PROGRAMA UNIVERSIDADE PARA TODOS: POLÍTICA DE INCLUSÃO ACADÊMICA E SOCIAL? Profa. Lobelia da Silva Faceira1 I – INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como proposta apresentar uma análise do Programa Universidade para todos (ProUni), a partir da temática das ações afirmativas e das políticas de inclusão social no âmbito educacional. O ProUni como política pública de ação afirmativa desenvolvida pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) tem sua lógica interna de inclusão socioeducativa associada à política de renúncia fiscal pela União, destinando bolsas de estudos em instituições de ensino superior privadas para parcela da população caracterizada pela sua situação socioeconômica, etnia e cultura. Nesse sentido, o ProUni consiste numa política pública voltada à garantia do acesso, permanência e produtividade acadêmica desses estratos da população no ensino superior e, conseqüentemente, contribuindo para a sua inclusão social. A avaliação de políticas públicas é uma área ainda incipiente do ponto de vista teórico e metodológico. Existem poucas experiências e tradição de avaliação, bem como as metodologias adotadas, em geral, concentram-se na aferição de impacto quantitativo, objetivo e imediato das ações desenvolvidas. De acordo com Belloni (2001: 14): “A avaliação de política pública é um dos instrumentos de aperfeiçoamento da gestão do Estado que visam ao desenvolvimento de ações eficientes e eficazes em face das necessidades da população”. A concepção e metodologia de avaliação das políticas públicas implicam um processo sistemático de análise das atividades; compreender de forma contextualizada todas as dimensões e implicações; reconhecer os sujeitos da política pública e do próprio processo avaliativo. Nesse sentido, a avaliação de uma política pública deve ser estruturada de acordo com os seguintes parâmetros referenciais de análise: • Perceber a política como um instrumento de ação do Estado. • Conceitos e perspectivas político-filosóficas relativas à questão objeto da política. • Importância de contextualizar o objeto da pesquisa. 1 Doutoranda em Educação - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professora da Universidade Castelo Branco, Assistente Social da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro. • Analisar a política específica tal como é formulada e implementada. Nesse sentido, o presente trabalho tem como proposta apresentar uma discussão e reflexão crítica do ProUni como uma macropolítica de Ação Afirmativa e Inclusão Social, que é indispensável como cenário e “pano de fundo” de qualquer estudo ou pesquisa de avaliação dos resultados desse programa. Na primeira parte do trabalho, apresenta-se o conceito, implicações e debate em torno da implementação de ações afirmativas e políticas de inclusão social no âmbito educacional. Na segunda parte do trabalho, apresenta-se os dados iniciais de implementação do ProUni, destacando a sua organização e procedimentos operacionais. Além de ressaltar o debate com relação ao projeto político-pedagógico do programa, sua estruturação como política de inclusão via renúncia fiscal e as dimensões socioeconômicas complementares necessárias ao processo de inclusão social. Finaliza-se o trabalho com a apresentação de algumas reflexões e questionamentos sobre o desenvolvimento do ProUni como uma política pública de inclusão social e democratização do ensino. II – DESENVOLVIMENTO 2.1. As Ações Afirmativas e as Políticas de Inclusão Social no Âmbito Educacional A partir da década de 90, foram intensificados os debates no Brasil sobre a democratização do acesso ao ensino superior, destacando-se as discussões sobre a política de cotas nas universidades públicas e o Programa Universidade para Todos (ProUni), que prevê a reserva de vagas nas instituições de ensino superior particulares para vestibulandos excedentes de concursos públicos. O debate acerca da democratização do acesso ao ensino superior, no âmbito das universidades públicas, está apenas se iniciando e deverá ser estendido aos diversos segmentos da sociedade. A questão das cotas raciais é, hoje, um tema posto na agenda nacional, objeto de debate no judiciário, nas universidades e nas conversas mais cotidianas. Esses debates vêm mostrando que não há como pensar no tema da democratização do acesso ao ensino superior no Brasil sem colocar a questão das cotas e ações afirmativas. Podemos pontuar que o debate sobre cotas raciais no ensino superior passou a integrar a agenda política do movimento negro com mais contundência, a partir da década de 80, porém somente agora ele ganha visibilidade no cenário nacional, cobertura da mídia e é introduzido, com todas as 2 resistências possíveis, nos meios acadêmicos e entre os formuladores de políticas públicas educacionais. De acordo com Gomes (2004): Até a década de 80 do século XX, a luta do movimento negro brasileiro, no que se refere ao acesso à educação, tinha um discurso mais universalista: mais escolas, universalização da educação básica para todos, mais vagas na universidade para todos. Porém, à medida que o movimento negro foi constatando que as políticas públicas de educação, de caráter universal, ao serem implementadas, não atendiam a grande parcela do povo negro, o seu discurso e suas reivindicações começaram a mudar. É nesse momento que as cotas, que já não eram uma discussão estranha no interior da militância, emergem como uma possibilidade e, hoje, passam a ser uma demanda política real e radical (2004: 46). A discussão sobre cotas no Brasil não se restringe ao movimento negro, mas faz parte da luta do movimento social, ou seja, articulando-se ao debate do reconhecimento de cotas para portadores de necessidades especiais e para mulheres nos partidos políticos e nas representações públicas. Outro aspecto importante de destacar é que a reivindicação por cotas raciais não se limita aos cursos superiores, mas a composição dos quadros funcionais de alguns setores do poder público. As cotas raciais têm que ser discutidas no contexto das políticas de ação afirmativas, que se encontram inseridas na luta pelo combate às desigualdades sociais. Nesse sentido, as ações desenvolvidas pelas organizações não-governamentais, movimentos sociais e políticas sociais implementadas pelo Estado no sentido de efetivar a reforma do ensino superior colocam em cena o debate sobre a implementação de ações afirmativas como possibilidade de consolidar políticas públicas de inclusão social. De acordo com Silva (2004: 22) as ações afirmativas são caracterizadas como: “(...) políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física.” As ações afirmativas ou “Affirmative Action” foram implementadas, pela primeira vez, nos Estados Unidos em 1935 no bojo da legislação trabalhista, dispondo que o empregador que discriminasse sindicalistas ou operários sindicalizados seriam obrigados a cessar de discriminá-los, além de estabelecer reparações das situações, ou de violação legal ou de injustiça já perpetradas. Concebidas originalmente nos Estados Unidos como forma de enfrentamento do desemprego de minorias étnicas, tais políticas discriminatórias positivas, impostas ou incentivadas pelo Poder Público, rasgam “o véu de inocência” do Estado liberal ao determinar que fatores antes vistos como propensos à 3 discriminação negativa podem ser convertidos em focos de ação imediata de proposições promoventes da igualdade material. No governo de Lyndon Johnson (1963-1968), foram criados mecanismos e estratégias importantes de combate e superação das desigualdades raciais e de gênero. Porém, as políticas de ação afirmativa surgiram efetivamente nos Estados Unidos a partir da promulgação das leis dos direitos civis, em 1964, após imensa pressão dos movimentos negros locais. Esse modelo foi norteado por um conjunto de políticas denominadas “Affirmative Action or Positive Discrimination”, que tinham o objetivo de inibir discriminações no mercado de trabalho, com relação a etnia, religião, gênero ou origem nacional dos trabalhadores (VERÍSSIMO, 2003). Nos Estados Unidos, a partir de 1964 e até o início dos anos 80, as políticas de ação afirmativa passaram por um processo de crescimento gradual, porém não alcançaram um consenso absoluto na sociedade norte-americana. As ações afirmativas têm como objetivo corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por fim a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais, como educação e emprego. Esclarecemos, entretanto, que as ações afirmativas não discordam do princípio do direito universal, mas enfatizam que, numa sociedade com tamanha desigualdade social e racial, ele não é suficiente para atender grupos sociais e étnicos com histórico de exclusão e discriminação racial. Logo, existe na luta pelo reconhecimento da diferença, a luta pela igualdade, pela implementação de políticas universais, mas que caminhem lado a lado com políticas de ações afirmativas para a população negra. Nesse sentido, as políticas públicas deveriam sempre trabalhar no âmbito de garantir o acesso universal à educação e também respeitar as diferenças. A população caracterizada como pobre, afrodescendente e oriunda da rede de ensino pública, há precisamente uma década, buscam no estado do Rio de Janeiro o desenvolvimento de debates e movimentos que demandam seus direitos à igualdade de oportunidades educacionais, a ausência de discriminação racial, étnica ou social e ainda a busca pelo processo de inclusão social desses indivíduos e exercício de uma cidadania emancipatória2 e ativa no ensino superior. Segundo o Ministério da Justiça, na Portaria n.º 1156 de 20 de dezembro de 2001, a ação afirmativa é considerada como um dos instrumentos de promoção da cidadania e da inclusão social, possibilitando a garantia a todos os cidadãos brasileiros dos direitos consagrados na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 2 De acordo com DEMO (1988) a Cidadania Emancipatória é o componente fundamental para o desenvolvimento, a emancipação e efetivação dos direitos humanos, caracterizados pela 4 A política de cotas nas universidades constitui na atualidade a forma mais polêmica e mais difundida de ação afirmativa, mas existem outras medidas de promoção capazes de desempenhar o papel de instrumento de inclusão social, como o próprio curso de pré-vestibular comunitário. As políticas públicas de ação afirmativa destinadas à população negra em situação de vulnerabilidade social baseiam suas propostas e experiências em dados e estudos publicados pelos principais institutos de pesquisa responsáveis pela análise dos indicadores socioeconômicos brasileiros – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) – que explicitam a desigualdade racial presente na educação superior e no próprio mercado de trabalho. Em maio de 2000, o IBGE divulgou a pesquisa Síntese de Indicadores Sociais 19983, cujos resultados comprovam que as diferenças existentes nas áreas de educação, mercado de trabalho e apropriação de renda são motivadas por questões raciais. Segundo coordenadores do trabalho, não havia novidades nos dados da pesquisa realizada anualmente há 13 anos. Segundo estudos do IPEA de 20014, menos de 2% de estudantes negros estão matriculados nas universidades públicas e privadas, e, dentre essas pessoas, apenas 15% concluem o ensino superior. Ainda de acordo com esse instituto, caso a educação brasileira continue progredindo no mesmo ritmo de hoje, em 13 anos pessoas brancas devem alcançar a média de oito anos de estudos, sendo que as negras só atingirão a mesma meta daqui a 32 anos. Nesse cenário o ensino superior configura-se como um campo teórico de questionamentos e debates sobre a necessidade de efetivar ações com a propriedade de políticas institucionais de efetiva inclusão da população em situação de vulnerabilidade social nos diversos espaços educacionais de ensino superior, considerando sua eficácia, eficiência e efetividade. Considerando inclusão social não apenas como a garantia do acesso à universidade, mas a permanência e a qualidade do processo de formação profissional desse cidadão. O debate sobre as ações afirmativas é extremamente antagônico e complexo, no sentido de alguns autores considerarem as cotas e as políticas de ação afirmativa como medidas compensatórias, e outros reconhecerem nessas ações a possibilidade de políticas de inclusão social e a importância de colocarem a questão racial em foco. Uma das críticas mais comuns na temática das ações afirmativas competência humana de fazer-se sujeito social e político, para fazer história própria e coletivamente organizada. 3 Ver www.ibge.gov.br 4 Ver www.ipea.gov.br 5 se refere à ausência de clareza no Brasil da definição “afrodescendentes”, considerando que raça é uma construção social ideológica. Outra questão polêmica se refere à dificuldade de conceituar o termo “inclusão social”, que é apontado como objetivo mais amplo das ações afirmativas e utilizado numa concepção de consolidação de direitos e exercício da cidadania. De acordo com Boneti (2005: 02): (...) a noção de inclusão é diferente e apresenta maiores complicadores. Além de guardar consigo o significado original da exclusão, não se pode dizer que esta palavra se constitua de uma noção ou de um conceito. Trata-se de uma positivação em relação a uma problemática social, a da exclusão, segundo o entendimento original já considerado. Portanto, é mais um discurso que um conceito. Além desta pobre origem, agregou, durante a sua pequena história de vida, antigos ingredientes da política. O entendimento do social a partir de uma concepção dual do dentro e do fora já foi utilizada pelos contratualistas, em particular por Hobbes e Rousseau, fornecendo bases à sociologia política conservadora e ao direito. No seio desta concepção, umas das noções que nasceu e persiste até nos nossos dias é a noção de cidadania. A noção de cidadania que persiste nos dias atuais, e que conserva uma proximidade com a noção do ser incluído/a, é aquela associada aos direitos constitucionais. Em outras palavras, o entendimento do social a partir de uma concepção do dentro e do fora, pode ter origem, antes de tudo, da noção de cidadania, ou de cidadão, a pessoa que estivesse “incluída” numa sociedade racional, numa sociedade de direito, numa sociedade de Estado (sociedade contratual). O autor destaca que o termo “inclusão social” está relacionado a um discurso e dimensão política, uma vez que considera como “incluída” a pessoa juridicamente cidadã, isto é, com direitos e deveres frente ao contrato social. Nesse sentido, o conceito de inclusão social restringe-se ao acesso jurídico a direitos, atribuindo o “resgate à cidadania” a um procedimento burocrático de matrícula ou a medidas de garantia do acesso à educação. Enquanto na realidade a concepção de exercício de cidadania relaciona-se ao processo emancipatório do indivíduo como histórico, político e social. De acordo com Boneti (2005: 03): Em síntese, o conceito de inclusão carrega consigo dois pesos desfavoráveis: o primeiro deles diz respeito à sua herança teórica e metodológica utilizada para a sua formulação, o da dicotomização do dentro e do fora, coisa que a sua palavra-mãe, a exclusão, já superou ou, no mínimo, está em processo conforme visto em páginas anteriores neste trabalho. O segundo diz respeito à agregação de ingredientes conservadores da sociologia política, associando a inclusão à cidadania, como condição de estar incluída no “contrato” social e assim, usufruir de direitos. Ambas as situações fazem com que a palavra inclusão assuma uma significação da existência de um único projeto político de sociedade, o da classe dominante, reservando-se a esta classe o monopólio do controle do acesso aos serviços públicos, aos bens sociais, aos saberes, aos conhecimentos tecnológicos, à cultura etc. 6 Daí a necessidade e relevância de contextualizar e aprofundar a reflexão teórico-metodológica a cerca da temática de “Inclusão social” para, posteriormente, analisar essa dimensão na proposta e operacionalização do ProUni. Outra divergência teórica do processo de implementação de políticas de ação afirmativa no âmbito educacional é aquela que se refere à ruptura do princípio do mérito individualista, no sentido de que as ações afirmativas privilegiam de forma positiva os grupos desprivilegiados, constituindo uma nova forma de discriminação, ferindo o princípio da eqüidade e de individualidade. Assim, a proposição das políticas de ação afirmativa começa a ser alicerçada nos anos 90, através da organização e mobilização do movimento negro5, no sentido de desmistificar que as desigualdades sociais, baseadas nos antagonismos das classes sociais, têm uma dimensão étnica. Esses movimentos elegeram como áreas prioritárias de reivindicação de ações afirmativas o acesso do negro à educação e a inserção no mundo do trabalho. No Brasil, o Governo Federal criou em fevereiro de 1996 o Grupo de Trabalho para Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação6 – GTEDEO – com a finalidade de definir ações que visassem o combate à discriminação no emprego e na ocupação. Posteriormente, o presidente da República criou, por decreto, o Grupo de Trabalho Interministerial7 – GTI – que tinha a proposta de discutir, elaborar e implementar projetos políticos voltados para a valorização e ascensão dos afrobrasileiros. No período de 31/08 a 07/09/01 aconteceu na cidade de Durban, na África do Sul, a 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e formas correlatas de intolerância, promovida pela organização das nações unidas. Um dos desdobramentos de Durban foi à intensificação, no Brasil, dos debates nos meios de comunicação em massa em torno das políticas públicas voltadas para a população negra. O governo brasileiro comprometeu-se com a luta contra a discriminação racial e iniciou uma série de ações para o desenvolvimento de políticas de ações afirmativas, voltadas para a população negra brasileira, configurando-se como políticas de combate às desigualdades raciais. Nesse sentido, a política de ação afirmativa, além de ser uma reivindicação do movimento negro, faz parte de um compromisso assumido internacionalmente pelo Brasil, explicitado no Estatuto da Igualdade Racial, 5 Comemoração do Centenário da Abolição (1988), do Tricentenário de Zumbi dos Palmares (1995) e os seminários preparatórios à III Conferência contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (2001). 6 Formado por representantes do poder executivo e entidades sindicais e patronais, vinculado ao Ministério do Trabalho. 7 O GTI era composto por representantes do Movimento Negro Nacional e representante do próprio Estado. 7 em discussão no Congresso Nacional, e na criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, oficializada pelo presidente Lula, em 21 de março de 2004. Uma questão que merece ser esclarecida refere-se à relação entre ação afirmativa e cotas. Reduzir o caráter e a abrangência das políticas de ação afirmativa à concessão de cotas (ou reserva de vagas) para negros na universidade pode ser fruto da falta de informação, do desentendimento e da manipulação política. As cotas representam uma das estratégias de ação política e ao serem implantadas desvelam a existência de um processo histórico e estrutural de discriminação que assola determinados grupos sociais e étnicos/raciais da sociedade. No Brasil, além da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), já temos a experiência da Universidade Estadual da Bahia (UNEB) que desde 1999 introduziu o quesito cor no formulário de inscrição do vestibular e em 2003 implementou cotas étnicas de 40% para alunos negros vindos da escola pública8. As cotas colocam em xeque e em debate as polêmicas sobre o acesso dos estudantes negros e brancos à universidade, pontuando que o ensino superior não pode ser considerado privilégio de alguns e colocando em discussão a forma como a justificativa do mérito acadêmico tem se instaurado na sociedade como argumento para a não implementação das cotas raciais. De acordo com Gomes (2004), a vida acadêmica exige determinadas competências e saberes, o que é muito diferente do discurso limitado do mérito acadêmico: Entrar para a universidade, sobretudo para uma universidade pública, não se traduz a uma questão de mérito, é uma questão de direito. O fato de termos um maior acesso à universidade de alunos negros, pobres e oriundos de escola pública não quer dizer que teremos uma universidade de baixa qualidade e alunos com menor mérito, mesmo porque, como sabemos, o mérito é uma construção social e acadêmica. (GOMES, 2004: 50). O discurso do mérito acadêmico nos distancia do debate sobre o direito à educação para todos os segmentos sociais e étnico/raciais. A universidade pública brasileira precisa refletir, no seu interior, sobre a diversidade étnica/racial da população. Segundo Gomes (2004: 51): “A proposta de cotas raciais atualmente em vigor não significa que os alunos negros deixarão de fazer o vestibular. Eles o farão, porém, concorrerão com outros alunos do seu grupo étnico/racial que possuem trajetórias sociais escolares semelhantes”. 8 Até o ano de 2005 foi implementado o sistema de cotas de vagas para negros em 13 universidades públicas do país: UERJ, UENF, Universidade Estadual de Diamantina (MG), Universidade do Estado de Mato Grosso, as 6 estaduais do Paraná, a Universidade Federal do Tocantins, a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (cujo sistema de cotas foi aprovado em janeiro de 2005 pelo governador Zeca do PT) e a Universidade Estadual da Bahia (UNEB). 8 A seguir, apresentaremos o programa ProUni como uma macropolítica de ação afirmativa implementada com vistas à inclusão acadêmica e social, destacando a estrutura da programa; sua polêmica com relação à reserva de vagas em instituições de ensino superior privado em contrapartida ao processo de renúncia fiscal; suas dimensões político-pedagógicas e socioeconômicas. 2.2. Programa Universidade Para Todos: uma Política Pública de Inclusão Social O Programa Universidade para Todos (ProUni) – instituído por meio da Medida Provisória 176 de 13/09/04, regulamentado pelo decreto nº 5.245 de 15/10/04 e institucionalizado pela Lei n° 11.096, de 13 de janeiro de 2005 – é destinado à concessão de bolsas de estudo integrais e parciais (cinqüenta por cento) para cursos de graduação e seqüenciais de formação específica, em instituições privadas de ensino superior, com ou sem fins lucrativos. As instituições de ensino que participam do ProUni ficam isentas de uma série de impostos e incentivos fiscais, dentre eles: o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica, Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, Contribuição Social para Financiamento da Seguridade Social e Contribuição para o Programa de Integração Social9. Sendo necessário destacar que os mecanismos de renúncia fiscal já foram utilizados anteriormente no Brasil. A seguir destacaremos brevemente o conceito, operacionalização e principais polêmicas em torno do desenvolvimento do ProUni como política de inclusão acadêmica via renúncia fiscal da União. O mecanismo de renúncia fiscal foi utilizado inicialmente no Brasil na década de 60 e 70, como forma de incentivo à expansão de vagas, tornando-se um fator central no financiamento do ensino superior privado brasileiro.10 De acordo com Carvalho (2005: 03): “Este instrumento foi essencial para o crescimento intensivo dos estabelecimentos na prosperidade econômica e, principalmente, garantiu a continuidade da atividade da empresa educacional no período de crise, por meio da redução do impacto sobre custos e despesas inerentes à prestação de serviços”. 9 O ProUni possui a participação de 37 instituições de ensino, sendo oferecidas 95 mil vagas. Dados do MEC em 13/01/2005. 10 Entre os outros mecanismos de incentivo à expansão privada estão as transferências orçamentárias, a institucionalização de fundos e programas, e, bastante relevante, o instrumento institucional do Conselho Federal de Educação (CFE), através do afrouxamento nos critérios de autorização para funcionamento de estabelecimentos de ensino isolados. 9 A Lei nº. 5.172/66, que instituiu o Código Tributário Nacional, em concordância com a Constituição Federal de 1967, determinava que não haveria incidência de impostos sobre a renda, o patrimônio e os serviços dos estabelecimentos de ensino de qualquer natureza. Em outras palavras, os estabelecimentos privados gozaram do privilégio, desde a sua criação, de imunidade fiscal, não recolhendo aos cofres públicos a receita tributária devida. Apesar de existirem requisitos restritivos para as entidades educacionais terem acesso à imunidade tributária, na prática, a maior parte dos estabelecimentos usufruiu e vem usufruindo deste benefício. A instituição de ensino, na forma de associação civil ou fundação, considerada como entidade sem fins lucrativos, poderia receber por seus produtos e serviços, porém, deveria reinvestir o superávit na manutenção e expansão das atividades educacionais. De acordo com Carvalho (2005: 03): Os estabelecimentos de ensino superior considerados sem fins lucrativos passaram a ser imunes ao Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), ao Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), ambos de competência do poder municipal, ao Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza (IRPJ) e ao Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural, no caso dos imóveis localizados em zonas rurais, ambos de competência da União. Algumas instituições ainda poderiam ser consideradas como entidades de Utilidade Pública Federal, sendo necessário o registro no Conselho Nacional de Serviço Social como instituição filantrópica, para usufruir a imunidade tributária e a isenção da cota patronal da Previdência Social. Entre 1977 e 1988, a Lei foi revogada e as instituições filantrópicas perderam o benefício. Segundo Carvalho (2005: 03): A partir da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e da Lei da Seguridade Social (n.8212/91), a entidade beneficente de assistência social faz jus, novamente, a isenção das contribuições previdenciárias. Os Decretos n.ºs 752/93 e 2.535/98, porém, exigiam a destinação de 20% da receita bruta destas instituições em gratuidade. Tal legislação provocou reação imediata dos atores sociais vinculados aos interesses destas instituições e por meio de pressões políticas foi concedida liminar pelo Supremo Tribunal Federal à Ação Direta de Inconstitucionalidade impetrada pela Conferência Nacional de Saúde, Hospitais e Serviços. O resultado beneficiou todas as filantrópicas, que até o momento não são obrigadas a conceder bolsas de estudos integrais no montante correspondente à isenção. Nesse sentido, a renúncia fiscal representou a redução nos custos fixo e variável do estabelecimento de ensino e, por outro lado, este tipo de incentivo implicou no estreitamento da arrecadação tributária, o que poderia ser considerado como uma forma de transferência indireta de recursos financeiros do estado às instituições de ensino privado. Com a queda na demanda por ensino superior, provocada pelos efeitos da recessão econômica dos anos 80, a renúncia fiscal amenizou os impactos da inadimplência, do desemprego e da queda dos 10 salários reais sobre os estabelecimentos particulares, permitindo a continuidade da atividade educacional e evitando muitas falências no setor. Até 1996, praticamente todos os estabelecimentos particulares de ensino usufruíram de imunidade tributária sobre a renda, os serviços e o patrimônio. O artigo 20 da Lei n.º 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) promoveu formalmente a diferenciação institucional intrasegmento privado. A partir deste momento, as instituições passaram a ser classificadas em privadas lucrativas e sem fins lucrativos (confessionais, comunitárias e filantrópicas). As primeiras deixaram de se beneficiar diretamente de recursos públicos e indiretamente da renúncia fiscal, enquanto as demais permaneceram imunes ou isentas à incidência tributária. A mudança legislativa permitiu ampliar a arrecadação da União e dos municípios e aumentou os custos operacionais dos estabelecimentos de ensino. No final da década de 90, as instituições de ensino privado começam a conviver com problemas de inadimplência, em função dos limites estruturais no poder aquisitivo de sua clientela. Ainda mais, quando se considera o baixo crescimento econômico do país, o aumento dos índices de desemprego e a queda na renda real. É nesse contexto que o Governo Federal implementa o ProUni, que segundo Carvalho (2005: 07): (...) surge acompanhado por um discurso de justiça social, cujo principal indicador é a baixa escolaridade líquida. De acordo com dados do INEP/MEC, em 2003, apenas 9% da população de 18 a 24 anos freqüentava o ensino superior. Neste ponto é importante ressaltar que o público alvo do PROUNI é o de alunos carentes. O programa estabelece, obrigatoriamente, que parte das bolsas deverá ser direcionada a ações afirmativas, aos portadores de deficiência e aos autodeclarados negros e indígenas. A formação de professores de ensino básico da rede pública também consta como prioridade. A intenção é a melhoria na qualificação do magistério com possíveis impactos positivos na qualidade e no aprendizado dos alunos da educação básica. Mas, na verdade, este discurso encobre a pressão das associações representativas dos interesses do segmento particular, justificada pelo alto grau de vagas ociosas. A expansão do ensino superior privado, principalmente, entre 1998 e 2002, resultou na criação de um número excessivo de vagas, que, segundo informações recentes do INEP, é superior ao número de formandos no ensino médio. Embora a demanda potencial por ensino superior não se restrinja ao número de concluintes do ensino médio, é muito difícil estimar o número de pleiteantes. O Programa Universidade para Todos surge, assim, como excelente oportunidade das instituições privadas enfrentarem as ameaçadas pelo peso das vagas excessivas. Carvalho (2005) pontua que a redação final do documento refletiu este jogo político, no qual o MEC teve que ceder e acomodar os interesses privados, e estes atores não foram plenamente atendidos: 11 Em 2005, as privadas lucrativas e as sem fins lucrativos não-filantrópicas devem destinar uma bolsa integral para nove alunos pagantes ou bolsas parciais até 10% da receita bruta. A partir de 2006, o documento é bastante generoso para ambas. A relação de estudantes pagantes por bolsas concedidas é ampliada e o comprometimento da receita bruta é reduzido: uma bolsa integral para 10,7 alunos pagantes ou, de forma alternativa, conceder uma bolsa integral para 22 estudantes, com quantidades adicionais de bolsas parciais (50% e 25%) até atingir 8,5% da receita bruta. No caso das instituições lucrativas e sem fins lucrativos e não-beneficentes, as regras são bem mais flexíveis. A barganha dá-se por meio da escolha de bolsas integrais e/ou parciais, por meio de duas opções de adesão. A primeira baseia-se na concessão de bolsas integrais e a segunda envolve reduzir, de forma significativa, as bolsas integrais e usar a receita bruta como parâmetro para a concessão de bolsas parciais (50% e 25%). A adesão ao PROUNI é voluntária. No caso das entidades beneficentes de assistência social, as regras são bem mais rigorosas. A adesão ao programa e a concessão de bolsas integrais são obrigatórias. As demais modalidades de gratuidade (bolsas parciais e programas de assistência social) podem ser usadas para compor o total de 20% da receita bruta. Este percentual é o requisito mínimo que caracteriza a natureza jurídica deste tipo de instituição. (CARVALHO, 2005: 08) Vale ressaltar, no entanto, que as entidades de assistência social, que perderam tal status por não cumprirem o percentual mínimo de gratuidade exigido, poderão, com a adesão ao PROUNI, solicitar a revisão dos processos e possível restabelecimento do certificado junto ao Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e, posteriormente, requerer ao Ministério da Previdência Social o retorno da isenção das contribuições. Em outras palavras, a participação no programa permitiria retomar as condições anteriores à cassação, com cancelamento das dívidas anteriores. As instituições mais beneficiadas são aquelas com fins lucrativos, já que ficam isentas, a partir da adesão, de praticamente todos os tributos que recolhiam. Além disso, a contrapartida em número de bolsas é muito baixa, estas permanecem com o mesmo status institucional e continuam não se submetendo a fiscalização/regulação governamental. Segundo Carvalho (2005: 10): As instituições sem fins lucrativos deixam de recolher a COFINS e o PIS. O impacto sobre a rentabilidade deve ser importante, uma vez que a isenção da COFINS estimula o aumento de matrículas, e, conseqüentemente, o crescimento da receita operacional bruta, já que não há ônus tributário sobre o incremento na prestação de serviços. A isenção do PIS para as confessionais/comunitárias tem impacto muito reduzido sobre a folha salarial. Já as entidades beneficentes, apenas se beneficiam da isenção do PIS, cujo ônus fiscal é pouco representativo. Este contexto permite compreender as alegações das filantrópicas em tornaremse lucrativas. A troca de imunidade por isenção por dez anos renováveis por iguais períodos não traz prejuízos significativos. Os tributos municipais podem ser barganhados com os poderes locais e as alíquotas variam muito entre os municípios. O INSS patronal, de acordo com o explicitado na legislação do PROUNI, pode ser suavemente parcelado nos cinco primeiros anos. (p. 10) Nesse sentido, o PROUNI pode ser visto como a alternativa de que o governo se valeu para preencher vagas ociosas sem ampliar diretamente o volume de gastos federais. Esta lógica atende à 12 política de controle de gastos públicos e aos objetivos de sustentabilidade da dívida, já que a fixação do superávit primário restringe o financiamento das políticas públicas no âmbito do orçamento fiscal. O diagnóstico do aumento de vagas ociosas combinado à procura por ensino superior da população de baixa renda fundamentou o discurso e a proposta do MEC de estatização de vagas nas instituições particulares em troca da renúncia fiscal. O programa realiza a distribuição de bolsas integrais para os estudantes com renda per capita familiar de, no máximo, um salário mínimo e meio (R$ 390,00) e bolsas parciais para aqueles que possuem renda per capita familiar de, no máximo, três salários mínimos (R$780,00). O ProUni caracteriza como público-alvo os estudantes que tenham cursado o ensino médio completo em escola pública ou em instituição privada na condição de bolsista integral; estudantes portadores de necessidades especiais; e, professores da rede pública de ensino que se candidate a cursos de licenciatura destinada ao magistério e à educação básica e pedagogia, independente da renda. A Medida Provisória n.º 213 determinou, no art. 3º, que o estudante a ser beneficiado pelo ProUni será pré-selecionado, em uma primeira etapa, pelos resultados e pelo perfil socioeconômico do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) ou outro tipo de exame que o MEC venha a criar11. Na etapa final, o candidato à bolsa poderá ser submetido a critérios estabelecidos, particularmente, por cada uma das instituições de Ensino Superior, participantes do ProUni. A associação do ProUni ao ENEM vem desencadeando discussões a respeito das prováveis conseqüências da mudança de critérios seletivos no acesso à universidade, destacando a questão polêmica da meritocracia presente no processo seletivo dos vestibulares. Segundo informações do ex-ministro Tarso Genro, antes do Programa Universidade para Todos ser implementado pelo governo federal, as instituições públicas e particulares tinham em seus cursos 25% de alunos afrodescendentes, o que correspondia a um total de 875 mil estudantes negros num universo de 3,5 milhões de alunos. Após as três etapas do Prouni, o número subiu para 921.695 mil. Os beneficiários do ProUni (Programa Universidade para Todos) que conseguiram bolsas no valor de 50% da mensalidade poderão financiar parte do que estão pagando à instituição onde estudam. A Portaria nº 1.861/2005, publicada no "Diário Oficial" da União, abre a estes alunos a possibilidade de obter o Financiamento Estudantil (FIES) para custear a metade da mensalidade. Segundo o exministro da Educação, Tarso Genro, o MEC além de criar o ProUni que viabiliza o acesso de milhares 11 Em dados do MEC (12/01/2005) a média das notas alcançadas pelos alunos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para o ingresso no ProUni atingiu a marca dos 61,30 pontos, superando a nota mínima estipulada em 45 pontos. 13 de alunos de baixa renda ao Ensino Superior, assegura a permanência do estudante reduzindo as possibilidades de evasão. O ex-ministro Tarso Genro destaca ainda que o estudante que participa do FIES adianta a cada três meses uma parcela dos juros em valor fixo de R$ 50; começa a quitar sua dívida com a Caixa Econômica Federal 12 meses após a conclusão do curso; tem até uma vez e meia da duração do curso para pagar o financiamento, se, por exemplo, o curso tiver a duração de quatro anos, terá até seis anos para quitar o empréstimo; os juros do financiamento são de 9% ao ano. O ProUni prevê cotas para negros e indígenas, destacando que o percentual terá que corresponder, no mínimo, ao percentual de cidadãos autodeclarados pretos, pardos e indígenas no último censo do IBGE de cada estado. Finalizamos essa parte do trabalho pontuando brevemente algumas questões polêmicas sobre a proposta e fase inicial de implementação do ProUni: - A inclusão social e democratização da educação será efetivada através da implementação de cotas socioeconômicas e/ou cotas raciais? Ressaltamos que essa questão está articulada ao mapeamento dos fatores que dificultam o acesso à educação, que não se restringem às questões socioeconômicas, culturais e étnicas dos indivíduos. - Quem é o beneficiário das cotas? O ProUni quando define seu público-alvo e os critérios de elegibilidade caracteriza-se pela seletividade e focalização presente no âmbito das políticas sociais no contexto neoliberal (processo de Reforma do Estado), uma vez que atrela o acesso ao programa aos critérios socioeconômicos dos candidatos. - Essa política pública representa um incentivo à privatização do ensino? O programa privilegia o crescimento das universidades privadas em detrimento das públicas? Outra polêmica é caracterizada pelo fato de o programa destinar-se à reserva de vagas em instituições de ensino privadas, contrapondo-se ao investimento na ampliação do ensino público. De acordo com o ex-ministro Tarso Genro, a União está poupando recursos com o ProUni e transformando espaços dentro das instituições privadas em espaços públicos. Portanto, ele caracteriza como uma 14 possibilidade de expansão da atividade pública em direção a instituições de natureza privada. Nas considerações finais, apontaremos outras questões referentes às dualidades e polêmicas de implementação do ProUni como programa de inclusão social, voltado ao processo de democratização do ensino superior. III – CONCLUSÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS A educação é concebida pelo Governo Federal como um elemento constituinte do novo modelo de desenvolvimento do Brasil, sendo considerada vital para romper com a histórica dependência científica, tecnológica e cultural de nosso país e consolidar o projeto de nação democrática, autônoma, soberana e solidária. O processo de globalização colocou o país e a universidade diante de um “encruzilhada”. De um lado, o caminho da desregulamentação e da mercantilização do ensino, que retira do Estado o protagonismo na definição das políticas educacionais. E de outro, um projeto que percebe a educação superior como um direito público a ser ofertado pelo Estado gratuitamente, com qualidade, com democracia e comprometido com as expressões multiculturais que emergem do interior da sociedade, com a sustentabilidade ambiental e com o próprio desenvolvimento tecnológico. A educação superior adquire uma enorme importância como instância produtora das fontes de riqueza, geradora e disseminadora dos conhecimentos, da capacidade de utilizar os saberes adquiridos e de aprender ao longo de toda vida. Nesse sentido, o conhecimento passa a desempenhar um papel importante frente ao novo paradigma econômico-produtivo e social-político, relacionados ao processo de reestruturação produtiva. O enfoque sobre as oportunidades educacionais da população afrodescendente na sociedade brasileira tem mudado nos últimos anos e os programas e políticas de caráter reparador das desigualdades raciais encontram-se em evidência. O debate sobre políticas de ações afirmativas ainda se encontra restrito a organizações do movimento negro, sendo relevante aproximar essa temática do espaço acadêmico e de sua problematização como proposta de democratização da educação e inclusão social. Há muito que fazer para a implementação de uma política de democratização e de inclusão social no ensino superior brasileiro. É preciso entender que democratizar o acesso significa também garantir a 15 permanência. Ampliar o acesso por meio de cotas ou ações afirmativas não é apenas colocar negros e pobres dentro da universidade. É preciso dar-lhes condições para nela permanecer com sucesso e concluir seus cursos. Democratizar a universidade pública, no Brasil não poder se restringir ao estudo sobre os aspectos socioeconômicos. As ações afirmativas podem ser analisadas por dois prismas: em um sentido restrito e em um sentido mais amplo. No primeiro caso, as ações afirmativas são apontadas como políticas públicas temporárias, promovidas por parte do Estado, tanto em seu Poder Legislativo quanto no Executivo, que objetivam a promoção da igualdade entre grupos sociais, levando em consideração desvantagens sofridas ao longo da história. Assim, as medidas de ação afirmativas configuram-se como uma alternativa para o acesso à escolaridade e a cargos públicos e privados e até mesmo à representação parlamentar por parte de grupos étnicos, de gênero, etc. (CANDAU, 2004). A segunda possibilidade de concepção e desenvolvimento das ações afirmativas seria encará-las como medidas amplas, não necessariamente atreladas às políticas públicas, medidas estas que visam à justiça distributiva, ou seja, que buscam a democratização da sociedade e são promovidas em diferentes espaços sociais (CANDAU, 2004). Nesse sentido, as políticas de ação afirmativa, dentre elas o ProUni, configuram-se como um campo de dualidades e contradições à cerca da opinião pública e estudos teórico-empíricos, destacando-se a posição do movimento negro em defesa da implementação de ações afirmativas e de estudiosos e acadêmicos que ressaltam que essas ações não atacam a raiz do problema do ensino superior no país, configurando-se como uma maquiagem do problema social. Faz-se necessário discutir a complexidade do problema educacional, levando em consideração à própria complexidade que caracteriza a dinâmica social. Outra contribuição que nos parece relevante para trabalharmos nessa perspectiva é de Santos (1997: 122), sociólogo português, quando afirma a necessidade de articularmos políticas de igualdade e políticas de identidade, já que "as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza e o direito a ser diferentes, quando a igualdade os descaracteriza". Não será este um dos grandes desafios da educação e, especificamente, da escola, hoje? Pensar o ProUni como política de inclusão social é ressaltar o significado dessa categoria teórica (“inclusão social”) como sinônimo do resgate da cidadania, da plenitude dos direitos sociais, da participação social e política dos indivíduos (cidadãos) em todos os aspectos da sociedade. Isto é, a inclusão social é caracterizada pelo exercício da cidadania plena ou emancipatória, pela participação social, política e cultural, além do acesso aos direitos básicos. Nesse sentido, a efetivação de uma 16 política pública voltada à inclusão social no ensino superior implica a garantia do acesso e permanência do aluno, a eqüidade de oportunidades e a efetivação da democratização do espaço escolar. IV- REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. (Promulgada em 05/10/1988). São Paulo: Atlas, 1992. BRASIL. Portaria nº 1156 do Ministério da Justiça, de 20 de dezembro de 2001, sobre ações afirmativas. Disponível em: www.mj.gov.br/sedh/Cncd/AAMJ.htm. Acessado em 05/09/04. BELLONI, Isaura. Metodologia de avaliação em políticas públicas. São Paulo: Cortez, 2001. BONETI, Lindomar Wessler. “Educação inclusiva ou acesso à educação?” In: ANAIS da 28º Encontro da ANPED. GT- Política de educação superior. Caxambu, MG: 2005. CANDAU, Vera Maria Ferrão. “Universidade e diversidade cultural: alguns desafios a partir da experiência da PUC-Rio”. In: PAIVA, Ângela Randolpho (org.). Ação afirmativa na universidade: reflexão sobre experiências concretas Brasil- EUA. Rio de Janeiro: PUC-Rio: Desiderata, 2004. CARNEIRO, Moaci Alves. LDB fácil: leitura crítico-compreensiva artigo a artigo. 4 ed., Petrópolis/RJ: Vozes, 1998. CARVALHO, Cristina Helena Almeida de. “Política de Ensino superior e renúncia fiscal: da reforma universitária de 1968 ao PROUNI”. In: ANAIS da 28º Encontro da ANPED. GT Política de educação superior. Caxambu, MG: 2005. DEMO, Pedro. Participação é conquista: noções de Política Social participativa. São Paulo: Cortez, 1988. GOMES, Nilma Lino. “Cotas para a população negra e a democratização da universidade pública”. In: PEIXOTO, Maria do Carmo de Lacerda (org.). Universidade e democracia: experiências e alternativas para a ampliação do acesso à universidade pública brasileira. Belo Horizonte: UFMG Ed., 2004. SANTOS, B. de S. “Uma concepção multicultural de direitos humanos”. In: Lua Nova. (nº. 39), 1997. 17 SILVA, Alexandre Vitorino. O desafio das ações afirmativas no direito brasileiro. (mimeo) Brasília: UnB, 2004. VERÍSSIMO, Maria Valéria Barbosa. Educação e desigualdade racial. Políticas de ações afirmativas. UNESP e FE/USP. 26ª Reunião Anual da ANPED, 2003. Disponível em: www.anped.org.br Acesso em 26/09/04. www.acaoafirmativa.org.br www.ibge.gov.br www.ipea.gov.br 18