reprodução assistida heteróloga: uma ponderação entre

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REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA: UMA PONDERAÇÃO
ENTRE O DIREITO DO DOADOR AO SIGILO E O DIREITO
FUNDAMENTAL À IDENTIDADE GENÉTICA
SABRINA GERALDO ROCHA¹
LUIZ GUSTAVO DE OLIVEIRA SALES²
LAURÍCIO ALVES CARVALHO PEDROSA³
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ (UESC)
RESUMO: O referido artigo tem por objetivo apresentar e discutir problemas de ordem ética
e jurídica decorrentes do desenvolvimento das novas técnicas de Reprodução Assistida. Estas
técnicas próprias da medicina contemporânea têm rompido com a estrutura tradicional da
família e promovido impasse entre o direito do doador ao anonimato e o direito
personalíssimo à identidade genética da criança. Em defesa deste, busca-se como solução do
conflito apresentado, a utilização do Princípio da Dignidade Humana.
Palavras-Chave: família; técnicas reprodutivas; direitos personalíssimos; dignidade da
pessoa humana.
Introdução:
A
sociedade
contemporânea
vem
promovendo,
ao
longo
dos
anos,
o
desenvolvimento das tecnologias reprodutivas, sempre com o objetivo de suprir as
necessidades dos seres humanos.
Esses avanços culminaram na ruptura da concepção
tradicional e conservadora da família. Esta deixou de apresentar-se como uma unidade de
caráter econômico, social e religioso para se afirmar como um grupo ligado pela afetividade,
o que revela desta forma um esvaziamento biológico da paternidade. Reforçando essas
mudanças, o estabelecimento dos laços paterno-filiais defronta-se com as novas técnicas de
procriação.
As ciências biomédicas obtiveram relevantes progressos quanto ao desenvolvimento
das chamadas técnicas de reprodução assistida ou artificial, existindo atualmente diversas
1
formas e possibilidades para a realização da reprodução humana. A crescente expansão do
conhecimento acerca do assunto, por parte da população, proporcionou o grande desejo à
utilização da mesma, desta forma, faz-se cada vez mais necessária a criação de uma legislação
específica que as regulamente, uma vez que, na presença de conflitos, o ordenamento jurídico
precisa atuar para dirimi-los em prol da proteção dos envolvidos.
Entre as técnicas de Reprodução humana assistida, para o presente estudo importa
especialmente, a reprodução assistida heteróloga caracterizada pela utilização de gametas
obtidos de doadores anônimos, visto que, a utilização desta técnica provoca o confronto de
dois direitos personalíssimos; o da intimidade, no que tange à preservação do anonimato do
doador de material genético; e o do conhecimento da ascendência genética, como forma de
garantir o direito da personalidade e, em alguns casos, o do direito à vida.
Diante desse contexto é necessário que se estabeleçam soluções cabíveis para o
problema acerca da falta de limites éticos estabelecidos pelo ordenamento jurídico, a partir
dos princípios constitucionais que norteiam os direitos personalíssimos.
1- Reprodução Assistida: Uma Lacuna Legislativa
1.1. O Desenvolvimento Da Medicina Em Prol Da Construção Familiar
Durante décadas da História o conceito de família esteve preso a raízes
conservadoras e religiosas. Um homem para ter status social e adquirir respeito na sociedade,
tinha que ser visto como patriarca provedor de uma família, já a mulher para ter o mínimo de
dignidade teria que servir ao casamento e aos filhos como único propósito de vida, isto é,
somente através da união entre um homem e uma mulher pelos laços matrimoniais é que cada
indivíduo adquiria reconhecimento social.
Em tempos remotos, para que houvesse a constituição de uma família era necessária
a junção de um homem e uma mulher com o intuito da reprodução, e a impossibilidade da
procriação não era bem aceita nem pela sociedade, muito menos pela igreja. Este paradigma
de família perfeita, no entanto, foi se desconstituindo ao longo dos anos e no século XXI
alcançou uma concepção muito mais ligada a afetividade do que propriamente à reprodução.
Na sociedade atual, há casais homossexuais, que adquiriram uma maior aceitação social, ou
mesmo casais heterossexuais que devido a problemas médicos se deparam com o encalço de
não poderem procriar.
O anseio de ter filhos é inerente ao ser humano desde os tempos mais antigos, este
conceito, nem mesmo os anos conseguiram dissipar. Todavia, devido a problemas de diversas
origens, a vontade de ter um filho nem sempre pôde ser concretizada de forma natural e foi
devido ao desenvolvimento da medicina contemporânea que hoje é possível a realização deste
desejo através da reprodução humana assistida. Esta técnica médica, ainda muito nova, já
ganhou reconhecimento e aceitação por grande parte da população, em especial por aqueles,
que pelos motivos já elencados acima, precisam de um terceiro, estranho ao casal, para a
contribuição na concepção de um filho, técnica essa chamada de Reprodução Assistida
Heteróloga.
1.1.1. Reprodução Assistida Heteróloga
Dentre as inúmeras técnicas modernas de fecundação, que surgiram em prol da
construção da família, o presente artigo abordará a reprodução humana assistida que é,
basicamente, a intervenção do homem no processo de procriação natural, com o objetivo de
possibilitar que pessoas com problema de infertilidade e esterilidade satisfaçam o desejo de
alcançar a plenitude familiar.
Como é de conhecimento geral, a fecundação é o processo através do qual um
gameta masculino (espermatozoide) perfura as membranas lipoprotéicas do gameta feminino
(óvulo) e combina-se com esse formando uma célula diploide, o zigoto, que em poucas horas
inicia seu processo de divisão celular, o que já configura o desenvolvimento do embrião.
Reprodução Humana Assistida é todo processo em que o gameta masculino encontra e perfura
o gameta feminino por meios não naturais.
Existem duas formas principais de Fecundação Artificial, que são a Inseminação
Artificial realizada na forma intrauterina e a Fecundação In Vitro realizada de forma
extrauterina, com utilização de gametas do casal (homóloga) ou com doação de gametas
masculino ou feminino (heteróloga). Por ora, interessa-nos apenas esta segunda forma, ou
seja, a inseminação ou fecundação heteróloga, que é aquela em que o sêmen utilizado é de um
terceiro, e não é do cônjuge ou companheiro da mulher, isto é, a fecundação ocorre, como dito
acima, in vitro.
Diferentemente da inseminação artificial homóloga, a heteróloga gera complexos
problemas jurídicos, por gerar dúvidas ainda não abordadas pela legislação brasileira. Diante
desta problemática é necessária uma analise da legislação pertinente ao tema, para, a partir
dai, encontrar uma meio de solucionar e dirimir tais percalços.
1.2.
A inaptidão da legislação brasileira ao solucionar os conflitos existentes na
Reprodução Assistida Heteróloga
A reprodução humana assistida heteróloga, como já dito anteriormente, se concretiza
com a implantação de um sêmen doado por um terceiro, estranho ao casal receptor, o qual, em
regra, deverá ter sua identidade preservada. Ocorre que, o anonimato deste doador, ofende o
direito fundamental e personalíssimo ao conhecimento da identidade genética por aquele que
tenha sido assim concebido, o que atinge diretamente o princípio fundamental da
Constituição, qual seja, o princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
A problemática no âmbito jurídico é decorrente de uma legislação falha e esparsa que
não estabelece delineamentos precisos que possam auxiliar o operador do Direito a dirimir os
conflitos existentes. A lacuna presente neste âmbito perpassa a disciplina jurídica acerca da
utilização de tecnologias médico-reprodutoras e da proteção dos direitos do doador e do fruto
concebido através da Lei de Biossegurança (nº 11.105/05), da Resolução Normativa do
Conselho Nacional de Medicina (nº 1.358/92), e do Novo Código Civil (art. 1.597 incisos II,
IV e V), pois nenhuma norma acima descrita protege os direitos personalíssimos de forma
efetiva.
Desde que, o ginecologista Pancoast, conseguiu a concepção de uma criança sem um
ato sexual, na Filadélfia, Pensilvânia do século XIX, mais precisamente em 1884, as técnicas
de reprodução humana se desenvolveram e se ampliaram em todo o mundo, evoluindo na
mesma proporção em que têm surgido inúmeros problemas éticos, médicos e,
especificamente, jurídicos.
De acordo com as explanações da professora Heloísa Helena Barboza em sua obra, a
reprodução artificial, de um modo geral leva a repensar o conjunto de instituições estruturais
do Direito, tais como: família, filiação e direitos sucessórios, especulando-se assim quais os
critérios mais eficientes para decisões concretas de difícil análise sobre os questionamentos de
índole jurídica.
Não existem normas brasileiras que regulamentem a matéria referida, gerando
complexos problemas, uma vez que a Resolução do Conselho Federal de Medicina, nada mais
é que um regulamento próprio da categoria, dotado de princípios gerais que devem ser
seguidos pela classe médica, não esclarecendo e muito menos solucionando problemas
inerentes à ordem jurídica.
A respeito, Olga Jubert Krell comenta (2011, p. 121):
Enquanto não houver no Brasil uma lei específica disciplinando os efeitos jurídicos da
filiação originária da reprodução assistida, a construção teórica do modelo de paternidadematernidade e filiação decorrente da reprodução assistida heteróloga deverá conjugar
aspectos dos outros dois modelos – adoção e a filiação clássica -, sempre procurando
compatibilidade e harmonia, observando-se os princípios e regras constitucionais e
infraconstitucionais e aplicáveis.
Pode-se afirmar então, que o desenvolvimento de técnicas de reprodução
medicamente assistida proporcionou grandes alegrias aos casais que sonhavam, mas não
podiam ter filhos. No entanto, o desenvolvimento científico que possibilitou tais avanços não
poderia deixar de estar acompanhado de questionamentos de ordem moral, religiosa e
principalmente jurídica, sendo que as técnicas de reprodução assistida envolvem vidas, tanto
daqueles que desejam ser pais, quanto daqueles que virão a ser filhos, sendo imprescindível a
normatização que regulamente a discussão.
2- O Direito Personalíssimo Do Concebido Aliado Ao Princípio Fundamental Da
Dignidade Da Pessoa Humana
A lacuna legislativa apresentada nos faz constatar que é necessário interpretar o
conflito a partir de um princípio unificador, a fim de que, se encontre uma solução em
consonância com a Constituição Federal.
No Brasil, a identidade é considerada como um dos direitos fundamentais inerentes a
todos os seres humanos, inserido no âmbito dos direitos da personalidade. Esta identidade
compreende todos os caracteres da pessoa como indivíduo, seja em sua história genética, seja
em sua história pessoal. A garantia constitucional que ampara o mencionado direito está
previsto no art. 1º da CF, sob o prisma do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
O presente trabalho, não tem como escopo, apenas elencar as lacunas legislativas
existentes, mas também reforçar, com base em opiniões doutrinárias, a melhor forma de
alcançar um posicionamento eficaz no âmbito jurídico.
Nesse contexto, disserta Selma Rodrigues Petterle (2007, p. 87):
Em que pese o direito fundamental à identidade genética não estar expressamente
consagrado na atual Constituição Federal de 1988, seu reconhecimento e proteção
podem ser deduzidos, ao menos de modo implícito, do sistema constitucional,
notadamente a partir do direito à vida e, de modo especial, com base no princípio
fundamental da dignidade da pessoa humana, no âmbito de um conceito
materialmente aberto de direitos fundamentais.
Perante o exposto, o princípio da dignidade da pessoa humana é o núcleo de todo o
ordenamento jurídico, é a norma jurídica propagadora dos direitos e garantias fundamentais
contidos na CF.
De modo que o direito à identidade genética, segundo Fabriz (2003. p. 349):
É um dos exemplos dessa nova gama de direitos que está diante do judiciário em
busca de positivação, normatização e concretização na esfera do ordenamento
Jurídico vigente, pois a identidade genética surge como um bem jurídico
fundamental a ser tutelado constitucionalmente. Além de buscar a consagração
dentro do ordenamento jurídico, é considerada uma expressão da dignidade humana.
Nessa concepção negar à pessoa o direito de investigar suas origens genéticas e
históricas é negar-lhe a própria identidade, uma vez que o direito à identidade genética é um
direito fundamental personalíssimo, portanto, impossibilitado de renúncia.
Desta forma, é importante destacar a nova redação dada ao Estatuto da Criança e do
Adolescente, com a implementação da Lei 12.010/2009, que em seu artigo 48 esclarece:
Artigo 48. O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de
obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais
incidentes, após completar 18 (dezoito) anos.
Parágrafo único. O acesso ao processo de adoção poderá ser também deferido ao
adotado menor de 18 (dezoito) anos, a seu pedido, assegurada orientação e
assistência jurídica e psicológica.
Através do escrito, o legislador acabou por consolidar um direito personalíssimo do
adotado, fundamental para a construção da sua história de vida. Krell (2011,p.165) entende,
por uma interpretação analógica, que em se tratando de Reprodução Assistida Heteróloga, não
é diferente, uma vez que conforme já mencionado, o direito ao reconhecimento da origem
genética é direito personalíssimo da criança, não sendo passível de impedimento ou renúncia
por parte dos genitores.
Ao conceder à pessoa o direito de conhecer sua verdadeira identidade genética, estáse reconhecendo o exercício pleno de seu direito de personalidade e a possibilidade de buscar
nos pais biológicos as explicações para as mais variadas dúvidas e questionamentos que
surgirão em sua vida. Desta forma, ocorre a mais pura aplicabilidade do Princípio
Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana em linhas práticas.
Considerações Finais
Com as novas possibilidades trazidas pelo avanço da ciência, tornou-se possível
conceber uma criança sem prévia relação sexual, bem como através do uso de gametas doados
por terceiros, realizando-se, assim, o desejo de se ter um filho, o que até então era impossível
para os casais inférteis. Hoje, um número cada vez maior de técnicas de concepção humana
assistida são desenvolvidas e aplicadas, através das quais vêm ao mundo crianças concebidas
de forma artificial, com pleno êxito.
O presente artigo ocupou-se da problemática relativa à aparente colisão de dois
direitos fundamentais frente à aplicação das normas jurídicas para sua delimitação. Isso
porque as técnicas de reprodução heteróloga medicamente assistidas apresentam duas
vertentes: por um lado, a possibilidade de haver o conhecimento da identidade do doador por
parte da criança concebida, e por outro, o direito à intimidade do doador do material genético
que a originou.
Portanto, a solução que oferece uma efetiva proteção aos aspectos físicos, psíquicos e
morais do ser gerado pela reprodução humana assistida heteróloga, consiste na identificação
genética do doador, tendo em vista o caráter personalíssimo do direito à identidade genética,
bem como em razão de ser a resolução que melhor atenderia ao referido princípio
constitucional. Tal princípio se apresenta como qualidade intrínseca e distintiva de cada ser
humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais, nos
quais o direito a identificação genética está inserido, que se adequam a realidade e a
modernização social.
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