que o Código
Civil era o documento jurídico que regia as relações entre particulares, freqüentemente
mencionado como a “Constituição do direito privado”. Esse modelo inicial de
incomunicabilidade foi sendo progressivamente superado (BARROSO, 2008).
Já a segunda fase, denominada de Publicização do direito privado, trazia à lume que
ao longo do século XX, com o advento do Estado social e a percepção crítica da desigualdade
material entre os indivíduos, o direito civil começa a superar o individualismo exacerbado,
deixando de ser o reino soberano da autonomia da vontade. É a fase do dirigismo contratual,
que consolida a publicização do direito privado (BARROSO, 2008), que nada mais é do que a
sólida interferência legislativa de fundamentos do direito público para modificar, qualificar e
até extinguir dispositivos do Código Civil.
A constitucionalização do direito civil, então, chamada assim a terceira fase, é
marcada pela passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico, de onde passa a
atuar como o filtro axiológico pelo qual se deve ler o direito civil (BARROSO, 2008).
Nesse aspecto, é importante destacar que essa evolução trouxe novos valores ao
mundo jurídico, valores como a solidariedade social, a razoabilidade e a igualdade, denodos
14
que levaram a dignidade humana a um patamar de maior relevo no mundo, de uma forma
geral, visto que as atrocidades cometidas na II Grande Guerra deixaram sequelas que só a
bandeira dos direitos humanos pode abrandar.
Com efeito, a dignidade da pessoa humana promove uma despatrimonialização e
uma repersonalização do direito civil, com ênfase em valores existenciais e do espírito, bem
como no reconhecimento e desenvolvimento dos direitos da personalidade (BARROSO,
2008).
Isso porque, apesar do cunho eminentemente patrimonial, verifica-se que o direito
privado reinventou-se ao dar espaço à valorização da pessoa humana, que hoje é o núcleo da
proteção jurídica. Nesse passo, o desafio dos civilistas é valoração da dignidade humana, da
pessoa em primeiro lugar, e só depois do seu patrimônio.
Entende-se, assim, que foi isso que a Magna Carta estabeleceu entre os valores
originários do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana, a fim de afastar
a visão patrimonialista que sempre imperou nas relações civis, visto que atualmente é
incompatível com os novos valores imbuídos pela Constituição Federal.
Todavia, os casos concretos que nos assombram não permitem uma única solução.
Tanto é verdade que Virgilio Afonso da Silva, nos desafia, “falar em direito civil
constitucional pressupõe, a meu ver equivocadamente, que haja uma parte do direito civil
completamente imune às influências dos princípios constitucionais e outra que seria por eles
conformada” (SILVA, 2011, p. 171).
Não obstante isso, é inegável que há no Brasil um processo de constitucionalização
do direito civil, que vem crescendo progressivamente, inclusive, pelos tribunais pátrios, uma
vez que a Constituição Federal trouxe sim um impacto sobre o direito privado, o que, de
forma alguma, macula os preceitos civilistas, muito pelo contrário, potencializa e moderniza o
direito civil, que tanto tem sofrido modificações em razão da evolução social e tecnológica do
mundo globalizado.
2.1.1 O papel da constitucionalização do direito civil na formação do novo sujeito de direitos
Na qualidade de ramo do direito privado, o direito civil tem por escopo regulamentar
as relações obrigacionais e pessoais que se formam entre os indivíduos como parte de uma
sociedade.
15
Nesse sentir, no século passado, ocorreram significativas transformações sociais que
levaram à fragilidade de padrões e modelos que exigiram modificações consecutivas no
sistema jurídico. O direito fora todo modificado, agregando essas mudanças na composição da
nossa atual legislação civilista.
Frise-se que, na atualidade, o Direito Civil continua sofrendo alterações e
adaptações, na medida em que o egocentrismo exacerbado não se sustenta mais diante da
constitucionalização do Direito Privado.
Sabe-se que antes da Constituição Federal de 1988, o patrimônio reinava absoluto no
Código Civil, evidenciando a divisão entre direito público e direito privado, contudo, após a
Magna Carta, influenciada pelos horrores da II Guerra Mundial, houve uma reformulação de
valores pela sociedade, ou seja, a Constituição passou a irradiar seus efeitos sobre os demais
ramos do direito, inclusive, sobre o Direito Civil, disciplinando direitos antes característicos
do direito privado.
Assim, o direito privado abriu mão do ponto de vista unicamente patrimonial e
passou a ver os interesses pessoais, o ser humano e sua dignidade, como fundamento da
sociedade, neste contexto, pode-se dizer que, em razão da constitucionalização, o direito civil
sofreu uma despatrimonialização.
Denota-se intensa e necessária modificação na codificação civil, tanto de estrutura
como de conteúdo, do Código de 1916 para o Código de 2002, passaram-se quase nove
décadas sem alterações significativas na legislação, ao passo que nossa sociedade sofreu
profundas transformações nesse período, atravessou duas guerras, o patriarcado por mais que
não totalmente superado, permitiu à mulher conquistar direitos diante da sociedade, a família
foi remodelada, o que tornou grande parte do Código Civil de 1916 obsoleto, exatamente
como estamos assistindo o Código Civil de 2002 sofrer quanto às mudanças no Direito de
Família, o que obriga os cidadãos a buscarem amparo na jurisprudência e não na legislação,
que infelizmente não tem o poder de galgar na mesma rapidez dos acontecimentos sociais.
2.2 Direitos da personalidade e a efetivação da dignidade pessoal
Antes de adentrar no aspecto da efetivação da dignidade da pessoa humana por meio
dos direitos da personalidade, insta destacar que o estudo dos direitos de personalidade tem
por base a evolução da pessoa, como valor-fonte de todos os demais valores, sendo este o
principal fundamento do sistema jurídico (REALE, 2004).
16
Os direitos da personalidade são indispensáveis à pessoa humana para que se possa
estabelecer o tratamento justo e igualitário entre os indivíduos. Tais direitos tutelam a
integridade e a dignidade da pessoa humana, desse modo, compreendem a essencialidade do
ser, conformando uma noção de mínimo existencial, ou seja, de realização dos direitos
fundamentais, que representam a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana,
na busca por uma vida digna.
Para a proteção da personalidade, costuma-se fazer uma tripartição, primeiro tem-se
a proteção dos atributos físicos, tais como integridade física, etc.; segundo a proteção dos
atributos psíquicos, para os quais se tutelam: a intimidade, a vida privada e o direito ao
segredo; a proteção dos atributos morais e intelectuais, tais como honra e direito do autor.
Porém, trata-se de um rol de direitos da personalidade meramente exemplificativo, não se
podendo falar em taxatividade ou no esgotamento de direitos da personalidade, posto que são
mínimos para que se tenham uma existência digna do ser humano.
Feitas tais considerações, incumbe esclarecer que a palavra persona, que entre os
romanos designava uma máscara usada nas apresentações teatrais da época, e assumia o papel
que cada ator representava na peça teatral, mais tarde passou a significar o próprio sujeito de
direito nas relações jurídicas.
Nesta seara, verifica-se que o indivíduo humano possui autonomia e em decorrência
disto, a pessoa humana é dotada de liberdade e responsabilidade pelos seus atos. Somado a
isso, a pessoa não pode assumir condição de objeto, visto que é dotada de personalidade e
possui dignidade, devendo, por tanto, ser vista com fim em si mesma (SILVA, 2008, 29).
Justamente por não poder ser subjugada a objeto é que o ser humana não vive
sozinho, buscando sempre o reconhecimento daqueles que o rodeiam, a fim de sentir-se aceito
no meio em que vive, sendo que é a personalidade que nos individualiza como pessoas, a fim
de que possamos agir conforme nossas crenças.
Assim, considera-se, atualmente, que o objeto dos direitos de personalidade são
projeções físicas ou psíquicas da pessoa, ou as suas características mais importantes. As
projeções da personalidade, suas expressões, qualidades e atributos são bens jurídicos e se
apoiam no direito positivo (BORGES, 2007, p. 20). Isso porque através dos direitos de
personalidade são protegidas as características e a essência da pessoa, sendo que os objetos
dos direitos de personalidade são os bens considerados essenciais ao ser humano.
Nesse sentido, a partir da classificação do ser humano como pessoa é que ele se torna
sujeito de direitos e obrigações e torna-se titular de personalidade. Os direitos de
personalidade estão ligados intrinsecamente a essa figura “pessoa”, sendo fundamentais e
17
necessários ao desenvolvimento da mesma, como já reiteradamente observado. A ordem
jurídica confere à pessoa a faculdade subjetiva de defender, proteger e exercer tais direitos
(SILVA, 2008, p. 30).
Nesse norte “os direitos da personalidade são resguardados a partir do momento em
que surge o ser humano, pois nesse instante o mundo jurídico já lhe garante proteção mesmo
não tendo este adquirido ainda o status de pessoa, o que só ocorrerá quando de seu
nascimento” (HAMMERSCHIMIDT, 2007, p. 74).
Como visto, todo ser humano tem direitos de personalidade, os quais são inerentes à
sua condição de pessoa, que como tal é sujeito de direitos e obrigações, devendo o Estado
garantir a proteção desses direitos como patrimônio da dignidade pessoal de cada um.
Os direitos de personalidade são tidos como essenciais por traduzirem-se como teor
mínimo da personalidade humana, podendo, até, ser definido como uma categoria especial de
direitos subjetivos que, fundados na dignidade humana, garantem o gozo e o respeito ao seu
próprio ser, em todas as suas manifestações espirituais e físicas (BELTRÃO, 2005, p. 25).
Sendo assim, os direitos da personalidade são reconhecidos à pessoa humana tomada
em si mesma e em suas projeções na sociedade, já que estão previstos no ordenamento
jurídico para defesa de valores inatos do homem, como a vida, a intimidade, a honra e tantos
outros (BITTAR, 2008, p. 01).
Com efeito, os direitos de personalidade enquadram-se na categoria de direitos
extrapatrimoniais, e, considerando a afirmação de que um indivíduo tem o direito de se
conduzir de determinada maneira, pode não só significar-se que a tal indivíduo essa atividade
não é juridicamente proibida mas também que os outros são obrigados a não impedir essa
atividade, ou que o indivíduo com direito de exercer essa atividade tem o poder jurídico de,
no caso de uma violação do correspondente dever, instaurar o procedimento jurídico que
conduz à sanção (KELSEN, 1998, p. 140-162).
Em estudos mais recentes, Borges pontua:
Os direitos da personalidade são próprios do ser humano, direitos que são
próprios da pessoa. Não se trata de direito à personalidade, mas de direitos
que decorrem da personalidade humana, da codificação de ser humano. Com
os direitos da personalidade, protege-se o que é próprio da pessoa, como o
direito à vida, o direito à integridade física e psíquica, o direito à integridade
intelectual, o direito ao próprio corpo, o direito ao nome, dentre outros.
Todos esses direitos são expressões da pessoa humana considerada em si
mesma. Os bens jurídicos mais fundamentais, primeiros, estão contidos nos
direitos da personalidade. (BORGES, 2007, p. 21.)
18
Portanto, ao direito subjetivo de alguém (nascidos da reprodução artificial
heteróloga), que apenas é o reflexo do dever jurídico de outrem (Estado), se refere à definição
segundo a qual o direito subjetivo é determinado como interesse juridicamente protegido,
nesse caso, os direitos de personalidade, a par da dignidade humana, a fim de garantir o
mínimo para o desenvolvimento físico, psicológico e moral da pessoa nascida da reprodução
assistida.
2.2.1 Especificidades dos direitos da personalidade
Consoante exaustivamente descrito, os direitos da personalidade conceituam-se como
direitos essenciais e inerentes à pessoa, possuindo características particulares, motivo pelo
qual se evidenciam como grande relevo no cenário jurídico.
Nesse lastro, nos lembra HAMMERSCHMIDT (2013, p. 76) que os direitos de
personalidade apresentam as seguintes características: são absolutos (oponíveis erga omnes),
gerais (pertencem a toda e qualquer pessoa), extrapatrimoniais (bens ideais), intransmissíveis
e indisponíveis (não se pode dispor), irrenunciáveis (não se pode abdicar), imprescritíveis
(inerente à pessoa), inexpropriáveis (falta de patrimonialidade) e ilimitados (possibilidade de
se reconhecer um número ilimitado de direitos da personalidade).
Todavia, como contraponto, vem interessante fundamento no sentido de que é
necessário superar Jusnaturalismos e algumas categorias que possam trazer dificuldades à
aplicação dos direitos da personalidade. Por exemplo, pouco contribui considerarem-se os
direitos da personalidade como absolutos, oponíveis erga omnes ou ainda, com
extrapatrimoniais, como se tais restrições fossem aplicáveis na base do “tudo ou nada”, como
regras (MARCO; FREITAS. 2013, p. 269).
Isso porque, segundo essa interpretação, em razão dessa constitucionalização do
direito civil, mostra-se adequada a perspectiva dogmática dos direitos fundamentais aos
direitos da personalidade, retirando-lhes a característica de absolutos para que sejam
percebidos como relativos, empregando-se a técnica da ponderação como instrumento
metodológico necessário para a preservação máxima dos bens jurídicos em colisão (MARCO;
FREITAS. 2013, p. 270).
Nessa linha de pensamento, basta analisarmos o artigo 5º da Constituição Federal,
que enumera os direitos fundamentais, mas também limita alguns direitos inerentes à pessoa,
19
como, por exemplo, o direito à vida, que num primeiro momento pode ser tido como absoluto,
todavia, em caso de guerra declarada torna-se relativizado.
Desta forma é mister afirmar que os direitos que dão conteúdo à personalidade são
imprescindíveis na medida em que sem eles a pessoa não existiria como tal. Ou seja, são
essencialmente fundamentais, pois sem os quais a personalidade estaria privada de todo o seu
valor concreto e não restaria completamente realizada (SILVA, 2008, p. 35). Sobre o tema,
Cupis refere que:
Existem certos direitos sem os quais a personalidade restaria uma
susceptibilidade completamente irrealizada, privada de todo o valor
concreto: direitos sem os quais todos os outros direitos subjetivos perderiam
todo o interesse para o indivíduo – o que equivale a dizer que, se eles não
existissem a pessoa não existiria como tal. São esses os chamados “direitos
essenciais”, com os quais se identificam precisamente os direitos da
personalidade. Que a denominação de direitos da personalidade seja
reservada aos direitos essenciais justifica-se plenamente pela razão de que
eles constituem a medula da personalidade. (CUPIS, 2004, p. 24.)
Como visto, os direitos da personalidade são indispensáveis ao ser humano, posto
que por serem a ele inerentes o acompanham desde o nascimento até o final de sua existência.
Portanto, os direitos de personalidade apresentam muitas facetas, sendo que alguns
doutrinadores entendem importante destacar uma classificação, ao passo que outros,
justamente por reconhecer a constitucionalização do direito, não querem amarras que possam
limitar uma interpretação sobre tais direitos.
2.2.2 Classificação dos direitos de personalidade
Consoante abordado em tópico anterior, os direitos da personalidade se destinam
basicamente a assegurar a dignidade humana. A classificação dos direitos da personalidade,
por sua vez, vai variar em conformidade com os métodos e critérios adotados por cada autor,
porém, em regra geral, dividem-se em integridade física, intelectual e moral.
A integridade física pressupõe o direito à vida e o direito ao próprio corpo. O direito
à vida é tutelado desde o nascimento à velhice, passando pelos alimentos, planejamento
familiar, habitação, educação, proteção médica, entre outros. De outro tanto, o direito ao
corpo vivo compreende tudo aquilo relacionado ao corpo humano, desde o espermatozóide e
o óvulo até a possibilidade de mudança de sexo. O direito ao corpo morto, por sua vez, diz
respeito ao sepulcro, à cremação, ao culto religioso e à experiências cientificas post mortem.
20
Verifica-se, portanto, que não se tem por escopo somente a proteção da integridade
física, ou melhor, os direitos sobre o próprio corpo vivo ou morto, mas também a
inviolabilidade do corpo humano.
Por outro lado, a integridade intelectual leva em conta os elementos intrínsecos do
indivíduo, como atributos de sua inteligência ou sentimento, componentes do psiquismo
humano, ou seja, busca-se compreender e garantir a liberdade de pensamento, a autoria de
criações intelectuais, de inventos e a privacidade.
Destaca-se que estes direitos são resguardados com base na premissa de que não se
pode fazer uso dos produtos do pensamento e da intelectualidade humana de forma indevida,
sem as devidas menções ou autorizações.
Já a integridade moral resguarda, dentre outros, o direito de todas as pessoas de não
terem sua imagem, sua honra ou sua moral expostas, mercantilizadas ou caluniadas. A
personalidade humana não deve ser alterada material ou intelectualmente. Relacionam-se à
integridade moral: a liberdade civil, política e religiosa. São também asseguradas a proteção
da moral, da honra, da intimidade, da imagem, da identidade e da intimidade.
2.2.3 Direito a vida e a integridade física
A integridade física é um bem único, sendo única a necessidade que ele busca
assegurar e satisfazer, nas mais diversas medidas, podendo assumir uma variedade
correspondente de figuras.
Assim, ser imune de doenças constitui um dos modos em que se pode configurar a
integridade física; mas entendeu-se que esta satisfaz com maior plenitude a necessidade
correspondente quando se concretize na imunidade, não só de doenças, mas também de outras
causas que a diminuam, embora menos gravemente.
Nas palavras de Adriano de Cupis:
O bem da integridade física é, a par do bem da vida, um modo de ser
físico da pessoa, perceptível mediante os sentidos. Este bem, por outro
lado, segue, na hierarquia dos bens mais elevados, o bem da vida. De
fato, enquanto este último consiste puramente e simplesmente na
existência, a integridade física, pressupondo a existência, acrescentalhe alguma coisa que é, precisamente, a incolumidade física, de
importância indubitavelmente inferior ao seu pressuposto. (CUPIS,
2008, p. 70)
21
Nesse sentido, não há como contestar que a integridade física é digna de tutela, na
medida em que constitui condição de convivência normal, de segurança, de eficaz
desenvolvimento da atividade individual profícua.
2.2.4 Direito à vida e à honra
Em que pese não se pretenda abordar dispositivos legais, cumpre destacar, a titulo de
conhecimento que a em relação à honra e imagem das pessoas, a matéria está insculpida no
artigo 20, caput, do Código Civil. Da análise do texto legal extrai-se que a codificação
diferencia os dois direitos da personalidade, sendo que mais êxito teria na aplicabilidade da
legislação, se tivesse sido conferido um tratamento distinto à honra, considerado como o bom
nome e a reputação da pessoa, e o direito à imagem, considerado como aquele que disciplina
uma série de caracterizações físicas da pessoa.
Segundo Adriano de Cupis:
A “honra” significa tanto o valor moral íntimo do homem, como a
estima dos outros, ou a consideração social, o bom nome ou a boa
fama, como, enfim, o sentimento, ou consciência, da própria dignidade pessoal. Quando entendida unicamente no primeiro sentido, a
honra está subtraída às ofensas de outrem e é alheia, por
consequência, à tutela jurídica; entendida no segundo e no terceiro
significados, está, pelo contrário, exposta às referidas ofensas. A
opinião pública é bastante sujeita à recepção das insinuações e aos
ataques de toda a espécie produzidos contra a honra pessoal; assim
também o sentimento da própria dignidade é diminuído, ferido pelos
atos referidos. (CUPIS, 2008, p. 110)
No que concerne à tutela da honra, ocupou-se a jurisprudência no sentido de delimitar
a defesa da reputação e do bom nome da pessoa de circunstâncias em que se exerce o direito à
manifestação do pensamento e à liberdade de expressão.
Tem sido salvaguardado, por exemplo, o direito à charge, que conceitualmente
contempla conteúdo satírico, especialmente quando ela tem por objeto a crítica social ou
cultural a costumes, é um veículo para a crítica comportamental ou constitui o meio para
externar oposição a uma determinada linha de pensamento, ou aborda assuntos de interesse
social e não contemplam individuação.
Em relação às pessoas notórias, não obstante seja reconhecido que elas estão sujeitas à
crítica, a divulgação de informações sobre processos judiciais relativos à sua conduta
administrativa, e muito embora se sustente a tese que o âmbito de tutela dos direitos de
22
personalidade em relação a elas seja menor, fixou-se a orientação que elas não podem ser
submetidas a acusações falsas. Da mesma forma, tem sido assentado que o exercício da crítica
não se confunde com ofensas pessoais, como nos casos em que se imputa ao particular
conduta evidentemente reprovável.
A honra, entendida como valor íntimo moral do homem, constitui um bem
imensamente precioso, exaltado por poetas e pensadores, proclamado como o mais importante
da vida. De fato, a boa fama da pessoa constitui o pressuposto indispensável para que ela
possa progredir no meio social e conquistar um lugar adequado; e, por sua vez, o sentimento,
ou consciência, da própria dignidade pessoal representa uma fonte de elevada satisfação
espiritual.
2.2.5 Direito a vida e à autonomia
Na teoria clássica, reproduzida no Código Civil de 2002, os direitos da personalidade
são considerados indisponíveis. No entanto, tal característica mereceu ser relativizada para
considerar a disponibilidade relativa destes direitos, já que a tutela não se restringe ao âmbito
protetivo, alcançando também o âmbito do exercício positivo desses direitos.
Isso porque a capacidade de autodeterminação dos interesses pessoais é uma dimensão
da própria dignidade e, assim, não há como negar trânsito à autonomia privada nas situações
jurídicas existenciais. Além disso, é da dignidade humana que se extrai o direito fundamental
ao livre desenvolvimento da personalidade.
A pessoa parece dotada de um poder jurídico previsto no direito objetivo. Este poder
se manifesta mediante a previsão de uma série de faculdades jurídicas para proteger bens e
atributos de diversa natureza, direitos subjetivos. E esta foi uma das primeiras dificuldades
enfrentadas para a previsão legislativa dos direitos da personalidade, pela confusão “sujeitoobjeto” que tais direitos poderiam supor.
Walter Moraes (1984) noticia que dispor compreende também o verbo usar e é a
palavra que substituiu o termo abutere dos romanistas (ius utendi, fruendi et abutendi re sua).
A ideia de dispor ou de abusus, comporta, por sua natureza, limites (quatenus juris rtio
patitur). A expressão disponibilidade, pois, não pode ser entendida como alienação,
transferência ou renúncia dos direitos da personalidade. Disponibilidade significa liberdade
jurídica de exercer certos direitos da personalidade de forma ativa ou positiva. A titularidade
do direito não é objeto de transmissão.
23
Assim, não se separa o titular dos seus direitos da personalidade. Os bens da
personalidade continuarão sendo inerentemente ligados ao sujeito, por uma conclusão lógica
fática e jurídica. Já o consentimento como delimitação do exercício dos direitos da
personalidade, não significa dizer que com o consentimento, o titular renuncie ou perca a
proteção, ou desapareça a ilegitimidade da intromissão. O titular, valendo-se da capacidade de
fato, delimita a abstenção do exercício a faculdade de invocar a tutela protetiva naquelas
hipóteses concretas.
Conclui-se por uma necessária ambivalência dos direitos da personalidade, já que a
indisponibilidade essencial e a disponibilidade relativa, calcada no livre desenvolvimento da
personalidade, são posições que convivem em uma teoria que admite relativizações sempre
primando pela unidade do sistema centrado na dignidade humana.
Ao final, constatado que a disponibilidade relativa implica na possibilidade de
restrição de direitos, legitima-se o ato dispositivo somente após a ponderação no caso
concreto. Isso porque a esfera de disponibilidade origina casos que envolvem colisões de
direitos fundamentais - autonomia de um lado e direito da personalidade que se pretende
restringir de outro - e a ponderação é procedimento, por excelência, para a solução dos
chamados casos difíceis (BORGHETTI, 2008).
A dignidade da pessoa humana se traduz, para além de outras dimensões, em uma
dimensão dúplice, protetiva e promocional da pessoa humana. Na perspectiva promocional
revela-se a autodeterminação dos interesses pessoais, expressão da autonomia e da liberdade,
base da consagração do direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade, o
qual garante à pessoa humana a conformação de seus interesses pessoais.
Na perspectiva protetiva emergem os limites da atuação dos particulares, já que os atos
de disposição sobre os direitos fundamentais da personalidade devem respeitar a ordem
pública, na qual, na mais alta hierarquia, desponta o fundamento da República que é a
dignidade humana, bem como atender ao chamado limite dos limites, que se traduz na
preservação do núcleo essencial e irrenunciável da dignidade humana, já que o homem jamais
poderá ser tratado como objeto.
A derradeira análise, levando em consideração que a esfera de disponibilidade provoca
a colisão de direitos fundamentais da mesma pessoa, ou seja, autonomia versus direito da
personalidade que se pretende restringir, contempla a tese de não haver como escapar ao fato
de a solução dos casos concretos merecer uma análise das circunstâncias e interesses
contrapostos levada a efeito pela ponderação, como método mais adequado para a solução dos
conflitos normativos. Nesta atividade hermenêutica, evidencia-se a necessária relativização de
24
conceitos jurídicos, já que as soluções não são dadas, mas construídas à luz da unidade
sistemática do ordenamento jurídico calcado na promoção e proteção da dignidade humana.
2.3 O direito de personalidade e suas garantias constitucionais
Os direitos da personalidade abrangem o ser humano em toda a sua essência, uma
vez que “a atual concepção dos direitos da personalidade nasceu da necessidade de se olhar o
homem em sua ontologia, fruto das barbáries cometidas nas guerras mundiais do século
passado, que dizimaram milhões de pessoas” (SÁ E TEIXEIRA, 2005, p. 38). Esse enfoque
diferenciado provocou grande efeito na ordem jurídica, pois esta verteu seu foco principal do
patrimônio para a pessoa, colocando-a em seu centro, elegendo como objetivo primordial a
promoção da dignidade humana. Nesse sentido, Gozzo especifica (GOZZO, 2012, p. 153):
O objeto dos direitos de personalidade são projeções físicas ou psíquicas da
pessoas, as suas características mais importantes. As projeções da
personalidade, suas expressões, qualidades, atributos, modos de ser são bens
jurídicos e se apoiam no direito positivo. [...] Com os direitos de
personalidade, protege-se o que é próprio da pessoa, como o direito à vida, o
direito à integridade física e psíquica, o direito à integridade intelectual, o
direito ao próprio corpo, o direito à intimidade, o direito à privacidade, o
direito à liberdade, o direito à honra, o direito à imagem, o direito à
identidade, dentre outros.
O princípio da dignidade humana, consagrado em nossa Constituição Federal, é o
alicerce para a maioria dos direitos fundamentais hoje garantidos, o que fundamenta, também,
o direito à identidade genética, como um direito da personalidade, isso porque o ser humano
ocupa lugar de relevo, sendo o máximo valor do ordenamento jurídico, e, portanto, merecedor
de tutela em toda relação jurídica que faça parte.
Destaca-se que os direitos da personalidade podem se dividir em físico, intelectual e
moral, como já referido no item anterior. Nesse viés, nos ensina Donizetti (DONIZETTI,
2007, p. 65):
[...] aspecto físico, destacam-se o direito à vida e ao próprio corpo; no
aspecto intelectual, o direito à liberdade de pensamento, o direito de autoria
científica, artística ou literária e, ainda, no aspecto moral, o direito à
liberdade, à honra, ao recato, ao segredo, à imagem, à identidade, além do
direito de exigir de terceiros o respeito a esses direitos.
25
Ocorre que de nada adianta ser reconhecido como pessoa, se não nos é garantido um
mínimo de direitos, visto que os direitos da personalidade fazem parte do próprio conceito de
pessoa, atingindo, entre outros, consoante já dito alhures, alguns direitos fundamentais como
o direito à vida, à dignidade da pessoa humana, à imagem, à liberdade, à autonomia, à honra,
à integridade física e psíquica, uma vez que mesmo não estando previsto taxativamente no
ordenamento jurídico, o direito da personalidade não pode ser negado, sob pena de violação
dos direitos fundamentais da pessoa advinda da reprodução humana assistida.
Em linhas gerais, os direitos da personalidade conceituam-se como direitos
essenciais e intrínsecos à pessoa, possuindo características muito próprias, dotadas de certas
particularidades que lhes conferem uma posição singular no cenário dos direitos privados.
Não obstante isso, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, lista os direitos e
garantias fundamentais, além das limitações aos direitos inerentes à pessoa, dentre eles, o
direito da personalidade, que atinge todas as pessoas, por ser direito originário que nasce com
a própria pessoa e toma lugar próprio no sistema jurídico. Ademais:
A tipicidade aberta não é incompatível com uma cláusula geral de tutela,
que, ao lado da tipicidade social reconhecida, estabelece os limites mais
amplos da consideração dos tipos. Significa dizer que são tipos de direito de
personalidade: a) os tipos previstos na Constituição e na legislação civil; b)
os tipos reconhecidos socialmente e conformes com a cláusula geral (LOBO,
2003).
Assim, é forçoso dizer que os direitos que dão conteúdo à personalidade são
imprescindíveis na medida em que sem eles a pessoa não existiria como tal, ou melhor, são
essencialmente fundamentais, pois sem os quais a personalidade estaria privada de todo o seu
valor concreto e não restaria completamente realizada.
Extrai-se do exposto que os direitos fundamentais estão dispostos,
constitucionalmente, para uma pessoa humana que, portadora de
personalidade, tem a proteção dos chamados direitos da personalidade –
princípio fundamental da ordem jurídica constitucional brasileira –
lastreados pela cláusula geral dos direitos da personalidade – fundada no
princípio da dignidade da pessoa humana (AHMAD, 2009, p. 108).
Com efeito, os direitos da personalidade são imprescindíveis à existência do ser, de
tal sorte, que ao nascerem com a pessoa, indissociáveis dela se tornam e a acompanham por
toda a sua existência.
26
Nesse lastro, considerados como bens jurídicos a serem tutelados, os direitos da
personalidade necessitam de proteção jurídica como garantia da própria existência da pessoa
humana em seu desenvolvimento no contexto social.
Assim, em relação à tutela privada, sabemos que o dever do Estado é zelar pela paz
social e pela justiça, e garantir à pessoa a inviolabilidade e o exercício dos seus direitos
sociais e individuais, conquanto, no que pertine aos direitos de personalidade, se houver
urgência na defesa destes direitos e, diante da impossibilidade do Estado, é possível que o
titular faça uso da tutela privada contra o ofensor de seu direito personalíssimo.
Não obstante isso, em uma sociedade fraterna, harmônica e pluralista, é dever do
Estado garantir a proteção dos direitos dos indivíduos, todavia, como já dito alhures, na
ausência do Estado, é dever do indivíduo de defender o que lhe é próprio, ou seja, a vida, a
integridade física, moral e intelectual, sua imagem e sua identidade, para que possa viver com
dignidade.
Tangente a isso, destaca-se que, além de informar todo o ordenamento jurídico, o
princípio da dignidade da pessoa humana é fundamento para a maioria dos direitos elencados
no rol de direitos fundamentais, pois, é imbuído de eficácia e sobrevém direta ou
indiretamente sobre os fatos jurídicos que circundam a vida dos sujeitos de direito.
Como visto, o princípio da dignidade da pessoa humana é nada mais do que um
compromisso da sociedade e do Estado para com a liberdade individual e a vida, devendo sua
aplicação ser pautada pela sensatez do caso concreto, isso porque o respeito ao ser humano,
frente às novas tecnologias, só é atingido se houver respeito à dignidade humana, pois não há
vida e nem outros princípios que sobrevivam sem dignidade.
Pois bem, a evolução das ciências biomédicas e a utilização de seus resultados em
nossa sociedade, causa, e não é de hoje, grande apreensão entre os operadores do Direito,
principalmente do Direito Civil, quando tratamos de direitos da personalidade ligados à
bioética, pois muitas são as suas conexões.
Conquanto, bioética é, em outras palavras, segundo Gozzo (GOZZO, 2012, p. 149):
[...] o estudo sistemático da conduta humana nas ciências da vida e da saúde,
examinada a partir de valores e princípios morais. A bioética, como parte da
ética, é ramo da Filosofia e se volta para as questões que envolvem a
pesquisa, a experimentação, o uso da ciência, de técnicas ou tecnologias que
interferem na vida ou na saúde humana, diretamente.
Nesse norte, é sabido que o rol de direitos fundamentais não é exaustivo, havendo a
possibilidade de identificar e estabelecer novos direitos além daqueles já positivados, que é o
27
caso da bioética, levando-se em conta que o princípio da dignidade da pessoa humana e o
dever de preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético, fez nascer um novo
direito, os biodireitos fundamentais.
Os biodireitos fundamentais apresentam-se como uma categoria no quadro dos
direitos humanos e fundamentais, posto que, conforme Maluf (MALUF, 2013, p. 16), pode
ser definido como:
[...] o novo ramo do estudo jurídico, resultado do encontro entre a bioética e
o direito, [...] estudando as relações jurídicas entre o direito e os avanços
tecnológicos conectados à medicina e à biotecnologia, peculiaridades
relacionadas ao corpo, à dignidade humana.
Esse novo direito busca tutelar a vida, a proteção integral do indivíduo enquanto
pessoa, sendo pautado pela bioética, a qual analisa o homem sob a ótica de que nenhuma
intervenção médica ou biológica venha ferir a dignidade da pessoa, estabelecendo, assim, os
limites da intervenção tecnocientífica no ser humano nas mais diversas situações, desde a
concepção até o episódio post mortem.
Assim, os biodireitos fundamentais são a concretização dessas idéias, social,
política, bioética e filosoficamente, os quais estão presentes na limitação, na
normatização e na tentativa de proteção integral do ser humano, com a
finalidade de garantir as suas liberdades e de fundamentar as suas garantias
em um Estado Democrático de Direito (SICILIANI, 2010).
Nesse contexto, retoma-se a ideia do direito à identidade genética, que pode ser
conceituada como o genoma de cada ser humano, como características genéticas ou como a
identidade genética como base fundamental da identidade pessoal, visto que o direito à
identidade genética apresenta-se como reflexo do direito do ser concebido conhecer sua
ascendência biológica, como decorrência da inviolabilidade de sua integridade moral, sendo
tal direito essencial e básico para o desenvolvimento da personalidade.
Isso porque na inseminação artificial heteróloga, onde se utiliza material genético de
um terceiro, traz à tona a discussão sobre o direito de o filho, advindo dessa técnica de
reprodução, saber, conhecer a sua origem, a sua identidade genética.
Na maior parte dos casos, busca-se o conhecimento da origem genética por motivos
íntimos, psicológicos, que começam a atormentar a vida dessas pessoas, que passam a querer
desvendar de onde veio, a fim de se conhecer.
28
Não obstante isso, a necessidade de conhecer o passado genético pode advir em
casos de doença, que somente podem ser resolvidos por meio de compatibilidade sanguínea.
Da mesma forma, o conhecimento da identidade genética torna-se, talvez, mais importante,
quando nos deparamos com o mundo globalizado, com a sociedade da informação, que nos
proporciona eliminar as barreiras da distância física através da internet, o que, sem dúvidas,
pode vir evitar relações incestuosas.
Com efeito, para estabelecer o direito à origem genética como extensão do direito de
personalidade, devemos compreender, primeiro, o direito à identidade pessoal, que, por sua
vez, envolve um direito à herança pessoal, expresso na relação de cada pessoa com aquelas
que lhe deram origem. O direito à herança pessoal alcança o concreto direito de cada ser
humano a conhecer a identidade dos seus genitores, enquanto expressão do próprio direito à
identidade pessoal, senão mesmo também por exigência decorrente do respeito pela respectiva
personalidade, todo o ser humano tem o direito de saber quem são seus pais biológicos.
Além disso, envolve o direito de cada ser humano conhecer a forma como foi gerado,
ou, mais amplamente, o direito a conhecer o patrimônio genético, elemento este que, além de
reflexos na prevenção de certas doenças, como já dito acima, pode ter decisiva importância
psíquica não só ao nível do direito à identidade como também quanto ao direito ao
desenvolvimento da personalidade.
Não há dúvida de que a primeira ideia que nos vem à mente quando tratamos da
personalidade é a da figura humana. A personalidade, que é a perfeição da pessoa, isto é, a
qualidade do ente que se considera pessoa, agrega-se ao homem, traçando-lhe características
que lhe são próprias e diferenciando-o de outros homens. Em verdade, a par do perfil
biológico, é a personalidade que, de um modo geral, atribui à figura humana uma fisionomia
única e peculiar. (LEITE, 2001, p.151)
A personalidade incide sobre a configuração íntima de cada indivíduo, pois somos
dotados de uma unicidade natural, qual seja, a nossa identidade pessoal, expressão da
individualidade da nossa própria e exclusiva personalidade física e psíquica. Assim, a
identidade genética da pessoa humana, base biológica da identidade pessoal, é uma dessas
manifestações essenciais da complexa personalidade humana.
Como já visto, o direito à identidade genética tem como fundamento a dignidade do
ser humano e, por corolário, o seu direito à personalidade e à identidade (XAVIER, 2004, p.
58). Dessa forma, o direito ao conhecimento da origem genética abarca o direito à identidade
genética, na senda dos direitos de personalidade (MARQUES, 2002, p. 31), pois, trata-se de
um direito humano descobrir suas raízes, entender seus traços sócio-culturais, direito de
29
vincular-se com alguém que lhe deu a bagagem genético-cultural básica. A bagagem genética
é hoje parte da identidade de uma pessoa (MARQUES, 2002, p. 45).
Atualmente o papel primordial que as pessoas e o Direito dão à identidade cultural é
de suma importância, visto que é ela que faz a ligação entre os personagens sociais. Consiste,
consoante entendimento de Ferraz (FERRAZ, 2011, p. 133), em outras palavras:
[...] em saber sua origem, sua ancestralidade, suas raízes, de entender seus
traços, (aptidões, doenças, raça, etnia) socioculturais, conhecer sua bagagem
genético-cultural básica. Identificar e proteger a origem é parte do novo
direito internacional, que inclui a identidade cultural como elemento
juridicamente relevante, como categoria de direito da personalidade e de
família. É o direito de cada ser humano de conhecer sua história pessoal e
origem genética.
O objeto da tutela do direito ao conhecimento da origem genética é assegurar o
direito da personalidade, na espécie direito à vida, pois as atuais pesquisas da área médica
apontam a necessidade de cada indivíduo saber sobre a história de saúde de seus parentes
biológicos próximos para prevenção de sua própria vida. Toda pessoa tem direito
fundamental, na espécie direito da personalidade, de vindicar sua origem biológica para que,
identificando seus ascendentes genéticos, possa adotar medidas preventivas para preservação
da saúde e da própria vida (LOBO, 2004, p. 525).
[...] o objeto da tutela do direito ao conhecimento da origem genética é
assegurar o direito de personalidade, nas espécie direito à vida, pois os dados
da ciência atual apontam para a necessidade de cada indivíduo saber a sua
história de saúde de seus parentes biológicos próximos pata prevenção da
própria vida. Esse direito é individual, personalíssimo, não dependendo de
ser inserido em relação de família para ser tutelado ou protegido (LOBO,
2008, p. 203).
Como dito acima, esse direito é individual e personalíssimo, não dependendo de ser
inserido em relação de família para ser tutelado ou protegido. Assim, destaca-se que não há
necessidade de se atribuir a paternidade a alguém para se ter o direito de personalidade de
conhecer, por exemplo, os ascendentes biológicos paternos do que foi gerado através de
reprodução artificial heteróloga, por doador anônimo de sêmen.
Nesse norte, é inegável a fragilidade do tema, tendo em vista que há uma colisão de
direitos fundamentais. Não há como estabelecer uma regra para determinar a prevalência de
um sobre o outro, pois ambos são de fundamental importância. Mas uma coisa é certa:
30
assegurando um; estar-se-á violando outro. Premente legislação sobre o tema para possibilitar
a harmonia entre os princípios.
A questão que envolve o direito ao conhecimento da origem genética é muito
delicada, porque envolve o sentimento, o desejo e até mesmo a necessidade de conhecer suas
origens para obter respostas para os mais variados questionamentos.
Todos nós temos direito de saber nossa origem, nossos ascendentes, quem nos gerou,
quem realmente nos deu a vida. Desse modo, a pessoa gerada por reprodução artificial, a
partir do momento em que souber sua verdadeira história, terá a vontade de conhecer quem é
seu pai/mãe biológica, e então começará uma busca incessante na procura da sua identidade
genética, porque “cada pessoa se vê no mundo em função de sua história, criando uma autoimagem e identidade pessoal a partir dos dados biológicos inseridos em sua formação,
advindos de seus genitores” (ALMEIDA, 2003).
Essa crise de identidade se dará mais facilmente nas técnicas de inseminação
heteróloga, onde um terceiro doa seu sêmen para que a mulher venha a ser fecundada, sendo
que o material biológico não é do “pai presumido”, esposo ou companheiro da mulher
fecundada, mas sim de um terceiro desconhecido. Da mesma forma, ocorre quando há a
doação do óvulo, que uma vez fecundado é introduzido no útero da mulher “receptora”, sendo
que o filho nascido dela, só se liga biologicamente ao seu marido/companheiro, o qual
forneceu o espermatozóide que se “juntou” com o óvulo doado. Por conseguinte, em termos
estritamente biológicos, o pai e a mãe seriam esses terceiros doadores. Assim, no caso da
fecundação heteróloga, pode o concebido buscar conhecer seus pais biológicos?
Nesse sentido, importante frisar o entendimento do direito comparado, como nos
mostra Gama (GAMA apud MACHADO, 2005):
Apesar do anonimato dos doadores ser a regra em praticamente todos os
países que possuem legislação a respeito, atendendo aos interesses da criança
ou do adolescente, a lei sueca exatamente não prevê o sigilo, o anonimato,
tendo em vista a necessidade de prevenir doenças genéticas, além de permitir
que a pessoa possa, com a maioridade, conhecer o genitor biológico. [...] O
anonimato do doador de material genético deve realmente existir em matéria
de reprodução assistida, mas não dentro de uma noção absoluta. No Direito
europeu, mesmo em alguns países que seguem o sistema do Direito
continental, filiando-se à tradição romana, há divergência de tratamento.
Assim, há, em alguns textos normativos de países, previsão acerca de
exceções ao anonimato, ora para prevenir ou curar doenças genéticas, ora
para reconhecer o interesse da pessoa gerada por meio de reprodução
assistida em conhecer a sua ascendência (identidade) biológica, mas sem
qualquer atribuição de benefícios ou vantagens econômicas. Mas, na maior
parte dos textos legislativos em vigor, nos países europeus, há a regra do
anonimato. No caso brasileiro, apesar de não haver qualquer regra expressa a
31
respeito, em observância aos princípios, objetivos e fundamentos de Direito
de Família, eventualmente o sigilo poderá ser afastado, cedendo lugar à
proteção de interesses de maior relevância.
A fim de evitar esta polêmica, o Conselho Federal de Medicina, através da Resolução
n. 2.121/2015, decidiu que o sigilo em torno do nome dos doadores e receptores é obrigatório
e que as informações sobre pacientes e doadores pertencem, exclusivamente, às clínicas ou
centros que mantêm serviços de Reprodução Assistida.
Conquanto, tangente ao anonimato do doador, torna-se importante destacar, segundo
Leite (LEITE apud MACHADO, 2005, p. 119-120), que:
[...] Na hierarquia dos valores estas considerações sobrepujam o pretendido
“direito” de conhecimento de sua origem. [...] o anonimato evita que tanto o
doador quanto a criança procurem estabelecer relações com vistas a
obtenção de meras vantagens pecuniárias. Exclui-se o estabelecimento de
uma filiação que conduziria à ações de investigação de paternidade ou outras
ações de responsabilidade.
No entanto, em clara contradição, existem leis que entram em choque com o telado
anteriormente, como é o caso da Lei 8.069/90, o popular Estatuto da Criança e do
Adolescente, o qual estabelece o direito inarredável dos filhos de pleitearem o
reconhecimento do seu direito de filiação1.
Todavia, cabe ressaltar, que apesar de ser uma lei recente, os seus legisladores,
logicamente, ao referirem-se ao reconhecimento da filiação, em nenhum momento pensaram
na hipótese da identidade genética das crianças em casos como o da reprodução humana
artificial.
Assim, verifica-se que o posicionamento do Conselho Federal de Medicina, na
questão em torno do sigilo das informações, impedindo, a princípio, a pessoa de conhecer seu
pai/mãe biológica, acaba por ferir o disposto no artigo 27 do Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Nesse contexto é que nasce o conflito: de um lado o direito da criança em saber sua
identidade genética, de outro o direito do doador/doadora de ser uma simples ferramenta na
concepção de seres humanos medicamente reproduzidos, não querendo eles ter nenhum
envolvimento com o “produto” desta técnica, tendo interesse tão somente em fazer a doação
de espermatozóides e óvulos para ajudar pessoas inférteis.
1
Assim prescreve o artigo 27 da referida lei “O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo,
indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição,
observado o segredo de Justiça (grifo nosso)”.
32
Outrossim, analisando o direito de identificação da filiação biológica, deve-se
vislumbrar que é um direito fundamental de toda pessoa, sendo, de certa forma, impassível de
restrição, como estatui o artigo 5° da Constituição Federal, o qual assegura o princípio da
igualdade e, como é sabido, os “ensaios” da legislação brasileira sobre o tema inviabilizam a
possibilidade da pessoa originada dessas técnicas de reprodução conhecer seus pais
biológicos, direito personalíssimo, entrando, mais uma vez em choque de pensamentos,
acarretando controvérsias jurídicas em torno da constitucionalidade da questão. Ademais,
conforme leciona Sampaio (SAMPAIO apud MACHADO, 2005, p. 116):
[...] o Código Civil só admitiu a investigatória de paternidade em quatro
hipóteses a saber: a) em caso de concubinato, ao tempo da concepção, da
mãe do investigante, com o investigado; b) em caso de rapto da mãe do
investigante, pelo suposto pai, coincidente com à época da concepção; c) em
caso de se comprovarem relações sexuais entre a mãe do investigante e o
pretendido pai, à época da concepção; d)em caso de existir escrito daquele a
quem se atribui a paternidade, reconhecendo-a expressamente. Pelo que se
vê dos termos expresso da lei, as três primeiras hipóteses são inviáveis em se
cuidando de ação de investigação de paternidade movida por filho de mulher
que foi inseminada artificialmente. Não houve concubinato, não houve rapto
e não houve relações sexuais.
De outra banda, o direito à identidade genética, talvez, possa encontrar justificativa
quando, futuramente, em função do sigilo absoluto, resultem relações incestuosas, dando aos
filhos o direito de ter acesso aos dados biológicos do doador para a descoberta desse possível
impedimento
matrimonial.
Pois,
em
se
mantendo
o
sigilo
absoluto
da
paternidade/maternidade biológica, em tese, nada impede que irmãos, ou seja, filhos nascidos
de material pertencente ao mesmo doador/doadora, ou mesmo o próprio doador e uma filha
contraiam casamento por absoluta ignorância com relação as suas verdadeiras origens.
Assim, mesmo não tendo participado, portanto, não tendo escolhido a sua
forma de nascimento, o filho nascido da inseminação heteróloga, fica tolhido
de saber sobre sua origem de filiação, sendo-lhe negado o direito à
identidade. [...] O conhecimento de sua origem é direito personalíssimo que
deve ser assegurado a todas as pessoas que desejam conhecer seus
antecedentes porque trata-se da história da vida de cada um (MACHADO,
2005, p. 121).
Por outro lado, é de se considerar que os laboratórios especializados no fornecimento
de sêmen/óvulos têm o cuidado de expedir o produto para regiões distantes umas das outras,
mas essa cautela apenas reduz o risco, pois o homem, atualmente, pode deslocar-se para
qualquer lado do mundo com facilidade, e, portanto, pode-se perder o controle sobre a
33
distribuição do material genético. Além do que, não havendo regulamentação legal dessa
situação, não há como garantir uma fiscalização eficiente em todos os laboratórios
especializados em fecundação artificial.
Nesse contexto, tanto o direito à identidade e o acesso à informação, quanto o direito
de privacidade estão pautados no princípio da dignidade da pessoa humana e buscam um
máximo de respeito aos direitos de personalidade do indivíduo. Todavia, há momentos em
que haverá conflitos entre esses direitos, de maneira que será necessário um estudo detalhado
do caso concreto, a fim de identificar qual deles deve prevalecer.
Desse modo, ocorrendo o conflito entre dois ou mais princípios em um
determinado caso, deve o intérprete considerar o peso relativo de cada um
deles e verificar, naquele caso concreto, qual deve prevalecer, afastando o
princípio incompatível. [...] Como os princípios possuem uma dimensão de
peso maior que a das regras, havendo conflito de regras, umas dessas regras
será invalidada, enquanto no conflito entre princípios, a solução dependerá
do peso e da importância de cada um no caso concreto, que não será
invalidado, porém apenas não aplicado naquela determinada situação
(FERRAZ, 2011, p. 145).
Diante desse conflito, segundo Edson Ferreira da Silva “o equilíbrio entre um
interesse e outro deve ser buscado pelos operadores do direito, segundo um critério axiológico
que deve determinar o interesse prevalecente em cada situação” (SILVA, 1988, p. 68).
Destarte, “a real utilidade da informação deve ser o parâmetro para legitimá-la e
justificar o desvelamento de aspectos da intimidade de alguém” (SILVA, 1988, p. 68). Assim,
temos que a intimidade, direito personalíssimo instituído constitucionalmente no artigo 5º,
inciso X, da Carta Magna, visa proteger o particular em sua privacidade. O objetivo é
assegurar que possa manter em sigilo informações que competem somente ao titular delas,
sendo considerada agressão a divulgação de dados sem justo motivo.
Notadamente, a intimidade, em um mundo globalizado e proliferado de redes sociais
como o atual, possui diferente aplicação em nosso cotidiano. Com efeito, já é possível
observar casos em que outros direitos fundamentais prevalecem em relação à privacidade,
justamente por estarmos diante de uma realidade diversa e peculiar na sociedade
contemporânea.
O direito à intimidade é hoje considerado parte integrante dos direitos da
personalidade. Tutela o direito do indivíduo de estar só e a possibilidade que
deve ter toda pessoa de excluir do conhecimento de terceiros aquilo que a ela
só se refere, e que diz respeito ao seu modo de ser no âmbito da vida privada
(LAFER, 1988, p. 239).
34
Com efeito, podemos notar que é bastante controversa a colisão de direitos entre
doador e a pessoa gerada pela reprodução artificial, uma vez que àquele é garantido o direito
ao sigilo, à privacidade, intimidade, enquanto que ao outro é garantido o direito de
personalidade, identidade, de acesso à informação, todos direitos fundamentais, garantidos
constitucionalmente.
Conquanto, o direito à identidade genética baseia-se na dignidade da pessoa humana,
tendo em vista que a pessoa tem direito a ter conhecimento de onde surgiu e quem lhe gerou a
vida. Tal direito não se baseia somente em questões emocionais ou psicológicas, mas também
médicas, uma vez que conhecer a identidade genética dá base ao indivíduo para conhecer
eventuais doenças genéticas, propensões genéticas e demais questões ligadas à
hereditariedade e DNA.
Por outro lado, o doador de material biológico para reprodução assistida, em regra,
somente o faz por não ser possível qualquer ligação sua com o ser humano gerado a partir
dessa técnica. Quando falamos em inexistência de ligação, conforme já mencionado, falamos
tanto de ligação emocional como de direitos hereditários ou alimentares. Outro ponto a ser
ressaltado, é que sigilo do doador visa assegurar que continuem existindo doadores, uma vez
que sem estes não poderá se concretizar a reprodução heteróloga, tendo em vista que esta se
faz necessária em razão da impossibilidade dos pais inférteis doarem material genético.
Assim, temos um conflito entre direitos fundamentais relacionados à personalidade
do indivíduo, tanto do ser humano gerado pela reprodução assistida quanto do doador, pois
“estar-se-ia efetivamente diante de um conflito de normas, quando se garante o direito ao filho
de saber sua origem genética e, ao mesmo tempo, ao doador do material sexual ao sigilo de
sua identidade” (FERRAZ, 2011, p. 146). Para tanto, deve-se ter especial atenção ao definir
qual direito prevalece na relação existente, através da ponderação, para essa reflexão acerca
dos conflitos de direitos fundamentais, frisa-se, consoante reza Cachapuz (CACHAPUZ,
2006, p. 149-150), que:
Quando se está a tratar dos direitos fundamentais afetos à personalidade
individual e da possibilidade de coexistência de liberdades subjetivas num
mesmo espaço de concretização jurídica, cabe compreender que a missão do
intérprete -e do julgador, em última análise- é aplicar as diretrizes postas no
ordenamento jurídico, visando uma composição de interesses que permita
aos indivíduos conviver, com certa pacificação, em sociedade. Não se trata
de uma tranquilidade absoluta de convivência, pois existem fatores de
interferência nesse processo, mas da possibilidade de resolver conflitos
35
concretos pela apresentação de razões seguras de fundamentação ao
reconhecimento de precedência de um direito fundamental a outro.
No Brasil, como já mencionado alhures, temos apenas a Resolução n. n. 2.121/2015,
do Conselho Federal de Medicina, que garante ao doador o seu anonimato, ressalvando casos
de doenças genéticas. Todavia, segundo Ferraz (FERRAZ, 2011, p. 151):
[...] hoje, existe uma corrente mundial que considera o anonimato do doador
uma posição retrógrada que privilegia a construção da filiação sobre
relíquias jurídicas, a exclusivamente biológica, própria de outros tempos,
quando o legislador utilizava critérios restritivos sobre a matéria.
Assim, verifica-se que, num primeiro momento, está resguardado o direito do doador
ao sigilo de sua identidade, em detrimento do direito da pessoa advinda dessas técnicas de
reprodução em conhecer sua origem genética, uma vez que não há regulamentação quanto a
isso, ferindo seu direito fundamental à informação e à personalidade, motivo pelo qual se
deve encontrar uma solução a ser aplicada a cada caso concreto.
36
3 A REPRODUÇÃO HUMANA ARTIFICIAL
3.1 Da finalidade da inseminação e da fecundação
Inicialmente, é de fundamental importância fazer a diferenciação entre as expressões
inseminação e fecundação, para que não hajam equívocos no seu emprego e interpretação.
Faz essa distinção Washington de Barros Monteiro:
[...] a palavra fecundação vem do latim fecundatio, proveniente do verbo
fecundare, que significa ‘fertilizar’, sendo entendida como a fase de
reprodução consistente na fertilização do óvulo pelo esperma. A palavra
inseminação tem origem no verbo inseminare, composto por in – dentro – e
sêmen – semente, significando a colocação do sêmen na mulher.
(MONTEIRO, 2009, p. 360-361)
Assim, verifica-se que inseminação trata sempre da introdução de sêmen no útero ou
no colo do útero da mulher, a fim de que fertilize o óvulo, lembrando que esse sêmen pode ser
do próprio marido/companheiro ou de um doador, como veremos no próximo item.
Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Junior apresentam, de maneira bem
didática, as finalidades da reprodução humana artificial:
a) a de servir de fundamental ajuda aos casais que querem conceber filhos e
que, por diversas razões, naturalmente não o conseguem; b) a de servir como
prática fundamental para o sucesso de certas pesquisas médicas que visam à
descoberta de fenômenos que interessam à preservação da vida humana, quer
por novas descobertas de cura acerca de doenças já conhecidas, quer pela
descoberta de técnica de detecção de doenças ainda não eclodidas, quer pela
possibilidade de o manuseio de material genético permitir a solução de
problemas de ordem estrutural do corpo humano, criando condições de
reprodução de órgãos que possam vir a ser úteis a seres humanos em especial
estágio da sua vida, quer por ensejar – sob o ponto de vista da técnica
médica – a possibilidade de reprodução de novos seres humanos clonados.
(NERY; NERY; 2007, p. 1036)
Nesse sentido, verifica-se que o objeto principal das pesquisas em reprodução
humana é propiciar àquelas pessoas que possuem algum problema de fertilidade a
concretização do desejo de serem pais.
37
De outra banda, é importante destacar que não só os casais inférteis procuram as
técnicas de reprodução artificial, mas também aqueles casais que buscam evitar que doenças
hereditárias atinjam seus filhos, ou mesmo os casais homossexuais, que necessitam de um
terceiro, seja doador de material genético, seja a barriga de aluguel, a fim de concretizar o
desejo de maternidade ou paternidade.
Ocorre que essas situações desencadeiam vários debates éticos, levando a reflexões
sobre como devemos encarar essas situações, se o encorajamento nesse sentido é realmente
saudável sob o ponto de vista físico e psíquico.
Nesse sentido, traz-se à colação notícia de destaque mundial na utilização das
técnicas de reprodução humana artificial, sendo, sem dúvidas, grande conquista médica, visto
que no dia 09 de janeiro de 2009, foi anunciado oficialmente pela University College of
London o nascimento do primeiro bebê do Reino Unido sem o gene responsável por oitenta
por cento dos casos de desenvolvimento de câncer de ovário (BRCA 1). (SCALQUETTE,
2010, p. 67)
Como visto, a evolução médico-científica nos traz essas benesses, onde pais e filhos
podem ficar despreocupados com doenças hereditárias, que outrora assombrariam a vida de
ambos, deixando claro, assim, que a reprodução humana artificial tem, além da reprodução, a
função de prevenir doenças genéticas, garantindo a saúde dos concebidos por este meio de
procriação.
Ocorre que nem sempre os avanços científicos serão utilizados corretamente, há
sempre uma chance de haver o desvio de finalidade, como no caso da reprodução humana,
onde possíveis pais queiram escolher sexo, cor dos olhos e cabelos, simplesmente por um
mero capricho, pois estaríamos dando margem a uma espécie de mercado, onde pais poderiam
comprar seus “produtos”, ou seja, seus filhos, como bem lhes aprouvesse, o que via de
consequência lhes daria o direito de reclamar e responsabilizar os médicos e clínicas por
eventuais “defeitos”.
A Resolução n. 2.121/2.015, do Conselho Federal de Medicina, refere que: “As
técnicas de RA não podem ser aplicadas com a intenção de selecionar o sexo (presença ou
ausência de cromossomo Y) ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto
quando se trate de evitar doenças do filho que venha a nascer.” (CFM, 2015)
Portanto, verifica-se que por mais que não tenhamos ainda leis específicas sobre a
reprodução artificial, temos algumas normas éticas, como a resolução do CFM, que auxiliam
na imposição de limites para o desenvolvimento e aplicação dos avanços científicos.
38
Feitas essas considerações, passa-se, então, às principais técnicas de reprodução
humana assistida.
3.2 As diferentes técnicas de reprodução humana medicamente assistida
Há muito tempo, as dúvidas a respeito da herança biológica despertam a curiosidade
e o interesse do homem, em face, também, da necessidade de garantir a perpetuação da
espécie.
Os contos a respeito da esterilidade, criados pelos povos da antiguidade, esclarecem
que a esterilidade para os homens sempre foi geradora de dúvidas, fazendo com que a
investigação sobre o assunto fosse desenrolada desde sempre pela humanidade.
A concepção clássica referia que mãe era aquela que dava à luz, enquanto pai era
aquele teria fecundado essa mãe, mediante uma relação sexual, sendo um paradigma por
muitos anos.
No século 7 a.C., o Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos, registrava que os seres
humanos se originam da mistura de secreções do homem e da mulher. Referindo-se, ainda,
sobre a criação do homem a partir de uma nufta (pequena gota), afirma que o organismo
resultante dessa mistura de secreções aloja-se no útero como semente, depois de seis dias do
início da sua existência. Hoje, encontra-se cientificamente provado que o blastocisto leva esse
tempo para instalar-se no útero, depois da fertilização (MACHADO, 2005). Nessa linha de
pensamento, nos diz Kolata:
Na semente estão contidas todas as partes do corpo do homem que serão
formadas. A criança que se desenvolve no útero da mãe tem as raízes da
barba e do cabelo que nascerão um dia. Também estão presentes nesta
pequena massa todos os contornos do corpo e tudo o que a posteridade
descobrirá nele. (KOLATA, 1998, p. 43-44)
Conquanto, a inseminação in vitro de seres humanos teve seu ápice na Inglaterra,
quando, em 1978, Lesley Brown deu à luz a menina Louise, o primeiro bebê de proveta da
história da humanidade, hoje uma mulher plenamente saudável, vejamos:
Mas foi em 27.07.1978 que o mundo assistiu o que jamais conseguira
imaginar possível. Nascia na cidade de Oldham, Inglaterra, através do
trabalho dos pesquisadores britânicos, Drs. Patrick Steptoe e Robert
Edwards, Louise Joy Brown, o primeiro bebê concebido pela fecundação in
vitro, através dos gametos de seus pais legais, John e Lesley. (MACHADO,
2005)
39
Hoje, em face das novas técnicas de reprodução assistida, isso é perfeitamente
possível em vários casos em que, pelos métodos convencionais, seria impraticável. Assim,
denota-se que reprodução assistida são todos os tipos de tratamento que incluem a
manipulação in vitro (no laboratório) em alguma fase do processo, de gametas masculinos
(espermatozoides), femininos (oócitos) ou embriões, com o objetivo de se estabelecer uma
gravidez (MANCEBO; ROCHA; 2008, p. 15). Nesse norte, conceitua-se inseminação
artificial:
A inseminação artificial consiste em técnica de procriação assistida mediante
a qual se deposita o material genético masculino diretamente na cavidade
uterina da mulher, não através de um ato sexual normal, mas de maneira
artificial. Trata-se de técnica indicada ao casal fértil com dificuldade de
fecundar naturalmente, quer em razão de deficiências físicas (impotentia
coeundi, ou seja, incapacidade de depositar o sêmen, por meio do ato sexual,
no interior da vagina da mulher; má-formação congênita do aparelho genital
externo, masculino ou feminino; ou diminuição do volume de
espermatozóides [oligoespermia], ou de sua mobilidade [astenospermia],
dentre outras), quer por força de perturbações psíquicas (infertilidade de
origem psicogênica). (SILVA, 2002)
Conquanto, pode ocorrer que o marido ou companheiro sejam inférteis. Nesse caso,
recorre-se ao material genético de um terceiro homem, introduzindo-o na cavidade uterina da
mulher. Essa é a técnica denominada de inseminação artificial heteróloga:
A inseminação artificial heteróloga é a combinação da chamada terapia da
infertilidade com o moderno método de eugenia positiva (a criação de seres
humanos de pretensa qualidade superior através do recurso a material
genético masculino selecionado). Também nesse contexto surgem os
chamados “bancos de sêmen”, para a conservação no tempo do material
genético masculino. O primeiro “banco de sêmen” brasileiro encontra-se
instalado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, desde o ano de 1993.
(SILVA, 2002)
Sem dúvida, essa nova realidade científica no campo da reprodução humana, ao
romper com as práticas tradicionais, projeta no plano social um sem número de
questionamentos, não apenas de conotação filosófica, moral e ética, mas, sobretudo, jurídica,
causando perplexidade e dúvidas quanto à implicação da Reprodução Humana Artificial nas
relações jurídico familiares, interferindo diretamente no conceito que se tem atualmente de
pessoas e personalidade e nas relações de parentesco, secularmente estabelecidas pelas
normas de direito. Vejamos, assim, as principais técnicas de reprodução humana artificial:
40
3.1.1 Inseminação artificial
A inseminação, como forma de fecundação artificial, significa a união do sêmen ao
óvulo por meios não naturais de cópula, objetivando a gestação, a fim de substituir ou facilitar
alguma etapa que seja deficiente no processo normal de reprodução (FERNANDES, 2005).
Assim, temos a inseminação artificial homóloga, heteróloga e bisseminal, as quais
serão explicadas a seguir:
a) Homóloga:
A inseminação artificial homóloga ocorre com esperma do marido ou companheiro,
o que além de não modificar a hereditariedade biológica da criança, é, ainda, a técnica mais
antiga de fertilização. Ela consiste no depósito de esperma na vagina, no colo do útero ou no
próprio útero.
É uma técnica de reprodução assistida, indicada em casos de hipofertilidade,
perturbações das relações sexuais e esterilidade secundária após o tratamento esterilizante.
Neste caso as células germinais a serem utilizadas serão aquelas pertencentes ao marido ou
companheiro da própria paciente. É indicado quando há incompatibilidade ou ostilidade do
muco cervical.
Outra causa é a oligoespermia, quando é baixo o número ou reduzida a motilidade
dos espermatozóides, e a retroejaculação, quando embora a taxa de espermatozóides seja
normal eles ficam retidos na bexiga, ao contrário do que ocorre na ejaculação normal. A
fecundação artificial homóloga designa as técnicas voltadas para a obtenção de uma
concepção humana a partir dos gametas dos dois cônjuges ou companheiros, e pode ser
realizada com método de dois tipos: a fecundação in vitro homóloga com embryo-transfer
(FIVETE homóloga), na qual o encontro dos gametas se dá in vitro (fecundação
extracorpórea), e a inseminação artificial homóloga (IAO) com o depósito nas vias genitais
femininas do esperma, anteriormente recolhido, do marido ou companheiro (MACHADO,
2005).
Esse tipo de inseminação é indicada para homens que tenham anomalias como
disfunções sexuais que impedem a ejaculação no lugar adequado, que tenham escasso ou
excessivo volume de espermatozóides, ou em casos que o homem tenha perdido a capacidade
de fertilizar devido a vasectomias, cirurgias, esterilizações por radioterapias e quimioterapias,
41
só podendo fecundar se antes da esterilização teve a preocupação de congelar seus
espermatozóides. Em relação às mulheres, é indicada em casos de esterilidade cervical,
vaginismo ou malformação do aparelho genital.
A técnica consiste na introdução dos espermatozoides do marido ou companheiro,
previamente colhidos através da masturbação, no útero da mulher. O líquido seminal é
injetado, pelo médico, na época em que o óvulo se encontra apto a ser fertilizado.
(FERNANDES, 2005, p. 29).
b) Heteróloga:
Essa é a técnica que enseja a presente pesquisa, uma vez que o material genético
utilizado não é apenas do casal, mas há a colaboração de um doador que, pelas regras éticas
brasileiras, já que não possuímos legislação sobre o assunto, não pode ser identificado, sendo
mantido o sigilo sobre sua identidade, o que futuramente poderá ser um problema na vida do
indivíduo gerado através dessa técnica.
Nesse tipo de inseminação a diferença é que o sêmen não é do marido ou
companheiro, é utilizado esperma de um doador fértil, geralmente armazenado no banco de
sêmen, ou então no caso de óvulo, este não é da esposa ou companheira, mas sim de uma
doadora fértil, armazenado em bancos de óvulos. Na fecundação artificial heteróloga há a
participação de somente um membro do casal unido na fecundação com um
espermatozóide/óvulo de um doador (MACHADO, 2005).
Ainda, podem utilizar-se desta técnica mulheres solteiras, viúvas, separadas ou
divorciadas que desejam a maternidade, mas não possuam um companheiro/marido.
Importante salientar, como já dito acima, que o doador é anônimo, mantendo-se em
segredo, também, suas características como o grupo sangüíneo, o qual deverá ser idêntico da
mãe ou de seu marido/companheiro, a cor da pele, dos cabelos e dos olhos, e a estatura que
devem ser compatíveis com o casal.
A inseminação artificial heteróloga é indicada nos seguintes casos: azzospermia
(ausência completa de espermatozóides por causas definitivas e irreparáveis) ou
oligoespermia casos em que há absoluta esterilidade masculina, doenças hereditárias graves
do marido, e ainda a incompatibilidade, do tipo sangüíneo do casal, possibilitando a
interrupção da gravidez (MACHADO, 2005).
42
c) Bisseminal:
Nesse método de inseminação, emprega-se material genético fecundante masculino
de duas pessoas distintas, por existir uma insuficiência de espermatozoides do marido ou
companheiro, misturando-se, assim, o sêmen do marido ou do companheiro com o do doador
fértil, desconhecido do casal (FERNANDES, 2005, 30-31).
Eduardo de Oliveira Leite (1995, p. 36-40) explica o procedimento para a
inseminação artificial:
[...] recolhem-se os espermatozoides do marido ou do companheiro ou de um
doador, através da masturbação. O esperma é observado ao microscópio, a
fim de que seja feita a contagem do número de espermatozoides, a
porcentagem dos espermatozoides móveis (mobilidade) e sua velocidade de
deslocamento (motilidade); verifica-se, ainda, a taxa de espermatozoides
normais e anormais. O esperma, então, é diluído em uma solução
crioprotetora composta por glicerol misturado com frutose, antibióticos e
gema de ovo, a qual é distribuída automaticamente em tubos de plástico
numerados, os quais estão prontos para serem conservados em azoto líquido
a uma temperatura de 196 graus abaixo de zero; os capilares são colocados
em botijões de estocagem cheios de azoto líquido, podendo ser conservados
pelo prazo atualmente fixado de 20 anos.
A inseminação propriamente dita é feita por meio de depósito do esperma preparado
dentro da vagina, em volta do colo, dentro do colo, dentro do útero ou dentro do abdômen
(FERNANDES, 2005, p. 31), ou seja, Inseminação Artificial Intrauterina, onde os
espermatozóides são depositados diretamente dentro da cavidade uterina; Inseminação
Artificial Intravaginal, quando é injetado esperma fresco no fundo da vagina através de uma
seringa plástica; Inseminação Artificial Intracervical, quando há o depósito de pequena
quantidade de esperma contido em um capilar no interior do colo do útero. Esse capilar é
retirado do azoto líquido um pouco antes da inseminação e reaquecido rapidamente, o restante
do esperma é aplicado através de um tampão cervical que é retirado posteriormente; e a
Inseminação Artificial Intraperitonial, onde os espermatozóides são introduzidos diretamente
no líquido intraperitonial por meio de uma injeção aplicada na cavidade abdominal para que
as próprias trompas captem os espermatozóides, fazendo-os chegar diretamente nas trompas
de falópio (MACHADO, 2005).
43
3.1.2 Fertilização in vitro
A Fertilização in vitro, também conhecida por FIVETE, consiste em permitir o
encontro entre o óvulo e os espermatozóides fora do corpo da mulher, e depois de um a três
dias mais tarde, em colocar no útero da mulher o embrião obtido para que ele ali se
desenvolva. É a fertilização em laboratório, conhecida como “bebê de proveta”.
Essa técnica de reprodução artificial é utilizada em casos de esterilidade feminina,
quando há obstáculo ao encontro dos gametas (esterilidade tubária), ou quando os
espermatozóides são destruídos no organismo da mulher (esterilidade imunológica, caso raro),
da mesma forma, quando o número ou a sobrevivência de espermatozóides normais é
insuficiente, ou, ainda, para casos de esterilidade de origem não conhecida.
A FIVETE se divide em várias etapas, quais sejam: a indução da ovulação (por
estimulação hormonal), a punção folicular (aspiração dos oócitos mais próximos da ovulação)
e cultura dos óvulos, coleta e preparação do esperma, terminando com a inseminação e cultura
dos embriões. Vejamos o que ensina Mara Helena Machado, sobre a inseminação e cultura
dos embriões:
Cada óvulo é depositado em um tubo de inseminação contendo de 10.000 a
100.000 espermatozóides, sendo mantidos assim, até o dia seguinte, na
incubadora com temperatura de 37ºC, começando daí o processo de fusão
dos gametas. Decorridas entre 17 e 18 horas desde a junção dos gametos,
processa-se a observação do ovócito a fim de certificar-se da fertilização.
[...] Ocorrida a fecundação, são descartados os zigotos que não parecerem
regulares, sendo transferidos os considerados perfeitos, para um novo tubo
com cultura [...] em minúsculas provetas de plástico e desprovido de
espermatozóides. Nesse novo ambiente, o ovo fecundado permanece na
mesma temperatura, luz e condições, pelo prazo de 48 horas desde a punção
folicular, e então, realiza-se a transferência embrioária [...] através de cateter
(especial) muito fino (MACHADO, 2005, p. 15).
Importante destacar, ainda, como refere Silvia da Cunha Fernandes (2005, 34), que a
fecundação in vitro pode ocorrer com material genético do próprio casal ou de doadores.
Haverá a fertilização artificial homóloga, quando o óvulo da mãe for fecundado pelo
espermatozoide do pai; e heteróloga quando o óvulo e/ou o espermatozoide são doados e a
criança gerada por esse método não é portadora, total ou parcialmente, da herança genética de
seus pais.
44
Dessa forma, se dá a Fertilização in vitro, sendo que após implantado o embrião no
útero da mulher, a gravidez será acompanhada rigorosamente até o segundo mês gestacional,
decorrendo, depois disso, normalmente, como qualquer outra gravidez.
Todavia, não se pode olvidar que nessa espécie de reprodução artificial, em razão da
mulher ter mais chance de engravidar, também aumenta a chance de ter uma múltipla
gravidez, o que gera preocupação com a saúde da própria mulher e dos bebês que estão sendo
gerados, além de embriões excedentários, que via de regra, permanecem sem destino. Nesse
ponto, verifica-se que após a fecundação com a fusão do espermatozoide ao óvulo, temos,
mesmo que in vitro, um ser humano em potencial, que deve ter todos os seus direitos
preservados (FERNANDES, 2005, p. 34).
3.1.3 Transferência intratubária de gametas (GIFT)
Essa é a técnica chamada in vivo, uma vez que se constitui na aspiração do ovócito e
a sua transferência para as trompas juntamente com os espermatozóides, destinando-se às
mulheres que possuam trompas de falópio saudáveis.
É uma espécie de exame endoscópico da cavidade abdominal através de uma
pequena incisão na parede do abdome no mesmo tempo que capta o esperma. Nessa mesma
operação, colocam-se ambos os gametas em uma cânula especial, devidamente preparados
introduzindo-os em cada uma das trompas de falópio, lugar onde se produz naturalmente à
fertilização. Formará o embrião e este descerá dentro das trompas até o útero, de forma tal que
a concepção se produzirá integralmente no corpo da mulher (MACHADO, 2005).
A vantagem na utilização dessa técnica é a dos gametos serem transferidos
diretamente para a trompa e não diretamente para o útero, tornando o processo de fecundação
mais natural.
3.1.4 Transferência de zigoto nas trompas de Falópio (ZIFT)
A transferência de zigoto nas trompas de falópio (zigote intrafallopian transfer) é
considerada a técnica de reprodução assistida mais artificial de todas elas. Nesse
procedimento, os gametas masculino e feminino são postos em contato, in vitro, em condições
apropriadas para sua fusão, sendo o zigoto resultante transferido para o interior das trompas
uterinas. A diferença da ZIFT em relação à GIFT é que, na primeira, a fecundação se realiza
45
fora do corpo da mulher, enquanto, na segunda, o encontro do óvulo com o espermatozóide,
formando o embrião, ocorre nas trompas (SILVA, 2006, p. 376-377).
3.1.5 Transferência uterina de zigoto (ZUT)
A Transferência Uterina de Zigoto, também chamada de ZUT (zygote uterine
transfer), é a transferência do zigoto para o útero, processo esse que ocorre 24 horas a partir
do início da fecundação (MACHADO, 2005).
Nessa técnica ambos os tipos de gametas são postos em contato, in vitro em
condições apropriadas para sua fusão, o zigoto ou zigotos são transferidos para o interior das
trompas uterinas, ocorrendo, então, a fecundação fora do corpo da mulher.
Os resultados obtidos por esta técnica são menos satisfatórios, porque na fase em que
o embrião deveria encontrar-se na trompa de falópio, está no útero materno.
3.1.6 As mães de substituição
A cessão temporária de útero decorre da incapacidade de uma mulher ou de um casal
de levarem adiante uma gestação, recorrendo-se às mães de substituição, que lhes trarão a
possibilidade de ter filhos (FERNANDES, 2005, p. 37).
Nesse sentido, refere a Resolução 2.121/2015 do CFM: “As clínicas, centros ou
serviços de reprodução assistida podem usar técnicas de RA para criarem a situação
identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça
ou contraindique a gestação na doadora genética ou em caso de união homoafetiva.”
Além disso, as doadoras temporárias do útero devem pertencer à família de um dos
parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau, segundo consta na resolução acima
mencionada, sendo que a doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou
comercial.
3.3 As recentes técnicas de reprodução humana
Como visto no item anterior, existem diferentes técnicas de reprodução assistida,
todavia, os cientistas não param de pesquisar, sempre buscando inovações nessa área médica.
46
Assim, destacam-se agora algumas das novas técnicas de reprodução humana, que buscam dar
longevidade nesse processo de procriação:
a) troca de citoplasma: consistente na retirada de parte do citoplasma do óvulo da
mãe e faz substituição por citoplasma de um óvulo jovem de uma doadora para obter um
óvulo rejuvenescido, pronto para ser fecundado. Apesar de proibida em alguns países,
recomenda-se seu uso para mulheres em idade madura ou que apresentem óvulos debilitados.
A grande questão que se insere é que a criança daí resultante terá o código genético
proveniente de três pessoas distintas (pai, mãe e doadora de óvulo), não apenas de seu pai e de
sua mãe. (FERNANDES, 2005, p. 49)
b) criação artificial de óvulos: a partir da transformação de uma célula qualquer do
corpo, que tem 46 cromossomos, em uma célula reprodutiva, que tem 23 cromossomos. Para
se criar um óvulo artificial, substitui-se o material genético do núcleo do óvulo natural doente
pelo cromossomos de uma célula comum; com uma descarga elétrica, divide-se a cadeia de 46
cromossomos em duas de 23, sendo uma delas retirada. O resultado dessa técnica é a
fabricação em laboratório de um óvulo saudável, pronto para ser fertilizado. Todavia, sua
proximidade com a clonagem dever ser motivo de averiguação. (FERNANDES, 2005, p. 49)
c) Fertilização in vitro com maturação de óvulos (in vitro maturation): esta técnica
ainda é considerada experimental e é indicada às mulheres que sofrem riscos com a
hiperestimulação ovariana usada na fertilização in vitro tradicional, especialmente as
portadoras da síndrome dos ovários policísticos. Consiste em um processo de fertilização in
vitro em que pouco ou nenhum medicamento é usado para estimular os ovários. Os óvulos, ou
oócitos, são colhidos da mesma maneira da FIV vitro convencional, porém ainda imaturos.
Seu amadurecimento é realizado em laboratório (in vitro) (PROCRIAR, 2015). Depois de
maduros os óvulos de boa qualidade serão fertilizados para a formação de embriões.
d) transplante de núcleo: consistente na retirada do núcleo do óvulo defeituoso e sua
substituição por um núcleo saudável proveniente de um óvulo de uma doadora. Essa técnica é
proibida em vários países, pois se teme que vestígios do núcleo original defeituoso possam
acarretar anomalias ao embrião. (FERNANDES, 2005, p. 49)
e) congelamento de tecido ovariano com folículos para preservar a idade reprodutiva
da mulher: desse modo, quem congelar seu tecido ovariano aos 20 anos, poderá gerar uma
criança aos 50, com um óvulo trinta anos mais jovem, mas os cientistas ainda não sabem
como transformar o folículo em óvulo sadio. (FERNANDES, 2005, p. 50)
f) congelamento de óvulos: sempre foi utilizada, em caráter experimental, devido à
fragilidade do óvulo, que, na maioria dos casos, não resiste ao descongelamento, estourando,
47
mesmo quando permanece intacto ao descongelamento, há perda de qualidade, o que aumenta
os riscos de má formação no feto. (FERNANDES, 2005, p. 50)
Destaca-se, que apesar das inúmeras possibilidades de procriação artificial, elas não
se mostram como um tratamento para sanar a infertilidade ou esterilidade, elas apenas
auxiliam aqueles que desejam ser pais e não podem, em realizar essa aspiração.
3.4 As formas de reprodução assistida previstas no Código Civil Brasileiro
A reprodução humana artificial, como telado anteriormente, pode se dar com
gametas do casal (homóloga) ou gametas de doadores (heteróloga), nesse sentido, há que se
destacar que o Código Civil Brasileiro, que entrou em vigor em 2003, fez menção a essas
técnicas, mesmo que timidamente, em único artigo, sendo a única legislação nesse sentido até
o momento, motivo pelo qual merece especial atenção.
Na época, Silvio Rodrigues fez sucinta explanação sobre as técnicas de reprodução
humana, inovações do Código Civil de 2002, referindo que “homóloga é a inseminação
promovida pela material genético (sêmen e óvulo) dos próprios cônjuges” e “heteróloga é a
fecundação realizada com material genético de pelo menos um terceiro, aproveitando ou não
os gametas (sêmen e óvulo) de um ou de outro cônjuges” (RODRIGUES, 2002, p. 341).
Passa-se então, a análise dos incisos do artigo 1.5972 do Código Civil que tratam sobre a
reprodução assistida.
Na hipótese do inciso III do art. 1597, o novo código admitiu como filhos
presumidos os que nasceram da união do espermatozoide e óvulo de seus pais, tenha essa
união ocorrido dentro ou fora do corpo materno (SCALQUETTE, 2010, p. 74), e, ainda, que
essa fecundação pode ocorrer após o falecimento do pai.
Outro detalhe importante na chamada fecundação post mortem é a necessidade de
autorização do falecido marido ou companheiro, como refere a Res. 2.121/2015 do CFM: “É
permitida a reprodução assistida post-mortem desde que haja autorização prévia específica
do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação
vigente.”
2
O art. 1.597 do Código Civil refere que:
Art. 1.597 Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
[...]
III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido.
IV – havidos a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial
homóloga.
V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. [grifo nosso]
48
Denota-se que a preocupação do legislador foi com a vontade do falecido que deixou
em vida autorizada a procriação post mortem, sendo certo que tal dispositivo vem amparado
também pela Constituição Federal, no art. 227, § 7º, visto que o planejamento familiar é de
responsabilidade do casal, e não apenas de uma das pessoas envolvidas, motivo pelo qual é
necessário que haja autorização expressa do marido para que ocorra a inseminação artificial e
que prevalece o prazo previsto no inciso II do art. 1.597, de 300 dias após o óbito, a fim de se
preservar os interesses hereditários do filho.
Todavia, se o filho vier a ser concebido, mesmo sem a autorização do pai, será
necessário o ajuizamento de ação de reconhecimento de paternidade post mortem, requerendo
que se proceda a análise do exame de DNA, uma vez que, nesse caso, a paternidade não será
presumida.
Já no que diz respeito aos embriões excedentários, refere Silvio Rodrigues “são
aqueles resultantes de inseminação promovida artificialmente, mas não introduzidos no útero
materno” (RODRIGUES, 2002, p. 341).
O inciso IV do art. 1597 do Código Civil “cuidou de presumir como filho os
embriões excedentários decorrentes da concepção artificial homóloga, ou seja, somente
aqueles que restaram da fecundação feita com material genético dos próprios genitores”
(SCALQUETTE, 2010, p. 74).
Sobre o assunto temos a Lei de Biossegurança (Lei n. 11.105/2005), que refere em
seu art. 5º que é permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco
embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não
utilizados no respectivo procedimento, desde que sejam embriões inviáveis; ou sejam
embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação da Lei, ou que, já
congelados na data da publicação da Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a
partir da data de congelamento.
Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores, sendo vedada a
comercialização do material biológico, sob pena de incorrer em crime tipificado no art. 15 da
Lei n. 9.434/1997 (Lei de Transplante de Órgãos).
Assim, consoante já mencionado anteriormente, ainda temos a Resolução n.
2.121/2015, referindo que os embriões criopreservados, com mais de cinco anos, poderão ser
descartados, se esta for a vontade dos pacientes, e a utilização dos embriões em pesquisas de
células-tronco não é obrigatória, conforme previsto na Lei de Biossegurança.
Por fim, no que pertine à inseminação artificial heteróloga, prevista no inciso V do
art. 1.597, importa ressaltar que:
49
[...] heteróloga, quando não pertence ao marido ou companheiro da mulher,
mas a um doador, cujo material se encontra geralmente num banco de sêmen
e cujo anonimato em regra se preserva, com o consentimento livre e
informado do casal, e, ainda, bisseminal, quando o material fecundante
masculino pertence a duas pessoas diversas, ao marido ou companheiro e ao
doador, desconhecido do casal. (FERRAZ, 2011, p. 44)
Verifica-se que quanto à reprodução assistida heteróloga, limitou-se o legislador à
técnica de inseminação artificial, deixando a fecundação artificial de lado, ou seja, a
preocupação do legislador limitou-se a presumir a paternidade desde que haja prévia
autorização do marido, mas nos casos em que há doação de óvulo, não houve essa mesma
preocupação quanto à mulher. Nesse sentido, reflete SCALQUETTE (2010, p. 77-78):
O legislador não previu, com essa restrição, a presunção de filiação para
aquele que é concebido com o óvulo de doadora; por esta razão acreditamos
ser a regra discriminatória, pois, a exemplo do que já se fazia no Código de
Manu, [...], estar-se-ia dando solução apenas à infertilidade masculina,
devendo a mulher se conformar com sua condição sem que a ela fosse dada
qualquer atenção no reconhecimento legal do filho quando utilizado o óvulo
da doadora.
Não obstante isso, com todo o respeito ao posicionamento acima esposado, denota-se
que o que houve no inciso V do art. 1.597 do Código Civil foi apenas confusão ou
desconhecimento técnico do legislador, podendo-se aplicar o teor do inciso em ambos os
casos, tanto na inseminação quanto na fecundação heteróloga.
Outra questão importante que a reprodução heteróloga nos traz é a questão do
anonimato do doador, que também não foi codificada pelo legislador, e que será
oportunamente tratada no próximo capítulo.
Como visto, o Código Civil de 2002, a fim de incluir a reprodução humana assistida,
trouxe três novas formas de presunção de paternidade, todavia, deixou muitos de seus efeitos
sem a devida tutela, o que leva o julgador a recorrer, via de regra, para as normas éticas, a fim
de poder tutelar o direito de todos os personagens envolvidos no processo de reprodução
artificial.
3.5 Aspectos bioéticos da reprodução humana assistida
Quando se fala em reprodução artificial, torna-se inevitável pensar em pesquisas
éticas, normas éticas, nesse sentido, temos que ética “é a ciência do comportamento moral dos
50
homens, em sociedade” (NALINI, 1997, p. 30), em outras palavras, vale dizer que ética é o
caráter atribuído aos homens, os quais compõem as diversas organizações em sociedade.
A doutrina traz que o objeto dessa ética é a moral, a qual se refere ao costume
intrincado no ser da pessoa humana.
Para entender melhor esse contexto, vejamos o que traz à baila Regina Fiuza Sauwen
e Severo Hrymewrcz sobre a moral:
1. Liberdade – Só pode ser avaliado do ponto de vista ético como bom ou
mau, justo ou injusto, um ato livremente praticado. [...] Podemos dizer que a
liberdade é a conditio sine qua non da Ética.
2. Conhecimento ou Consciência – [...] Para que um ato seja realmente livre
é preciso que se tenha clara consiência daquilo que se está fazendo. [...].
[...].
3. Norma – Uma norma deve reger o comprotamento, pois a liberdade
absoluta, não dirigida por norma alguma, é necessariamente amoral. [...].
Assim, para que um determinado ato possa ser avaliado do ponto de vista da
Ética, deve ser livre, consciente e orientado por alguma norma. Caso
contrário, ele será um ato amoral, isso é, fora do âmbito da Ética.
(SAUVEN e HRYMEWRCZ, 2001, p. 04)
Dessarte, a noção de ética diz respeito a consensos possíveis e temporários entre
diferentes agrupamentos sociais, que, embora possuam hábitos, costumes e moral diferentes, e
mesmo divergindo na compreensão de mundo e nas perspectivas de futuro, às vezes
conseguem estabelecer normas de convivência social, relativamente, harmoniosas em algumas
questões.
O choque originário do progresso da medicina genética nas comunidades médica,
política, legal e religiosa suscita questões ético-sociais, pois estas comunidades têm a função
de interpretar, guiar e regular os limites do progresso na área médica, logo, “[...] a ética se
transformou em uma necessidade radical, pois sem ela o gênero humano sucumbirá à
destruição [...]”(NALINI, 1997, p. 51), portanto, são os princípios éticos que conduzem à
humanização da ciência e seus resultados e consequentes decisões.
Nesse lastro, já dizia Miguel Reale (REALE, 1996, p. 09): “O Direito é a realidade
universal. Onde que exista o homem aí existe o direito como expressão de vida e de
convivência”.
Entende-se, então, a partir daí, no momento em que os homens vão evoluindo em
suas descobertas, essas não podem deixar de lado nunca o cunho ético das ações, para que no
ímpeto de se realizar cada vez mais, se leve o mundo ao caos social. De outra banda, também,
além da ética, todas essas descobertas devem ser guiadas, melhor dizendo, norteadas e
51
reguladas pelo Direito, para que o homem possa ter resguardado seus direitos humanos e
sociais.
Nesse passo, deve-se discorrer, agora, sobre a bioética. Este termo – Bioética –
nasceu em Nadison, Wisconsin, Estados Unidos, quando Van Rensslaer Potter escreveu o
livro Bhioethic: bridge to the future, no ano de 1971 (IACOMINI, 2008, p. 23).
A Bioética “é o estudo transdisciplinar entre biologia, medicina, filosofia (ética) e
direito (biodireito) que investiga as condições necessárias para uma administração
responsável da vida humana, animal e responsabilidade ambiental” (MALUF, 2013, p. 6),
sofrendo, portanto, influências da Sociologia, Biologia, Medicina, Psicologia, Teologia e
Direito.
Esse ramo do conhecimento preocupa-se, basicamente, com as problemáticas éticomorais que advêm das descobertas tecnológicas da Medicina e da Biologia, procurando
desvendar o seu significado e posterior resultado, para poder aplicar regras que indiquem o
melhor caminho no uso dessas descobertas.
No entanto, as referidas regras não possuem cunho coercitivo, são apenas “opiniões”
morais para que se utilize essas técnicas com a devida ética, então, é nesse momento que o
Direito toma parte da contenda, pois só as normas jurídicas podem regular coercitivamente
essas inovações técnico-científicas abalizadas pela bioética.
Nesse norte, diante das inusitadas questões levantadas pelas técnicas de reprodução
assistida, notamos, também, a ligação existente do Direito Civil com a Bioética, eis que todos
os problemas nascidos com as técnicas de reprodução artificial dizem respeito diretamente à
família, necessitando do amparo ético para que não se cometam atrocidades com o ser
humano.
Assim, a bioética vem ajudar na solução dos conflitos ético-socias emanados das
descobertas científicas no mundo.
Portanto, no tocante às reproduções medicamente assistidas e aos respectivos
laboratórios de reprodução, é de grande relevância estabelecerem-se os critérios a serem
utilizados em cada técnica aplicada na dita procriação.
Analiticamente, o ser humano é formado por um conjunto de órgãos, configurandose, principalmente, em fonte originária da vida, eis que o homem produz espermatozóides e a
mulher os óvulos, que unidos (espermatozóide + óvulo) darão início à vida de um novo ser
humano.
Ocorre, todavia, como já explanado até aqui, que a reprodução artificial e seus afins,
ainda, não foram objeto de regulamentação jurídica. Assim, da mesma forma,
52
espermatozóides e óvulos estão desregulamentados no que diz respeito à doação. Nesse norte
vejamos o que nos ensina Matilde Carone Slaibi Conti:
O Código de Ética Médica veda ao médico participar direta ou indiretamente
na comercialização de órgãos ou tecidos humanos. Assim, essa proibição
estende-se analogicamente à doação de esperma.
O sêmen é um bem da personalidade e o doador tem total direito à
informação. (CONTI, 2001, p. 104)
Essas lacunas éticas e jurídicas nascem devido ao desenvolvimento das pesquisas
genéticas, e no caso concreto, da reprodução assistida, levando todos a um denominador
comum, qual seja, o equilíbrio entre a liberdade da pesquisa e a proteção dos direitos
humanos.
Logo, a questão da engenharia genética extrapola as áreas específicas da medicina e
da ética, por atingir também áreas do direito, das leis, das normas. A dinâmica do progresso e
da tecnociência atropelou a reflexão ética, as instituições do saber e as instâncias legisladoras.
A inseminação artificial, assim como a fecundação artificial, além de trazerem vários
benefícios e alegrias às pessoas inférteis, trazem, consequentemente, várias dúvidas e
indignações, uma delas é o destino dos embriões, ditos excedentes, após a fecundação in vitro.
Nessa envergadura, sabemos que, atualmente, existem milhões desses embriões, que
apesar das contendas, são seres humanos, congelados, e não se sabe dizer o que deve ser feito
com eles. No Brasil, temos, atualmente, a Lei de Biossegurança (Lei n. 11.105/2005) e a
Resolução 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina, que servem de parâmetro para os
controvérsias bioéticas.
Sabe-se que na realização da fecundação extra-corpórea, de cada cem embriões feitos
em laboratório, somente cinco chegam vivos aos braços da mãe, os outros se perdem ou são
congelados e, assim, também são perdidos. Óbvio que nenhum ato médico, nenhum ato
cirúrgico seria permitido se tivesse uma perspectiva tão grande de erro, é nesse momento que
entra a ética no processo de fecundação artificial.
Existem outras complicações a serem observadas. Há casos em que uma mulher que
quer ter um filho não apenas precisa do óvulo emprestado por outra mulher e do
espermatozóide tomado de seu marido ou de outro homem, mas precisa também alugar o
útero de outra mulher, porque, por exemplo, passou por alguma cirurgia que a impede
definitivamente de gestar. Dessa forma, temos uma pluralidade de maternidade: há a mãe
genética, que doa o óvulo, a mãe gestatória, que ofereceu o útero (mãe de aluguel), e a mãe
social, à qual a criança será entregue.
53
Igualmente, é possível ter também dois pais. O pai genético, cuja identidade, em
regra, é desconhecida, que é aquele que doa os espermatozoides; e o pai socioafetivo, que é
aquele que planejou, desejou ser pai daquele indivíduo nascido da reprodução assistida. Uma
doação de sêmen pode fecundar centenas de mulheres, portanto, o doador anônimo pode ter
centenas de filhos espalhados pelo mundo.
A tudo isso, podemos chamar dissolução da maternidade e da paternidade. Já não
existem um pai e uma mãe, mas vários pais e várias mães, e o filho nunca descobrirá quem é
seu pai e sua mãe de verdade, posto que a eles não é dado esse direito, conforme veremos no
próximo capítulo.
Porém, em meio a todas essas inovações, não se pode deixar de ressaltar que a
família é o alicerce da sociedade, sendo que esta mesma família passou, também, por várias
transformações sociais, deixando de lado aquele modelo contido no matrimônio, composto
por marido, mulher e filhos, podendo ser reconhecida atualmente como entidade familiar,
consistente na união estável homo ou heterossexual, ou, ainda, como família monoparental,
formada por um dos pais e os filhos, enfim, todas as formas de família.
Da mesma forma, criou-se a possibilidade, também, de reproduzir-se artificialmente,
ou seja, reproduzir-se sem haver o ato sexual, e foi a partir daí que o direito e a ética passaram
a ter papel fundamental nas procriações medicamente assistidas, pois toda a celeuma
encontra-se na falta de definições quanto ao direito da criança, dos direitos e deveres dos pais,
entre outros.
A inseminação artificial é há muito tempo aplicada nos animais, mas é relativamente
recente entre os seres humanos. Estas técnicas têm sofrido um enorme desenvolvimento em
todo o mundo, e tem levantado inúmeros problemas éticos, como alguns explanados até aqui,
e por ser uma técnica tão jovem é que ainda não se tem explicações e nem mesmo legislação
específica que possa regular todas essas descobertas científicas, que, muitas vezes, esquecem
da ética em nome do progresso técnico-científico. Não há que se esquecer que “O Direito não
é apenas uma coisa que está aí, mas uma coisa que nós, homens, também fazemos e cuja
realidade é, pelo menos em parte, um produto de nossa própria colaboração ativa” (CONTI,
2001, p. 53).
O Direito, assim como a maioria das ciências, demora a se adaptar aos novos
acontecimentos, à nova vida e às novas conquistas das pessoas, as quais regula, e
consequentemente, precisará de um tempo para essa adaptação. Em virtude disso, enquanto
esses acontecimentos, como é o caso da reprodução artificial, não encontram normatização
54
jurídica, nascem as lacunas, deixando os indivíduos à mercê de decisões que nem sempre
farão a real justiça.
Nesse diapasão, ao passo que vão se colecionando conquistas científicas como as
técnicas de reprodução artificial, a clonagem, entre outros, o Direito anda a passos lentos para
dar respostas satisfatórias a essas contendas surgidas em decorrência do aperfeiçoamento das
novas tecnologias, necessitando as mesmas de um regramento, como refere Sapko (2005, p.
37):
[...] que estabeleça limites claro, determinados e seguros dentro dos quais
estes procedimentos da moderna tecnologia reprodutiva possam ser
praticados com responsabilidade, viabilizando o progresso científico, mas
assegurando, com prioridade, aos usuários destas técnicas e às crianças por
ela geradas, os direitos à vida e à saúde, bem como o respeito aos princípios
constitucionais da liberdade, da dignidade da pessoa humana, da intimidade,
da igualdade e da não-discriminação.
É esse tipo de questão que nos leva a buscar soluções, pois a reprodução humana
artificial alterou a ordem natural de parentesco, trocando a verdade biológica pela verdade
socioafetiva, gerando dúvidas, que até o momento nem a ética, nem a bioética e nem o direito
conseguiram responder satisfatoriamente.
3.6 As implicações da reprodução artificial heteróloga no direito de família
3.6.1 A origem e evolução da família
Ao longo dos tempos várias teorias vieram à baila para desvendar a origem da
família. Uma delas diz que os homens primitivos teriam formado grupos promíscuos, onde
todas as mulheres pertenciam a todos os homens sem a existência de vínculos civis ou sociais.
Há uma segunda teoria que afirma uma organização poliândrica, em que a mulher possuía
vários homens.
Com o decorrer dos anos, porém, as tribos foram se fragilizando, pois em razão da
mulher ter vários homens sua fecundidade era diminuída, provocando, consequentemente,
uma prole debilitada e doente.
De outra banda, por um considerável período da história humana foi a poliginia que
reinou entre os homens. Neste tipo de organização social um homem possuía várias mulheres,
55
com as quais tinha muitos filhos. O patriarca era o líder do grupo social, exercendo as
condições de sacerdote e juiz, decidindo as contendas de seu meio familiar.
Em outro período surgiu a família monogâmica, onde o homem possuía uma única
mulher, tendo como resultado dessa relação uma numerosa prole, porém, o homem
continuava mantendo o poder dentro do lar conjugal.
No tocante à evolução histórica da família brasileira, impõe-se observar a família
romana e a família canônica.
Na antiga Roma, a família era definida como um conjunto de pessoas sujeitas à
autoridade da patria potestas, onde havia um ascendente comum vivo mais velho,
independendo dos vínculos da consanguinidade, na medida em que o pater familias exercia a
sua autoridade sobre todos os seus descendentes não emancipados, sobre sua esposa e
mulheres casadas de seus descendentes. A família, naquela época, era simultaneamente uma
unidade econômica, religiosa, política e jurisdicional.
O pater era uma pessoa sui juris, independente, chefe de seus descendentes, que
eram alieni juris, sujeitos à autoridade paterna.
Cumpre destacar que existiam na antiga Roma duas espécies de parentesco: a
agnação e a cognação. Aquele vinculava as pessoas que estavam sujeitas ao mesmo pater,
mesmo quando não fossem consanguíneos, como no caso o filho natural e adotivo do mesmo
pater, já este era o parentesco pelo sangue, que existia entre pessoas que não deviam ser
necessariamente agnadas uma da outra, por exemplo, a mulher casada com manus, ou seja, a
mulher que ingressou na família marital, submetendo-se não mais a autoridade paterna, o
mesmo ocorrendo com o filho emancipado em relação àquele que continuasse sob a patria
potestas. Nesse norte, preleciona Arnoldo Wald:
A evolução da família romana foi no sentido de restringir progressivamente
a autoridade do “pater”, dando-se maior autonomia à mulher e aos filhos e
substituindo-se o parentesco agnatício pelo cognatício. [...] O pater perdeu o
ius vitae necique (direito de vida e morte) que exercia sobre os filhos e sobre
a mulher. (WALD, 2002, p. 10)
Em relação ao casamento, deveria haver affectio maritalis, elemento que deveria
estar presente não só na celebração do casamento, mas continuar ao longo do casamento,
sendo que a falta da affectio era causa para a dissolução do vínculo.
De outra banda, quanto à filiação observa-se que em Roma, na fase originária, a
admissão do filho na família dependia de um ato de vontade do pai, que poderia reconhecê-lo
56
ou rejeitá-lo; na fase posterior, a admissão do filho na família ocorria sob a regulamentação
legal, embora ainda se mantivesse a autonomia da vontade paternal. Assim:
Em Roma, a ‘voz do sangue’ falava muito pouco; o que falava mais alto era
a voz do nome de família. Ora, os bastardos tomavam o nome da mãe, e não
havia legitimação ou reconhecimento da paternidade; esquecidos pelo pai, os
bastardos não desempenhavam nenhum papel social ou político na
aristocracia romana. (VEYNE, 2005)
Na família romana, o filho emancipado e a filha casada eram totalmente excluídos da
família. O pater podia repudiar a esposa uma vez que o casamento existia somente enquanto
durasse a vontade de continuar como marido e mulher.
Porém, com o passar dos anos, o poder do pater familias foi abrandado, crescendo a
importância da família natural, baseada no casamento e nos laços de sangue, atribuindo-se
maior valor ao parentesco cognatício, em detrimento do parentesco agnatício, predominante
até então.
No entanto, na Idade Média, embora tenha havido a recepção de muitos institutos
provindos do direito romano antigo, as relações de família regeram-se exclusivamente pelo
direito canônico, de sorte que entre os séculos X e XV o casamento religioso foi o único
conhecido. A Igreja fez do casamento a base de toda a organização familiar, reconhecendo o
matrimônio como vínculo indissolúvel entre homem e mulher, do qual resultavam os filhos.
Assim nos ensina Diogo Leite de Campos, referindo:
[...] que a família na idade média não deixou de reproduzir a conformação
própria da igreja, já que se fez dela, tal como nos mosteiros medievos, local
de culto, dominado pela figura paterna, além de existir uma rígida
hierarquia, na qual homens, mulheres e filhos tinham um lugar e espaço prédeterminados. Assim, a família, nesse período - deixando de lado aqui
pequenas variações de entendimento entre o direito canônico e a concepção
medieval então vigente, que ressaltava que, no casamento, além da vontade
dos nubentes, havia uma expressão econômica, enquanto se exigia o
assentimento das famílias a que os noivos pertenciam - assume um caráter de
verdadeira instituição religiosa, baseada na mútua assistência de seus
integrantes, na qual a função procriadora era exclusiva da família fundada no
casamento. É no período medievo, dominado pelo direito canônico, que a
família assume marcantes características, que seriam vistas ainda séculos
mais tarde, criando-se aí a figura dos impedimentos matrimoniais e, em
especial, o fenômeno que se pode chamar de categorização dos filhos.
(CAMPOS, 1993)
Logo, embasado na teoria de que o matrimônio era um sacramento e de que só ele
dava origem à prole legítima e abençoada sob os olhos de Deus, através da procriação, o
57
direito canônico criou a primeira distinção entre filhos havidos dentro e fora do casamento,
que evoluiu, mais tarde, para a tipologia dos naturais e espúrios, adulterinos e incestuosos,
outorgando proteção legal apenas aos que eram gerados a partir do casamento religioso.
Considera-se, então, de forma geral, que o referido “conflito” familiar prevaleceu por
longo período, influenciando visivelmente a evolução do direito de família de países católicos
que receberam os moldes da estruturação legal da família, não só com base no direito
canônico, mas também no direito romano, considerados fontes subsidiárias quando o
problema não estivesse previsto no ordenamento legal.
No entanto, as transformações mais profundas verificam-se com a Revolução
Francesa e com a Revolução Industrial, sendo aquela no setor político e esta no setor social.
Na Revolução Francesa, instituiu-se o casamento civil obrigatório, deixando-se de
dar validade ao casamento religioso. A Revolução Industrial provocou o aumento da
produção com a utilização das máquinas, substituindo a forma artesanal, que exigia a
concentração dos trabalhos em torno do chefe de família, passando a envolver a mulher e os
filhos.
Desde então, o trabalho passou a se concentrar nas fábricas, gerando a desagregação
do trabalho familiar. Veio, então, a substituição da família comunitária pela família nuclear ou
celular.
Atualmente, a família não é mais tão numerosa como a família de antigamente, e o
núcleo de sua constituição deslocou-se do princípio da autoridade para o da compreensão e do
amor. O poder familiar é exercido em benefício da prole como um dever dos pais. Os filhos já
possuem sua autonomia na família, ao passo que a mulher coopera na administração e na
economia do lar, com a força do seu trabalho.
As famílias deixaram de ter por objetivo primordial a reprodução e passaram a ser
espaço de companheirismo, amor, dedicação e ajuda mútua. Os filhos vêm por opção do casal
a complementar esta relação, num ambiente de aconchego, segurança e felicidade.
Portanto, família hoje passa a ser o agrupamento de pessoas afins, cuja finalidade é a
realização pessoal de todos, ou seja, a felicidade, respeitando a individualidade de cada um,
independentemente da orientação sexual.
A travessia da família para o novo milênio se faz diante de valores totalmente
diferentes, como é natural dos fenômenos de virada de século. A família não é mais
essencialmente um núcleo econômico e de reprodução onde sempre esteve instalada a suposta
superioridade masculina, ela passou a ser muito mais o espaço para o desenvolvimento do
58
companheirismo, do afeto e, acima de tudo, embora sempre tenha sido assim, e será, o núcleo
formador da pessoa e fundante do sujeito.
Mas todas essas transformações não estão fáceis de serem absorvidas, pois a
transformação é sempre acompanhada de turbulência. Para os operadores do Direito, as
dificuldades parecem ainda maiores do que realmente são. Ordenar juridicamente as relações
de afeto e as consequências patrimoniais daí decorrentes é o maior desafio para assegurar e
viabilizar a organização social. É nesse sentido que as novas representações sociais da família
se formam e o ordenamento jurídico se transforma.
3.6.2 A paternidade e a maternidade socioafetiva na reprodução artificial heteróloga
A relação de parentesco é qualificada pelo estado de filiação, compreendendo um
complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados.
Tradicionalmente, no direito de família prevalecia a verdade biológica sobre a
verdade socioafetiva, porém, aquela cedeu espaço a esta, consolidando os direitos da
personalidade do filho que se encontra telado entre essas duas verdades.
O estado de filiação, que se caracteriza realmente em função de um estado de pai
e/ou mãe consolidado, é aquela relação de afeto que ao longo do tempo vai criando raízes, a
ponto de criar uma verdade social que independe da verdade biológica, uma vez que a
verdade genética não faz mais parte do cotidiano daquele ser humano, sendo completado
somente pelo amor de seus pais socioafetivos.
Ademais, a verdade socioafetiva ocorre quando o filho passa a ser tratado como tal
no seio familiar, seja essa família hetero ou homossexual, ou ainda, monoparental, pois a
partir do momento em que os pais publicamente tratam um filho como seu, dando toda a
assistência material e afetiva necessária ao seu desenvolvimento sadio, não restam dúvidas de
que a eles cabe o “título” de pais.
Outrossim, sendo o afeto a base imprescindível para a formação da pessoa, o aspecto
socioafetivo do estabelecimento da filiação, baseado no comportamento da família da qual faz
parte, uma vez que a incontestável verdade decorre mais de amar e servir do que de fornecer
material genético.
Nesse norte, cabe dizer que a inseminação artificial heteróloga, prevista no artigo
1.597, inciso V, do Código Civil, em que é utilizado sêmen de outro homem (ou óvulo de
outra mulher) para a reprodução, fortalece a tese da socioafetividade, passando aquele que não
59
tem laços genéticos a ser filho mais do que legítimo pelos laços da verdade socioafetiva.
Logo, verifica-se que, quando existe o estado de filho, ainda que se entenda possuir o
filho o direito de saber de sua verdadeira origem biológica, os efeitos patrimoniais e registrais
se dão em relação ao pai socioafetivo, porquanto pai é aquele que de fato constitui estado de
pai, diante do estado de filho estabelecido pelo afeto.
Assim, seja pela legislação, pela doutrina ou pela jurisprudência, em eterna busca de
acompanhar os fatos sociais emanados das mudanças sociais advindas dos progressos
tecnológicos, a definição de direitos nas relações de afeto vai além do campo sexual, bastando
que o amor forme de fato uma entidade constituída por mútua solidariedade.
Nesse passo, as novas técnicas artificiais de reprodução provocaram um
desmoronamento completo nas bases, outrora sólidas, da filiação.
A inseminação artificial, além dos novos e cruciantes problemas, criou um
vocabulário próprio. Fala-se com a maior naturalidade em doadores de
sêmen e de óvulos, banco de embriões, mãe de aluguel, substituta ou gestora,
embriões congelados, excedentários, criopreservados, fecundação post
mortem, além de outros termos não menos surpreendentes, deixando
perceber como ficam profundamente alterados os conceitos de paternidade e
maternidade biológica (MACHADO, 2005, p. 21).
Nas inseminações artificiais é possível a fertilização homóloga, que é feita com
gametas do casal; a fertilização heteróloga, tema desta pesquisa, onde é utilizado um ou mais
óvulos e/ou espermatozóides, dependendo do tipo de inseminação/fecundação, pertencente a
terceiros; além da barriga de aluguel (mãe de substituição), que é a mulher que “empresta” o
seu útero para abrigar por nove meses um embrião fertilizado com gametas de outras pessoas.
O que ocorre nos casos de inseminação/fecundação heteróloga são as controvérsias
para definir a maternidade e a paternidade nos casos descritos acima, onde se empregam, na
reprodução artificial, óvulos e espermatozóides que não são do casal, onde uma barriga de
aluguel gesta o filho do casal e assim por diante.
Logo, para definirmos os direitos e os deveres à paternidade/maternidade nesses
casos, devemos lembrar, num primeiro momento, que atualmente a doutrina e a
jurisprudência consagram, além da filiação biológica, a filiação afetiva, também chamada de
socioafetiva.
O pai ou a mãe, pela atual orientação doutrinária, não são definidos apenas pelos
laços biológicos que tenham com o filho e sim pelo querer externado de ser pai ou mãe, ou
60
seja, de assumir, independentemente do vínculo biológico, as responsabilidades e deveres da
filiação mediante a demonstração de afeto e de querer bem a criança.
É sabido, que a formação de uma família, assim como, o seu planejamento é livre.
No entanto, caso a natureza roube de um casal o privilégio da prole, estes poderão optar pela
adoção de uma criança ou, talvez, se o casal preferir ter um filho biológico, poderá adotar as
novas técnicas de reprodução humana artificial, alhures mencionadas, dentre elas a
inseminação heteróloga.
A inseminação artificial heteróloga gera dúvidas no tocante à filiação, pois a criança
gerada através desta técnica possuirá um pai ou uma mãe biológica diversa daquela que irá lhe
registrar e lhe acolher socioafetivamente.
Assim, com o passar dos tempos, não se falará mais em pai ou mãe, mas sim
naqueles que exercem as funções de pai ou mãe, em virtude de que a figura dos pais genéticos
está, diante das fecundações artificiais, cedendo lugar aos pais socioafetivos.
Na paternidade a máxima de que o filho de mulher casada presume-se de seu marido,
caiu por terra diante das novas técnicas reprodutivas.
Devido às lacunas jurídicas, para não se dizer inexistência de leis que regulem a
paternidade por técnicas de reprodução artificial, deve-se analisar a paternidade na
inseminação heteróloga, observando as seguintes hipóteses: se a técnica foi consentida na
constância de um casamento ou união estável; se a técnica não foi consentida na constância de
um casamento ou união estável e por fim se a técnica foi realizada em mulheres solteiras,
viúvas, separadas judicialmente ou divorciadas.
A primeira hipótese é a menos controvertida, eis que já é consenso entre os
doutrinadores e legislações estrangeiras que o homem, ao consentir na inseminação
heteróloga de sua esposa ou companheira, assume a paternidade da criança e em nenhum
momento poderá contestá-la.
Desta feita, para que haja a paternidade jurídica oriunda da inseminação heteróloga,
faz-se imprescindível o consentimento do cônjuge ou companheiro, como se verifica no
disposto no inciso V do artigo 1.597 do Código Civil3.
Como se pode ver, o consentimento informado é fundamental para a inseminação de
mulheres casadas ou que vivem em união estável, analogicamente. Nesse norte, estabelece
também a Resolução n. 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina:
3
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
[...]
V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. (grifo
nosso).
61
O consentimento livre e esclarecido informado será obrigatório para todos os
pacientes submetidos às técnicas de reprodução assistida. Os aspectos
médicos envolvendo a totalidade das circunstâncias da aplicação de uma
técnica de RA serão detalhadamente expostos, bem como os resultados
obtidos naquela unidade de tratamento com a técnica proposta. As
informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico e
ético. O documento de consentimento livre e esclarecido informado será
elaborado em formulário especial e estará completo com a concordância, por
escrito, obtida a partir de discussão bilateral entre as pessoas envolvidas nas
técnicas de reprodução assistida.
De outra banda, por não se tratarem de normas cogentes, eis que somente éticas, não
se pode afastar a ocorrência de inseminação heteróloga em mulher casada ou convivente, sem
o consentimento do marido/companheiro, configurando, assim, a segunda hipótese, visto que
a mulher, ao se inseminar com sêmen de terceiros, com o desconhecimento de seu marido ou
companheiro, comete um ato atentatório ao casamento, como por exemplo, injúria grave e
violação ao dever de lealdade e fidelidade. Nesse caso, o marido poderá contestar a
paternidade do filho, se já o houver registrado, tendo em vista que foi levado a erro ao
registrá-lo.
A doutrina costuma classificar essa técnica de inseminação sem o consentimento do
parceiro de “adultério casto”, implicando em grave descumprimento dos deveres conjugais.
Segundo entendimento de José Roberto Moreira Filho (2002):
[...] nesse caso, se a mulher casada se submeter a uma fertilização com
sêmen do doador (heteróloga), sem o consentimento do marido, a
paternidade não poderá lhe ser imputada e constituirá até mesmo causa de
dissolução do vínculo matrimonial e de ação negatória de paternidade
cumulada com anulação do registro de nascimento, se houver sido feita
enganadamente. [...] além da falta do querer ser pai, ou seja, da filiação
socioafetiva, há a presença da fraude e da deliberada intenção de levar em
erro.
Desse modo, ainda que marido ou companheiro, não lhe será computada a
paternidade do filho havido de sua mulher por técnica de inseminação heteróloga quando não
houver seu consentimento, cabendo, inclusive, ação negatória de paternidade neste sentido,
em que pese tal procedimento redundar num inegável prejuízo à criança concebida, que se
verá à mercê de uma paternidade inexistente, pela igualmente impossibilidade de se
estabelecer vínculo com o doador do material genético, sendo este o ponto central da
discussão neste trabalho.
62
O nosso Código Civil apresenta somente um artigo pertinente às técnicas de
reprodução assistida. O referido artigo é o 1.597, já citado anteriormente, onde diferentemente
do Conselho Federal de Medicina, não faz referência aos filhos havidos na união estável, visto
que o referido artigo trata especificamente do casamento.
Entende-se, porém, que o consentimento do parceiro, também, irá gerar
reconhecimento incontestável da paternidade, visto que ao dar seu consentimento, o
companheiro reconhece a paternidade da criança, tendo plena consciência que não será seu
pai biológico. Dessa forma, como são casos análogos, consentindo o marido/companheiro na
fecundação, fica determinada a filiação tanto jurídica como afetiva, mesmo não sendo pai
biológico.
Outrossim, eventual consentimento poderá a qualquer momento ser revogado, desde
que ainda não operada a fecundação.
Já na terceira hipótese, a mulher que recorre a um banco de sêmen e se fertiliza com
o intuito de formar uma família monoparental, não é possível atribuir-se ao doador qualquer
vínculo de filiação. Ainda que não exista lei específica, por analogia, usa-se o instituto da
adoção em relação à doação do sêmen. A criança somente será registrada em nome da mãe,
sem que isto acarrete ao doador quaisquer obrigações ou direitos relativos à criança, uma vez
que, ao doar seu sêmen, ele abdica voluntariamente de sua paternidade, da mesma forma que
o faz, mal comparando, quem entrega uma criança para adoção.
Existe, também, a fecundação in vitro heteróloga pela doação de embrião, ou seja, a
criança nasce de uma fecundação in vitro de óvulos e espermatozóides doados ao casal, e o
embrião resultante é colocado no útero, que só fica vinculado ao casal pela gestação e
afetividade.
Como visto anteriormente, o novo Código Civil, no art. 1597, refere-se à
inseminação artificial heteróloga, porém, analogicamente, tudo leva a crer que o legislador
teve a intenção de referir-se também à fecundação in vitro heteróloga, causando certa
confusão, visto que se tratam de técnicas diferentes, podendo levar à conclusão de que esta
técnica não restou tipificada no novo diploma legal.
No tocante à maternidade há, da mesma forma, a fecundação in vitro heteróloga pela
doação de óvulos, ou seja, a criança nasce após a fecundação in vitro pelo esperma do marido
em um óvulo doado e implantado no útero da mulher, ou ainda, pela chamada barriga de
aluguel.
Logo, podemos ver através dos tempos e da evolução dos métodos de reprodução
humana artificial, que a máxima de que a maternidade é sempre certa restou literalmente
63
abalada, visto que hoje a maternidade pode se dar biologicamente, gestacionalmente ou
apenas por laços afetivos.
Antigamente, a mãe era sempre certa, por não haver como fecundar o óvulo fora do
útero materno ou transplantá-lo em outra pessoa, tendo-se como certo que a mãe era aquela
que estivesse grávida e carregando o futuro bebê em seu ventre.
Já, atualmente a certeza em relação à maternidade mostra-se abalada, tendo em vista
que a mãe pode ser a que esteja com o filho em seu ventre, pode ser a que forneceu o óvulo
para fecundação ou ainda a que recebeu o óvulo de uma terceira pessoa e que contratou a
barriga de substituição para gestá-lo (mãe socioafetiva).
O ordenamento pátrio consagra a ideia de que a mãe é a que teve a criança em seu
ventre os nove meses e, após, deu à luz. Portanto, se a mãe doadora do óvulo for inseminada
com sêmen de seu marido ou de terceiro, e ela própria gestar o filho, não restam dúvidas de
que será declarada a mãe da criança, pois tem consigo todos os pressupostos da maternidade
seja o genético, o socioafetivo ou o gestacional.
Porém, a maior dificuldade encontrada para se decidir quem é a mãe do vindouro
filho é quando a mãe-gestante é diferente da mãe-biológica ou da mãe-socioafetiva.
Nesses casos, poderá ocorrer o conflito negativo ou positivo da maternidade. O
conflito positivo ocorre quando várias mães reivindicam para si a maternidade da criança, e o
conflito negativo ocorre quando nenhuma das mães quer assumir a maternidade da criança.
A doutrina e o entendimento mundial nesse sentido atribui a maternidade à mãe que
gestou a criança, podendo ser modificada quando ficar evidente que a mãe gestante, por não
ser mãe biológica, não tiver condições de cuidar da criança, entregando-se a criança à mãe
que melhor atender aos seus interesses, seja a mãe biológica ou a mãe socioafetiva.
Em relação à substituição de útero, também chamada de barriga de aluguel, é certo
que não há legislação que a regule ou que a proíba, sendo ela antigamente tratada apenas pela
Resolução 1358/92 do CFM (atual Res. 2.121/2015) e por alguns projetos de lei, como refere
Maria Cláudia Crespo Brauner (BRAUNER, 2003, p. 24):
[...] retomam boa parte das recomendações contidas na resolução Normativa
1.358/92 do Conselho Federal de Medicina. O último deles, Projeto de Lei
90, de 1999, de autoria do senador Lúcio Alcântara, recebeu um substitutivo
da parte do Senador Roberto Requião e parece ser aquele que terá mais
possibilidade de prosperar e tornar-se lei, embora tenha adotado uma posição
bastante restritiva quando proíbe o congelamento de embriões e a prática da
redução embrionária. Os projetos foram, finalmente, apensados e seguem,
lentamente sua tramitação, sendo objeto de revisões e alterações, sem que o
64
debate atinja as diversas camadas da sociedade e, principalmente, os
destinatários da lei [...].
Pelo ordenamento jurídico, veda-se qualquer contrato que envolva bem indisponível,
como é o caso da vida humana, sendo que os contratos de locação ou substituição de útero
não têm eficácia jurídica.
Porém, atualmente cresce na doutrina pátria um entendimento de que a mãe
biológica, no caso de barriga de aluguel (mãe de substituição), é a que merece a maternidade
da criança, pois entendem que a mãe de substituição é apenas a hospedeira daquele ser gerado
sem a contribuição de suas células germinativas.
Corroborando nesse sentido, quanto à filiação socioafetiva, entende-se que
independentemente da origem biológica ou da gestação, a mãe será aquela que assumiu e
levou adiante o sonho da maternidade ao recorrer até mesmo a estranhos para que sua vontade
fosse satisfeita.
Portanto, a doadora do óvulo não poderá reivindicar a maternidade em decorrência
do sigilo exigido pelos laboratórios, e porque, no momento da doação, renunciou à
maternidade voluntariamente, mal comparando, com a mãe que entrega seu filho para a
adoção e, consequentemente, renuncia ao seu direito de filiação. Assim é o entendimento de
Tycho Brahe Fernandes (FERNANDES, 2000), vejamos:
Ante a possibilidade de um conflito de maternidade, é fundamental
estabelecer juridicamente que a maternidade deverá cair sempre naquela que
será a mãe socioafetiva, até porque o projeto de maternidade partiu dela ao
escrever o seu direito constitucional do planejamento familiar.
A solução dos impasses relativos à disputa ou imposição da maternidade deve variar
em cada caso concreto diante das peculiaridades levantadas, mas a tendência é a de que o
julgador deve sempre ter em mente quem primeiro externou a vontade relativa à inseminação
e, também, o melhor interesse da criança.
Somente para argumentar, na opinião de Guilherme Calmon Nogueira Gama (2000):
O Direito de Família sofreu direta repercussão dos avanços tecnológicos na
área de reprodução humana, mormente envolvendo as fontes da paternidade,
maternidade e filiação, e todas essas transformações permitiram a ocorrência
de um importante fenômeno, denominado “desbiologização”, ou seja, a
substituição do elemento carnal pelo elemento biológico ou psicológico.
65
Ainda, vejamos o entendimento de Luiz Roberto de Assumpção quanto à paternidade
nos dias de hoje, o que se pode aplicar, também, analogicamente, à maternidade:
[...] a paternidade no início do milênio, não é o vínculo biológico o
determinante da união entre pais e filhos [...], uma vez que é suplantado pelo
elo socioafetivo que se pode estabelecer entre ambos, este sim compatível
com a noção de família como núcleo de afetividade e realização pessoal de
todos os seus membros (ASSUMPÇÃO, 2004, p. 210).
Como visto, tanto nos casos de paternidade como nos casos de maternidade, a
filiação socioafetiva prepondera sobre a biológica. A doutrina tem entendido que, nos casos
de inseminação (entenda-se, também, a fecundação in vitro) heteróloga, para se definir o
parentesco deverão ser considerados somente o pai ou a mãe socioafetiva, desconsiderando-se
a paternidade ou maternidade biológica, mal comparando, novamente, com a adoção, dando
prioridade àqueles que projetaram a vida da criança.
Portanto, cabe aos operadores do direito, mediante o bom senso, ajustar o sistema
jurídico à dinâmica social, sendo fundamental que o julgador atente, prudentemente, ao caso
posto em lide, para o fim de analisar a verdade socioafetiva, na medida em que o valor de
verdade das sentenças dependa, principalmente, dos fatos e não somente do direito.
66
4 O DIREITO À IDENTIDADE GENÉTICA
4.1 O anonimato no Brasil
4.1.1 Considerações gerais
No Brasil, como amplamente telado até aqui, não existe legislação sobre o assunto,
temos apenas a Resolução n. 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina, que garante ao
doador de gametas o sigilo acerca de sua identidade.
As técnicas de reprodução humana assistida, no Brasil, são reguladas pelo Conselho
Federal de Medicina, ocorre, todavia, que sobredita resolução é ato meramente administrativo
e serve para os profissionais da área médica saberem como devem proceder no uso dos
procedimentos de procriação artificial, sendo, assim norma ética e não jurídica.
Portanto, essa resolução não tem o condão de resultar em sanção jurisdicional em
caso de descumprimento, ensejando tão somente a instauração de procedimento
administrativo.
Ocorre, porém, que este é o único dispositivo vigente no Brasil sobre o assunto,
motivo pelo qual merece uma análise, sobretudo, no que diz respeito à doação de gametas ou
pré-embriões e o anonimato, cerne deste trabalho.
Nesse sentido, explicita-se que a Res. 2.121/2015 traz o tema em questão no capítulo
IV4, distribuído em 9 itens, que veremos a seguir, estabelecendo, sobretudo, a necessidade de
sigilo quanto à identidade do doador e do receptor de gametas ou pré-embriões, o que
somente cederá em hipóteses excepcionais e que serão analisadas nos tópicos adiante.
O anonimato tem por principal objetivo garantir ao doador que ele não assumirá a
paternidade, com os ônus e vínculos dela decorrentes, especialmente os patrimoniais e
4
IV - DOAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES
1- A doação não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.
2- Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa.
[...]
4- Será mantido, obrigatoriamente, o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e embriões, bem como
dos receptores. Em situações especiais, informações sobre os doadores, por motivação médica, podem ser
fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do(a) doador(a).
[...]
67
alimentares, dos filhos havidos pela reprodução artificial através da doação de seus gametas,
pois há posicionamentos no sentido de que, caso não se garanta o sigilo, não haverão mais
doadores e estar-se-ia inviabilizando a pesquisa e a oportunidade de vários casais inférteis
concretizarem o sonho de ter um filho. Outro posicionamento na defesa da manutenção do
anonimato é o da proteção ao nascido por técnica de reprodução assistida, visto que, em tese,
o anonimato garantiria a proteção da imagem da pessoa concebida, como na adoção.
De outra banda, a manutenção do sigilo poderá ocasionar, no futuro, uniões
incestuosas, já que o nascido por reprodução assistida poderá, desconhecendo os laços
sanguíneos, vir a unir-se sexualmente a seu pai, mãe ou irmãos, podendo, assim, gerar filhos
com doenças biológicas. Nesse lastro, a Res. 2.121/2015, teve uma certa preocupação com a
distribuição das doações, como se verifica no item 6: “Na região de localização da unidade, o
registro dos nascimentos evitará que um(a) doador(a) tenha produzido mais de duas gestações
de crianças de sexos diferentes em uma área de um milhão de habitantes”.
Ora, por mais cuidado que se tenha nesse sentido, o conhecimento da identidade
genética torna-se mais importante, quando nos deparamos com o mundo globalizado, com a
sociedade da informação, que nos proporciona eliminar as barreiras da distância física através
da internet, o que, sem dúvidas, pode vir evitar relações incestuosas.
Conquanto, seria necessário, mal comparando com a adoção, que na reprodução
humana artificial se impusesse a impossibilidade de adoção do próprio filho biológico, bem
como a proibição de reconhecimento voluntário ou forçado para fins de criação de direitos e
deveres recíprocos, os impedimentos matrimoniais, o que não ocorre pela imposição do
anonimato. Corroborando esse entendimento, nos ensina Guilherme Calmon Nogueira da
Gama:
É fundamental observar que os princípios relativos ao sigilo do
procedimento – judicial (adoção) e médico (reprodução assistida heteróloga)
– e o anonimato das pessoas envolvidas devem ser mantidos com vistas à
tutela e promoção dos interesses do adotado e da futura criança, mas
logicamente deverão ceder relativamente à pessoa do próprio adotado e da
pessoa que resultou de técnica concepcionista heteróloga, diante do
reconhecimento, no direito brasileiro, dos direitos fundamentais à identidade,
à privacidade e à intimidade, podendo a pessoa ter acesso às informações
sobre toda sua história sob o prisma biológico, não por simples curiosidade,
mas para o resguardo da sua existência, e proteção contra possíveis doenças
hereditárias (ou genéticas) que pudesse vir a contrair diante da ascendência
biológica. (GAMA, 2003, p. 803)
68
Por mais que GAMA demonstre simpatia ao conhecimento da origem genética, essa
é analisada apenas sob a ótica médica, em caso de doença, não se analisa os efeitos nefastos
que essa negativa pode causar na vida psicológica e moral de uma pessoa, que não encontra o
devido reconhecimento social, pois sequer consegue se reconhecer, por não ter acesso à
ascendência genética. Note-se que há total desconsideração do direito de personalidade dos
nascidos pela reprodução artificial heteróloga, como se apenas um dos lados tivesse direitos
personalíssimos a serem resguardados.
Denota-se que Ana Cláudia Brandão de Barros Correia Ferraz é partidária do
anonimato, quando traz à lume a ponderação:
[...] não há como se sustentar, assim, que o direito à origem genética deva
sempre prevalecer sobre o direito ao anonimato do doador, na inseminação
artificial heteróloga, à exceção dos casos de doenças quando se discute
também o direito à vida, sendo imprescindível em caso de conflito, a
realização da ponderação [...]. (FERRAZ, 2011, p. 156)
Em brilhante contraponto, Ana Claúdia Scalquette traz um questionamento sobre o
anonimato:
Quando em relação à adoção já se permitiu a investigação biológica apenas
para atender a uma necessidade psicológica de quem quer conhecer seus
ancestrais, como também se prestaria para preservar os impedimentos
matrimoniais, garantir a vida e a saúde do filho e dos seus pais biológicos,
em caso de grave doença genética, não se deveria permitir o mesmo para o
filho concebido com material genético de doador? (SCALQUETTE, 2010, p.
227)
Ora, os que defendem o anonimato entendem que ele propicia o rompimento das
ligações jurídico familiares entre a criança e sua família afetiva e o doador, propiciando a
integração do nascido à família sem qualquer interferência de terceiro na sua formação e
desenvolvimento, além de impedir discriminação em relação ao nascido por parte dos
familiares e círculo de amigos dos pais, devendo, assim estender-se o anonimato não somente
à pessoa do doador, mas também ao procedimento em si.
Por outro lado, mesmo que se leve em consideração as possíveis vantagens advindas
com o reconhecimento do anonimato, tal convicção perde o sentido para o nascido desse
procedimento de reprodução assistida, quando adquire a maioridade civil, visto que não há
mais porque se privilegiar o anonimato, uma vez que a pessoa já possui maturidade suficiente
69
para compreender o procedimento que lhe gerou a vida e por isso mesmo vai querer buscar
respostas através do conhecimento de sua identidade genética.
Isso porque, o nascido dessa técnica merece conhecer suas origens, como reflexo de
seu direito da personalidade, conforme já abordado no capítulo primeiro deste trabalho, mais
especificamente do direito à identidade, intimamente ligado ao princípio da dignidade da
pessoa humana.
4.1.2 O doador e o anonimato
Na reprodução humana artificial, um dos temas mais polêmicos é a doação de
material genético, seja de óvulos ou de espermatozoides, uma vez que se envolve um terceiro
no projeto familiar, motivo pelo qual é necessário compreender de fato quem é esse terceiro, o
doador.
Os doadores são muito importantes no que se refere às procriações artificiais, pois
com seu ato de altruísmo, ao fornecer material biológico necessário à realização das técnicas,
proporcionam aos casais inférteis a possibilidade de procriação. (FERNANDES, 2005, p. 41)
Como visto, doador pode ser qualquer pessoa que doe seu material genético para que
outras pessoas, em razão de esterilidade ou infertilidade, possam realizar o desejo de ser pais e
formar uma família.
Ademais, como dito acima, pode-se verificar, de fato, o caso em que a esterilidade
seja devida à impossibilidade de produzir gametas, espermatozoides por parte do homem e
óvulos por parte da mulher, nessa situação exige-se a intervenção de um doador.
(SGRECCIA, 2009, p. 537)
Para tanto, é necessária a observação de algumas normas éticas, previstas na Res.
2.121/2015, dentre elas, que a doação não poderá ter caráter lucrativo ou comercial, que está
prevista no item 1, do capítulo IV, da aludida resolução. Tal norma, vem corroborada pelo §
4º do artigo 199, da Constituição Federal, que refere “A lei disporá sobre as condições e os
requisitos que facilitem [...] a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados,
sendo vedado todo tipo de comercialização”, sob pena de ser considerada ilícita e inválida.
Tal proibição serve para evitar a coisificação da pessoa, que pela ganância
econômica, poderia deixar de lado sua dignidade, para fazer de seu corpo e suas partes um
verdadeiro comércio. Cupis, citando Carnelutti, refere que:
70
[...] em obra mais recente proclamou a dupla entidade do homem, subjetiva e
objetiva, o homem é, ao mesmo tempo, pessoa e coisa. Estes dois diversos
elementos são conjuntos e combinados nele: como pessoa, é sujeito do
direito sobre si mesmo enquanto coisa; mas não deve falar-se de direito
sobre a própria pessoa, pois esta não pode ser objeto, mas somente sujeito
de direito. (CUPIS, 2008, p. 89)
A escolha do doador é de responsabilidade das clínicas e centros que empregam a
doação, conforme prescreve o item 7 do Capítulo IV da resolução, tudo para manter o seu
caráter sigiloso: “A escolha dos doadores é de responsabilidade do médico assistente. Dentro
do possível, deverá garantir que o(a) doador(a) tenha a maior semelhança fenotípica e a
máxima possibilidade de compatibilidade com a receptora”.
Candidatando-se à doação de sêmen, a pessoa deverá receber todas as informações
necessárias sobre as técnicas utilizadas, bem como se submeter a minucioso exame para
averiguar suas características individuais, patologia e composição genética, a fim de que
possa se tornar um doador (FERNANDES, 2005, p. 45).
Destarte, a doação reveste-se de necessária burocracia para que o ato seja tido por
válido, sendo a unidade de saúde responsável pela coleta e conservação do material genético,
a fim de que não sofra qualquer alteração apta a comprometê-lo.
Portanto, uma vez feita à doação, plenamente possível que seja revertida, justamente
porque o elemento fecundante é parte integrante do corpo do doador que pode posteriormente
arrepender-se e não mais pretender dispor do seu material genético.
Não obstante isso, é importante destacar que “em situações especiais, informações
sobre os doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para
médicos, resguardando-se a identidade civil do(a) doador(a)”, conforme se verifica no item 4,
segunda parte, do capítulo 4, da Res. 2.121/2015, o que nos leva a verificar que, no Brasil, a
regra é a manutenção do sigilo quanto à identidade dos doadores e receptores, todavia, poderá
ser excepcionada em alguns casos, vejamos:
[...] nas situações em que a pessoa tenha necessidade de obter informação
genética indispensável à sua saúde; ou quando a responsabilidade for do
doador, ou dos médicos que realizaram o processo, em razão da utilização de
sêmen com carga genética defeituosa. Nesses casos, deveria haver
necessidade de buscar a autorização judicial, para que as informações sobre
o doador, ou a doadora, fossem disponibilizadas ao interessado (BRAUNER,
2003, p. 89)
71
Portanto, denota-se que há vedação ao anonimato absoluto, muito embora seja ele
considerado necessário para garantia do doador, como para a formação da família que irá se
constituir a partir deste ato.
4.2 O Anonimato no Direito Comparado: França, Espanha, Portugal e Alemanha
4.2.1 Uma breve visão do anonimato no Direito comparado
Apesar de não ser o foco do presente trabalho, não há como tratar de um tema tão
controverso sem mencionar a posição de alguns países, não para tomar como parâmetro, mas
para demonstrar a variação de entendimento jurídico e cultural de um país para o outro,
quando se fala em evolução científica e seus consectários problemas.
Na maioria dos países que já tem legislação sobre o assunto, o anonimato continua
sendo regra, sob o fundamento de não afastar as doações de material genético e proteger os
direitos e deveres dos doadores.
Nesse sentido, importante trazer à baila o entendimento da França, quando se fala em
anonimato:
Com relação ao anonimato, em relatório do Conselho de Estado Francês
sobre as leis de bioética, cinco anos após a sua entrada em vigor, foram
feitas observações no sentido de que o segredo apresenta certamente alguns
perigos para o equilíbrio psicológico da criança que pode senti-lo, além de
prejuízos para os pais que se impõe o dever de se calar. Concluindo que,
dessa forma, os problemas levantados por alguns psicanalistas quanto ao
aspecto patogênico do segredo e do anonimato devem ser examinados.
(SCALQUETTE, 2010, p. 273-274)
Assim, vem se entendendo ser possível excepcionar o princípio do anonimato do
doador tão somente em caso de “necessidade terapêutica concernente à criança concebida
com gametas provenientes de doador” (BRAUNER, 2003, p. 102-103)
Outro país que traz a mitigação do anonimato é a Espanha, visto que, embora o
anonimato seja a regra, permite-se, excepcionalmente, a revelação da identidade do doador,
excluindo-se, no entanto, qualquer possibilidade de constituição de direito alimentar ou
sucessório entre ambos:
Embora se garanta o sigilo, os filhos nascidos têm direito de obter
informações gerais sobre o doador desde que não inclua sua identidade. O
72
mesmo direito é conferido às receptoras dos gametas e dos pré-embriões.
Além disso, em circunstâncias excepcionais que impliquem em perigo certo
para a vida ou saúde do filho gerado, a legislação espanhola permite que seja
revelada a identidade dos doadores, sempre que indispensável para evitar-se
o perigo ou para o fim legal proposto. (SCALQUETTE, 2010, p. 256)
A doação de gametas ou embriões na Espanha também deve ocorrer de forma
gratuita, assegurando o sigilo dos doadores, todavia, podendo os filhos assim concebidos
terem acesso a certos dados do doador, mas não a identidade civil.
Apenas casos excepcionais, como o perigo de vida ou para fins processuais
penais, é que se admite o acesso à identidade civil do doador e sem que haja
qualquer publicidade, além das partes envolvidas. Outrossim, a revelação da
identidade do doador não implica, em caso nenhum caso, determinação legal
de filiação (FERRAZ, 2011, p. 71)
No direito Português, garante-se o sigilo de qualquer um dos participantes do
procedimento da reprodução assistida, contudo reserva-se ao concebido pelo emprego de uma
das técnicas médicas de reprodução assistida o direito de obter as informações de natureza
genética que lhe digam respeito em algumas situações (BRAUNER, 2003, p. 249):
2 – As pessoas nascidas em consequência de processos de PMA com recurso
a dádiva de gametas ou embriões podem, junto dos competentes serviços de
saúde, obter as informações de natureza genética que lhes digam respeito,
excluindo a identificação do dador.
3 – Sem prejuízo do disposto no número anterior, as pessoas aí referidas
podem obter informação sobre eventual existência de impedimento legal a
projectado casamento, junto do Conselho Nacional de Procriação
Medicamente Assistida, mantendo-se a confidencialidade acerca da
identidade do dador, excepto se este expressamente o permitir.
4 – Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, podem ainda ser
obtidas informações sobre a identidade do doador por razões ponderosas
reconhecidas por sentença judicial.
5 – O assento de nascimento não pode, em caso algum, conter a indicação de
que a criança nasceu da aplicação de técnicas de PMA. (SCALQUETTE,
2010, p. 249)
No Brasil, ratifica-se, vigora o princípio do anonimato. Não por força de lei, mas, na
omissão do ordenamento, a Resolução n. 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina vem
sendo utilizada, a qual estabelece normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução
assistida, entre as quais, no inciso IV, alínea 4, refere que será mantido, obrigatoriamente, o
sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e embriões, bem como dos receptores. Em
73
situações especiais, informações sobre os doadores, por motivação médica, podem ser
fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do(a) doador(a).
Como já dito anteriormente, a ideia não é esgotar o assunto do anonimato no direito
comparado, mas apenas trazer um pouco do entendimento em outros países, sendo o
anonimato do doador uma discussão universal, em razão dos problemas que decorrem desse
segredo, que demandará, ainda, muita reflexão a respeito.
4.2.2 As especificidades do Direito Alemão
No presente trabalho dar-se-á maior ênfase ao Direito Alemão, pelo fato de que, em
recentíssima decisão, o Superior Tribunal de Justiça da Alemanha, Bundesgerichtshof (BGH),
em 28 de janeiro de 2015, reconheceu a possibilidade do indivíduo concebido por reprodução
heteróloga conhecer a identidade civil (não apenas genética) de seu genitor doador.
Assim, importante trazer à lume, que a Alemanha não se ocupa diretamente da
questão do anonimato do doador, mas a construção que, desde 1989, vem sendo feita a partir
de decisões do Bundesverfassungsgericht, são em torno do direito ao conhecimento das
origens genéticas que levam ao problema do conhecimento da identidade do doador (REIS,
2008, p. 432).
As diretivas mais recentes da Bundesärztekammer alertam mesmo os médicos para a
necessidade de cumprimento dos deveres de documentação e informação dos beneficiários
tendo em vista o exercício daquele direito. (REIS, 2008, p. 432)
Porém, a própria Bundesärztekammer alerta para a deficiente regulamentação do
assunto no direito alemão. Em 1988, o ante-projeto de lei sobre Procriação Medicamente
Assistida recomendava a constituição pelos médicos de uma base de dados contendo
informação sobre os doadores para que as crianças pudessem ter essa informação a partir dos
16 anos de idade, sugerindo um sistema próximo ao que existe para a adoção. (REIS, 2008, p.
432)
A relativa incerteza quanto à posição jurídica do doador levou à diminuição do
número de doações, sobretudo depois de uma decisão do Tribunal Federal de Justiça de 1983,
que reconheceu ao marido (ou companheiro) da mãe, o direito de impugnar a paternidade de
uma criança concebida por procriação artificial heteróloga, mesmo nos casos em que aquele
que tivesse dado o seu consentimento, jurisprudência que a Reforma do direito de família de
1997 não afastou. (REIS, 2008, p. 432)
74
Só uma decisão do Tribunal Federal de Justiça de 1995 precisou os termos em que
ela foi entendida:
a) o marido podia revogar unilateralmente o seu consentimento até o
momento da execução da técnica;
b) se a técnica de PMA fosse aplicada sem o seu consentimento, a este não
pode ser assacada qualquer responsabilidade;
c) caso o marido revogasse o consentimento após a data da realização da
intervenção médica, devia assumir o estatuto de pai perante a mãe e perante
a criança. (REIS, 2008, p. 432)
A Kinderrechteverbesserungsgesetz, em 2002, veio introduzir alterações nesta
matéria, determinando hoje o § 1600 (4) do BGB a solução do afastamento da impugnação da
paternidade pelo marido ou pela mãe que tenham consentido na técnica, embora o filho
continue a poder utilizar o mecanismo impugnatório.
Certo é que, como a Reforma de 1997 estendeu a faculdade que o filho tem de
impugnar a paternidade do marido ou companheiro da mãe, uma vez impugnada essa
paternidade, em princípio nada o impede de intentar uma ação pedindo o reconhecimento do
doador como seu progenitor.
Todavia, REIS citando Schwab, explica:
[...] à possibilidade de impugnação da paternidade que não seja a biológica
poder seguir-se uma investigação dirigida ao dador, solução que já não se
verificará no que respeita à dádiva de ovócitos (ou embriões, no que respeita
ao estabelecimento da correspondente maternidade) devido à especial forla
da regra “mater semper certa est”, consagrada no § 1591 do BGB. (REIS,
2008, p. 433)
Portanto, no direito alemão, quanto à paternidade, enquanto produzir efeitos um
vínculo estabelecido em relação ao marido da mãe ou resultante de reconhecimento, nenhuma
ligação jurídica se estabelece com o doador e a pessoa nascida com o recurso da técnica da
reprodução assistida heteróloga.
Todavia, importante consignar, que o sucesso da impugnação abrirá o caminho ao
reconhecimento judicial, com todas as consequências jurídicas, não se tutelando o desejo de
anonimato eventualmente manifestado pelo doador.
Tanto é verdade, que na decisão proferida pelo Bundesgerichtshof (BGH), em 28 de
janeiro de 2015, foi concedida a quebra do anonimato do doador:
75
Em decisão proferida no dia 28 de janeiro, o 12a Senado Cível do
conceituado tribunal, nos autos de processo oriundo do Tribunal de
Hannover, reconheceu, em tese, a possibilidade do indivíduo concebido por
reprodução heteróloga, na qual o material genético não provém – total ou
parcialmente – dos pais, mas de terceiro doador anônimo, conhecer a
identidade civil (não apenas genética) de seu genitor.
[...] O Tribunal de Hannover aplicou por analogia a regra do § 63 I da
Personenstandsgesetz (PStG), a lei sobre a origem pessoal, válida para os
casos de adoção. Os menores, então, recorreram ao BGH por meio da
Revision e o tribunal afirmou que o direito ao conhecimento da própria
origem consiste em um dos direitos fundamentais da personalidade,
decorrência imediata da dignidade humana e, portanto, protegido pelos arts.
1º e 2º da Lei Fundamental (Grundgesetz). E esse direito, por vezes, mostrase essencial ao pleno desenvolvimento da personalidade. (FRITZ, 2015)
A decisão do Superior Tribunal de Justiça Alemão é sem dúvida um divisor de águas
sobre o tema, embora existam posicionamentos contrários, verifica-se que o Tribunal Alemão
deixou claro que esse direito não é absoluto, visto que existem vários interesses em questão,
motivo pelo qual a decisão deverá sempre pautar-se pelo caso concreto a ser analisado e
ponderado. Ademais, segundo a decisão em comento, o interesse legítimo referente ao direito
ao anonimato do doador de sêmen decorre do direito à autodeterminação que “na expressão
do tribunal, direito à autodeterminação informativa [...] – também de status constitucional,
que lhe confere o poder de planejar e regular sua vida particular, o que inclui evidentemente o
planejamento familiar” (FRITZ, 2015).
4.3 Consequências jurídicas da reprodução assistida em face do anonimato
O procedimento de reprodução assistida heteróloga traz consigo, além de questões
éticas, questões jurídicas, que até o momento não encontram amparo no nosso ordenamento
jurídico, sendo de relevante importância sua discussão, uma vez que as consequências
jurídicas da reprodução humana assistida são tanto pessoais, como patrimoniais.
Assim, busca-se de uma maneira perfunctória, trazer à lume tais temas, senão
vejamos:
4.3.1 Dos vínculos familiares
A reprodução assistida heteróloga tem a peculiaridade de inviabilizar o
estabelecimento dos vínculos de parentesco com o doador, esta é a diferença com o instituto
da adoção, no qual se conserva o vínculo consanguíneo e o parentesco é estabelecido de
76
forma superveniente. Nesse tópico, apenas se fará uma pequena introdução do assunto, que
será tratado de maneira mais densa no item 4.4. do trabalho.
Em razão da distinção entre estas formas de substituição da família original e da
ausência de regramento no que tange à reprodução assistida heteróloga é que se tem utilizado
o tratamento legal dado à adoção como suporte análogo para concluir que não há o
estabelecimento de vínculos parentais entre o doador de gametas e a pessoa concebida.
Isto porque quando faz a doação, não age com vontade ou assumindo um risco de
concepção ou mesmo por irresponsabilidade. Pelo contrário, age em solidariedade ao casal
que, por infertilidade ou esterilidade, não teria condições de procriar sem sua doação. Não há
como, pois, atribuir-lhe qualquer vínculo com a pessoa concebida, e mesmo revelada a origem
genética, isto não significa que o vínculo passará a existir. Esse é justamente o ponto do
presente trabalho, visto que busca-se pura e simplesmente o direito à identidade genética, suas
origens, sem que isso reflita de forma alguma na esfera patrimonial ou pessoal do doador.
Embora a não constituição dos vínculos parentais tenha uma abrangência muito
maior, a principal constatação que dela advém é a de que inexistindo vínculo inexiste também
direitos e deveres de ambas as partes: doador e concebido. Nem mesmo a morte dos pais
jurídicos é capaz de suscitar o surgimento do vínculo. Não ocorre a repristinação, a exemplo
do que ocorre na adoção, a teor do art. 49 do Estatuto da Criança e do Adolescente: “A morte
dos adotantes não restabelece o poder familiar dos pais naturais.”
A doutrina brasileira é quase unânime nesta questão. Cumpre salientar, entretanto,
que a inexistência do vínculo parental entre doador e concebido não é incompatível com o
princípio do anonimato. É perfeitamente possível admitir-se que o concebido tenha acesso à
informação acerca de sua origem biológica sem que com isto seja constituído o vínculo
parental.
Assim, importante consignar que o panorama atual do mundo jurídico, com a
constitucionalização do direito, colocando o indivíduo como centro das relações jurídicas,
torna-se imprescindível que o anonimato ceda a valores maiores como a dignidade da pessoa
humana e o direito à identidade, sem que com isto se venha a preterir dos vínculos
construídos com a família afetiva.
77
4.3.2 Do direito a alimentos
É sabido que o direito a alimentos advém da impossibilidade que os filhos têm de
manterem a si mesmos, seja em razão da idade, seja em razão dos estudos, sendo devido pelos
pais esse amparo material, o que não é diferente na reprodução assistida heteróloga.
O artigo 7° do ECA, ao tratar dos direitos fundamentais à vida e à saúde da
criança e do adolescente, expressamente se refere à necessidade da
efetivação de políticas sociais públicas que possibilitem o nascimento sadio
e harmonioso da pessoa, assegurando a existência em condições dignas.
(GAMA, 2003, p. 933)
Nesse sentido, destaca-se que pelos preceitos da Constituição da República e do
Estatuto da Criança e do Adolescente, admite-se a possibilidade de pleitear e obter alimentos
para o nascituro, quando a mulher deles necessite no período da gravidez, para ter uma
gestação sadia, propiciando o desenvolvimento do bebê. Isso porque, “na eventualidade da
dissolução da sociedade conjugal ou companheiril, mesmo no caso de ainda não ter nascido a
criança, haverá tutela em favor dos interesses do nascituro” (GAMA, 2003, p. 935).
Assim, resta claro que não há motivos para haver tratamento diferente aos filhos
frutos da procriação assistida heteróloga, valendo para eles todos os fundamentos da nossa
Constituição Federal e demais legislação infraconstitucional, a fim de garantir o seu pleno e
sadio desenvolvimento.
4.3.3 Do direito à sucessão hereditária
Da mesma forma como referido no item anterior sobre os alimentos, no que pertine
aos direitos sucessórios, os filhos havidos da reprodução humana assistida heteróloga terão os
mesmos direitos de qualquer outro filho, mal comparando com a adoção, conforme refere o
artigo 41 do Estatuto da Criança e do Adolescente: “A adoção atribui a condição de filho ao
adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios.”
Desse modo, qualquer lei que venha a ser editada e que pretenda estabelecer
a inexistência de direito sucessório em favor do filho havido por técnica de
reprodução assistida heteróloga deverá ser declarada inconstitucional por
clara afronta ao disposto no artigo 227, § 6°, da Constituição Federal de
1988. (GAMA, 2003, p. 936)
78
Denota-se que a ausência de legislação que regulamente a reprodução humana
assistida traz muitos prejuízos, não só para o doador, mas também para os nascidos dessas
técnicas e seus familiares, visto que todo esse descaso refletirá futuramente em nossa
sociedade, diante do aumento considerável de crianças que nascem através da procriação
artificial.
4.3.4 Dos impedimentos matrimoniais
Os impedimentos matrimoniais “são as limitações previstas em lei a respeito da
possibilidade jurídica das pessoas impedidas se casarem diante da constatação da existência
de algum motivo considerado grave em outros campos do conhecimento como na biologia, na
ética, na moral, entre outros” (GAMA, 2003, p. 892).
No que tange a tais impedimentos entre a pessoa do doador e a concebida por
reprodução assistida, na ausência de legislação pertinente ao tema, deve-se interpretar
extensivamente a regra preconizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo
41, na parte final, senão vejamos: “A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os
mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais
e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais”.
[...] em se verificando que além da adoção há outro modo de estabelecimento
de parentesco civil, afigura-se essencial ampliar o alcance da regra pertinente
aos impedimentos matrimoniais para tutelar os interesses individuais das
pessoas que, sob o prisma biológico, têm vinculação, além do resguardo do
interesse social de impedir uniões fundadas na sexualidade de pessoas que
têm a mesma origem sanguínea (GAMA, 2003, p. 891).
Assim, o impedimento de consanguinidade se funda em razões morais, uma vez que
ao impedir uniões incestuosas e biológicas ou eugênicas, pretende-se preservar a prole de
deformidades somáticas, fisiológicas ou psíquicas.
Por fim, importante lembrar que o impedimento matrimonial não se resume às
pessoas do doador e do concebido, abrangendo, também, os parentes e afins do doador nos
mesmos limites do parentesco jurídico.
79
4.4 Proibição do anonimato e direito ao conhecimento da identidade genética
O princípio do anonimato adotado na resolução n. 2.121/2015 do Conselho Federal
de Medicina é visto hoje como a pedra fundamental dos tratamentos de reprodução humana
assistida.
O principal fundamento adotado pela resolução para justificar o anonimato foi eleito
para proteger a criança nascida por técnica de reprodução assistida, a fim de que a criança não
se torne objeto de disputa entre o doador e seus pais ou que a vedação do anonimato impeça a
autonomia e o desenvolvimento normal da família constituída com o auxílio da biotecnologia,
porventura temerosa de ser importunada pelo doador ou vice-versa.
Defende-se a tese de que o que se pretende não é possibilitar o conhecimento da
criança acerca de sua origem, do procedimento que a gerou e, até mesmo de sua identidade
genética, mas preservar a identidade civil dos doadores e receptores.
Entende-se que, em tese, o conhecimento da identidade civil do doador é contrária ao
melhor interesse da criança, que a revelação afronta os direitos da personalidade dos
doadores, que a doação praticamente desapareceu em países onde se permite a revelação.
Não obstante isso, a tese do anonimato encontra fundamento legal na Declaração
Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, em seus artigos 7º e 9º 5 que
expressamente dizem que o sigilo deverá ser respeitado nas condições estabelecidas por lei,
dos dados genéticos associados a uma pessoa identificável e armazenados ou processados
para fins de investigação ou para qualquer outro fim.
Na verdade, o que se teme conceber é o estabelecimento de vínculo parental entre o
doador e a pessoa concebida através da técnica, tornando completamente necessária a
distinção entre direito ao estado de filiação e o direito à origem genética, que, infelizmente,
não foi ainda assimilada pelo legislador e até mesmo por muitos doutrinadores, que ignoram o
implacável sentimento existencial, social e jurídico do ser humano em conhecer sua origem, o
qual encontra amparo no direito posto, como amplamente telado no capítulo 1 deste trabalho
no que tange ao direito de personalidade.
Outra prova disso, encontra-se no conteúdo de um interessantíssimo estudo
publicado pela Commission on Parenthood’s Future sob o nome “My Daddy’s Name is
5
Art. 7º - Deverá respeitar-se o sigilo, nas condições estabelecidas por lei, dos dados genéticos associados a uma
pessoa identificável e armazenados ou processados para fins de investigação ou para qualquer outro fim.
Art. 9º - A fim de proteger os direitos humanos e liberdades fundamentais, as restrições aos princípios do
consentimento e do sigilo têm de ser fixadas por lei, por razões imperiosas e dentro dos limites estabelecidos
pelo direito internacional público e pelas normas internacionais de direitos humanos.
80
Donor: A New Study of Young Adults Conceived Through Sperm Donation”6, onde foi
pesquisada a situação de adultos concebidos por meio da doação de esperma, ocasião em que
os pesquisadores entrevistaram mais de um milhão de lares.
Segundo o estudo, entre 30 mil e 60 mil crianças nascem em cada ano nos
Estados Unidos por meio de doação de esperma. Trata-se, contudo, de uma
estimativa por baixo, pois nenhum organismo recolhe estatísticas deste
procedimento. Além disso, este é o primeiro estudo sério para avaliar o bemestar de quem agora é adulto. A pesquisa também constata que a doação de
esperma é um fenómeno internacional. Pessoas de todo o mundo buscam
doadores de esperma nos Estados Unidos devido à falta de regulamentações,
e países como Dinamarca, Índia e África do Sul proporcionam também
doadores de esperma para um crescente mercado de turismo de fertilidade.
(FLYN, 2010, p. 162).
O mais chocante é que a pesquisa traz considerações muito importantes para a
formação da identidade dos nascidos da reprodução humana heteróloga, posto que coloca em
destaque a inevitável comparação do instituto da adoção com a técnica de reprodução
heteróloga, demonstrando que as crianças adotadas podem criar uma ilusão, fantasiar uma
história sobre o porquê foram dadas para adoção, porém a criança advinda das técnicas de
procriação artificial saberá, inevitavelmente, que foi uma transação comercial, onde o doador
jamais desejou ser pai ou mãe, o seu nascimento não foi um projeto de vida pelo pai ou mãe
biológico, doador do sêmen ou do óvulo.
Para estudar a situação dos adultos concebidos por meio da doação de
esperma, os autores entrevistaram mais de um milhão de lares e, depois,
apresentaram uma amostra representativa de 485 adultos entre 18 e 45 anos
que diziam que suas mães haviam utilizado esperma doado. Foram
comparados com um grupo de 562 adultos que foram adoptados quando
crianças, e 563 adultos que cresceram com seus pais biológicos.
“Aprendemos que, em média, os adultos jovens concebidos por meio da
doação de esperma sofrem mais, estão mais confusos e sentem-se mais
isolados de suas famílias”, indica a pesquisa.
Pelo menos 65% dos adultos concebidos por estas doações concordaram
durante a entrevista com a seguinte afirmação: “O doador de esperma é a
metade do que sou hoje”. As mães ainda admitem a sua curiosidade em
saberem quem são os pais de seus filhos. (FLYN, 2010, p. 163)
São declarações muito fortes, “O doador de esperma é a metade do que sou hoje”,
para serem ignoradas pelo ordenamento jurídico, deixando essas pessoas desamparadas, visto
que são sujeitos de direito e merecem todo amparo legal na esteira de sua vida. Até mesmo
6
Em tradução livre “O nome do meu pai é doador: Um novo estudo de jovens adultos concebidos por meio da
doação de esperma”, das autoras Elizabeth Marquardt, Norval D. Glenn e Karen Clark.
81
porque o estabelecimento dos laços afetivos construídos na relação entre pais e filhos são,
inegavelmente, o fundamento do estado de filiação, o qual não se desfaz pelo simples
conhecimento da ascendência genética. O direito ao estado de filiação é objeto do direito de
família e o direito ao conhecimento da origem genética é direito da personalidade, essa
diferenciação deve ficar clara.
Isso vem confirmado pelos dados da pesquisa alhures mencionada:
Um pouco menos de metade destes adultos expressou o seu mal-estar com as
suas origens. Muitos deles afirmaram que têm uma preocupação frequente.
Alguns deles sentem-se como monstros – o resultado de experiências de
laboratório – enquanto que outros têm problemas de identidade. O facto de
que o processo mistura dinheiro também é um factor de preocupação para
muitos.
Outros expressaram o seu mal-estar por terem sido um produto desenhado
para satisfazer os desejos de seus pais. Não menos de 70% admitem ter
perguntado como era a família do doador de esperma. (FLYN, 2010, p. 163)
Não obstante isso, como já tratado no item sobre os impedimentos matrimoniais, o
direito ao conhecimento da origem genética também é necessário em razão de problemas
médicos, visto que a pesquisa aponta que alguns doadores geraram dezenas de crianças, e há
casos de cem ou mais. Assim, quando adultas, estão preocupadas por não conhecerem os seus
meios-irmãos, ou que os seus filhos possam encontrar-se com o filho de um meio-irmão.
O tema que envolve o direito ao conhecimento da identidade genética é muito
delicado, porque envolve o sentimento, o desejo e até a necessidade de conhecer suas origens
para obter respostas para os mais variados questionamentos, como demonstra a pesquisa:
Não é de surpreender que uma grande maioria dos adultos concebidos por
meio da doação de esperma expresse o seu apoio a saber tudo. Isto inclui a
identidade do doador e o direito de ter algum tipo de relação com ele.
Também dizem que queriam saber sobre a existência e o número de seus
meios-irmãos. Actualmente, a lei nos Estados Unidos não dá nenhum destes
direitos. Protege, de fato, os doadores e as clínicas de fertilidade, à custa das
crianças concebidas. (FLYN, 2010, p. 164-165)
Nesse norte, frisa-se que “se na paternidade socioafetiva vive a dignidade da pessoa
humana, também a necessidade de se conhecer o pai biológico reside a integridade da
dignidade da pessoa” (AHMAD, 2009, p. 101).
O direito à filiação é garantido pela Constituição Federal, que o assegura através de
vários princípios, dentre os quais o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF),
motivo pelo qual o nascido da reprodução artificial heteróloga, mal comparando com a
82
adoção, tem o direito de conhecer sua identidade genética. Nesse sentido, o Supremo Tribunal
Federal, no Recurso Extraordinário n. 363.889, exarou a seguinte posição, conforme eminente
voto do Min. Dias Toffoli, que responde a questão jurídica que toca à discussão sobre a
identidade genética:
[....] Não devem ser impostos óbices de natureza processual ao exercício do
direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação
do direito de personalidade de um ser, de forma a tornar-se igualmente
efetivo o direito à igualdade entre os filhos, inclusive de qualificações, bem
assim o princípio da paternidade responsável. [....] Hipótese em que não há
disputa de paternidade de cunho biológico, em confronto com outra, de
cunho afetivo. Busca-se o reconhecimento de paternidade com relação a
pessoa identificada.[....]
Outra decisão interessante nesse sentido foi proferida, no ano de 2013, pela Oitava
Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, no recurso de agravo
de instrumento n. 700521323707, em pedido de registro de nascimento deduzido por casal
homoafetivo, que concebeu um bebê através da reprodução assistida heteróloga, uma vez que
em primeiro grau foi ordenada citação do laboratório responsável pela inseminação e do
7
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PEDIDO DE REGISTRO DE NASCIMENTO DEDUZIDO POR
CASAL HOMOAFETIVO, QUE CONCEBEU O BEBÊ POR MÉTODO DE REPRODUÇÃO
ASSISTIDA HETERÓLOGA, COM UTILIZAÇÃO DE GAMETA DE DOADOR ANÔNIMO. DECISÃO
QUE ORDENOU A CITAÇÃO DO LABORATÓRIO RESPONSÁVEL PELA INSEMINAÇÃO E DO
DOADOR ANÔNIMO, BEM COMO NOMEOU CURADOR ESPECIAL À INFANTE. DESNECESSÁRIO
TUMULTO PROCESSUAL. INEXISTÊNCIA DE LIDE OU PRETENSÃO RESISTIDA. SUPERIOR
INTERESSE DA CRIANÇA QUE IMPÕE O REGISTRO PARA CONFERIR-LHE O STATUS QUE JÁ
DESFRUTA DE FILHA DO CASAL AGRAVANTE, PODENDO OSTENTAR O NOME DA FAMÍLIA QUE
LHE CONCEBEU. 1. Por tratar-se de um procedimento de jurisdição voluntária, onde sequer há lide, promover
a citação do laboratório e do doador anônimo de sêmen, bem como nomear curador especial à menor, significaria
gerar um desnecessário tumulto processual, por estabelecer um contencioso inexistente e absolutamente
desarrazoado. 2. Quebrar o anonimato sobre a pessoa do doador anônimo, ao fim e ao cabo, inviabilizaria a
utilização da própria técnica de inseminação, pela falta de interessados. É corolário lógico da doação anônima o
fato de que quem doa não deseja ser identificado e nem deseja ser responsabilizado pela concepção havida a
partir de seu gameta e pela criança gerada. Por outro lado, certo é que o desejo do doador anônimo de não
ser identificado se contrapõe ao direito indisponível e imprescritível de reconhecimento do estado de
filiação, previsto no art. 22 do ECA. Todavia, trata-se de direito personalíssimo, que somente pode ser
exercido por quem pretende investigar sua ancestralidade - e não por terceiros ou por atuação judicial de
ofício. 3. Sendo oportunizado à menor o exercício do seu direito personalíssimo de conhecer sua ancestralidade
biológica mediante a manutenção das informações do doador junto à clínica responsável pela geração, por
exigência de normas do Conselho Federal de Medicina e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, não há
motivos para determinar a citação do laboratório e do doador anônimo para integrar o feito, tampouco para
nomear curador especial à menina no momento, pois somente a ela cabe a decisão de investigar sua paternidade.
4. O elemento social e afetivo da parentalidade sobressai-se em casos como o dos autos, em que o
nascimento da menor decorreu de um projeto parental amplo, que teve início com uma motivação
emocional do casal postulante e foi concretizado por meio de técnicas de reprodução assistida heteróloga.
Nesse contexto, à luz do interesse superior da menor, princípio consagrado no art. 100, inciso IV, do ECA,
impõe-se o registro de nascimento para conferir-lhe o reconhecimento jurídico do status que já desfruta de filha
do casal agravante, podendo ostentar o nome da família que a concebeu. DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME.
(Agravo de Instrumento Nº 70052132370, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe
Brasil Santos, Julgado em 04/04/2013). [não há grifos no original)
83
doador anônimo, bem como foi determinada a nomeação de curador especial à menor, ao que
o juízo ad quem entendeu desnecessário o tumulto processual, visto que inexistia lide ou
pretensão resistida, atendendo o pedido dos autos o superior interesse da criança, que impõe o
registro para conferir-lhe o status que já desfruta de filha do casal agravante, podendo ostentar
o nome da família que lhe concebeu.
No entanto, o Tribunal fez a ressalva de que o desejo do doador anônimo de não ser
identificado se contrapõe ao direito indisponível e imprescritível de reconhecimento do estado
de filiação, previsto no art. 22 do ECA. Todavia, trata-se de direito personalíssimo, que
somente pode ser exercido por quem pretende investigar sua ancestralidade - e não por
terceiros ou por atuação judicial de ofício.
Não menos importante foi o pronunciamento da Min. Nancy Andrighi no julgamento
Recurso Especial n. 1.401.719 - MG (2012/0022035-1)8, deixando claro que ainda que haja a
consequência patrimonial advinda do reconhecimento do vínculo jurídico de parentesco, ela
não pode ser invocada como argumento para negar o direito à ancestralidade, afinal, todo o
embasamento relativo à possibilidade de investigação da paternidade, na hipótese, está no
valor supremo da dignidade da pessoa humana e no direito do recorrido à sua identidade
genética.
8
FAMÍLIA. FILIAÇÃO. CIVIL E PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO
DE PATERNIDADE. VÍNCULO BIOLÓGICO. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. IDENTIDADE
GENÉTICA. ANCESTRALIDADE. ARTIGOS ANALISADOS: ARTS. 326 DO CPC E ART. 1.593 DO
CÓDIGO CIVIL.
1. Ação de investigação de paternidade ajuizada em 25.04.2002. Recurso especial concluso ao Gabinete em
16/03/2012.
2. Discussão relativa à possibilidade do vínculo socioafetivo com o pai registrário impedir o reconhecimento da
paternidade biológica.
3. Inexiste ofensa ao art. 535 do CPC, quando o tribunal de origem pronuncia-se de forma clara e precisa sobre a
questão posta nos autos.
4. A maternidade/paternidade socioafetiva tem seu reconhecimento jurídico decorrente da relação jurídica de
afeto, marcadamente nos casos em que, sem nenhum vínculo biológico, os pais criam uma criança por escolha
própria, destinando-lhe todo o amor, ternura e cuidados inerentes à relação pai-filho.
5. A prevalência da paternidade/maternidade socioafetiva frente à biológica tem como principal fundamento o
interesse do próprio menor, ou seja, visa garantir direitos aos filhos face às pretensões negatórias de
paternidade, quando é inequívoco (i) o conhecimento da verdade biológica pelos pais que assim o declararam no
registro de nascimento e (ii) a existência de uma relação de afeto, cuidado, assistência moral, patrimonial e
respeito, construída ao longo dos anos.
6. Se é o próprio filho quem busca o reconhecimento do vínculo biológico com outrem, porque durante toda a
sua vida foi induzido a acreditar em uma verdade que lhe foi imposta por aqueles que o registraram, não é
razoável que se lhe imponha a prevalência da paternidade socioafetiva, a fim de impedir sua pretensão.
7. O reconhecimento do estado de filiação constitui direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que
pode ser exercitado, portanto, sem qualquer restrição, em face dos pais ou seus herdeiros.
8. Ainda que haja a consequência patrimonial advinda do reconhecimento do vínculo jurídico de parentesco, ela
não pode ser invocada como argumento para negar o direito do recorrido à sua ancestralidade. Afinal, todo o
embasamento relativo à possibilidade de investigação da paternidade, na hipótese, está no valor supremo da
dignidade da pessoa humana e no direito do recorrido à sua identidade genética.
9. Recurso especial desprovido.
84
Em interessante julgado, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao analisar a
Apelação Cível n. 700501308069, originada da ação mandamental c/c obrigação de fazer por
meio da qual o autor requereu a exibição do seu assento de nascimento original, prontuários e
registros relativos ao seu nascimento existentes no banco de dados do hospital réu, visto que
buscava por sua filiação biológica, deferiu a exibição de documentos sob o argumento de que
o direito à filiação é garantido pela Constituição Federal, que o assegura através de vários
princípios, dentre os quais o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF).
Frisou, ainda que o autor tenha sido adotado, não lhe pode ser recusado o direito de conhecer
sua identidade genética, fazendo alusão ao Recurso Extraordinário nº 363.889-DF, acima
comentado.
Como visto, nossa jurisprudência caminha lentamente no sentido de reconhecer o
direito à identidade genética na procriação artificial, todavia, já existem indícios de que
quando essas crianças crescerem e buscarem suas origens genéticas encontrarão um judiciário
e um Poder Legislativo muito mais preparado e receptivo a esses novos direitos, pois como
visto no julgado acima, ainda pairam confusões sobre o direito à origem genética (podendo
ser comparado ao art. 48 do ECA) e o direito de filiação, previsto no art. 27 do estatuto
menorista.
Nesse sentido, Tycho Brahe Fernandes afirma que negar à criança concebida por meio
de reprodução assistida a possibilidade de aforar uma ação investigatória constitui-se em
inaceitável discriminação, vez que se estará negando a ela um direito que é reconhecido às
outras nascidas de relações sexuais. (FERNANDES, 2000, p.86.)
Heloísa Helena Barboza demonstra sua preocupação com a norma ética estabelecida
pela Resolução n. 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina que regulamenta a utilização
das técnicas de procriação artificial e que estabelecem a manutenção do sigilo sobre a
identidade do doador, excetuando apenas as situações especiais em que haja motivação
médica e a revelação se restrinja aos médicos envolvidos, resguardando, de toda forma a
identidade civil do doador.
Reflete a notável doutrinadora que “tal prática não é coerente com a norma
constitucional que garante à criança a convivência familiar, afrontando também o princípio do
9
DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO MANDAMENTAL C/C OBRIGAÇÃO DE FAZER.
Sentença que condenou o réu à exibição dos documentos relativos ao nascimento do autor, o qual investiga a sua
filiação biológica. admitida a apresentação de cópias autenticadas dos documentos originais constantes em livro
de registro contendo informações sobre outros partos, de modo a preservar as informações relativas a terceiros.
APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA.
85
melhor interesse da criança, a qual poderá, em não sendo reconhecida, ficar sem pai”.
(BARBOZA, Heloísa Helena. 2004, p.165.)
Portanto, como já dito alhures, o tema em debate não é nada simples, sendo trabalho
extremamente árduo e difícil para que os juristas formem suas convicções no sentido de
proteger tanto o direito do doador, como o direito do nascido dessas técnicas de reprodução
artificial, ao que este trabalho filia-se ao direito ao conhecimento da identidade genética, uma
vez que demonstrado os efeitos nefastos no ser do concepturo, restando claro que não há
prejuízo algum ao doador que não terá nenhuma espécie de dever legal com o investigante,
nem alimentos, nem direitos sucessórios, resguardando-se, assim, a dignidade de quem ainda
nem nasceu e das gerações futuras, conforme emana da nossa Constituição Federal.
4.5 Técnicas de reprodução artificial heteróloga e a obrigatoriedade do sigilo
O presente debate que envolve o direito ao conhecimento da origem genética é muito
melindroso, visto que mexe com o íntimo da pessoa, a sua vontade e até mesmo a necessidade
de conhecer suas origens para obter respostas sobre si mesma, sua vida, suas características,
enfim, para os mais variados questionamentos.
Todos nós temos direito de saber nossa origem, nossos ascendentes, quem nos gerou,
quem realmente nos deu a vida. Desse modo, a pessoa gerada por reprodução artificial, a
partir do momento em que souber sua verdadeira história, terá a vontade de conhecer quem é
seu pai/mãe biológica, e então começará uma busca incessante na procura da sua identidade
genética, porque “cada pessoa se vê no mundo em função de sua história, criando uma autoimagem e identidade pessoal a partir dos dados biológicos inseridos em sua formação,
advindos de seus genitores” (ALMEIDA, 2003).
Essa crise de identidade se dará mais facilmente nas técnicas de inseminação
heteróloga, onde um terceiro doa seu sêmen para que a mulher venha a ser fecundada, sendo
que o material biológico não é do “pai presumido”, esposo ou companheiro da mulher
fecundada, mas sim de um terceiro desconhecido. Da mesma forma, ocorre quando há a
doação do óvulo, que uma vez fecundado é introduzido no útero da mulher “receptora”, sendo
que o filho nascido dela, só se liga biologicamente ao seu marido/companheiro, o qual
forneceu o espermatozóide que se “juntou” com o óvulo doado. Por conseguinte, em termos
estritamente biológicos, o pai e a mãe seriam esses terceiros doadores. Assim, no caso da
fecundação heteróloga, pode o concebido buscar conhecer seus pais biológicos? Nesse
sentido, importante frisar o entendimento do direito comparado:
86
Apesar do anonimato dos doadores ser a regra em praticamente todos os
países que possuem legislação a respeito, atendendo aos interesses da criança
ou do adolescente, a lei sueca exatamente não prevê o sigilo, o anonimato,
tendo em vista a necessidade de prevenir doenças genéticas, além de permitir
que a pessoa possa, com a maioridade, conhecer o genitor biológico. [...] O
anonimato do doador de material genético deve realmente existir em matéria
de reprodução assistida, mas não dentro de uma noção absoluta. No Direito
europeu, mesmo em alguns países que seguem o sistema do Direito
continental, filiando-se à tradição romana, há divergência de tratamento.
Assim, há, em alguns textos normativos de países, previsão acerca de
exceções ao anonimato, ora para prevenir ou curar doenças genéticas, ora
para reconhecer o interesse da pessoa gerada por meio de reprodução
assistida em conhecer a sua ascendência (identidade) biológica, mas sem
qualquer atribuição de benefícios ou vantagens econômicas. Mas, na maior
parte dos textos legislativos em vigor, nos países europeus, há a regra do
anonimato. No caso brasileiro, apesar de não haver qualquer regra expressa a
respeito, em observância aos princípios, objetivos e fundamentos de Direito
de Família, eventualmente o sigilo poderá ser afastado, cedendo lugar à
proteção de interesses de maior relevância. (GAMA apud MACHADO,
2005)
A fim de evitar esta polêmica, o Conselho Federal de Medicina, através da Resolução
n. 2.121/201510, decidiu que o sigilo em torno do nome dos doadores e receptores é
obrigatório e que as informações sobre pacientes e doadores pertencem, exclusivamente, às
clínicas ou centros que mantêm serviços de Reprodução Assistida.
Em vista disso, existem doutrinadores, como Eduardo de Oliveira Leite, que se
posicionam no seguinte sentido quanto ao anonimato do doador:
[...] Na hierarquia dos valores estas considerações sobrepujam o pretendido
“direito” de conhecimento de sua origem. [...] o anonimato evita que tanto o
doador quanto a criança procurem estabelecer relações com vistas a
obtenção de meras vantagens pecuniárias. Exclui-se o estabelecimento de
uma filiação que conduziria à ações de investigação de paternidade ou outras
ações de responsabilidade. (LEITE apud MACHADO, 2005, p. 119-120)
No entanto, em clara contradição, existem leis que entram em choque com o telado
anteriormente, como é o caso da Lei 8.069/90, o popular Estatuto da Criança e do
Adolescente, o qual estabelece o direito inarredável dos filhos adotados terem direito de
10
IV - DOAÇÃO DE GAMETAS OU PRÉ-EMBRIÕES
1 – [...]
2 – Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa.
3 – [...]
4 – Será mantido, obrigatoriamente, o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e embriões, bem como
dos receptores. Em situações especiais, informações sobre os doadores, por motivação médica, podem ser
fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do(a) doador(a).
87
conhecer sua origem biológica. Assim prescreve o artigo 48 da referida lei “O adotado tem
direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no
qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos”.
Todavia, cabe ressaltar, que apesar de ser uma lei recente, os seus legisladores,
logicamente, ao referirem-se ao reconhecimento da filiação, em nenhum momento pensaram
na hipótese da identidade genética das crianças em casos como o da reprodução humana
artificial.
Assim, verifica-se que o posicionamento do Conselho Federal de Medicina, na
questão em torno do sigilo das informações, impedindo, a princípio, a pessoa de conhecer seu
pai/mãe biológica, acaba por ferir o disposto no artigo 48 do Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Nesse contexto é que nasce o conflito: de um lado o direito da pessoa em saber sua
identidade genética, de outro o direito do doador/doadora de ser uma simples ferramenta na
concepção de seres humanos medicamente reproduzidos, não querendo eles ter nenhum
envolvimento com o “produto” desta técnica, tendo interesse tão somente em fazer a doação
de espermatozóides e óvulos para ajudar pessoas inférteis.
Outrossim, analisando o direito de identificação da filiação biológica, deve-se
vislumbrar que é um direito fundamental de toda pessoa, sendo, de certa forma, impassível de
restrição, como estatui o artigo 5° da Constituição Federal, o qual assegura o princípio da
igualdade e, como é sabido, os “ensaios” da legislação brasileira sobre o tema inviabilizam a
possibilidade da pessoa originada dessas técnicas de reprodução conhecer seus pais
biológicos, direito personalíssimo, entrando, mais uma vez em choque de pensamentos,
acarretando controvérsias jurídicas em torno da constitucionalidade da questão. Ademais,
[...] o Código Civil só admitiu a investigatória de paternidade em quatro
hipóteses a saber: a) em caso de concubinato, ao tempo da concepção, da
mãe do investigante, com o investigado; b) em caso de rapto da mãe do
investigante, pelo suposto pai, coincidente com à época da concepção; c) em
caso de se comprovarem relações sexuais entre a mãe do investigante e o
pretendido pai, à época da concepção; d)em caso de existir escrito daquele a
quem se atribui a paternidade, reconhecendo-a expressamente. Pelo que se
vê dos termos expresso da lei, as três primeiras hipóteses são inviáveis em se
cuidando de ação de investigação de paternidade movida por filho de mulher
que foi inseminada artificialmente. Não houve concubinato, não houve rapto
e não houve relações sexuais. (SAMPAIO apud MACHADO, 2005, p. 116)
De outra banda, o direito à identidade genética, talvez, possa encontrar justificativa
quando, futuramente, em função do sigilo absoluto, resultem relações incestuosas, dando aos
88
filhos o direito de ter acesso aos dados biológicos do doador para a descoberta desse possível
impedimento
matrimonial.
Pois,
em
se
mantendo
o
sigilo
absoluto
da
paternidade/maternidade biológica, em tese, nada impede que irmãos, ou seja, filhos nascidos
de material pertencente ao mesmo doador/doadora, ou mesmo o próprio doador e uma filha
contraiam casamento por absoluta ignorância com relação as suas verdadeiras origens.
Assim, mesmo não tendo participado, portanto, não tendo escolhido a sua
forma de nascimento, o filho nascido da inseminação heteróloga, fica tolhido
de saber sobre sua origem de filiação, sendo-lhe negado o direito à
identidade. [...] O conhecimento de sua origem é direito personalíssimo que
deve ser assegurado a todas as pessoas que desejam conhecer seus
antecedentes porque trata-se da história da vida de cada um. (MACHADO,
2005, p. 121)
Por outro lado, é de se considerar que os laboratórios especializados no fornecimento
de sêmen/óvulos têm o cuidado de expedir o produto para regiões distantes umas das outras,
mas essa cautela apenas reduz o risco, pois o homem, atualmente, pode deslocar-se para
qualquer lado do mundo com facilidade, e, portanto, pode-se perder o controle sobre a
distribuição do material genético. Além do que, não havendo regulamentação legal dessa
situação, não há como garantir uma fiscalização eficiente em todos os laboratórios
especializados em fecundação artificial.
Contudo, ressalva-se, que o inciso IV, item 4, das Normas Éticas para utilização das
técnicas de reprodução artificial, da Resolução do CFM n. n. 2.121/2015, prevê como possível
a quebra dessas informações, obrigando-se, inclusive, o estabelecimento responsável pelo
emprego da reprodução artificial a fornecer as informações solicitadas, em situações
especiais, por motivação médica, porém, exclusivamente para médicos, resguardando-se a
identidade civil do doador.
Nesse contexto, tanto o direito à identidade e o acesso à informação, quanto o direito
de privacidade estão pautados no princípio da dignidade da pessoa humana e buscam um
máximo de respeito aos direitos de personalidade do indivíduo. Todavia, há momentos em
que haverá conflitos entre esses direitos, de maneira que será necessário um estudo detalhado
do caso concreto, a fim de identificar qual deles deve prevalecer.
Desse modo, ocorrendo o conflito entre dois ou mais princípios em um
determinado caso, deve o intérprete considerar o peso relativo de cada um
deles e verificar, naquele caso concreto, qual deve prevalecer, afastando o
princípio incompatível. [...] Como os princípios possuem uma dimensão de
peso maior que a das regras, havendo conflito de regras, umas dessas regras
89
será invalidada, enquanto no conflito entre princípios, a solução dependerá
do peso e da importância de cada um no caso concreto, que não será
invalidado, porém apenas não aplicado naquela determinada situação.
(FERRAZ, 2011, p. 145)
Diante desse conflito, segundo Edson Ferreira da Silva “o equilíbrio entre um
interesse e outro deve ser buscado pelos operadores do direito, segundo um critério axiológico
que deve determinar o interesse prevalecente em cada situação”. (SILVA, 1988, p. 68)
Destarte, “a real utilidade da informação deve ser o parâmetro para legitimá-la e
justificar o desvelamento de aspectos da intimidade de alguém” (SILVA, 1988, p. 68). Assim,
temos que a intimidade, direito personalíssimo instituído constitucionalmente no artigo 5º,
inciso X, da Carta Magna, visa proteger o particular em sua privacidade. O objetivo, em
princípio, é assegurar que possa manter em sigilo informações que competem somente ao
titular delas, porém, no caso em epígrafe, esse direito de intimidade do doador resta
relativizado pelo direito à identidade genética do ser gerado pela reprodução artificial
heteróloga.
4.6 A prevalência do vínculo parental com a família afetiva
É certo que a filiação em nossa codificação atual, transformada pela influência
inquestionável dos princípios constitucionais, ganhou novas feições. A desigualdade entre os
filhos, demonstração maior que foi de um direito civil de características eminentemente
patrimonialistas, quedou finalmente, conferindo a todos os filhos, seja qual for sua origem, e
não somente a estes, mas a todos os membros da família, o direito de serem considerados
iguais perante a lei.
O princípio da igualdade, elevado à condição de fundamento da república, modificou
sobremaneira a forma de encarar o direito de família em nosso país. O reconhecimento de
outras formas de constituição de família que não a sempre privilegiada família matrimonial, a
isonomia entre os cônjuges quer nas funções que exercem no seio familiar, quer no respeito
mútuo que se lhes exige, a queda do “pátrio poder” e o nascimento do “poder familiar”, entre
tantas outras mudanças significativas, são amostras de que uma admirável mudança de
paradigmas ocorreu e ainda está ocorrendo no direito brasileiro.
Houve, na verdade, e ainda há, um processo de repersonalização das relações de
família, que não se remete ao individualismo, mas é a afirmação da finalidade mais relevante
da família: a realização da afetividade pela pessoa no grupo familiar.
90
Entretanto, mesmo diante dos progressos obtidos no curso da história, não se pode
apagar da memória todos os percalços pelos quais passou-se até chegar onde se chegou. Não é
tarefa fácil desconstruir conceitos consagrados pela lei, doutrina e jurisprudência.
Prova disto é a valorização exacerbada concedida por juízes e tribunas à prova
pericial, notadamente o exame de DNA, que tornou-se prova cabal da existência do vínculo
parental:
E é em razão dessa certeza quase absoluta que, hoje, o DNA se converteu no
principal método de identificação humana e, embora haja críticas duras
quanto à sacralização do referido exame, predomina o entendimento de que
houve um nivelamento sistemático acerca da prova na investigação de
paternidade, admitindo-se o DNA como absoluto e irrefutável [...].
(AHMAD, 2009, p. 60)
O direito de família aplicado, na prática, ainda demonstra ter dúvidas acerca da
escolha, já evidenciada na doutrina, pela paternidade afetiva. E esta dúvida revela o
despreparo de um Judiciário acostumado com a escravidão da letra da lei e que muitas vezes
não sabe lidar com as questões axiológicas, quem dirá utilizá-las como suas razões de decidir.
Nesta ordem de ideias, não há como negar o que bem observou Eduardo de Oliveira Leite:
Ou seja, retornando à estaca zero e questionando as construções jurídicas
abstratas, construídas pela ordem jurídica, as procriações artificiais nos
reconduzem à uma questão crucial, esta, de saber qual é a verdade que o
direito positivo quer estabelecer; pois há duas verdades em matéria de
filiação: a verdade biológica – a dos laços de sangue – e a verdade do
coração, dos sentimentos – a que corresponde à filiação, querida, desejada,
vivenciada no dia-a-dia de uma existência. (LEITE, 2000, p. 79.)
É inegável que o modo de se encarar a filiação vem sofrendo mudanças paulatinas
que passaram pela já mencionada isonomia entre os filhos, por sua participação mais ativa na
forma nuclear de família, pela valorização do vínculo afetivo em detrimento do vínculo
biológico, gerando a tão debatida, mas reconhecida desbiologização da paternidade.
A Constituição Federal está repleta de fundamentos a este estado de filiação
desvinculado do vínculo biológico.
O elemento afeto na configuração da filiação caracteriza-se pela expressão da
vontade em se dedicar ao exercício de uma função denominada paternidade. É a construção de
um vínculo entre pai/mãe e filho feita cotidianamente. E isto fica deveras evidenciado na
experiência de filiação decorrente de reprodução assistida heteróloga.
91
A desconstrução, no entanto, da errônea primazia da consanguinidade sobre a
afetividade, deve representar um ganho para o relacionamento paterno-filial, nunca a restrição
de direitos inerentes à personalidade humana.
Assim, não há como admitir que, ao argumento da inegável necessidade de garantirse o estado de filiação decorrente da utilização das técnicas de biotecnologia, se possa preterir
do não menos importante direito de conhecimento da origem biológica.
E o reconhecimento de tal direito não implica, de modo algum, em qualquer abalo à
relação parental constituída pela filiação afetiva. Pelo contrário, eis que, na medida em que,
conceder à pessoa gerada por técnica de reprodução assistida o direito à sua identidade
genética, mantenha-se o vínculo de parentesco com o pai ou mãe afetivo, fortalece-se o
vínculo, tornando-o intransponível, sem brechas ou máculas porventura causadas pelo desejo
do conhecimento das origens.
Desnecessário, neste momento, ressaltar as vantagens práticas do conhecimento da
origem genética, relativas à manutenção da saúde em face da evolução da biotecnologia e à
prevenção de uniões incestuosas. Até por que a doutrina que pugna pela manutenção do
anonimato reconhece a necessidade, nestes casos, da revelação.
A distinção entre os conceitos de “pai” e “genitor” ou “mãe/genitora” se impõe. Os
primeiros são os que criam. Os segundos, geram. O reconhecimento do direito de
conhecimento da origem genética não tem qualquer relação com o parentesco ou os efeitos
daí decorrentes. O pai e a mãe continuarão sendo pai e mãe e os genitores, meros doadores de
células germinativas. Esta é a visão constitucionalizada, comprometida não somente com o
direito de uma das partes, mas que levanta os olhos para oferecer uma solução que atenda
também o interesse da outra parte, quiçá tão ou mais importante que a primeira.
O temor das repercussões patrimoniais é que, na verdade, vem pautando a defesa da
manutenção do anonimato como regra na utilização das técnicas de reprodução assistida. E o
continuísmo desta tese é que, ao contrário do que se alega, revela o ranço da visão
patrimonialista que sempre pautou as relações civis.
Negar o conhecimento da origem genética é um retrocesso, um contrassenso, a
negativa de todo o afirmado em nossa carta política!
O princípio do anonimato tem sido visto como dogma absoluto, afrontando princípio
quiçá maior, qual: o direito à identidade biológica do cidadão. É necessário atentar para a
necessidade premente de harmonizar-se os princípios em questão, valorizando o direito do
indivíduo em conhecer suas raízes, sem que com isto seja compelido a abdicar da família
afetiva que o acolheu. Em suma, o direito de conhecer a identidade biológica não é
92
incompatível com a paternidade afetiva construída através de uma reprodução assistida. O
indivíduo pode desfrutar de ambas sem prejuízo para quem quer que seja, se uma legislação
séria for erigida a regular a questão.
4.7 A colisão entre direitos: o direito à identidade genética versus o direito ao sigilo do
doador
Notadamente, a intimidade, em um mundo globalizado e proliferado de redes sociais
como o atual, possui diferente aplicação em nosso cotidiano. Com efeito, já é possível
observar casos em que outros direitos fundamentais prevalecem em relação à privacidade,
justamente por estarmos diante de uma realidade diversa e peculiar na sociedade
contemporânea.
O direito à intimidade é hoje considerado parte integrante dos direitos da
personalidade. Tutela o direito do indivíduo de estar só e a possibilidade que
deve ter toda pessoa de excluir do conhecimento de terceiros aquilo que a ela
só se refere, e que diz respeito ao seu modo de ser no âmbito da vida
privada. (LAFER, 1988, p. 239)
Com efeito, podemos notar que é bastante controversa a colisão de direitos entre o
doador e a pessoa gerada pela reprodução artificial, uma vez que àquele é garantido o direito
ao sigilo, à privacidade, intimidade, enquanto que ao outro deveria ser garantido o direito de
personalidade, identidade, de acesso à informação, todos direitos fundamentais, garantidos
constitucionalmente.
Conquanto, o direito à identidade genética baseia-se na dignidade da pessoa humana,
tendo em vista que a pessoa tem direito a ter conhecimento de onde surgiu e quem lhe gerou a
vida. Tal direito não se baseia somente em questões emocionais ou psicológicas, mas também
médicas, uma vez que conhecer a identidade genética dá base ao indivíduo para conhecer
eventuais doenças genéticas, propensões genéticas e demais questões ligadas à
hereditariedade e DNA.
Por outro lado, o doador de material biológico para reprodução assistida, em regra,
somente o faz por não ser possível qualquer ligação sua com o ser humano gerado a partir
dessa técnica. Quando falamos em inexistência de ligação, conforme já mencionado, falamos
tanto de ligação emocional como de direitos hereditários ou alimentares. Outro ponto a ser
ressaltado, é que o sigilo do doador visa assegurar que continuem existindo doadores, uma
vez que sem estes não poderá se concretizar a reprodução heteróloga, tendo em vista que esta
93
se faz necessária em razão da impossibilidade dos pais inférteis ou estéreis doarem material
genético.
Assim, temos um conflito entre direitos fundamentais relacionados à personalidade
do indivíduo, tanto do ser humano gerado pela reprodução assistida quanto do doador, pois
“estar-se-ia efetivamente diante de um conflito de normas, quando se garante o direito ao filho
de saber sua origem genética e, ao mesmo tempo, ao doador do material sexual ao sigilo de
sua identidade” (FERRAZ, 2011, p. 146).
Apesar de aparentemente iguais na importância proporcional de sopesamento, não se
pode negar o direito de personalidade do nascido da reprodução assistida heteróloga, que está
amparado pelo macroprincípio da dignidade humana, por argumentos de sigilo meramente
patrimonialistas, que amesquinham a dignidade de um ser que é o mais frágil de toda essa
relação, o nascido da reprodução assistida heteróloga.
Para tanto, deve-se ter especial atenção ao definir qual direito prevalece na relação
existente, através da ponderação, para essa reflexão acerca dos conflitos de direitos
fundamentais, frisa-se que:
Quando se está a tratar dos direitos fundamentais afetos à personalidade
individual e da possibilidade de coexistência de liberdades subjetivas num
mesmo espaço de concretização jurídica, cabe compreender que a missão do
intérprete -e do julgador, em última análise- é aplicar as diretrizes postas no
ordenamento jurídico, visando uma composição de interesses que permita
aos indivíduos conviver, com certa pacificação, em sociedade. Não se trata
de uma tranquilidade absoluta de convivência, pois existem fatores de
interferência nesse processo, mas da possibilidade de resolver conflitos
concretos pela apresentação de razões seguras de fundamentação ao
reconhecimento de precedência de um direito fundamental a outro.
(CACHAPUZ, 2006, p. 149-150)
No Brasil, como já mencionado alhures, temos apenas a Resolução n. 2.121/2015, do
Conselho Federal de Medicina, que garante ao doador o seu anonimato, ressalvando casos de
doenças genéticas. Todavia,
[...] hoje, existe uma corrente mundial que considera o anonimato do doador
uma posição retrógrada que privilegia a construção da filiação sobre
relíquias jurídicas, a exclusivamente biológica, própria de outros tempos,
quando o legislador utilizava critérios restritivos sobre a matéria. (FERRAZ,
2011, p. 151)
Nesse norte, a fim de buscar resolver o impasse pelos conflitos de princípios ora
apresentados, Robert Alexy apresenta em sua Teoria dos Direitos Fundamentais que:
94
Se dois princípios colidem - o que ocorre, quando algo é proibido de acordo
com um princípio e, de acordo com o outro, permitido -, um dos princípios
terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva
ser considerado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula
de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem
precedência em face do outro sob determinadas condições. (ALEXY, 2008,
p. 92)
Seguindo essa corrente, em recentíssima decisão, o Superior Tribunal de Justiça da
Alemanha, Bundesgerichtshof (BGH), em 28 de janeiro de 2015, reconheceu a
possibilidade do indivíduo concebido por reprodução heteróloga conhecer a identidade
civil (não apenas genética) de seu genitor:
Em decisão proferida no dia 28 de janeiro, o 12a Senado Cível do
conceituado tribunal, nos autos de processo oriundo do Tribunal de
Hannover, reconheceu, em tese, a possibilidade do indivíduo concebido por
reprodução heteróloga, na qual o material genético não provém – total ou
parcialmente – dos pais, mas de terceiro doador anônimo, conhecer a
identidade civil (não apenas genética) de seu genitor.
[...] O Tribunal de Hannover aplicou por analogia a regra do § 63 I da
Personenstandsgesetz (PStG), a lei sobre a origem pessoal, válida para os
casos de adoção. Os menores, então, recorreram ao BGH por meio da
Revision e o tribunal afirmou que o direito ao conhecimento da própria
origem consiste em um dos direitos fundamentais da personalidade,
decorrência imediata da dignidade humana e, portanto, protegido pelos arts.
1º e 2º da Lei Fundamental (Grundgesetz). E esse direito, por vezes, mostrase essencial ao pleno desenvolvimento da personalidade. (FRITZ, 2015)
A decisão do Superior Tribunal de Justiça Alemão é sem dúvida um divisor de águas
sobre o tema, embora existam posicionamentos contrários, verifica-se que o Tribunal Alemão
deixou claro que esse direito não é absoluto, visto que existem vários interesses em questão,
motivo pelo qual a decisão deverá sempre pautar-se pelo caso concreto a ser analisado e
ponderado. Ademais, segundo a decisão em comento, o interesse legítimo referente ao direito
ao anonimato do doador de sêmen decorre do direito à autodeterminação que “na expressão
do tribunal, direito à autodeterminação informativa [...] – também de status constitucional,
que lhe confere o poder de planejar e regular sua vida particular, o que inclui evidentemente o
planejamento familiar” (FRITZ, 2015).
De outra banda, resta evidente, inclusive pela decisão alemã, que a quebra ou não do
sigilo do doador dependerá do caso concreto, ou seja, da real necessidade demonstrada pelo
requerente para conhecer sua identidade genética, não podendo o requerimento ser baseado
unicamente por interesses patrimoniais, o que se repele eminentemente, visto que a presente
95
pesquisa busca equiparar o direito à identidade genética como um direito da personalidade,
sem almejar qualquer relação sucessória e patrimonial.
Assim, seguindo os ensinamentos de Alexy, na celeuma em questão não é possível
introduzir cláusula de exceção, tendo em vista que deverá ser analisado o caso concreto, a fim
de se apontar qual princípio se sobrepõe ao outro naquela situação singular. Nota-se, que se
está diante de uma colisão entre princípios, que, segundo o próprio Robert Alexy, deve ser
assim resolvido: “O ‘conflito’ deve, ao contrário, ser resolvido ‘por meio de um sopesamento
entre os interesses conflitantes’. O objetivo desse sopesamento é definir qual dos interessesque abstratamente estão no mesmo nível- tem maior peso no caso concreto”. (ALEXY, 2008,
p. 95)
Como visto, em razão de não haver hierarquia entre princípios constitucionais, a
colisão entre eles dever ser solucionada através da prevalência de um sobre o outro, conforme
o peso que cada um tem no caso posto em lide. Nesse lastro, refere Ferraz sobre o
entendimento de Alexy:
Na concepção de Alexy, a ponderação observará uma lei de colisão e qual o
princípio que será menos afetado quando não aplicado em detrimento de
outro, em cada caso concreto, levando a necessidade de observar o princípio
da universalidade, vedando que se outorgue tratamento diferente àqueles que
se encontram em situações idênticas nos aspectos relevantes. (FERRAZ,
2011, p. 154)
Da mesma forma, a peculiaridade da colisão entre princípios deve ser destacada, uma
vez que o princípio possui caráter prima facie, pois não contém um mandamento definitivo,
tendo em vista que princípios representam razões que podem ser afastadas por razões opostas,
isso porque, como já dito alhures, os princípios exigem a realização na maior extensão
possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas apresentadas. Com efeito, “a forma pela
qual deve ser determinada a relação entre a razão e a contra razão não é algo determinado pelo
próprio princípio”, pois os princípios “não dispõem da extensão de seu conteúdo em face dos
princípios colidentes e das possibilidades fáticas”. (ALEXY, 2008, p. 104)
Assim, verifica-se que, num primeiro momento, está resguardado o direito do doador
ao sigilo de sua identidade, em detrimento do direito da pessoa advinda dessas técnicas de
reprodução em conhecer sua origem genética, uma vez que não há regulamentação no Brasil
quanto a isso, ferindo o direito fundamental à informação e à personalidade do nascido dessas
técnicas de reprodução artificial.
96
Nesse ponto, a pesquisa nos traz a busca pela ampliação/relativização da quebra de
sigilo, considerando que a proteção do nascido dessas técnicas é o elo mais fraco dessa
equação, motivo pelo qual deve ter prioridade. Embora as normas éticas existentes no Brasil
digam o contrário, o direito comparado já deu o primeiro passo nesse sentido, como se viu na
decisão do Superior Tribunal de Justiça Alemão alhures tratado. O Brasil também pode dar
esse passo, relativizando os dispositivos éticos legais existentes, inclusive positivando-os,
visto que a constitucionalização dos Direitos Fundamentais Civis nos dá essa possibilidade de
modificação dos dispositivos legais ou uma ampliação na sua hermenêutica.
Portanto, conclui-se que o sigilo do doador não é um direito absoluto, visto que,
atualmente, no Brasil, em caso de problemas de saúde, a identidade genética é revelada,
mesmo que apenas para os médicos envolvidos, abrindo-se a possibilidade, através de
pesquisas como essa, da aplicação da relativização das normas, a fim de garantir o direito
fundamental de personalidade do nascido da reprodução artificial heteróloga em conhecer sua
identidade genética, desde que demonstrado no caso concreto a real necessidade do requerente
em conhecer sua identidade genética, não podendo o requerimento ser baseado unicamente
por interesses patrimoniais, o que se repele eminentemente, visto que a presente pesquisa
busca equiparar o direito à identidade genética como um direito da personalidade, sem
almejar qualquer relação sucessória e patrimonial, o que, via de consequência, não traria
nenhum óbice ao doador.
97
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho desenvolvido desfecha repercussões imediatas no Direito Civil, relativas,
principalmente, à filiação, suscitando questões que refletem a grave e imensa dimensão da
Reprodução Humana Assistida, uma matéria longe de ser totalmente regulada pelo nosso
ordenamento jurídico, porém, que diz respeito tão diretamente à vida do homem, à sua
essência, seu começo e seu fim.
Nesse sentido é que a presente dissertação buscou identificar, através da dignidade
humana, consagrada em nossa Constituição Federal como direito fundamental, o direito à
identidade genética como um direito de personalidade, previsto e protegido pelas normas
constitucionais.
Isso porque, a temática principal aqui analisada é a de vislumbrar o direito à
identidade genética como alargamento dos direitos de personalidade, verificando-se, pois, que
é a tutela da personalidade que impõe o respeito a nossa própria intimidade, nos tornando
seres individuais, seres diferentes entre si, com características próprias e direitos únicos a
serem tutelados para cada um.
O tema pesquisado está estritamente relacionada com a linha de pesquisa do
programa de mestrado pois a linha é: Direitos Fundamentais Civis, com área de concentração
em Dimensões Materiais e Eficaciais dos Direitos Fundamentais, assim apropriado ao
propósito estudado, diante da relevância da pesquisa para a sociedade contemporânea, uma
vez que busca identificar respostas que possam aproximar o direito garantido
constitucionalmente à efetividade destes mesmos direitos, passando do campo de discussão
para um axioma prático, garantindo segurança aos nascidos na reprodução humana assistida.
O trabalho identifica alguns problemas e algumas consequências que existem quando
se analisa o direito à identidade genética na reprodução assistida heteróloga, visto que o
ordenamento ético-jurídico vigente protege o sigilo do doador, o que, em tese, impediria o
direito ao conhecimento da origem genética, sob pena de ir de encontro ao direito posto.
Ocorre que, embora haja essa proteção, este é justamente o papel do pesquisador,
questionar, buscar e avançar quando se identifica uma fragilidade. Ora, não se pode negar um
direito de personalidade, que está amparado pelo macroprincípio da dignidade humana, por
98
argumentos de sigilo meramente patrimonialistas, que amesquinham a dignidade de um ser
que é o mais frágil de toda essa relação, o nascido da reprodução assistida heteróloga.
Partindo-se da premissa que é necessário dar o máximo de concretude aos direitos, o
problema da pesquisa é se, sob a ótica dos direitos fundamentais civis, há possibilidade de
garantir ao indivíduo, advindo de reprodução artificial heteróloga, o seu direito à identidade
genética, isso porque, como já dito acima, encontra-se o nascido dessas técnicas de
reprodução totalmente desamparado em nosso ordenamento jurídico.
Dessa forma, os objetivos específicos da presente dissertação foram analisar os
reflexos da constitucionalização do direito civil nos direitos de personalidade. Definir os
aspectos e implicações da Reprodução Humana Assistida no direito de família. Determinar o
direito à identidade genética do nascido da reprodução artificial heteróloga.
Para responder ao problema e aos objetivos desta dissertação, no primeiro capítulo
foi tratado sobre a constitucionalização do direito civil no Brasil, os direitos da personalidade
e a efetividade da dignidade pessoal, refletindo-se sobre as garantias constitucionais do direito
de personalidade.
Tangente a isso, é inegável que há no Brasil um processo de constitucionalização do
direito civil, que vem crescendo progressivamente, inclusive, pelos tribunais pátrios, uma vez
que a Constituição Federal trouxe um impacto sobre o direito privado, que, de forma alguma,
macula os preceitos civilistas, muito pelo contrário, potencializa e moderniza o direito civil,
que tanto tem sofrido modificações em razão da evolução social e tecnológica do mundo
globalizado, demonstrando a importância de se tutelarem direitos inerentes às pessoas,
despatrimonializando-se as relações civis, para ver a dignidade humana irradiando seus
efeitos nas relações pessoais e jurídicas.
Em face desse novo contexto, os direitos de personalidade passaram a buscar uma
maior efetivação da dignidade pessoal, uma vez que a dignidade humana, como princípio
basilar serve como parâmetro de um mínimo de dignidade para todas as pessoas. Ocorre que a
dignidade pessoal é intrínseca a cada pessoa, e não deve ser interpretada de forma coletiva,
uma vez que atinge apenas a um ser, em sua individualidade, seus sentimentos e aspirações,
que, logicamente, mudam de pessoa para pessoa.
No segundo capítulo, estuda-se sobre a finalidade e as diferentes técnicas de
reprodução humana artificial, assim como as formas previstas no ordenamento jurídico
brasileiro, seus aspectos bioéticos e as implicações no direito de família.
Verificou-se, assim, que as técnicas de reprodução artificial vêm sendo cada vez
mais utilizadas por pessoas que possuem problemas de fertilidade, sendo que essas situações
99
desencadeiam debates éticos, pois não havendo legislação a respeito, o limite entre o direito e
a moral são muito tênues.
Tudo isso repercutiu na entidade familiar, que outrora primava eminentemente pelos
laços biológicos, e hoje é composta por laços de amor, reconhecendo-se e dando-se maior
importância à socioafetividade do que aos laços sanguíneos em si, visto que o legislador
moderno obrigou-se a evoluir com a sociedade e com as transformações científicas que
atingiram o direito de família. Todavia, a sociafetividade nesses casos, não supre o direito do
nascido dessas técnicas em conhecer a sua origem genética.
Nesse norte, destaca-se que tanto o direito à identidade e o acesso à informação,
quanto o direito de privacidade estão pautados no princípio da dignidade da pessoa humana e
buscam um máximo de respeito aos direitos de personalidade do indivíduo, seja ele doador ou
nascido da reprodução assistida. No entanto, há momentos em que haverá conflitos entre
esses direitos, de maneira que será necessário um estudo detalhado do caso concreto, a fim de
identificar qual deles deve prevalecer, utilizando-se para tanto da ponderação entre princípios
fundamentais, tema tratado no terceiro capítulo desse trabalho.
No terceiro capítulo, então, verifica-se que o direito à identidade genética baseia-se
na dignidade da pessoa humana, tendo em vista que a pessoa tem direito a ter conhecimento
de onde surgiu e quem lhe gerou a vida. Tal direito não se baseia somente em questões
emocionais ou psicológicas, mas também médicas, uma vez que conhecer a identidade
genética dá base ao indivíduo para conhecer eventuais doenças genéticas, propensões
genéticas e demais questões ligadas à hereditariedade e DNA.
Por outro lado, o doador de material biológico para reprodução assistida somente
doa, em regra, pela segurança do anonimato, que lhe garante, através de um contrato com a
clínica de fertilização, que não terá nenhuma responsabilidade pelo ser gerado com seu
material genético. Assim, não haverá ligação emocional, nem de direitos hereditários ou
alimentares.
É nesse momento que nasce um conflito entre direitos fundamentais relacionados à
personalidade do indivíduo, tanto do ser humano gerado pela reprodução assistida quanto do
doador, posto que um quer saber sua origem genética (e nada mais) e o outro quer o sigilo de
sua identidade.
Nesse ponto, a pesquisa nos traz a busca pela ampliação/relativização da quebra de
sigilo, considerando que a proteção do nascido dessas técnicas é o elo mais fraco dessa
equação, motivo pelo qual deve ter prioridade. Embora as normas éticas existentes no Brasil
digam o contrário, o direito comparado já deu o primeiro passo nesse sentido, como se viu na
100
decisão do Superior Tribunal de Justiça Alemão alhures tratado. O Brasil também pode dar
esse
passo,
relativizando
os
dispositivos
éticos
legais
existentes,
visto
que
a
constitucionalização dos Direitos Fundamentais Civis nos dá essa possibilidade de
modificação dos dispositivos legais ou uma ampliação na sua hermenêutica.
Portanto, conclui-se que o sigilo do doador não é um direito absoluto, visto que,
atualmente, no Brasil, em caso de problemas de saúde, a identidade genética é revelada,
mesmo que apenas para os médicos envolvidos, abrindo-se a possibilidade, através de
pesquisas como essa, da aplicação da relativização das normas, a fim de garantir o direito
fundamental de personalidade do nascido da reprodução artificial heteróloga em conhecer sua
identidade genética, desde que demonstrado no caso concreto a real necessidade do requerente
em conhecer sua identidade genética, não podendo o requerimento ser baseado unicamente
por interesses patrimoniais, o que se repele eminentemente, visto que a presente pesquisa
busca equiparar o direito à identidade genética como um direito da personalidade, sem
almejar qualquer relação sucessória e patrimonial, o que, via de consequência, não traria
nenhum óbice ao doador, somente benefícios ao nascido dessas técnicas reprodutivas.
Destarte, a importância do presente trabalho encontra-se na possibilidade de
contribuir com o reconhecimento do direito à identidade genética do indivíduo advindo da
reprodução artificial heteróloga, buscando determinar a abrangência desse direito nas relações
familiares, assim como garantir a tutela e proteção deste direito fundamental.
101
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109
ANEXO A – Resolução n. 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina
(Publicada no D.O.U. de 24 de setembro de 2015, Seção I, p. 117)
Adota as normas éticas para a utilização das
técnicas de reprodução assistida – sempre em
defesa do aperfeiçoamento das práticas e da
observância aos princípios éticos e bioéticos
que ajudarão a trazer maior segurança e
eficácia a tratamentos e procedimentos
médicos – tornando-se o dispositivo
deontológico a ser seguido pelos médicos
brasileiros e revogando a Resolução CFM nº
2.013/13, publicada no D.O.U. de 9 de maio
de 2013, Seção I, p. 119.
O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, no uso das atribuições conferidas pela Lei nº
3.268, de 30 de setembro de 1957, alterada pela Lei nº 11.000, de 15 de dezembro de 2004,
regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958, e pelo Decreto nº 6.821, de 14
de abril de 2009, e
CONSIDERANDO a infertilidade humana como um problema de saúde, com implicações
médicas e psicológicas, e a legitimidade do anseio de superá-la;
CONSIDERANDO que o avanço do conhecimento científico já permite solucionar vários
casos de problemas de reprodução humana;
CONSIDERANDO que o pleno do Supremo Tribunal Federal, na sessão de julgamento de 5
de maio de 2011, reconheceu e qualificou como entidade familiar a união estável homoafetiva
(ADI 4.277 e ADPF 132);
CONSIDERANDO a necessidade de harmonizar o uso dessas técnicas com os princípios da
ética médica;
110
CONSIDERANDO, finalmente, o decidido na sessão plenária do Conselho Federal de
Medicina realizada em de 16 de julho de 2015,
RESOLVE:
Art. 1º Adotar as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida, anexas
à presente resolução, como dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos.
Art. 2º Revogar a Resolução CFM nº 2.013/2013, publicada no D.O.U. de 9 de maio de 2013,
Seção I, p. 119 e demais disposições em contrário.
Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.
NORMAS ÉTICAS PARA A UTILIZAÇÃO DAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO
ASSISTIDA
I - PRINCÍPIOS GERAIS
1 - As técnicas de reprodução assistida (RA) têm o papel de auxiliar na resolução dos
problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procriação.
2 - As técnicas de RA podem ser utilizadas desde que exista probabilidade de sucesso e não se
incorra em risco grave de saúde para o(a) paciente ou o possível descendente, sendo a idade
máxima das candidatas à gestação de RA de 50 anos.
111
3 - As exceções ao limite de 50 anos para participação do procedimento serão determinadas,
com fundamentos técnicos e científicos, pelo médico responsável e após esclarecimento
quanto aos riscos envolvidos.
4 - O consentimento livre e esclarecido informado será obrigatório para todos os pacientes
submetidos às técnicas de reprodução assistida. Os aspectos médicos envolvendo a totalidade
das circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA serão detalhadamente expostos, bem
como os resultados obtidos naquela unidade de tratamento com a técnica proposta. As
informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico e ético. O documento
de consentimento livre e esclarecido informado será elaborado em formulário especial e estará
completo com a concordância, por escrito, obtida a partir de discussão bilateral entre as
pessoas envolvidas nas técnicas de reprodução assistida.
5 - As técnicas de RA não podem ser aplicadas com a intenção de selecionar o sexo (presença
ou ausência de cromossomo Y) ou qualquer outra característica biológica do futuro filho,
exceto quando se trate de evitar doenças do filho que venha a nascer.
6 - É proibida a fecundação de oócitos humanos com qualquer outra finalidade que não a
procriação humana.
7 - O número máximo de oócitos e embriões a serem transferidos para a receptora não pode
ser superior a quatro. Quanto ao número de embriões a serem transferidos, fazem-se as
seguintes determinações de acordo com a idade: a) mulheres até 35 anos: até 2 embriões; b)
mulheres entre 36 e 39 anos: até 3 embriões; c) mulheres com 40 anos ou mais: até 4
embriões; d) nas situações de doação de óvulos e embriões, considera-se a idade da doadora
no momento da coleta dos óvulos.
8 - Em caso de gravidez múltipla, decorrente do uso de técnicas de RA, é proibida a utilização
de procedimentos que visem a redução embrionária.
112
II - PACIENTES DAS TÉCNICAS DE RA
1 - Todas as pessoas capazes, que tenham solicitado o procedimento e cuja indicação não se
afaste dos limites desta resolução, podem ser receptoras das técnicas de RA desde que os
participantes estejam de inteiro acordo e devidamente esclarecidos, conforme legislação
vigente.
2 - É permitido o uso das técnicas de RA para relacionamentos homoafetivos e pessoas
solteiras, respeitado o direito a objeção de consciência por parte do médico.
3 - É permitida a gestação compartilhada em união homoafetiva feminina em que não exista
infertilidade.
III - REFERENTE ÀS CLÍNICAS, CENTROS OU SERVIÇOS QUE APLICAM
TÉCNICAS DE RA
As clínicas, centros ou serviços que aplicam técnicas de RA são responsáveis pelo controle de
doenças infectocontagiosas, pela coleta, pelo manuseio, pela conservação, pela distribuição,
pela transferência e pelo descarte de material biológico humano para o(a) paciente de técnicas
de RA. Devem apresentar como requisitos mínimos:
1- Um diretor técnico – obrigatoriamente, um médico registrado no Conselho Regional de
Medicina de sua jurisdição – com registro de especialista em áreas de interface com a RA, que
será responsável por todos os procedimentos médicos e laboratoriais executados;
2- Um registro permanente (obtido por meio de informações observadas ou relatadas por
fonte competente) das gestações, dos nascimentos e das malformações de fetos ou recém-
113
nascidos, provenientes das diferentes técnicas de RA aplicadas na unidade em apreço, bem
como dos procedimentos laboratoriais na manipulação de gametas e embriões;
3- Um registro permanente das provas diagnósticas a que é submetido o(a) paciente, com a
finalidade precípua de evitar a transmissão de doenças;
4- Os registros deverão estar disponíveis para fiscalização dos Conselhos Regionais de
Medicina.
IV - DOAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES
1- A doação não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.
2- Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa.
3- A idade limite para a doação de gametas é de 35 anos para a mulher e de 50 anos para o
homem.
4- Será mantido, obrigatoriamente, o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e
embriões, bem como dos receptores. Em situações especiais, informações sobre os doadores,
por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a
identidade civil do(a) doador(a).
5- As clínicas, centros ou serviços onde é feita a doação devem manter, de forma permanente,
um registro com dados clínicos de caráter geral, características fenotípicas e uma amostra de
material celular dos doadores, de acordo com legislação vigente.
6- Na região de localização da unidade, o registro dos nascimentos evitará que um(a)
doador(a) tenha produzido mais de duas gestações de crianças de sexos diferentes em uma
área de um milhão de habitantes.
114
7- A escolha dos doadores é de responsabilidade do médico assistente. Dentro do possível,
deverá garantir que o(a) doador(a) tenha a maior semelhança fenotípica e a máxima
possibilidade de compatibilidade com a receptora.
8- Não será permitido aos médicos, funcionários e demais integrantes da equipe
multidisciplinar das clínicas, unidades ou serviços, participarem como doadores nos
programas de RA.
9- É permitida a doação voluntária de gametas masculinos, bem como a situação identificada
como doação compartilhada de oócitos em RA, em que doadora e receptora, participando
como portadoras de problemas de reprodução, compartilham tanto do material biológico
quanto dos custos financeiros que envolvem o procedimento de RA. A doadora tem
preferência sobre o material biológico que será produzido.
V - CRIOPRESERVAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES
1- As clínicas, centros ou serviços podem criopreservar espermatozoides, óvulos, embriões e
tecidos gonádicos.
2- O número total de embriões gerados em laboratório será comunicado aos pacientes para
que decidam quantos embriões serão transferidos a fresco. Os excedentes, viáveis, devem ser
criopreservados.
3- No momento da criopreservação, os pacientes devem expressar sua vontade, por escrito,
quanto ao destino a ser dado aos embriões criopreservados em caso de divórcio, doenças
graves ou falecimento, de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los.
4- Os embriões criopreservados com mais de cinco anos poderão ser descartados se esta for a
vontade dos pacientes. A utilização dos embriões em pesquisas de células-tronco não é
obrigatória, conforme previsto na Lei de Biossegurança.
115
VI - DIAGNÓSTICO GENÉTICO PRÉ-IMPLANTAÇÃO DE EMBRIÕES
1- As técnicas de RA podem ser utilizadas aplicadas à seleção de embriões submetidos a
diagnóstico de alterações genéticas causadoras de doenças – podendo nesses casos serem
doados para pesquisa ou descartados.
2- As técnicas de RA também podem ser utilizadas para tipagem do sistema HLA do embrião,
no intuito de selecionar embriões HLA-compatíveis com algum(a) filho(a) do casal já afetado
pela doença e cujo tratamento efetivo seja o transplante de células-tronco, de acordo com a
legislação vigente.
3- O tempo máximo de desenvolvimento de embriões in vitro será de 14 dias.
VII - SOBRE A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO (DOAÇÃO TEMPORÁRIA DO
ÚTERO)
As clínicas, centros ou serviços de reprodução assistida podem usar técnicas de RA para
criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema
médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética ou em caso de união
homoafetiva.
1- As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família de um dos parceiros em
parentesco consanguíneo até o quarto grau (primeiro grau – mãe; segundo grau – irmã/avó;
terceiro grau – tia; quarto grau – prima). Demais casos estão sujeitos à autorização do
Conselho Regional de Medicina.
2- A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.
116
3- Nas clínicas de reprodução assistida, os seguintes documentos e observações deverão
constar no prontuário do paciente:
3.1. Termo de consentimento livre e esclarecido informado assinado pelos pacientes e pela
doadora temporária do útero, contemplando aspectos biopsicossociais e riscos envolvidos no
ciclo gravídico-puerperal, bem como aspectos legais da filiação;
3.2. Relatório médico com o perfil psicológico, atestando adequação clínica e emocional de
todos os envolvidos;
3.3. Termo de Compromisso entre os pacientes e a doadora temporária do útero (que receberá
o embrião em seu útero), estabelecendo claramente a questão da filiação da criança;
3.4. Garantia, por parte dos pacientes contratantes de serviços de RA, de tratamento e
acompanhamento médico, inclusive por equipes multidisciplinares, se necessário, à mãe que
doará temporariamente o útero, até o puerpério;
3.5. Garantia do registro civil da criança pelos pacientes (pais genéticos), devendo esta
documentação ser providenciada durante a gravidez;
3.6. Aprovação do cônjuge ou companheiro, apresentada por escrito, se a doadora temporária
do útero for casada ou viver em união estável.
VIII - REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST-MORTEM
É permitida a reprodução assistida post-mortem desde que haja autorização prévia específica
do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação
vigente.
IX - DISPOSIÇÃO FINAL
Casos de exceção, não previstos nesta resolução, dependerão da autorização do Conselho
Federal de Medicina.
117
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS DA RESOLUÇÃO CFM Nº 2.121/2015
No Brasil, até a presente data, não há legislação específica a respeito da reprodução assistida
(RA). Tramitam no Congresso Nacional, há anos, diversos projetos a respeito do assunto, mas
nenhum deles chegou a termo.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) age sempre em defesa do aperfeiçoamento das
práticas e da obediência aos princípios éticos e bioéticos, que ajudarão a trazer maior
segurança e eficácia a tratamentos e procedimentos médicos.
Manter a limitação da idade das candidatas à gestação de RA até 50 anos foi primordial, com
o objetivo de preservar a saúde da mulher, que poderá ter uma série de complicações no
período gravídico, de acordo com a medicina baseada em evidências.
Os aspectos médicos envolvendo a totalidade das circunstâncias da aplicação da reprodução
assistida foram detalhadamente expostos nesta revisão realizada pela Comissão de Revisão da
Resolução CFM nº 2.013/13, em conjunto com representantes da Sociedade Brasileira de
Reprodução Assistida, da Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia e
da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana e Sociedade Brasileira de Genética Médica,
sob a coordenação do conselheiro federal José Hiran da Silva Gallo.
Esta é a visão da comissão formada que trazemos à consideração do plenário do Conselho
Federal de Medicina.
Brasília-DF, 16 de julho de 2015.
JOSÉ HIRAN DA SILVA GALLO
Coordenador da Comissão de Revisão da Resolução CFM nº 2.013/13 – Reprodução
Assistida
118
ANEXO B – Resolução n. 2.013/2013 do Conselho Federal de Medicina
(Publicada no D.O.U. de 09 de maio de 2013, Seção I, p. 119)
Adota as normas éticas para a utilização das
técnicas de reprodução assistida, anexas à
presente
resolução,
como
dispositivo
deontológico a ser seguido pelos médicos e
revoga a Resolução CFM nº 1.957/10.
O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, no uso das atribuições conferidas pela Lei nº
3.268, de 30 de setembro de 1957, alterada pela Lei nº 11.000, de 15 de dezembro de 2004,
regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958, e Decreto n° 6.821, de 14 de
abril de 2009, e
CONSIDERANDO a importância da infertilidade humana como um problema de saúde, com
implicações médicas e psicológicas, e a legitimidade do anseio de superá-la;
CONSIDERANDO que o avanço do conhecimento científico já permite solucionar vários
casos de problemas de reprodução humana;
CONSIDERANDO que o pleno do Supremo Tribunal Federal, na sessão de julgamento de
5.5.2011, reconheceu e qualificou como entidade familiar a união estável homoafetiva (ADI
4.277 e ADPF 132);
CONSIDERANDO a necessidade de harmonizar o uso destas técnicas com os princípios da
ética médica;
119
CONSIDERANDO, finalmente, o decidido na sessão plenária do Conselho Federal de
Medicina realizada em 16 de abril de 2013,
RESOLVE:
Art. 1º Adotar as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida, anexas
à presente resolução, como dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos.
Art. 2º Revoga-se a Resolução CFM nº 1.957/10, publicada no D.O.U. de 6 de janeiro de
2011, Seção I, p. 79, e demais disposições em contrário.
Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 16 de abril de 2013.
ROBERTO LUIZ D’AVILA HENRIQUE BATISTA E SILVA
Presidente Secretário-geral
NORMAS ÉTICAS PARA A UTILIZAÇÃO DAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO
ASSISTIDA
I - PRINCÍPIOS GERAIS
1 - As técnicas de reprodução assistida (RA) têm o papel de auxiliar a resolução dos
problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procriação.
120
2 - As técnicas de RA podem ser utilizadas desde que exista probabilidade efetiva de sucesso
e não se incorra em risco grave de saúde para a paciente ou o possível descendente, e a idade
máxima das candidatas à gestação de RA é de 50 anos.
3 - O consentimento informado será obrigatório para todos os pacientes submetidos às
técnicas de reprodução assistida. Os aspectos médicos envolvendo a totalidade das
circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA serão detalhadamente expostos, bem como
os resultados obtidos naquela unidade de tratamento com a técnica proposta. As informações
devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico, ético e econômico. O documento
de consentimento informado será elaborado em formulário especial e estará completo com a
concordância, por escrito, das pessoas a serem submetidas às técnicas de reprodução assistida.
4 - As técnicas de RA não podem ser aplicadas com a intenção de selecionar o sexo (presença
ou ausência de cromossomo Y) ou qualquer outra característica biológica do futuro filho,
exceto quando se trate de evitar doenças ligadas ao sexo do filho que venha a nascer.
5 - É proibida a fecundação de oócitos humanos, com qualquer outra finalidade que não a
procriação humana.
6 - O número máximo de oócitos e embriões a serem transferidos para a receptora não pode
ser superior a quatro. Quanto ao número de embriões a serem transferidos faz-se as seguintes
recomendações: a) mulheres com até 35 anos: até 2 embriões; b) mulheres entre 36 e 39 anos:
até 3 embriões; c) mulheres entre 40 e 50 anos: até 4 embriões; d) nas situações de doação de
óvulos e embriões, considera-se a idade da doadora no momento da coleta dos óvulos.
121
7 - Em caso de gravidez múltipla, decorrente do uso de técnicas de RA, é proibida a utilização
de procedimentos que visem a redução embrionária.
II - PACIENTES DAS TÉCNICAS DE RA
1 - Todas as pessoas capazes, que tenham solicitado o procedimento e cuja indicação não se
afaste dos limites desta resolução, podem ser receptoras das técnicas de RA desde que os
participantes estejam de inteiro acordo e devidamente esclarecidos sobre a mesma, de acordo
com a legislação vigente.
2 - É permitido o uso das técnicas de RA para relacionamentos homoafetivos e pessoas
solteiras, respeitado o direito da objeção de consciência do médico.
III - REFERENTE ÀS CLÍNICAS, CENTROS OU SERVIÇOS QUE APLICAM
TÉCNICAS DE RA
As clínicas, centros ou serviços que aplicam técnicas de RA são responsáveis pelo controle de
doenças infectocontagiosas, coleta, manuseio, conservação, distribuição, transferência e
descarte de material biológico humano para a paciente de técnicas de RA, devendo apresentar
como requisitos mínimos:
1 - um diretor técnico responsável por todos os procedimentos médicos e laboratoriais
executados, que será, obrigatoriamente, um médico registrado no Conselho Regional de
Medicina de sua jurisdição;
122
2 - um registro permanente (obtido por meio de informações observadas ou relatadas por
fonte competente) das gestações, nascimentos e malformações de fetos ou recém-nascidos,
provenientes das diferentes técnicas de RA aplicadas na unidade em apreço, bem como dos
procedimentos laboratoriais na manipulação de gametas e embriões;
3 - um registro permanente das provas diagnósticas a que é submetido o material biológico
humano que será transferido aos pacientes das técnicas de RA, com a finalidade precípua de
evitar a transmissão de doenças;
4 - Os registros deverão estar disponíveis para fiscalização dos Conselhos Regionais de
Medicina.
IV - DOAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES
1 - A doação nunca terá caráter lucrativo ou comercial.
2 - Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa.
3 - A idade limite para a doação de gametas é de 35 anos para a mulher e 50 anos para o
homem.
4 - Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e
embriões, bem como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores,
123
por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a
identidade civil do doador.
5 - As clínicas, centros ou serviços que empregam a doação devem manter, de forma
permanente, um registro de dados clínicos de caráter geral, características fenotípicas e uma
amostra de material celular dos doadores, de acordo com a legislação vigente.
6 - Na região de localização da unidade, o registro dos nascimentos evitará que um(a)
doador(a) tenha produzido mais que duas gestações de crianças de sexos diferentes, numa
área de um milhão de habitantes.
7 - A escolha dos doadores é de responsabilidade da unidade. Dentro do possível, deverá
garantir que o doador tenha a maior semelhança fenotípica e imunológica e a máxima
possibilidade de compatibilidade com a receptora.
8 - Não será permitido ao médico responsável pelas clínicas, unidades ou serviços, nem aos
integrantes da equipe multidisciplinar que nelas prestam serviços, participarem como
doadores nos programas de RA.
9 - É permitida a doação voluntária de gametas, bem como a situação identificada como
doação compartilhada de oócitos em RA, onde doadora e receptora, participando como
portadoras de problemas de reprodução, compartilham tanto do material biológico quanto dos
custos financeiros que envolvem o procedimento de RA. A doadora tem preferência sobre o
material biológico que será produzido.
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V - CRIOPRESERVAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES
1 - As clínicas, centros ou serviços podem criopreservar espermatozoides, óvulos e embriões
e tecidos gonádicos.
2 - O número total de embriões produzidos em laboratório será comunicado aos pacientes,
para que decidam quantos embriões serão transferidos a fresco, devendo os excedentes,
viáveis, serem criopreservados.
3 - No momento da criopreservação os pacientes devem expressar sua vontade, por escrito,
quanto ao destino que será dado aos embriões criopreservados, quer em caso de divórcio,
doenças graves ou falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los.
4 - Os embriões criopreservados com mais de 5 (cinco) anos poderão ser descartados se esta
for a vontade dos pacientes, e não apenas para pesquisas de células-tronco, conforme previsto
na Lei de Biossegurança.
VI - DIAGNÓSTICO GENÉTICO PRÉ-IMPLANTAÇÃO DE EMBRIÕES
1 - As técnicas de RA podem ser utilizadas acopladas à seleção de embriões submetidos a
diagnóstico de alterações genéticas causadoras de doenças.
2 - As técnicas de RA também podem ser utilizadas para tipagem do sistema HLA do
embrião, com o intuito de seleção de embriões HLA-compatíveis com algum filho(a) do casal
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já afetado por doença, doença esta que tenha como modalidade de tratamento efetivo o
transplante de células-tronco ou de órgãos.
3 - O tempo máximo de desenvolvimento de embriões "in vitro" será de 14 dias.
VII - SOBRE A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO (DOAÇÃO TEMPORÁRIA DO
ÚTERO)
As clínicas, centros ou serviços de reprodução humana podem usar técnicas de RA para
criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema
médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética ou em caso de união
homoafetiva.
1 - As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família de um dos parceiros num
parentesco consanguíneo até o quarto grau (primeiro grau – mãe; segundo grau – irmã/avó;
terceiro grau – tia; quarto grau – prima), em todos os casos respeitada a idade limite de até 50
anos.
2 - A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.
3 - Nas clínicas de reprodução os seguintes documentos e observações deverão constar no
prontuário do paciente:
- Termo de Consentimento Informado assinado pelos pacientes (pais genéticos) e pela
doadora temporária do útero, consignado. Obs.: gestação compartilhada entre homoafetivos
onde não existe infertilidade;
- relatório médico com o perfil psicológico, atestando adequação clínica e emocional da
doadora temporária do útero;
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- descrição pelo médico assistente, pormenorizada e por escrito, dos aspectos médicos
envolvendo todas as circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA, com dados de caráter
biológico, jurídico, ético e econômico, bem como os resultados obtidos naquela unidade de
tratamento com a técnica proposta;
- contrato entre os pacientes (pais genéticos) e a doadora temporária do útero (que recebeu o
embrião em seu útero e deu à luz), estabelecendo claramente a questão da filiação da criança;
- os aspectos biopsicossociais envolvidos no ciclo gravídico-puerperal;
- os riscos inerentes à maternidade;
- a impossibilidade de interrupção da gravidez após iniciado o processo gestacional, salvo em
casos previstos em lei ou autorizados judicialmente;
- a garantia de tratamento e acompanhamento médico, inclusive por equipes
multidisciplinares, se necessário, à mãe que doará temporariamente o útero, até o puerpério;
- a garantia do registro civil da criança pelos pacientes (pais genéticos), devendo esta
documentação ser providenciada durante a gravidez;
- se a doadora temporária do útero for casada ou viver em união estável, deverá apresentar,
por escrito, a aprovação do cônjuge ou companheiro.
VIII - REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST-MORTEM
É possível desde que haja autorização prévia específica do(a) falecido(a) para o uso do
material biológico criopreservado, de acordo com a legislação vigente.
IX - DISPOSIÇÃO FINAL
Casos de exceção, não previstos nesta resolução, dependerão da autorização do Conselho
Regional de Medicina.
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EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS DA RESOLUÇÃO CFM nº 2.013/13
No Brasil, até a presente data não há legislação específica a respeito da reprodução assistida.
Transitam no Congresso Nacional, há anos, diversos projetos a respeito do assunto, mas
nenhum deles chegou a termo.
Considerando as dificuldades relativas ao assunto, o Conselho Federal de Medicina produziu
uma resolução – Resolução CFM nº 1.957/10 – orientadora dos médicos quanto às condutas a
serem adotadas diante dos problemas decorrentes da prática da reprodução assistida,
normatizando as condutas éticas a serem obedecidas no exercício das técnicas de reprodução
assistida.
A Resolução CFM nº 1.957/10 mostrou-se satisfatória e eficaz, balizando o controle dos
processos de fertilização assistida. No entanto, as mudanças sociais e a constante e rápida
evolução científica nessa área tornaram necessária a sua revisão.
Uma insistente e reiterada solicitação das clínicas de fertilidade de todo o país foi a
abordagem sobre o descarte de embriões congelados, alguns até com mais de 20 (vinte) anos,
em abandono e entulhando os serviços. A comissão revisora observou que a Lei de
Biossegurança (Lei no 11.105/05), em seu artigo 5º, inciso II, já autorizava o descarte de
embriões congelados há 3 (três) anos, contados a partir da data do congelamento, para uso em
pesquisas sobre células- tronco. A proposta é ampliar o prazo para 5 (cinco) anos, e não só
para pesquisas sobre células-tronco.
Outros fatores motivadores foram a falta de limite de idade para o uso das técnicas e o
excessivo número de mulheres com baixa probabilidade de gravidez devido à idade, que
necessitam a recepção de óvulos doados.
Esses aspectos geraram dúvidas crescentes oriundas dos Conselhos Regionais de Medicina,
provocando a necessidade de atualizações.
O somatório dos fatores acima citados foi estudado pela comissão, em conjunto com
representantes da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida, da Federação Brasileira das
Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia e da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana e
Sociedade Brasileira de Genética Médica, sob a coordenação do conselheiro federal José
Hiran da Silva Gallo.
Esta é a visão da comissão formada, que trazemos à consideração do plenário do Conselho
Federal de Medicina.
Brasília-DF, 16 de abril de 2013.
JOSÉ HIRAN DA SILVA GALLO
Coordenador da Comissão de Revisão da Resolução CFM nº 1.358/92 – Reprodução
Assistida
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ANEXO C – Voto do Superior Tribunal Alemão (Bundesgerichtshof)11
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Não foi realizada tradução em razão de a mestranda não dominar a língua alemã e os valores para tradução
serem muito elevados, por tratarem-se de termos técnicos.
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