Bolsa Família e as reconfigurações da pobreza

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Universidade Federal de São Paulo
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Programa de pós-graduação em Ciências Sociais
Clarissa Aguiar Noronha
Bolsa Família e possíveis reconfigurações da pobreza
Guarulhos
2013
Universidade Federal de São Paulo
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Programa de pós-graduação em Ciências Sociais
Clarissa Aguiar Noronha
Bolsa Família e possíveis reconfigurações da pobreza
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal de São Paulo como
requisito parcial para a obtenção do
título de mestre em Ciências Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto
Bello e Silva
Guarulhos
2013
2
Noronha, Clarissa Aguiar
Bolsa família e Possíveis reconfigurações da pobreza /Clarissa Aguiar Noronha.
– Guarulhos [s.n.], 2013.
54 f.
Clarissa Aguiar Noronha
Orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto Bello e Silva.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de São Paulo, Escola de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, 2013.
Título em inglês: Bolsa Família and possibles poverty's reconfigurations
1. Ciências Sociais 2. Figuração social da pobreza 3. Pobreza 4. Bolsa Família
5. Cidadania ampliada
I.
Título
3
Clarissa Aguiar Noronha
Bolsa Família e possíveis reconfigurações da pobreza
Guarulhos, 16 de dezembro de 2013
Profº. Doutor Carlos Alberto Bello (Orientador – Presidente da Banca)
Universidade Federal de São Paulo - Unifesp
Profª. Doutora Cibele Rizek
Universidade de São Paulo - USP
Profº. Doutor Daniel Vazquez
Universidade Federal de São Paulo - Unifesp
Profª. Doutora Tatiana de Amorim Maranhã Gomes da Silva (Suplente)
Faculdades de Campinas (FACAMP)
4
Aos meus pais, Maria Elinete e João.
Ao irmão, Emerson e à amiga Bárbara Sá.
5
Agradecimentos
Começo os agradecimentos com uma lembrança, a da sempre querida
Bárbara Sá (em memória). A primeira amiga que fiz no primeiro dia da Unifesp,
nos longínquos anos de 2007, porque, segundo ela e só ela, eu tinha cara de pessoa
legal. Sua ausência tão prematura não deixa de ser sentida, mas prefiro sempre
celebrar a alegria da sua presença constante comigo, a sinceridade das suas
críticas, o brilho do seu sorriso, a força da sua luta e a bondade com que ajudava a
todos. Babi sabe o quanto foi e está sendo difícil, também sabe como desistir me
pareceu muito mais fácil por várias vezes, porém se sigo aqui é porque tem muito
dos ensinamentos dela comigo. A saudade é enorme, mas tudo bem, Babi, breve
nos reencontramos pra eu te contar que as minhas dietas, todas elas, continuam não
dando certo, porque me entupo de doces!
Agradeço ao meu irmão, Emerson e minha cunhada Fernanda, pelas
conversas, passeios e acolhidas em sua casa. Ao meu irmão, em especial, que
dividiu comigo as angústias sobre a pesquisa, as angústias sobre a vida, as
madrugadas em claro, os momentos de desespero e dos estudos em conjunto que
sempre terminam com uma seção de filme. Eu agradeço pelo apoio, pela amizade,
pelo companheirismo, pelo exemplo e pela garra com que enfrentou as muitas lutas
de todos os dias. Sem sua presença eu seria uma pessoa pior, pois “de todo o amor
que tenho, metade foi tu quem me deste”.
Agradeço à minha família pelo apoio e incentivo não só na realização
desta pesquisa, mas nos ensinamentos e valores passados para a vida. Agradeço
aos meus pais, pela paciência e pelo incentivo. Agradeço aos meus padrinhos,
Afonso (em memória) e Luiza, à Priscila, Antonio Carlos e Jefferson, por fazerem
parte da minha família e estarem presentes em todos os momentos da minha vida.
O desenvolvimento desta pesquisa só foi possível com a ajuda do
professor Carlos Bello que, de uma maneira muito generosa, me orientou e
despertou o interesse pelas questões da sociologia. Além disso, durante toda a
minha curta (porém por vezes muito extensa) carreira acadêmica me acompanhou,
me ajudando, cobrando ou conversando sobre as desventuras e aventuras da vida
acadêmica. Sem dúvidas seu apoio, paciência e, porque não, amizade, foram
imprescindíveis para a realização deste trabalho.
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Agradeço muito a minha amiga Sarah Toledo, companheira de passeios,
de risadas, do cinema, do bar, da festa, das angústias, dos dias difíceis, dos dias
ensolarados, das viagens, da alegria e da tristeza. Muito mais do que momentos,
compartilhamos sonhos, planos e objetivos. Obrigada por ser minha dupla e
compartilhar aventuras e desventuras desta vida. Sem sua companhia os dias
seriam mais tristes.
Agradeço ao meu amigo de longa data que, apesar de todas as ocupações
da vida adulta e correria da vida profissional, ainda está presente na minha vida,
tanto nos bons quanto nos difíceis momentos, além de ser confidente e transmitir
carinho em cada “curtir”: Raphael.
Agradeço também à Thaís Aleksejuk, amiga querida e preocupada.
Obrigada pela companhia, pelas risadas, pela presença nos momentos mais difíceis
e por estar comigo, me ajudando e aguentando minhas lerdezas.
Agradeço ao Paulo Reis, meu querido amigo. Pena que a distância
geográfica dessa cidade seja tão imensa e não permita que eu o encontre sempre
para agradecer pela companhia, pelas risadas, pela preocupação e pelas caronas.
Agradeço, ainda, à Jéssica Rodrigues. Não lembro bem quando nos
aproximamos e nos tornamos grandes amigas, desconfio que foi no bar. Só sei que
agradeço por todas as conversas, besteiras, risadas, festas, apoio, broncas e
bebedeiras compartilhadas.
Deixo meu agradecimento à Ana Lídia, grande amiga desde os primeiros
momentos de graduação, com quem já vivi momentos extremamente felizes e de
extrema dor também. Como diria Drummond: “não nos afastemos muito, vamos de
mãos dadas”.
Aos amigos que fiz durante todos esses anos, agradeço por encherem os
dias de sorrisos e alegrias: Luiz, Fabiana, Paula, Daniel e Ricardo.
A amiga Carolina, pelas risadas e pelas danças que tanta aliviaram os
momentos mais tensos.
Aos amigos William Acosta, Cristian, Daryel e Lizeth por se fazerem
presentes, ainda que de muito longe. Agradeço à globalização pela amizade e
companhia de vocês.
Por último, agradeço ao Programa de Pós-graduação da Universidade
Federal de São Paulo e ao apoio financeiro concedido pela CAPES, que
viabilizaram esta pesquisa.
7
“O homem é coisa vã, variável e ondeante e é
difícil formar sobre ele um juízo definitivo e
uniforme.” (Montaigne)
8
Resumo
A pesquisa realizada procurou demonstrar de que forma o recebimento do Bolsa
Família, principal política social do governo federal, impacta sobre a figuração
social da pobreza, reconfigurando a forma como ela é compreendida pelas
beneficiárias do programa. Embora os conceitos de pobreza e de exclusão social
sejam centrais para a análise, o conceito de exclusão ultrapassa a dimensão de
carências contida no conceito de pobreza, pois leva em conta as privações
materiais às quais os indivíduos estão expostos, e as privações culturais e políticas
decorrentes da primeira. Dessa forma, quem está excluído tem sua cid adania
negada na medida em que suas experiências de privações e de busca por inserção
social via mercado de trabalho os afastam do debate público. Além disso, estar
excluído do mercado de trabalho faz com que estes indivíduos percam a
capacidade de organização e reconhecimento de grupo, levando ao não acesso a
direitos sociais por um sentimento de inferioridade frente aos demais cidadãos, os
“incluídos”.
Palavras-chave: Figuração social da pobreza. Pobreza. Bolsa Família. Cidadania
ampliada.
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Resumen
La investigación pretende demostrar de que forma el recibo de Bolsa Familia, la
principal política social del gobierno federal, influye sobre la figuración social de la
pobreza, reconfigurando la forma como es comprendida por las beneficiarias del
programa. Aunque los conceptos de pobreza y exclusión social son fundamentales para
el análisis, el concepto de exclusión sobresale pues tiene en cuenta las privaciones
materiales a la que los individuos están expuestos así como las privaciones culturales y
políticas derivadas de la primera. Por lo tanto, los excluidos tienen sus ciudadanías
negadas ya que las dificultades y la búsqueda de la integración social a través del
mercado de trabajo los alejan del debate público. Además, estar en una situación de
exclusión del mercado laboral hace que estos individuos pierdan la capacidad de
organización y reconocimiento del grupo, dificultando su acceso a los derechos sociales
por un sentimiento de inferioridad frente a los otros ciudadanos, los que están
“incluidos” en la sociedad.
Palabras-clave: Figuración social de la pobreza. Pobreza. Bolsa Familia. Ciudadanía
ampliada.
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Abstract
The research sought to demonstrate how the receipt of Bolsa Família, the main social
policy of the federal government, impacts on the social figuration of poverty,
reconfiguring the way it is understood by the beneficiaries of the program. Although the
concepts of poverty and social exclusion are central to the analysis, the concept of
exclusion exceeds the size of deficiencies contained in the concept of poverty, because
it takes into account the material privations to which individuals are exposed, and the
cultural and political deprivations deriving from the first. Thus, those who are excluded
have denied citizenship to the extent that their experiences of hardship and search for
social integration through the labor market away from the public debate. Also, be
excluded from the labor market makes these individuals lose the ability of group
recognition, leading to no access to social rights by a sense of inferiority compared to
other citizens, "included".
Keywords: Social figuration of poverty. Poverty. Bolsa Família. Extended citizenship.
11
Sumário
Introdução .................................................................................................................... 13
Capítulo 01: Figuração Social da Pobreza: Delimitando Conceitos ....................... 22
1.1 Pobreza: Panorama Histórico .................................................................................. 22
1.2 Exclusão Social ........................................................................................................ 28
1.3 Figuração Social da Pobreza ................................................................................... 38
Capítulo 02: Figuração Social da Pobreza: Cidadania e Programa Bolsa Família
........................................................................................................................................ 49
2.1 Cidadania no Brasil: percurso histórico ................................................................... 49
2.2 Programa Bolsa Família .......................................................................................... 57
Capítulo 03: Figuração Social da Pobreza: Pesquisa Empírica .............................. 65
3.1 O PBF no Jardim Helena ......................................................................................... 65
3.2 Pesquisa Empírica: desenvolvimento ...................................................................... 70
3.3 Resultados da Pesquisa ............................................................................................ 76
Capítulo 04: Considerações Finais ..............................................................................78
Bibliografia ................................................................................................................... 85
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Lista de siglas
BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento
BVJ – Benefício Variável Vinculado ao Jovem
BPC – Benefício de Prestação Continuada
CadÚnico – Cadastro Único
CMAS – Conselho Municipal de Assistência Social
CRAS – Centro de Referência de Assistência Social
CREAS – Centro de Referência Especializada de Assistência Social
IDH - Índice de Desenvolvimento Humano
IGD – Índice de Gestão Descentralizada
IGD-E – Índice de Gestão Descentralizada Estadual
IGD-M – Índice de Gestão Descentralizada Municipal
MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
ONU – Organização das Nações Unidas
PBF – Programa Bolsa Família
PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
SASF – Serviço de Assistência Social à Família
13
Introdução
Questão inicial
Os programas de transferência de renda surgiram em países da Europa e nos
Estados Unidos após a primeira Guerra Mundial, no início do século XX, em meio
a um cenário de devastação social e econômica fruto da guerra e agravada pela
recessão de 1929. O objetivo era que o Estado pudesse garantir a seguridade s ocial.
Os modelos atuais de programas de transferência de renda têm inspiração
próxima ao Renda Mínima de Inserção, instituído na França em 1888, destinado às
pessoas maiores de 25 anos que não possuíam renda suficiente que garantisse sua
própria sobrevivência. Segundo Castel (1998), tanto o programa francês como os
atuais são “estratégias limitadas no tempo, a fim de ajudar a passar o mau
momento de crise, esperando a retomada de regulações melhor adaptadas ao novo
cenário econômico.” (p. 27).
No contexto da América Latina, o Brasil e o México foram os primeiros a
agregar políticas de transferência direta de renda ao âmbito das políticas públicas
nacionais. Hoje em dia, tais programas estão presentes em mais de 50 países, entre
América Latina, Ásia, África e Caribe.
O programa brasileiro Bolsa Família, é fruto da unificação de quatro
programas de transferência de renda que vigoravam no início de 2002 e que não
eram co-relacionados: Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Vale Gás e Cartão
Alimentação. O Bolsa Família foi instituído em outubro de 2003 e é um programa
de transferência direta de renda com condicionalidades vinculado ao Programa
Fome Zero do governo federal e ao Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome (MDS). O programa beneficia famílias em situação de pobreza e
de extrema pobreza e tem como objetivo assegurar o direito humano à alimentação
adequada, promovendo a segurança alimentar e nutricional e contribuindo para a
conquista da cidadania pela população mais vulnerável à fome. O programa atende
14
famílias com crianças de 0 a 15 anos, em situação de pobreza (renda mensal per
capita de R$ 70,00 a R$ 140,00) e em extrema pobreza (com renda mensal per
capita até R$ 60,00)
O Bolsa Família possui três eixos principais: transferência de renda,
condicionalidades e programas complementares. A transferência de renda promove
o alívio imediato da pobreza. As condicionalidades reforçam o acesso a direitos
sociais básicos nas áreas de educação, saúde e assistência social. Já os programas
complementares objetivam o desenvolvimento das famílias, de modo que os
beneficiários consigam superar a situação de vulnerabilidade.
As condicionalidades do programa referem-se a uma série de atividades a
serem cumpridas nas áreas de educação e saúde. No que diz respeito à saúde, as
família beneficiárias com crianças de até 07 anos de idade devem: manter o
calendário de vacinação atualizado; e pesar, medir e realizar exames clínicos. Para
famílias com gestantes e mães em período de amamentação, é necessário:
participar de programa de pré-natal; fazer acompanhamento pós-parto; e participar
de campanhas educativas sobre aleitamento materno e alimentação saudável.
Outro ponto importante é que a gestão do Bolsa família é descentralizada e
compartilhada por União, estados, Distrito Federal e municípios. Os três entes
federados trabalham em conjunto para aperfeiçoar, ampliar e fiscalizar a execução
do Programa. De acordo com dados do sítio do Ministério, há diversos estudos que
apontam para a contribuição do Programa na redução das desigualdades sociais e
da pobreza. Entre eles, o 4° Relatório Nacional de Acompanhamento dos Objetivos
de Desenvolvimento do Milênio aponta queda da pobreza extrema de 12% em
2003 para 4,8% em 2008.
A transferência direta de renda pressupõe a erradicação imediata da
pobreza, fazendo com que as famílias beneficiárias tenham acesso a serviços
básicos nas áreas de saúde e educação e tenham a possibilidade de inclusão social.
Neste sentido, uma das questões colocadas é, se o Bolsa Família, como principal
política de transferência direta de renda do Brasil, está inserido num processo de
desenvolvimento social que não busque apenas aliviar os efeitos da co ndição de
extrema pobreza, mas promova mudanças positivas nas condições de vida de seus
15
beneficiários, influenciando e alterando suas visões de mundo e as figurações
sociais da pobreza, configurando a cidadania ampliada.
Hipóteses
Considerando algumas referências acerca da pobreza e da exclusão social, a
pesquisa aqui apresentada irá discutir as mudanças nas figurações sociais da
pobreza e nas visões de mundo de seus beneficiários, tendo como foco as
experiências no bairro Jardim Helena em São Paulo.
O programa Bolsa Família apresenta dois objetivos: o enfrentamento da
pobreza e da exclusão social e a promoção da emancipação das famílias pobres.
Nesse sentido, pode-se observar, principalmente durante o primeiro governo Lula,
um incremento de ações públicas e privadas voltadas à redução da pobreza.
Durante os governos de Lula houve um número expressivo de medidas voltadas às
classes populares e, embora o Bolsa Família figure como uma das mais importante,
há que se destacar o aumento no salário mínimo; o volume de créditos públicos
disponíveis, aliados a um crescimento econômico com baixas taxas de inflação; e
aumento de empregos. Todas essas medidas foram essenciais, principalmente
porque tiveram (e têm) impacto maior entre as classes populares.
No
campo
político-ideológico,
tais
medidas
podem
ser
apropriadas
e
ressignificadas por seu público alvo - dentro do recorte desta pesquisa, interessanos os beneficiários do Programa Bolsa Família -, de acordo com suas visões de
mundo e trajetórias de vida. Desse modo, ao realizar esta pesquisa, adoto duas
hipóteses diametralmente opostas: todas as mudanças produzidas por essas
medidas sociais ao longo dos anos produziram um caminho para os direitos,
inseridos numa lógica de cidadania ampliada (Dagnino, 2004), permitindo às
beneficiárias do Bolsa Família uma maior autonomia e consequente aumento na
demanda por direitos (Rego, 2010); ou tais mudanças se caracterizariam como
alívio de carências, apontando para uma postura política mais passiva, na qual as
medidas não possibilitariam uma mudança na ordem social e o enfraquecimento do
capital, figurariam, antes, como uma estratégia de gestão dos níveis da pobreza e
16
estabilizariam possíveis conflitos sociais que decorreriam de políticas neoliberais
(Maranhão, 2009).
Objetivos
 Analisar as figurações sociais da pobreza e as visões de mundo que o
Bolsa Família, por meio das condicionalidades, está promovendo
entre as beneficiárias.
 Analisar se o programa Bolsa Família, como política social que
prevê a erradicação da pobreza e da exclusão e emancipação das
família abre caminho para uma participação política compreendida
no âmbito da cidadania ampliada.
Percurso Metodológico
A proposta é analisar o impacto do Bolsa Família, como principal política
de transferência de renda, sobre a visão de mundo de seus beneficiários e as
transformações de seus contextos sociais. Para tanto, alia-se a pesquisa teórica
sobre o conceito de cidadania, figuração social da pobreza e exclusão ao trabalho
de campo no Serviço de Assistência Social à Família (SASF), situado no distrito
do Jardim Helena, no extremo leste da cidade de São Paulo.
O SASF visitado funciona com uma parceria entre a Secretaria de
Assistência Social do município de São Paulo e a organização não-governamental
Movimento de Orientação à Criança e ao Adolescente (MOCA). Seu objetivo é
ofertar
ação socioassistencial
a
famílias em
territórios
que apresentam
concentração de beneficiários de Programas de Geração de Renda (BPC) – Bolsa
Família, Renda Mínima, Renda Cidadã -, e em situação de vulnerabilidade e risco
social. As principais atividades desenvolvidas são as oficinas para geração de
renda, que ocorrem trimestralmente; reuniões socioeducativas e encaminhamentos
para diversas áreas: conselho tutelar, defensoria, saúde, educação, habitação e
geração de renda.
17
O SASF está localizado no distrito do Jardim Helena, no extremo leste da
cidade de São Paulo, região periférica que cresceu às margens do Rio Tietê. Está
situado em uma área de grande vulnerabilidade social e ambiental, além de ser u m
dos locais mais populosos e carentes da cidade de São Paulo. As observações de
campo acontecem durante as oficinas de geração de renda (bordado em fita,
manicure, pintura, etc) e permitem uma aproximação com as beneficiárias, uma
vez que durante os intervalos das oficinas é possível conversar sobre a história de
vida delas, o que é de suma importância para a pesquisa, já que a heterogeneidade
das opiniões pessoais decorre, principalmente, de suas trajetórias de vida.
Isso porque, ainda que haja homogeneidade quanto às condições de vida e à
vulnerabilidade a qual estão expostas, são as trajetórias de vida que influem
diretamente na subjetividade dos indivíduos e nas suas percepções acerca do
contexto social no qual estão inseridos. Sendo assim, as relações estabelecidas
entre os beneficiários e o Estado, e o modo como entendem o Bolsa Família e a
cidadania não dependem exclusivamente de sua situação atual, mas de uma
trajetória que deve ser levada em conta, principalmente quando se propõe pesquisa
de campo.
O entorno do SASF é o de um bairro de classe média baixa. Por ser próximo
ao leito do Rio Tietê, suas ruas são planas e dividas em quadras, pois decorre de
um loteamento do que antes era uma fazenda. Porém, basta caminhar até o final da
rua que a situação de vulnerabilidade social começa a aparecer e nos deparamos
com a entrada de uma comunidade, na qual muitas das beneficiárias que participam
das atividades do SASF residem.
As atividades do SASF são voltadas para as mulheres, pois o benefício é
entregue em seus nomes e, porque, na maioria das vezes, são donas-de-casa que
cuidam de seus filhos enquanto seus companheiros saem para trabalhar. Muitas
veem as oficinas de geração de renda como uma distração, uma forma de escapar
dos problemas do dia-a-dia: casa, filhos, vizinhos; outras as enxergam como uma
possibilidade de algum ganho extra para ajudar em casa. Todavia, todas exaltam
em suas falas o orgulho dos trabalhos que fazem. Mais importante do que a
possível renda ou a distração que os cursos proporcionam, é o orgulho e satisfação
18
que sentem ao ver um trabalho terminado e elogiado (no caso de trabalhos
artesanais, como pintura em tecido, bordado em fita, etc).
Além dessas oficinas, há as reuniões socioeducativas, obrigatórias para as
beneficiárias do programa. Nessas reuniões, as assistentes sociais abordam temas
do cotidiano das pessoas, aproximando temas gerais, como o debate proposto sobre
o meio-ambiente que começou a tratar o tema da Rio +20, explicando o que era e
porque era importante, e terminou por falar da importância da reciclagem, de não
jogar lixo ou entulho nas margens do rio e como proceder junto à prefeitura caso
tenha um sofá ou algo do tipo que queira descartar. A intenção destas reuniões é
sensibilizar as pessoas para assuntos presentes em seus cotidianos e fornecer
informações sobre quais são e como buscar os serviços da prefeitura.
Essas reuniões e oficinas se enquadrariam em um dos pontos do programa
Bolsa Família que prevê ações e programas complementares que objetivam o
desenvolvimento das famílias, de modo que os beneficiários consigam superar a
situação de vulnerabilidade (Ministério do desenvolvimento social e combate à
fome).
Instrumentos de pesquisa
Para a realização da pesquisa foram utilizados a pesquisa documental e
bibliográfica e entrevistas abertas. As pesquisa documental e bibliográfica diz
respeito à primeira parte do trabalho e foi dedicada à análise de estudos acerca da
pobreza, exclusão social, figuração social da pobreza e cidadania. A pobreza aqui
compreendida não abarca somente os aspectos das privações econômicas, é
entendida como provação relativa, ou seja, refere-se também a um conjunto de
privações culturais e políticas que influencia diretamente na construção da
identidade e da visão de mundo dos indivíduos excluídos.
Na segunda parte foi realizada a pesquisa empírica com as beneficiárias do
Bolsa Família durante oficinas do SASF. As entrevistas abertas foram realizadas
com 20 beneficiárias do programa, moradores do bairro Jardim Helena, Itaim
Paulista e Jardim Robru, todos na zona leste da cidade de São Paulo. O objetivo da
19
pesquisa empírica foi verificar com o recebimento do benefício do Bolsa Família
impactou e mudou as relações sociais, as visões de mundo e as figurações sociais
da pobreza que as beneficiárias fazem de si mesmas. Por último, o trabalho buscou
verificar se a participação na política social amplia e muda a figuração social da
pobreza, fazendo com que os indivíduos passem a ser vistos como sujeitos de
direitos, reivindicando, também, maior participação política e abrindo caminho
para uma cidadania ampliada nos termos de Dagnino (2004).
Dos capítulo
A presente pesquisa está organizada em 4 capítulos além desta introdução,
assim distribuídos:
No capítulo um, enfoca-se as concepções teóricas acerca dos conceitos de
pobreza e exclusão social, buscando identificar as diferentes concepção acerca dos
temas e fazendo uma retomada histórica na forma como os conceitos são
compreendidos historicamente no Brasil. Também no capítulo 1, há a apresentação
da figuração social da pobreza e de como a identidade do cidadão pobre é
constituída. Esses conceitos são centrais pois permitem evidenciar as imbricadas
relações da cultura da hierarquia social, vivências discriminatórias e construção de
visões de mundo.
No capítulo dois propõe-se a retomada histórica do conceito de cidadania e
como ele foi compreendido ao longo da história da sociedade brasileira, focando o
conceito de cidadania ampliada. Esse conceito também é apresentado como central
na pesquisa, pois, uma das hipóteses apresentada é que, a partir da participação na
política social, os indivíduos podem alterar as figurações sociais da pobreza e as
visões de mundo, passando a se compreender como sujeito ativo e reivindicar
participação política que indique caminhos para o estabelecimento da cidadania
ampliada que pressupõe a participação e a luta política. O capítulo traz, ainda, uma
descrição do programa Bolsa Família, enfatizando os aspectos que caracterizam a
política social.
20
No capítulo três são apresentadas as análises e discussões referentes à
pesquisa empírica. O objetivo foi analisar os dados acerca das trajetórias de vidas
das beneficiárias, coletados a partir de entrevistas abertas, à luz dos conceitos
debatidos nos dois capítulo anteriores. A partir da análise estabelecida foi possível
compreender como as beneficiárias compreendem as mudanças em relação à
própria vida e se se compreendem como sujeitos de direitos.
Por fim, pontua-se algumas considerações conclusivas acerca da pesquisa.
Com base na pesquisa empírica compreendida à luz dos conceitos de pobreza,
exclusão social, figuração social da pobreza e cidadania, procura-se analisar como
o recebimento do Bolsa Família - e as novas relações sociais que ele implica-,
refletem na construção das visões de mundo e das identidades das beneficiárias. O
esforço é o de verificar as novas formas de reconfiguração da pobreza e se elas
apontariam para uma ampliação de direitos e participação política, traduzidas na
cidadania ampliada.
21
Capítulo 1 –Figuração Social da Pobreza: delimitando conceitos
“Nas sociedades modernas, a pobreza não é somente o estado de
uma pessoa que carece de bens materiais; ela corresponde,
igualmente,
a
um
status
social
específico,
inferior
e
desvalorizado, que marca profundamente a identidade de todos
os que vivem essa experiência” (Paugam, 2003: 45).
1.1
Pobreza: Panorama histórico
Para os objetivos propostos neste trabalho é de suma importância analisar a
pobreza como questão social no Brasil, porém antes se faz necessário deli mitar o
conceito e apresentar como este foi ganhando cada vez mais espaço na agenda
política. Ao se falar em participação política, cidadania, emancipação e políticas
sociais, o conceito de pobreza se torna central, uma vez que nos permite entender
os processos de agravamento e de tentativa de superação da desigualdade social.
Assim, apresentar e analisar algumas abordagens acerca da pobreza ao longo
século XX é de extrema importância para compreendermos as diferentes aplicações
e análises referentes ao tema até os dias de hoje e suas implicações nas políticas
sociais.
Antes de iniciar o debate conceitual, há que se delimitar o alcance do
conceito analisado. A construção das linhas de pobreza agregam distintas variáveis
que dão uma multiplicidade de sentidos ao tema: pobreza absoluta/relativa,
objetiva/subjetiva, rural/urbana e temporária/duradoura. Aqui nos detemos em duas
abordagens: absoluta e relativa, ambas relacionadas ao plano macroeconômico. A
pobreza absoluta diz respeito às carências físicas, isto é, a falta ou insuficiência
das necessidades nutricionais e necessidades básicas, como vestuário, moradia,
transporte, etc. Nesta categoria, o pobre seria aquele cuja renda é insuficiente para
atender as demandas básicas de sobrevivência na sociedade. Já a pobreza relativa
se refere aos padrões sociais e diz respeito à posição de um indivíduo ou de uma
família segundo a renda e o consumo em um país ou região. Importante destacar
22
que estas duas visões não são opostas ou contraditórias, mas sim complementares e
ampliam a visão sobre o conceito. Também adotaremos a pobreza em seu caráter
urbano, como ressalta Lavinas,
“não apenas porque a maioria dos pobres vive, hoje, nas cidades e zonas
metropolitanas, mas porque a reprodução da pobreza é mediada pela reprod ução do
modo urbano das condições de vida, através da dinâmica do mercado de trabalho,
da natureza do sistema de proteção social e do pacto de coesão social que é, na
verdade, o que estrutura o conjunto de relações e interaçãos entre a sociedade civil,
o Estado e o mercado” (Lavinas, 2002: 26).
Sobre pobreza há diferentes concepções, aqui abordaremos as três destacadas
pela literatura e que foram desenvolvidas ao longo do século XX: sobrevivência,
necessidades básicas e privação relativa. Estas correntes vão se suceder, pois “a
cada época, a classificação é reconstruída através da conservação dos elementos da
análise do período anterior, reorganizados em torno dos novos [...].” (Thomas,
1999 apud Lavinas, 2002).
Entre os séculos XIX e XX, até os anos 50, houve o predomínio da
perspectiva de sobrevivência. Esta concepção se iniciou na Inglaterra e influenciou
toda a Europa. A ideia que prevalece é a de que existiam indivíduos muito pobres
que não conseguiam suprir suas necessidades físicas – no caso, a fome. Dessa
forma, foi formulado o primeiro programa de proteção social, a partir de dados
estatísticos, que apresentava um valor baixo de assistência, uma vez que o objetivo
era manter apenas a sobrevivência dos indivíduos, isto é, o suficiente para que eles
se alimentassem. Este enfoque sofreu várias críticas por essa limitação à garantia
de sobrevivência do indivíduo e porque visava o controle de demandas por
reformas sociais. Ainda assim, influenciou o Banco Internacional para a
Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD). “Esse é ainda hoje o enfoque que
prevalece na definição de pobreza absoluta ou da indigência: um padrão de vida
aquém do que é exigido para assegurar a mera subsistência ou sobrevivência”
(Lavinas, 2002: 06).
A partir de 1970, agregou-se à concepção de sobrevivência a dimensão de
necessidades básicas. Neste momento, além de garantir a sobrevivência, era
necessário investir em saneamento básico, educação e saúde; ampliando, assim, as
exigências do que significava o combate à pobreza. Órgãos internacionais
23
passaram a adotar essa ideia, especialmente os ligados à Organização das Nações
Unidas (ONU). Aqui soma-se o caráter relativo à pobreza:
“as pessoas são relativamente pobres se não puderem usufruir plenamente ou
suficientemente, de condições de vida, isto é, dietas, amenidades, padrões e serviços
que lhes permitam atuar, participar e comportar-se tal como seria esperado, na
qualidade de membros que são de uma sociedade” (Townsend, 1993: 36).
Já no começo dos anos 1980, a pobreza passou a ter um aspecto social mais
forte, isto é, como privação relativa. Neste momento, sair da linha da pobreza
significava ter uma alimentação adequada, possuir certo conforto e desenvolver
papéis e comportamentos socialmente adequados (Crespo & Gurovitz, 2002:05).
Todavia, é neste período que surge o “Consenso de Washington”: elaborado pelas
instituições multilaterais de créditos dos Estados Unidos, segundo as quais se o
mercado funcionasse a contento, a economia do país prosperaria e isso levaria,
automaticamente, a uma melhora na qualidade de vida das pessoas e redução da
linha de pobreza.. Assim, tão importante quanto a satisfação das necessidades
básicas (alimentação, moradia e vestuário), é a capacidade que os indivíduos
possuem de satisfazê-las.
Dessa forma, a renda auxiliaria na obtenção de capacidades que também são
cerceadas por outros tipos de privações, quais sejam: desemprego, doenças, baixa
escolaridade, papéis sexuais ou sociais, idade avançada, localidade (local propenso
a inundações ou violências, por exemplo).
Por sua vez, o aumento dessas capacidades proporcionaria um aumento da
capacidade produtiva que poderia resultar numa renda mais elevada.
“Essa relação é, portanto, importante na eliminação da pobreza de renda. Com uma
educação básica e serviços de saúde melhores há um aumento no potencial do
indivíduo de auferir renda e de, assim, livrar-se da pobreza medida pela renda.
Quanto mais inclusivo for o alcance da educação básica e dos serviços de saúde,
maior será a probabilidade de que mesmo os potencialmente pobres tenham uma
chance maior de superar a penúria” (Crespo & Gurovitz, 2002:06).
24
Dentro desta visão, as políticas sociais de combate à pobreza não podem se
centrar unicamente na transferência de renda. A pobreza deve ser compreendida
como privação da vida que as pessoas realmente podem levar e das liberdades que
elas realmente têm. “Ao aumentar as capacidades, se enriquece a vida e torna as
privações humanas menos crônicas” (Crespo & Gurovitz, 2002:06). Essa distinção
entre desigualdade econômica e desigualdade de renda teve grande reflexo no
campo político e influenciou a elaboração dos instrumentos de avaliação e do
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
Simmel (1998), no início do século XX, ao considerar como pobre todo
indivíduo que necessita de assistência para se manter.
“Os pobres, enquanto categoria social, não são aqueles que sofrem déficits ou
provações específicas, mas os que recebem assistência ou deveriam recebê -la, em
conformidade com as regras sociais existentes. Por isso me smo, a pobreza não pode
ser definida como um estado quantitativo em si mesmo, mas tão -somente a partir da
reação social que resulta dessa situação específica” (Simmel, 1998: 96).
Lavinas (2002) apresenta três considerações acerca do pensamento
simmeliano. A primeira é que na concepção simmeliana, a pobreza é sempre
relativa, isto é, o pobre não tem condições de atender às necessidades mínimas já
supracitadas - moradia, vestuário, alimentação. Tais necessidades mínimas, por sua
vez, são variáveis e dependem do grau de desenvolvimento e da riqueza da
sociedade em questão. A segunda é a existência de uma interdependência entre
quem é assistido e a sociedade, dessa forma não há excluídos ou marginalizados,
uma vez que as medidas assistenciais existem para garantir a integração e a coesão
social. Por último, a terceira concepção diz respeito à relação entre direitos e
deveres: a fim de manter a coesão social, é um direito do pobre receber assistência
e um dever da sociedade combater a pobreza, assegurando o mínimo necessário,
pois “conceder mais do que o mínimo seria ética e moralmente indesejável, indo
25
além do que implica o dever de assistir. Por outro lado, não assegurar o mínimo
poderia ameaçar a estrutura social” (Lavinas, 2002: 34).
Está claro que o enfoque simmeliano remete à pobreza como falta de recursos
financeiros para a manutenção de um mínimo necessário à sobrevivência. Apesar
das mudanças ocorridas nas últimas décadas, ainda é predominante a visão
assistencialista associada à renda e consumo sobre a visão de desenvolvimento
humano pautado pela capacidade e liberdade do indivíduo. Entretanto, os dois
paradigmas expostos não devem ser vistos como excludentes ou contraditórios,
pois auxiliam na compreensão da questão da pobreza e exclusão social e na
orientação de políticas sociais voltadas ao combate à pobreza. Desse modo, para
uma melhor compreensão do conceito de pobreza aplicado aos objetivos aqui
propostos, é necessário se dedicar ao debate brasileiro acerca da pobreza. Essa
delimitação é importante para analisar como o tema da desigualdade e da exclusão
social vem sendo discutido, e em como é formada e entendida a figura do pobre na
sociedade brasileira.
O tema da pobreza ganhou destaque nos debates brasileiros a partir da década
de 60, quando organismos internacionais começaram a se preocupar com a
questão. No cenário nacional este também é o período em que os movimentos
sociais ganham maior visibilidade e intensificam as lutas por direitos e acesso a
bens e serviços.
O contexto socioeconômico do período do pós-guerra no Brasil é bem
diferente daquele vivenciado pela Europa. Embora não haja consenso sobre a
existência de um Estado de Bem-Estar Social, como na Europa, “o agravamento da
crise econômica e o aprofundamento da pobreza fizeram o discurso se aproximar
cada vez mais do discurso neoliberal, no qual o foco estaria na função do trabalho”
(Figueiró, 2012: 31). Neste período serão considerados pobres “todos aqueles cujo
padrão de consumo situa-se abaixo do mínimo vital em razão do seu déficit de
renda” (Lavinas, 2002:35), ou seja, a pobreza era avaliada segundo renda e
consumo das famílias. Tal enfoque mudará com a soma da categoria de
desigualdade: o consumo não é mais o ponto central, mas sim a falta de acesso a
bens e serviços.
26
A partir da década de 90, notam-se as diferenças entre as concepções de
pobreza presentes no Brasil, como aponta Figueiró:
“Por um lado, a pobreza referida à renda e ao consumo, relacionada à incapacidade
de suprir carências materiais e, por outro lado, a pobreza referida ao
desenvolvimento humano, à exclusão social e à submissão às relações de poder
instituídas. A primeira diz respeito aos aspectos definidos economicamente, cuja
ênfase recai sobre a questão da distribuição de renda. A segunda se refere àqueles
aspectos da pobreza definidos pela dimensão política e cultural” (Figueiró, 2010:
35).
O que observamos no Brasil e nos países vizinhos é, como assinala Ivo
(2006), a presença simultânea de Estados democráticos que pressupõem a
participação da sociedade civil por meio de uma cidadania plena, e de uma política
econômica neoliberal responsável por intensificar as desigualdades sociais e
reduzir cada vez mais a autonomia da população pobre, no sentido de
despolitização da cidadania. Essa dimensão econômica faz com que as políticas
sociais de combate à pobreza foquem apenas a escassez de renda, atendo -se à
garantia de sobrevivência – resolvendo a fome.
Em contrapartida, há a abordagem de Amartya Sen (1999), na qual a
questão de combate à pobreza não diz respeito somente à transferência de renda,
mas também ao desenvolvimento das capacidades do próprio indivíduo e de sua
participação na sociedade. Essa abordagem extrapola a dimensão econômica da
pobreza ao levar em conta aspectos como: desigualdade social, exclusão e
cidadania; ao pensar as políticas sociais de combate e erradicação da pobreza e da
fome. Diante dos diversos enfoques dados ao conceito de pobreza, torna -se
necessária a análise sobre desigualdade e exclusão social, com o objetivo final de
analisar como políticas sociais de combate à pobreza, no caso o Bolsa Família,
influencia a subjetividade dos beneficiários.
27
1.2
Exclusão social
Umas das análises sobre desigualdade social no Brasil é a que a relaciona à
má distribuição de renda, isto é, o quadro de desigualdade melhoraria caso a renda
fosse melhor distribuída. Embora tal ideia reduza o debate à dimensão meramente
econômica, nos auxilia a compreender outras análises que destacam, para além do
aspecto econômico, “as diferenças nas condições de trabalho, no acesso à
seguridade social, nos recursos de lazer, modos de vida e acesso a serviços sociais”
(Figueiró, 2010: 41). Segundo Esther (1998), não podemos excluir a noção de
conhecimento ao falar de desigualdade social, caso contrário reduziríamos a
desigualdade a um debate sobre status, com o risco de perder a complexidade e
abrangência do termo.
Porém, a noção de exclusão ultrapassa a de desigualdade social, pois não é
um produto dela, e lhe confere outro sentido ao agregar a dimensão de fragilidade,
decorrente da ausência de reivindicações organizadas e coesão identitária das
populações menos favorecidas (Paugam, 1996:15). Isto significa que pobreza é
diferente de exclusão social, mas é um dos fenômenos que a integram. Exclusão
social não se limita à privação material ou ao déficit de renda, mas abrange a
insuficiência de recursos sociais, políticos e culturais. Como aponta Lavinas (2002:
27), é transitar do universo restrito do não atendimento das necessidades básicas e
vitais para o espaço da equidade, da emancipação e do pertencimento.
Importante destacar que o conceito de exclusão social é multidimensional e
considerado impreciso, exatamente por aglutinar a ideia de recursos materiais e
sociais, além da ideia de não-pertencimento, ou seja,
perda da identidade e
dessocialização. O indivíduo excluído é aquele que perdeu a ideia de
pertencimento a um grupo social e, dada a ausência de recursos sociais, políticos e
culturais, perdeu também a capacidade de organização, reivindicação e afirmação
de sua cidadania. É um indivíduo que está á margem do tecido social.
Desse modo, a discussão acerca do termo exclusão social é central para a
discussão sobre políticas sociais de combate à pobreza, emancipação e cidadania
plena aqui proposta. É essencial, também, começar por uma retomada histórica do
28
conceito antes do foco na história brasileira e sua influência nos debates acerca de
políticas sociais e inserção social.
O conceito de exclusão tem origem na França da década de 60 e 70, onde se
observava que o desenvolvimento acelerado tinha formado grupos pobres que
estavam à margem dos benefícios obtidos com o progresso. Eram pessoas que
estavam excluídas dos meios de produção e assim, sem trabalho e sem benefícios,
se tornavam invisíveis diante de toda a sociedade.
Robert Castel (2005), ao estudar o conceito de exclusão, divide o debate em
três momentos ao longo da história: o primeiro consistiria na supressão completa
da comunidade e o genocídio seria a sua última forma – aqui identificaríamos os
mouros, e os judeus apátridas produzidos pelo nazismo, além das diferentes
categorias de banidos. Assim, essa modalidade de exclusão, a mais radical de
todas, parece impossível hoje em dia, a não ser pela degradação política e social de
grande parte da humanidade. (Figueirêdo, 2008: 21). O segundo momento abarca a
“grande reclusão” que consiste no isolamento de algumas pessoas dentro de
grandes espaços que estão dentro da comunidade, se caracterizando como uma
separação entre os que a frequentam e os que estão isolados. Leprosários,
manicômios e prisões seriam os exemplos dessa exclusão. O último momento seria
o do “status” atribuído a certos grupos dentro da comunidade e que geraria certas
privações e exclusões a estes indivíduos. Há, porém, que se ter cuidado com esse
“status”, pois a discriminação positiva pode se tornar negativa, sob o risco de que
parcela da população seja considerada como cidadãos de segunda classe.
Castel (2005) considera a exclusão como uma “nova questão social”, uma
ruptura dos vínculos sociais, em especial com o âmbito do trabalho, que culmina
com precariedade econômica e isolamento social gradativo, formando a “zona de
exclusão”. A saída do mundo do trabalho se configura, para Castel, como o
principal fator excludente, uma vez que, excluído da sociedade salarial , o
indivíduo não tem mais o reconhecimento e as proteções sociais advindas do
âmbito trabalhista. Nesta concepção de Castel, há uma segurança pautada no
mundo do trabalho, onde os indivíduos são considerados como incluídos ou
excluídos de acordo com sua posição no mercado de trabalho e acesso a benefícios
decorrentes.
29
“O núcleo da questão social hoje seria, pois, novamente, a existência de ‘inúteis
para o mundo’, de supranumerários e, em torno deles, de uma nebulosa de situações
marcadas pela instabilidade e pela incerteza do amanhã que atestam o crescimento
de uma vulnerabilidade de massa. Paradoxo, se as relações do homem com o
trabalho forem consideradas no interior de um longo período. Foram necessário
séculos de sacrifícios, de sofrimento, e de exercícios de coerção – a força da
legislação e dos regulamentos, a coerção da necessidade e também da fome – para
fixar o trabalhador em sua tarefa e nela conservá-lo através de um leque de
vantagens ‘sociais’ que vão qualificar um status constitutivo de identi dade social. E
no momento em que a’ civilização do trabalho’ parece impor-se definitivamente sob
a hegemonia da condição de assalariado que o edifício racha, repondo na ordem do
dia a velha obsessão popular de ter que viver ‘com o que ganha a cada dia’. Nã o se
trata, entretanto, do eterno retorno do infortúnio, mas, sim, de uma completa
metamorfose que apresenta hoje, de forma inédita, a questão de ter que fazer face a
vulnerabilidade de após proteções”. (Castel, 2005: 593)
Paugam (2003) também aponta como excluídos aqueles que estão afastados
do mundo do trabalho e os que dependem de políticas assistenciais. Ao analisar a
sociedade francesa, ele divide a exclusão em três fases que corresponde ao
processo de desqualificação social: os assistidos, que recebem algum benefício de
proteção social por conta de deficiências físicas ou mentais. Esse status ainda é de
exclusão e desvalorização, pois a proteção social garante apenas a sobrevivência.
Os fragilizados, caracterizados por uma fragilidade econômica, na qu al as
intervenções de políticas sociais são pontuais para aliviar problemas estritamente
financeiros. A diferença entre eles e os assistidos, é que esses últimos são
acompanhados por assistentes sociais.
Contudo, se a situação de precariedade
financeira se prolonga - a não inserção no mercado de trabalho -, pode levar os
indivíduos a condições de vida cada vez mais difíceis e limítrofes.
Por último têm-se os marginalizados, divididos entre: marginalidade
renegada que abarca o desejo de ser incluído social e profissionalmente; e a
organizada que, segundo Paugam (2003), representa a adaptação individual a uma
condição
miserável
e,
ao
mesmo
tempo,
uma
resistência
simbólica
à
estigmatização. Os marginalizados não possuem empregos formais, estão fora das
30
redes de proteção social do governo e lutam contra o estigma de marginalizados e
situação de exclusão:
“Os marginalizados, ou, para retomar a expressão usada por Verdes-Leroux, os
infra-assistíveis, são desacreditados em razão dos fracassos que marcam suas vida s.
Estigmatizados por seu meio social e confrontados com essa ‘diferença vergonhosa’
de que fala E. Goffman, esses indivíduos ‘à margem’ devem suportar a cada dia a
experiência de reprovação social”. (Paugam, 2003: 164)
Paugam (2003), ao delimitar o conceito de exclusão, aborda o conceito de
pobreza e apontará duas formas de abordagem: “Cultura da pobreza” e “pobreza
estrutural”. Cultura da pobreza compreende questões sociais, como: mortalidade
infantil, marginalização, violência doméstica; que fazem parte do dia-a-dia de
quem vive nas periferias. Já a pobreza estrutural se refere à situação de pobreza
como resultado da falta de emprego, da renda insuficiente e da falta de perspectiva.
Por conta dessas situações, os indivíduos se sentem inferiores e impossibilitados de
usufruírem de benefícios sociais e econômicos. Tais indivíduos não estão
acostumados com a situação de pobreza, estão condenados a viverem por mais ou
menos tempo em um contexto cultural que está no limite da exclusão social.
(Paugam, 2003: 52)
Como contraponto, Xiberras (1993) aponta que o conceito de exclusão social
é impreciso e de difícil delimitação. Isto porque, a autora considera que ao se falar
que alguém é excluído pode se referir tanto à exclusão do mercado de trabalho e
bens materiais, como de valores culturais, de ordem simbólica. Assim, esse estar
excluído (e incluído) é relativo e necessita de delimitação: de onde estão excluídos
e em que estão inseridos. Desse modo, para a autora, há diversas formas de a
exclusão ser representada, seja por rupturas de relações econômicas, laços
simbólicos ou espaços geográficos. A mais importante seria a ruptura de relações
econômicas, uma vez que são essas relações que demarcam o modelo de sociedade
e que são responsáveis pela exclusão em outros níveis. Estar excluído das relações
econômicas pode levar à exclusão simbólica das relações sociais e à
31
marginalização do espaço geográfico, o que significaria caracterizar a exclusão
como um acúmulo de deficiências e rupturas que contribuem para a situação.
Dupas (2001) vê a pobreza como fator principal da exclusão, uma vez que é ela a
responsável por dificultar ou impedir o acesso a bens e serviços mínimos que
garantem a sobrevivência. Aqui a pobreza seria responsável pela soma de déficits
econômicos e sociais que levariam ao estado de exclusão social.
Fica claro que exclusão social é tida tanto como um processo quanto como
um estado. Processo porque abarca as trajetórias que excluem/incluem e, estado,
pois é o resultado dessas trajetórias, a soma de exclusões em vários âmbitos
sociais. Para a proposta deste trabalho, a exclusão é tomada como um processo que
dificulta e impede o acesso aos direitos sociais, fazendo com que indivíduos que já
estão excluídos das relações de trabalho percam pouco a pouco seu
reconhecimento de grupo e capacidade de organização, o que leva a uma situação
de não acesso aos direitos sociais por uma ideia de inferioridade frente aos
incluídos. Esse processo de não acesso aos direitos sociais dificulta o
desenvolvimento de uma cidadania plena, que pressupõe a participação dos
cidadãos para demandarem e ampliarem o horizonte dos direitos. Contudo, antes
de abordar a cidadania, tema do próximo capítulo, é imprescindível lançar luz aos
estudos brasileiros sobre exclusão social e seu desenvolvimento nas sociedades
periféricas.
Os estudos sobre a exclusão social no Brasil começam a ter mais força a
partir da década de 80, embora, segundo Oliveira (1997), possamos encontrar os
primeiros estudos e usos da categoria de marginalidade social a partir da década de
60. A diferença central entre a exclusão vista em países europeus e nos Estado
Unidos, e a que figura na América Latina parece estar no processo que leva a este
estado. Enquanto na Europa e nos Estados Unidos o processo de exclusão está
ligado ao desemprego, à desfiliação dos trabalhadores; no Brasil parece ter origem
na acumulação capitalista e nas políticas neoliberais que agravam a desigualdade
social. Na América Latina e, precisamente, no Brasil não são apenas os
desempregados ou trabalhadores autônomos – com acesso restrito aos direitos
trabalhistas- que estão excluídos, mas, também, os trabalhadores pouco
qualificados e mal remunerados. Como observa Lavinas (2002),
32
“Com a deterioração das condições de emprego da década de 1990, observa-se uma
queda significativa dos salários, notadamente na segunda metade da década, ainda
que algumas bolhas de recuperação tenham sido registradas aqui e ali, como
resultado da vitória sobre a inflação. E embora a pobreza tenha diminuído por isso
mesmo, de modo geral agravou-se a desigualdade”. (Lavinas, 2002:45)
A exclusão social geralmente era vista nos debates como pobreza, fruto de
uma realidade transitória, ligada ao êxodo rural para as cidades e a problemas com
as moradias urbanas, como favelas e cortiços (Figueirêdo, 2008). Neste contexto o
foco está na teoria da marginalidade, em especial nos estudos de Lúcio Kowarick
(1972 e 1981). Ao analisar pobreza e marginalidade no âmbito da industrialização,
Kowarick aponta como marginalizado àqueles indivíduos que estão excluídos dos
benefícios da urbanização. Esses processos de urbanização dariam origem a
espaços marginais, onde a pobreza seria decorrente de trabalhos informais ou
formais com baixa remuneração e condições de habitação precárias. Tais espaços
seriam homogêneos, isto é, todos estariam em uma mesma condição social e
cultural, que dificultaria a inserção deles na “cultura dominante”.
Francisco de Oliveira (1972) se opõe à marginalidade, pois considera que “a
expansão capitalista da economia brasileira, aprofundou no pós-64 a exclusão que
já era uma característica que vinha se firmando sobre as outras e, mais que isso,
tornou a exclusão um elemento vital de seu dinamismo” (Oliveira, 2006: 118). Ou
seja, ser excluído não significa uma inserção inadequada dos trabalhadores ao
mercado de trabalho, significa, na verdade, estar excluído dos ganhos de produção
derivados do crescimento econômico do pós-64. O autor aponta, ainda, que já
havia um processo de exclusão social antes do golpe militar, este só foi agravado e
incorporado em absoluto à dinâmica econômica brasileira.
Perlman (1977) contribui para o fim da ideia de marginalidade ao considerar
que, ao fazer referência às favelas e periferias como marginais, cria-se um espaço
que não faz parte da sociedade em si, um espaço alheio àquela dinâmica social.
Desse modo, segundo ela, é necessário compreender que a exclusão e, por
33
conseguinte, tais espaços estão integrados à sociedade capitalista e à sua forma de
organização. A partir desse ponto de vista, os excluídos não configuram uma parte
descolada da sociedade, eles participam do sistema econômico e social,
desenvolvendo uma função específica.
“A exclusão contemporânea é diferente das formas existentes anteriormente de
discriminação ou mesmo de segregação, já que cria indivíduos inteiramente
desnecessários ao mundo laboral, sugerindo não haver mais possibilidades de
inserção. Assim, os excluídos não são mais residuais nem temporários, mas
contingentes populacionais que não encontram lugar no mercad o”. (Caldeira, 2007:
09)
Os estudos brasileiros sobre exclusão foram muito influenciados por Castel
(2005) e Paugam (2003). Os escritos de Castel acerca da exclusão estão
concentrados no contexto de políticas neoliberais que acabam por excluir os
trabalhadores das relações salariais. Além da crise de desempregos dos anos 80
vivenciada pela França, o autor também aponta como fator de exclusão, as relações
sociais vulneráveis e a precarização de políticas públicas que o Estado neoliberal
passou a promover.
Todas
essas
“desestabilização
medidas
dos
de
estáveis”
vulnerabilidade
e
e
“desfiliação”:
consequente
precarização
a
levam
à
exclusão
compreende um processo que envolve trajetórias de vulnerabilidades, fragilidade
ou precariedade e até ruptura dos vínculos sociais, por meio dos cinco eixos: eixo
ocupacional, zona de vulnerabilidade, zona de inserção, zona de desvinculação ou
exclusão, eixo sócio-familiar, e zona de assistência (Figueirêdo, 2008). Assim,
exclusão é uma situação-limite, pois já foi precedida pela vulnerabilidade e pela
assistência social.
Paugam (2003), ao analisar a França e a pobreza decorrente do aumento do
desemprego nos anos 80, utiliza o termo “desqualificação social”, cuja importância
é reconhecer os grupos sociais mais vulneráveis a situações de exclusão, e propor
políticas públicas de combate à pobreza e assistência social.
34
Embora não tenha havido um Estado de Bem-estar Social no Brasil, como
houve na França estudada pelos autores, os dois estudos citados contribuem para
analisar os processos sociais e históricos brasileiros que dificultaram a constituição
de um Estado social e formaram um Estado mínimo, responsável por efetivar uma
cidadania restrita, amenizando conflitos e intervindo nos movimentos sociais. Tal
cidadania torna os grupos cada vez mais vulneráveis ao mesmo tempo em que o
acesso e reivindicação aos direitos ficam restritos, fazendo com que estejam
distantes do horizonte dos benefícios sociais.
Diante disso, é necessário analisar as contribuições dos estudos brasileiros
acerca da delimitação e aplicação do termo exclusão. Sua análise importa na
medida em que procura dar conta das contradições históricas, políticas e sociais
que marcam as sociedades, principalmente a brasileira que passou por períodos
ditatoriais, de recessões econômicas e de democracia que, no período que nos
interessa, é marcado por ampliação das políticas sociais de combate à pobreza.
Desse modo, os estudos de Escorel (1999), ao analisar o conceito de exclusão
não considera somente a dimensão da privação material e falta de recursos. Para a
autora, o termo exclusão abrange a ideia de exclusão completa, isto é, quem está
nessa
situação
sofre
também
a
privação
do
desenvolvimento
de
suas
potencialidades humanas. Essa privação dificulta as relações humanas e sociais,
levando ao espaço da “não cidadania” e do “não pertencimento”. Estar excluído
significa que sua inserção na sociedade se dará pelo estado de pobreza, ou seja,
como alguém inferior que necessita a preservação de sua sobrevivência somente, e
não o desenvolvimento de potencialidades e a cidadania plena. A história brasileira
é marcada por processos históricos com situações de exclusão – como a escravidão
– e, por conseguinte, de situações de não cidadania.
Lavinas (2002) considera que, ao tratar do tema, devemos falar em “exclusão
na sociedade” e não em “exclusão da sociedade”, uma vez que estar excluído
significa não estar integrado à sociedade, pois as transições entre emprego formal e
informal promovem uma cidadania interrompida e dificultam a formação de uma
identidade de classe. Essa transitoriedade torna mais difícil a organização das
reivindicações de classe e demandas por direitos, já que os indivíduos
experimentam períodos de não integração e pertencimento à sociedade. Essa visão
35
se aproxima da que se encontra em Abramovay et al (2002), pois compreende a
exclusão social como “a falta ou insuficiência da incorporação de parte da
população à comunidade política e social, de tal maneira que lhes é negado ou
dificultado o seu acesso formal ou informalmente, aos direitos de cidadania”
(Figueirêdo, 2008: 92).
Outra forma de compreender a exclusão social está nos autores que a
analisam sob a ótica das contradições geradas pelo capitalismo.
“Em síntese, a exclusão é um processo complexo e multifacetado, uma configuração
de dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas. É processo sutil e
dialético, pois só existe em relação à inclusão como parte constitutivo dela. Não é
uma coisa ou um estado, é um processo que envolve o homem por inteiro e sua s
relações com os outros. Não tem uma única forma e nem é uma falha do sistema,
devendo ser combatida como algo que perturba a ordem social, ao contrário, ele é
produto do funcionamento do sistema” (Sawaia, 1999: 09 apud Figueirêdo, 2008:
92).
Assim, a exclusão é parte integrante do funcionamento da sociedade
capitalista, decorrente de sua acumulação. As políticas neoliberais contribuem para
o agravamento da desigualdade econômica e aumento das taxas de desemprego,
levando à piora nas relações sociais e na condição de vida da população. Por fim,
estar excluído significa estar excluído da acumulação de riquezas, do mercado de
trabalho formal, da participação política e ter ausência de políticas de proteção
social.
A exclusão social é aqui entendida como um conceito com enfoque mais
dinâmico e complexo que a percepção de carências contida no conceito de pobreza.
A exclusão envolve privações materiais decorrentes dos processos e relações
sociais do sistema capitalista que leva a privações políticas e culturais, como
aponta Escorel (1999). Tais privações dificultam o desenvolvimento das
potencialidades humanas, ou seja, a exclusão leva os indivíduos a uma situação de
“não cidadania”. Indivíduos que estão excluídos na sociedade, para utilizar os
36
termos de Lavinas (2002), têm a sua participação política e a demanda por direitos
comprometida, os afastando da cidadania plena.
Políticas de proteção social, além do combate à pobreza, devem levar em
conta a dimensão da emancipação dos indivíduos. Isto é, promover e incentivar o
desenvolvimento das potencialidades humanas, proporcionando maior autonomia e
consequente participação política, importante para seu reconhecimento como
cidadão e não como alguém que necessita de benefício social para garantir a sua
sobrevivência, com o estigma de ser pobre – como apresenta Lavinas (2002) -, e
para a vivência de uma cidadania com reivindicação não só de reconhecimento,
mas, também, por mais direitos.
Desse modo, é importante abordar, ainda, a ideia de inserção social. Diante
do debate aqui proposto, a inserção social – dentro da sociedade capitalista -, se
daria a partir das relações trabalhistas, pois o acesso ao mercado de trabalho
formal favorece a segurança material, consolida relações sociais e devolve uma
identidade ligada ao trabalho a quem parecia estar invisível do tecido social. Já no
âmbito das políticas sociais de combate à pobreza e à exclusão social, é necessário
que elas abarquem “o processo que caracteriza a passagem das pessoas, famílias ou
grupos das situações de exclusão para as de participação social e cidadania”
(CIES/CESO I&D, 1998: 09 apud Rodrigues et al, ?). Isso significa que a inserção
social deve ocorrer por meio de um sistema de proteção social que alivie as
desigualdades sociais e promova ações que garantam o desenvolvimento dos
direitos e ampliação da cidadania.
Em suma, a inserção social das famílias ou grupos que estão excluídos se
assenta no alívio imediato da condição material da pobreza e nas instituições que
vão apoiar e incentivar o processo de desenvolvimento de capacidades,
reconhecimento de direitos e ampliação da participação política da cidadania.
Essas instituições seriam, principalmente, as de educação, saúde e qualificação
profissional.
A exclusão é provocada pelo acúmulo de fatores de risco social que precisam
ser analisados de acordo com as especificidades de cada sociedade. Além disso, é
um conceito multidimensional que engloba, também, a percepção de quem se
37
encontra nesta situação acerca de sua condição e sobre as políticas de proteção
social da qual é o público alvo. Por isso, é importante debater os conceitos
relacionando-os ao trabalho de campo com os beneficiários do Bolsa Família, uma
vez que “a percepção do pobre de si mesmo, esse enfoque subjetivo, torna -se
igualmente relevante pois sua capacidade de agir, de funcionar, pode ser amputada
pela vivência do estigma e da perda intrínseca do seu valor como indivíduo”
(Destremeau e Salama, 2002: 06 apud Lavinas, 2002).
Portanto, analisar a figuração social da pobreza na sociedade e sua influência
na subjetividade dos indivíduos é relevante na medida em que nos auxilia a
compreender se a política de proteção social, ademais de promover o alívio
imediato da pobreza pela transferência monetária, garante e amplia a demanda e
reivindicação por direitos.
1.3
Figuração social da pobreza: direito a ter direitos
Como visto anteriormente, a questão da pobreza no Brasil sempre foi
compreendida como uma consequência histórica, fruto de nossa modernização e do
mundo globalizado. A pobreza, como aponta Vera Telles (2001), sempre foi vista
como um problema de nosso atraso, passível de ser superada com o progresso e a
modernidade, entretanto, a partir da década de 80, o debate muda e ela passa a
figurar como consequência inevitável do capitalismo, da globalização e do avanço
tecnológico.
Telles (2001) considera que essa é a nossa “questão social”: se tornar uma
sociedade cosmopolita e moderna que supere as injustiças e garanta aos indivíduos
maiores liberdades e igualdade. Ela ganhou destaque a partir da década de 80 com
as lutas dos movimentos sociais, onde o centro dos debates passou a ser a
construção de uma sociedade mais justa. De fato, a questão social ganhou a
dimensão de uma “dívida social” que deveria ser sanada para que, assim, o país se
modernizasse.
38
“Nas suas múltiplas evidências, evoca o enigma de uma sociedade que não consegue
traduzir direitos proclamados em parâmetros mais igualitários de ação. Sinal de
uma população na prática destituída de seus direitos, a pobreza brasileira não
deixa, de fato, de ser enigmática numa sociedade que passou por mudanças de
regime, teve a experiência de conflitos diversos, de mobilizações e reivindicações
populares; que mal ou bem fez sua entrada na modernidade e proclama, por isso
mesmo, a universalidade da lei e dos direitos nela sacramentados” (Telles, 2001:15).
A autora chama atenção ao fato de que, mesmo fazendo parte da sociedade
capitalista, o tema da pobreza nunca conseguiu mobilizar e suscitar um debate
público que levasse em conta a diminuição da desigualdade e colocasse em
discussão na agenda pública a necessidade de ações que garantissem condições
mínimas de sobrevivência. Isto porque, a sociedade brasileira tem um histórico
conservador e autoritário, onde as questões sociais nunca foram tratadas na
dimensão da cidadania, da luta e reivindicação por direitos, mas sim como
privilégios (Telles, 2001).
A sociedade brasileira é organizada de forma hierárquica política e
economicamente, isso faz com que a dimensão de reciprocidade entre os
indivíduos se perca, na medida em
que tal
hierarquização impede o
reconhecimento do outro como sujeito detentor de direitos e legitima relações
sociais fundadas na ideia de privilégios. As leis aqui estabelecidas com o princípio
universalizante de reconhecimento de todos como sujeitos de direitos não
conseguiram se sobrepor à política de privilégios que vigorou durante toda a
história brasileira. Dessa forma, as leis apenas reafirmaram as posições de
privilégio social de alguns grupos ao invés de promoverem a igualdade ent re os
indivíduos, levando à invasão do público pelo privado, onde alguns têm seus
direitos negados no seio das relações sociais. Essa é a figuração de pobreza que
aparece na sociedade brasileira: a pobreza é tida como natural de tal forma que o
debate não se centra na questão da justiça e da igualdade, mas sim no poder
privado, isto é, em manter privilégios de grupos que ocupam posições hierárquicas
superiores na trama das relações sociais.
39
“È uma figuração que corresponde ao modo como as relações sociais se estruturam
sem outra medida além do poder dos interesses privados, de tal modo que o
problema do justo e do injusto não se coloca e nem tem como se colocar, pois a
vontade privada – e a defesa de privilégios – é tomada como a medida de todas as
coisas” (Telles, 2001: 21).
Para compreender a figuração social da pobreza, é necessário retomar os
acontecimentos políticos que dizem respeito ao acesso a direitos – principalmente
os direitos sociais- nos anos 30, especialmente porque foi nesta década que o país
experimentou a ampliação da proteção social por meio de direitos trabalhistas. Tais
direitos, ao mesmo tempo em que liberaram os trabalhadores dos desmandos dos
patrões, aumentaram a tutela do Estado. Segundo Wanderley Guilherme dos Santos
(1979), esta é a cidadania regulada, ou seja, o reconhecimento como cidadão
brasileiro estava atrelado ao trabalho e, mais importante, à carteira de trabalho.
O cidadão não é reconhecido como sujeito detentor de direitos dentro de uma
comunidade política, mas sim pelo seu vínculo profissional que permite o acesso
aos direitos sociais, aqui traduzidos como direitos trabalhistas. A dimensão da
reivindicação, da luta e da participação política para ampliação e vivência da
cidadania não é levada em conta, pois ser cidadão significa somente ser
trabalhador e ter acesso aos diretos sociais. Aqui se apresenta o que Telles (2001)
considera como o aspecto mais desconcertante da sociedade brasileira: ao invés de
a lei garantir a universalização dos direitos, acabou por reafirmar desigualdades
sociais e anular os efeitos pretendidos da proteção social. Isto porque, ao vincular
o acesso aos direitos sociais a estar empregado, “destitui indivíduos de suas
prerrogativas de cidadania e produz a fratura entre a figura do trabalhador e a do
pobre incivil” (Telles, 2001:24).
Ao associar direitos ao vínculo profissional, acentuam-se desigualdades que
passarão a opor trabalhadores e não trabalhadores; os que têm acesso aos direitos
sociais e os que não possuem; os cidadãos – que disfrutam, na dimensão mesmo de
privilégios, de todos os direitos -, e os não-cidadãos, aqueles que não estão
inseridos na cidadania por não possuírem um emprego, uma qualificação
profissional. Para esse não-cidadão é que serão destinadas as políticas de proteção
40
social, mas entendidas sob o véu de assistência social e, para retomar a discussão,
sem a dimensão do desenvolvimento das capacidades, mas unicamente para
garantir a sobrevivência, garantir as necessidades mais básicas.
“É o lugar no qual a pobreza vira “carência”, a justiça se transforma em caridade e
os direitos, em ajuda a que o indivíduo tem acesso não por sua condição de
cidadania, mas pela prova de que dela está excluído” (Telles, 2001: 26).
Sposati (1988) chama isso de “mérito da necessidade”, ou seja, não há mais
responsabilidade social do Estado, a pobreza passa a ser um estigma, uma vez que,
para ter acesso às políticas de proteção social, há que se declarar e provar sua
situação de pobreza extrema. Isto significa que o não-cidadão precisa assumir
publicamente que não tem condições de manter a si e a sua família e, por isso,
precisa de uma “ajuda” estatal. As pessoas pobres não terão acesso aos direitos
sociais por serem cidadãos, terão uma ajuda estatal por provarem que estão
excluídos e que fracassaram em conseguir um trabalho formal.
Toda a questão da igualdade, justiça e responsabilidade social é retirada do
Estado e este passa a ser visto como benevolente e a pobreza passa a ser
compreendida como algo natural. Nesse cenário, não se coloca mais em debate a
hierarquização social supracitada, pois a organização social divide os cidadãos em
empregados e não empregados, trabalhadores e não trabalhadores. E é nessa
relação com o mundo do trabalho formal que se forma a figura do pobre: a
distinção entre os que estão inseridos no mercado de trabalho formal e os que estão
fora dele forma o estigma negativo do pobre, no qual este é visto como
incapacitado e sem condições de se manter na sociedade e dependente da ajuda e
caridade estatal; enquanto àquele que trabalha prova sua capacidade e o
merecimento de ter os direitos sociais garantidos. A figura do pobre é formada,
então, sobre o estigma negativo da incapacidade e sob a ideia de oposições:
empregado/desempregado, capacitado/incapacitado, sujeito de direitos (inclusive
os sociais)/carente.
41
Telles (2001) aponta que essa construção social do pobre está ligada à
ausência de um imaginário igualitário na sociedade brasileira. Esse imaginário
influencia a forma como as pessoas se compreendem e são compreendidas na
sociedade. Corresponde à ideia de que sobreposto aos interesses particulares, os
indivíduos se reconhecem como semelhantes e, por isso, detentores dos mesmos
direitos na sociedade. É o imaginário igualitário que faria com que questões como
desigualdade social, justiça e igualdade fossem debatidas publicamente, sob o
signo de reconhecimento do outro como igual e compreensão de que aquela
situação poderia ser vivenciada por qualquer um a qualquer momento.
Sendo assim, as políticas de proteção social seriam reivindicadas e
entendidas como direitos. Contudo, segundo a autora, a sociedade brasileira nunca
discutiu justiça social pautada por esse imaginário igualitário, mas por um
imaginário tutelar, no qual cabe ao Estado garantir a sobrevivência dos indivídu os
não por conta dos direitos, mas porque é um Estado benevolente (Telles, 2001). Os
direitos sociais convivem com a hierarquização social da sociedade, que promove
discriminações, classificando os indivíduos entre superiores e inferiores. Dessa
forma, a sociedade se divide e só há o reconhecimento de si e dos outros dentro de
sua posição social, promovendo, como aponta Hannah Arendt (1976) a compaixão
daqueles que estão em posição superior, porém não a indignação moral.
“(Compaixão) é um sentimento estritamente privado e as ações que são por ele
movidas marcam distâncias e reafirmam a inferioridade do outro, que é seu objeto. A
indignação moral só pode existir se houver uma medida comum de equivalência,
tendo na lei a referência simbólica a partir da qual o s indivíduos, na irredutível
singularidade de cada um, podem se reconhecer como semelhantes” (Arendt apud
Telles, 2001).
É importante, como aponta Telles, compreender o que é pobreza na sociedade
brasileira e o que significa ser pobre. Os direitos sociais aqui, como vimos, desde
sua origem estiveram relacionados às leis trabalhistas. Ou seja, os direitos sociais
eram traduzidos em leis trabalhistas em uma sociedade cujos direitos políticos e
sociais estavam distantes do horizonte da população. Essa correspondência entre
direitos sociais e leis trabalhistas fez com que toda a legislação fosse
42
compreendida como ações de um Estado paternalista e assistencial, cuja ênfase da
política social não era a busca por justiça e igualdade, mas sim uma busca moral,
pois o objetivo era preservar a família. Havia um distanciamento entre os pobres e
as elites que impedia o entendimento das necessidades e do modo de agir das
classes populares. Tal distanciamento era o principal empecilho para que as
diferenças fossem, na verdade, vistas e analisadas como pontos de aproximação
entre as classes e consequente busca por justiça social.
Nesse momento fica clara a total destituição dos pobres:
“[...] privação da palavra, ou seja, a privação de um mundo de significações no qual
suas vontades, necessidades e aspirações pudessem ser elaboradas e reconhecidas
nas suas próprias razões” Telles, 2001: 46).
O distanciamento presente na sociedade brasileira dimensiona a exclusão da
cidadania, uma vez que aquele que se encontra na situação de pobre dificilmente
usa o seu direito à palavra, ou qualquer expressão, já que isso poderia marcar sua
origem humilde e pouco estudo. A expressão, principalmente falada, marcaria o
lugar social das pessoas, evidenciando quem tem recursos e quem não tem, quem
está numa posição superior e quem está numa posição onde necessita “favor” do
Estado.
As leis trabalhistas da década de 30 são importantes exatamente porque
conseguem retirar essa estigmatização da pobreza, na medida em que confere a
quem trabalha um reconhecimento social perante o Estado e às outras pessoas. O
trabalhador agora é aquele que, embora ainda não seja semelhante às elites, é
alguém cujos direitos sociais estão assegurados, isto é, por meio da legislação
trabalhista, o trabalhador passa a ser reconhecido como cidadão.
Contudo, a cidadania adquirida por estes trabalhadores não significa maior
participação política, reconhecimento ou busca por justiça. Tem um significado
muito mais moralizante, pois o cidadão digno de respeito, agora, ou é quem possui
mais dinheiro ou o cidadão trabalhador que apesar de pobre, é honesto,
organizado e trabalhador. Ao conseguir um trabalho você se distancia das
43
significações da pobreza, porque você já não é reconhecido como sujeito de
direitos, mas alguém com aspectos morais positivos: honestidade, organização,
pontualidade. É como se o pobre, ao conseguir um trabalho, saísse do estigma da
pobreza e adquirisse uma identidade social que garanta suas qualidades morais
(Telles, 2001). Ressaltamos que tais qualidades são “dadas” pelos donos dos
estabelecimentos comerciais, quer dizer, a visão que os outros tinham sobre você
muda a partir do momento em que terceiros (donos de empresas e lojas)
reconhecem suas qualidades morais e depositam suas expectativas e confiança.
Com a legislação trabalhista aprovada durante o governo getulista, o
trabalhador passou a ter um reconhecimento e um valor que antes não tinha,
principalmente por conta do passado de escravidão da sociedade brasileira, na qual
o trabalho era compreendido como algo inferior pelas elites. A partir da aprovação
da legislação trabalhista, a cidadania e a existência civil dos indivíduos como
detentores de direitos estavam atreladas a ter a carteira de trabalho assinada. O
indivíduo passa a ser reconhecido como cidadão a partir do trabalho, que prova
também a sua honestidade e o livra do estigma da pobreza, como alguém que
previamente há de se ter cuidado, pois pode ser perigoso por viver numa situação
de pobreza. O trabalhador passa, também, a ser reconhecido pelo Estado, pois é
alguém com dignidade que merece a proteção dos direitos sociais e assim, seu
pleno reconhecimento como cidadão, como quem faz parte da Nação.
Essa diferenciação pública entre o pobre trabalhador, que “merece” direitos
por ter a honestidade comprovada via carteira de trabalho, e o pobre visto como
vagabundo e, por isso, um risco potencial para os demais, evidencia uma sociedade
hierarquizada que admite uma divisão entre os cidadãos que os classifica entre
merecedores de direitos e aqueles que têm a cidadania negada. O pobre, dentro
dessa hierarquização, é o subalterno, aquele que, segundo Chauí (1987, apud
Telles, 2001), “tem o dever da obediência, é inferior, merece a tutela, a proteção, o
favor, mas jamais os direitos [...].” Quando o direito é negado a alguém, retira-se
também o valor de suas reivindicações e o torna incapaz de reivindicar a igualdade
que consta na lei.
Essa privação de direitos revela o não-reconhecimento do outro como
“sujeito de interesses, aspirações e razões válidas e significa uma forma de
44
sociabilidade que não se completa, porque é regida por uma lógica de anulação do
outro como identidade.” (Telles, 2001)
Entender que o outro é invisível quanto aos seus direitos ou é alguém que
deve obediência por supostamente estar numa posição subalterna de cidadania, é
uma violência simbólica, pois retira o protagonismo da ação de qualquer
reivindicação ou manifesto. Porém, se esse não-reconhecimento faz parte de uma
violência simbólica, ela se torna explícita quando se defende a violência ao pobre
transgressor e, principalmente, a violência policial dirigida aos pobres.
Quando se aborda o tema da pobreza e em especial o de figuração social da
pobreza, é necessário adentrar na relação das forças policiais dirigida aos pobres,
pois essa associação está presente em toda a sociedade brasileira. Se a partir das
leis trabalhistas no governo de Getúlio Vargas e durante os anos de ditadura a
honestidade estava ligada à carteira de trabalho, nos dias de hoje não há diferenças
para os cidadãos pobres que continuam tendo que provar seus valores morais
baseado na carteira de trabalho para, assim, ser considerado alguém com alguns
direitos.
Os cidadãos pobres, em sua maioria moradores de periferias de grandes
centros urbanos, estão sempre sob suspeita, e é essa condição permanente que
legitima as ações policiais violentas, explicitando a violência simbólica e
reafirmando a posição de destituídos de direitos, já que as leis são interpretadas
pelos próprios policiais e aplicadas de modo distinto a cada cidadão. Aos
moradores de bairros mais pobres é destinada uma ação policial mais violenta, pois
os lugares são mais perigosos – correspondência entre quanto mais pobre mais
perigoso-, e, ademais, seus moradores já estão acostumados a conviver diariamente
com a violência, como se ela fosse um código social entendido pelos moradores e
pelos pobres em todos os lugares.
Para Telles, este atitude reflete uma confusão entre ordem legal e ordem
moral: esse arbítrio por parte dos policiais na maneira como tratar os cidadãos
evidencia a interpretação da lei e mostra que, apesar de todos serem iguais perante
a lei, os cidadãos não são tratados igualmente, há um julgamento moral entre quem
é merecedor da garantia de seus direitos e entre quem não é. Uma vez que o
45
cidadão pobre não possua trabalho formal, será visto como suspeito, pois não tem a
carteira de trabalho para provar seu valor moral, e é essa suspeita que legitima a
violência policial a quem é visto sob a ótica moral da vagabundagem. Esse
julgamento moral das forças policiais é também legitimado e apoiado pela
sociedade que entende, em seu imaginário coletivo, que violência é o único código
social que os cidadãos pobres, sem cultura e suspeitos antes de tudo, entenderiam.
Essa visão moralizante que há sobre uma parcela dos cidadãos interfere
diretamente na construção de suas identidades, pois sob essa ótica é construída em
negativo. Isto significa que a identidade não é construída pelo que se é, mas pelo
que não é: “não sou bandido, porque sou trabalhador”. Essa forma de construção
da identidade revela a destituição de direitos de uma parcela da população e a
hierarquia social, que reserva a alguns esse caráter subalterno.
Sob a ótica da construção da identidade, os direitos ocupariam um lugar
central, pois os cidadãos, ao se perceberem como sujeitos de direitos com acesso a
eles, poderiam ressignificar todas as situações difíceis e momentos de privações e
direcioná-los para a construção de um debate público em torno da efetiva
igualdade e da justiça.
Esse reconhecimento de uma destituição histórica de direitos e o ingresso do
tema no âmbito público influenciaria a subjetividade dos indivíduos positivamente.
Eles não se reconheceriam mais como aqueles que não são bandidos, mas sim
como aqueles que são cidadãos possuidores de direitos e também pobres, por isso
reivindicariam tratamento igualitário e justo.
Todo esse debate aconteceria primeiro na esfera dos direitos civis,
individuais, para depois chegarem às reivindicações de direitos sociais. Porém, no
Brasil, a própria lei que diz garantir a igualdade traz consigo a hierarquia social
vigente na sociedade, uma vez que desprende tratamento desigual aos cidadãos,
reafirmando a visão de mundo de que “ao rico nada aconteceria”; “se fosse pobre
estaria preso, mas é rico”; e “se fosse rico o processo seria mais rápido”.
Desse modo, levando em conta a figuração social da pobreza e a construção
da identidade do cidadão pobre, o foco da pesquisa é evidenciar aspectos da
46
experiência de ser pobre. Todavia, tal como Telles (2001), o objetivo não é
confirmar o panorama exposto, mas trazer a tona as imbricadas relações e
tensionamentos entre a cultura da hierarquia social, as vivências de situações
discriminatórias e a construção de visões de mundo que refletem diretamente na
subjetividade dos indivíduos.
“É no modo como o mundo social é percebido e construído como horizonte plausível
de suas vidas que talvez se tenha uma via de acesso para compreender essa relação
feita em negativo entre a ordem da lei, a da sociabilidade e a da subjetividade”.
(Telles, 2001: 80)
Se a percepção de hierarquias sociais no espaço público, traduzido pelas
leis, leva a um estigma e à vivência de situações de opressão, também participam
da construção de uma visão de mundo e organização pautadas por aspectos morais
da vida privada. Se o espaço público é tido como inseguro e violento, é na vida
privada que os trabalhadores se organizam e se apoiam em códigos morais. É nesse
âmbito privado, da família, que seu reconhecimento como cidadão é afirmado p or
suas capacidades e valores morais que os permitem ”vencer” ou “seguir em frente”
diante de adversidades. Esse reconhecimento como indivíduo, com valores morais
e autonomia, dentro desse espaço privado é possível porque, apesar de um espaço
público inferiorizado, há a percepção de si por parte desses cidadãos como
indivíduos que deliberam e escolhem. Se não há espaço no âmbito público para a
participação igualitária dos cidadãos pobres, é no âmbito privado e baseado em
aspectos morais que sua autonomia é afirmada.
Fica claro que a condição de pobreza tensiona os indivíduos e os fazem
construir suas identidades entre a ideia do trabalhador honesto e do pobre que vive
na desordem. A construção da figura social do “pobre honesto” está acima da
figura social do excluído, daquele que não conseguiu um trabalho regular – seja
por infortúnio do destino ou incapacidade. A este último estaria reservada somente
a imagem de um Estado benevolente.
Dessa forma, o foco é se uma política social que atrele transferência
monetária e condicionalidades, fruto de um “Estado benevolente”, influenciaria e
47
estimularia de algum modo a participação em espaços públicos na busca por
igualdade, justiça e direitos. Esse aumento de participação refletiria diretamente na
figuração social da pobreza e na construção da identidade desses indivíduos,
influenciando a forma como participam dos debates públicos e como vivenciam
sua cidadania, podendo levar a uma cidadania ampliada.
48
Capítulo 2 –Figuração Social da Pobreza: cidadania e Programa
Bolsa Família
“Todo esforço dos poderes públicos deveria ser empregado
para a educação das massas [...]” (Alain, 1910)
2.1
Cidadania no Brasil: percurso histórico
A retomada histórica nos permite entender como se desenvolveu a conquista
de direitos ao longo da história e, assim, apontar o desenvolvimento da cidadania
no Brasil, fazendo aproximações e distanciamentos com os episódios supracitados.
“Quando escrevemos sobre a cidadania, jamais podemos esquecer que ela é uma
lenta construção que se vem fazendo a partir da Revolução Inglesa, no século XVII,
passando pela Revolução Americana e Francesa e, muito especialmente, pela
Revolução Industrial, por ter sido esta que trouxe uma nova classe social, o
proletariado, à cena histórica. Herdeiro da burguesia, o proletariado não apenas
dela herdou a consciência histórica do papel da força revolucionária como também
buscou ampliar, nos séculos XIX e XX, os direitos civis que ajudou a burguesia a
conquistar, por meio da Revolução Francesa. E com isso abre-se o leque de
possibilidades para que as chamadas minorias possam ser abrangidas pelos direitos
civis. Contudo, essa é uma história que ainda se escreve.” (Odalia in Pinsky, 2008:
168)
O conceito de cidadania foi alvo de vários estudos ao longo dos séculos e
torna-se impossível citá-lo sem retomar as análises de T.H. Marshall (1967).
Segundo ele, as igualdades vão evoluindo na medida em que há ampliação dos
direitos, enquanto as desigualdades vão aumentando, fruto do capitalismo.
49
Marshall (1967) entende que os direitos a que se tem acesso dependem da posição
ocupada dentro do grupo social; a cidadania está relacionada, então, ao status. 1
Para compreendermos o desenvolvimento da cidadania é importante
entender a evolução dos direitos. Segundo ele, a cidadania na sociedade ocidental
se desenvolveu mediante três fases distintas: primeiro consolidaram -se os direitos
civis, depois os direitos políticos e, por último, os direitos sociais.
As análises de Marshall (1967) dizem respeito à Inglaterra, onde primeiro
houve a expansão geográfica dos direitos: passou a valer em todo território e para
todos os indivíduos. Entretanto, essa “universalidade”, no decorrer do século
XVIII, só valia para os direitos civis e ainda de forma precária.
Os direitos políticos expandiram-se no século XIX, principalmente com a
ampliação do direito ao voto. Esta ampliação se deu de maneira lenta e, em seus
primeiros ensaios, excluía grande parte da população, principalmente os mais
pobres. Para assistir a esses quase cidadãos havia as “Poor Laws” 2, destinadas às
pessoas que não conseguiam se manter; contudo, recorrer a essas leis era admitir
não ter condições de exercer a cidadania. Por último, os direitos sociais fizeram
parte do início do século XX, embora a Inglaterra já garantisse o direito à
educação no século XVIII.
Dessa forma, Marshall (1967) apresenta uma evolução histórica e lógica dos
direitos: os direitos políticos só existem porque antes há os direitos civis -liberdade
de expressão, liberdade de associação, etc-, que permitem que se reivindique a
ampliação dos direitos políticos dentro do Parlamento.
Com a conquista dos direitos políticos, criaram-se condições para que mais
pessoas, principalmente aqueles que antes estavam excluídos dos seus direitos
políticos, ocupem o Parlamento. Foi com base no exercício dos direitos políticos
que houve a conquista dos direitos sociais que visam garantir condições mínimas
de vida para a população mais pobre e sem acesso.
1
Posição ocupada pelo indivíduo no grupo. Possui dimensão horizontal (relação com o povo) e
dimensão vertical (relações hierárquicas). É um conceito estático.
2
Sistema de ajuda social aos pobres que vigorava na Inglaterra e no País de Gales.
50
Essa lógica de conquista de direitos leva a trilhar o caminho de uma maior
igualdade, na qual os direitos precisam ser reivindicados para serem conquistados,
do contrário ele não sairia do papel. Para Marshal (1967), essa conquista de
direitos em direção a uma maior igualdade fica tensionada e pressionada pelas
desigualdades ocorridas dentro do sistema capitalista.
Analisando o desenvolvimento dos direitos no Brasil, percebe-se que a
lógica inglesa foi invertida: primeiro há a consolidação de direitos sociais,
políticos e civis, por fim. Essa mudança significa alterar a natureza da cidadania
que aqui se desenvolveu.
O Brasil se caracterizou como uma sociedade escravagista, na qual o centro
de todas as dimensões da sociedade era a escravidão. Sendo assim, não podíamos
falar em direitos civis, uma vez que grande parte da população era escrava e,
portanto, privada de seus direitos individuais. Durante todo o período colonial, não
havia nenhuma força política que pudesse garantir a igualdade de todos perante a
lei e não havia um sentido de pertencimento a uma nação ou de constituição de um
povo.
Com a Independência e a Constituição de 1824, os direitos políticos
experimentaram uma fase de avanço, onde o voto era garantido a quase 50% da
população e as eleições foram praticamente ininterruptas, salvo algumas exceções,
de 1822 até 1930. Porém, isso só vigorou até 1881, quando uma lei impôs mais
condições para que se pudesse votar, entre elas a exigência de uma renda de, no
mínimo, 200 mil réis, proibição do voto dos analfabetos e o voto facultativo. Esse
quadro não mudou durante a Primeira República (1889-1930), já que a lei foi
preservada.
A configuração política deste período estava apoiada no patrimonialismo 3,
um exemplo é o coronelismo que, com a República, passou a ter papel de destaque.
3
Mistura entre poder estatal e poder privado: o Estado distribui seu patrimônio a particulares em troca
de cooperação e lealdade. O clientelismo e o nepotismo são heranças do patrimonialismo.
51
Os coronéis eram chefes da Guarda Nacional4 que se transformaram em chefes
políticos locais. A partir da inserção do federalismo, os governadores dos estados
passaram a ser escolhidos por eleição popular, logo, precisavam do apoio destes
coronéis para ascender ao poder. Deste modo, teve origem um acordo entre
governantes e coronéis: estes últimos garantiam os votos necessários para o
governo e os candidatos distribuíam cargos políticos locais.
“O ‘coronel’ comandava os votos das pequenas localidades e era indispensável para
o novo arranjo de poder. Em troca de apoio às oligarquias estaduais, dava -lhes os
votos que controlavam e que eram necessários para a sua legitimação.” (Victor
Nunes Leal)
Fica clara a exclusão da participação da massa dos cidadãos na política. A
própria Constituição da República reflete isso, uma vez que o governo monárquico
foi derrubado por um golpe militar, sendo a Proclamação da República um
movimento eminentemente elitista que ocorreu sem luta e sem a participação direta
das camadas populares.
Se os direitos civis e políticos já estavam limitados, é quase impossível
falar sobre os direitos sociais. A Constituição de 1891 retirou do Estado a
obrigação de prover educação primária, item contido na Constituição anterior de
1824. A Constituição republicana também proibia que o governo federal
interferisse na regulamentação do trabalho. Esse quadro só foi alterado em 1926,
quando uma reforma constitucional autorizou o governo federal a legislar sobre o
trabalho. (Carvalho, 2007: 62). A legislação social só foi ampliada após a
assinatura do Brasil do Tratado de Versalhes 5 em 1919, e do ingresso do país na
Organização Internacional do Trabalho (OIT), no mesmo ano.
4
Criada em 1831, buscou reformular os quadros militares do país por meio da exclusão de soldados e
oficiais que não fossem fiéis ao Império. Os grandes proprietários recebiam a patente de coronel para,
assim, recrutarem pessoas que fossem alinhadas ao interesse do governo e das elites.
5
Foi um tratado de paz assinado pelas potências europeias que encerrou oficialmente a Primeira
Guerra Mundial, em 1919. O principal ponto do tratado determinava que a Alemanha aceitasse todas as
52
O povo não foi protagonista dos grandes acontecimentos e mudanças
sociais. Porém, pode-se apontar algumas revoltas populares como indicador de que
o povo tinha consciência, de certa forma - já que sua participação política sempre
foi diminuta-, de seus direitos e deveres como cidadãos, ainda que tais revoltas
sempre tenham se caracterizado como movimentos reativos, nunca propositivos.
Ou seja, eram movimentos que surgiam em reação a alguma medida secularizada
do governo, nunca em tom propositivo de mudança.
O ano de 1930 marca uma nova história sobre os direitos no Brasil, com
aceleração de mudanças sociais e políticas. Nesse período houve grande avanço
dos direitos sociais, enquanto os direitos políticos e civis tiveram, ao longo dos
anos que se seguiram, uma evolução mais complexa.
De 1930 a 1945, os direitos sociais, traduzidos principalmente pelas
legislações trabalhistas, experimentaram uma fase de grande ampliação, porém
foram introduzidos em um contexto de baixa ou nenhuma participação política e de
precária vigência dos direitos civis. Toda a legislação trabalhista incorporou os
trabalhadores à sociedade por meio de leis sociais e não por meio da ação sindical
e nem de políticas independentes, fruto da livre associação dessa classe. A
Constituição de 1946 manteve as conquistas sociais do período anterior e garantiu
os tradicionais direitos civis e políticos (Carvalho, 2007: 127).
Durante o regime de ditadura militar, o país experimentou um período de
diminuição e repressão dos direitos políticos e civis, ao passo que os direitos
sociais eram expandidos. Uma forma de garantir a satisfação das massas populares,
reafirmando ainda mais os direitos sociais como benefícios concedidos pelo Estado
do que como direitos.
Como os direitos sociais foram antecipados, eles não eram vistos como
independentes da ação estatal, mas sim entendidos como um favor em troca de
lealdade ao governo. Diante desse quadro, todo o caráter reivindicatório da
cidadania é deixado de lado, no Brasil essa cidadania era antes passiva e receptora,
na qual os direitos eram instituídos de cima para baixo. Ou seja, os direitos não
responsabilidades por causar a guerra e que fizesse reparações a um certo número de nações da Tríplice
Entente (aliança militar entre a Inglaterra, a França e o Império Russo).
53
eram reivindicados e conquistados, as reivindicações populares eram incorporadas
pelo governo que atendia parcialmente as insatisfações da população. Assim, todo
o caráter reivindicatório era retirado e os direitos vistos como favores e benesses
do Estado. Carvalho (2007) afirma que houve três empecilhos ao exercício da
cidadania civil: a escravidão que negava a condição humana, a propriedade rural
que era fechada à ação da lei e um Estado comprometido com o poder privado.
Ao final dos anos 70 e ao longo dos anos 80 houve uma mudança na forma
como era compreendido o conceito de cidadania. Este passava a agregar as
dimensões da sociedade civil e a importância de sua participação. Desse modo,
temos a chamada “nova cidadania” ou “cidadania ampliada”.
“(esta cidadania ampliada)... começou a ser formulada pelos movimentos sociais
que, a partir do final dos anos 70 e ao longo dos anos 80, se organizaram [...] em
torno de demandas de acesso aos equipamentos urbanos como moradia, água, luz,
transporte, educação, saúde, etc. E de questões como gênero, raça, etnia, etc.
Inspirada em sua origem pela luta pelos direitos humanos [e contribuindo para a
progressiva ampliação de seu significado] como parte da resistência contra a
ditadura, essa concepção buscava implementar um projeto de construção
democrática, de transformação social, que impõe um laço constitutivo entre cultura
e política.” (Dagnino, 2004: 103)
Foram os movimentos sociais os responsáveis por essa mudança na forma
de participação e de compreensão da cidadania. Dagnino (2004) enfatiza que as
atuações dos movimentos sociais buscavam uma construção democrática que
favorecesse a transformação social, aliando aspectos culturais em torno do
ativismo e da luta política.
A “nova cidadania” proposta é construída baseada na ampliação do debate
público que garantia o reconhecimento e a participação de novos sujeitos sociais
demandando por direitos que soavam como novidade, tendo em vista o período
ditatorial. A cidadania ampliada, assim, demanda reconhecimento e igualdade
entre os sujeitos, ao mesmo tempo em que propõe o respeito às diferenças. Ou seja,
trata-se de garantir a igualdade quando as diferenças inferiorizam os indivíduos, e
de garantir políticas que assegurem as especificidades de cada grupo social quando
54
a igualdade os descaracterizarem. Desse modo, a cidadania ampliada não prevê
somente uma expansão e ocupação dos espaços políticos, mas também inclui
construções culturais, nas quais os movimentos sociais reivindicam uma nova
forma de atuação política, além de novas políticas culturais de reconhecimento.
Ao abarcar políticas culturais, a cidadania ampliada não pode ser
construída dentro das relações do Estado e nem a partir das relações entre Estado e
indivíduos. Uma vez que a construção da cidadania demanda o reconhecimento de
direitos de diversos grupos, demanda também mudanças na práticas políticas
arraigadas na sociedade brasileira: a discussão sobre os direitos não pode estar
restrita ao campo jurídico-político, deve ser construída no âmbito da sociedade
civil, a partir das relações entre os sujeitos sociais.
Cidadania ampliada se configura, então, como uma nova forma de
sociabilidade, na qual as relações sociais são estabelecidas de forma igualitária,
com o “reconhecimento do outro como sujeito portador de interesses válidos e de
direitos legítimos” (Telles, 1994:46). Essa nova sociabilidade e reconhecimento
implicam, também, em um novo modo de se compreender o espaço público, em
termos de debates e negociações, e a construção de uma nova ética social.
Como o próprio termo sugere, essa cidadania contempla a ideia de
ampliação política, reivindicando o acesso, inclusão e participação em um sistema
político já existente, redefinindo as relações estabelecidas na sociedade.
Reconhecer direitos e pertencimento a quem estava excluído da esfera da
cidadania, significa alterar as relações de poder da sociedade, na medida em que
reforça a ideia de sujeitos sociais ativos que possuem direito a ter direitos e
contribui para a construção de espaços públicos, nos quais especificidades e
diferenças são discutidas e negociadas.
Nesse contexto, a sociedade civil é compreendida como espaço de luta
política legítima, a qual enfatiza a cidadania como um processo de busca de
reconhecimento por sujeitos ativos. Entretanto, a partir do início dos anos 90,
concepções neoliberais entram em cena e promovem um deslocamento no
significado da noção de cidadania. Durante esse período, a pobreza era entendida
sob a dimensão da cidadania e da igualdade de direitos, isto é, era um tema
55
discutido no âmbito dos direito iguais a todos os cidadãos. Porém, o projeto
neoliberal provoca uma mudança na compreensão do tema, que agora será
responsabilidade moral da sociedade, sendo cidadania vista cada vez mais como
solidariedade aos pobres que, não são mais considerados sujeitos sociais ativos,
mas sim como sujeitos que não conseguem garantir a própria sobrevivência e, por
isso, merecem caridade.
“Ou seja: a ausência de espaços de reconhecimento e de vínculos propriamente civis
se traduz na dificuldade de formular os dramas cotidianos, individuais e coletivos,
na linguagem público dos direitos, como exigência coletiva que cobra da sociedade
suas responsabilidades nas circunstâncias que afetam suas vidas. Na ausência da lei,
dos direitos e da justiça como referências ordenadoras da vida social, as
dificuldades da convivência cotidiana tendem a ser equacionadas inteiramente no
interior dos códigos morais da vida privada” (Telles, 2001: 111)”
É nesse contexto que há a expansão do chamado terceiro setor, com as
Organizações Não Governamentais, que se ocupa do trabalho voluntário e
filantrópico, contribuindo, de acordo com Dagnino (2004), para que a participação
política seja despida:
“de seu significado político e coletivo, passando a apoiar-se no terreno privado da
moral [...] na medida em que essas novas definições dispensam os espaços públicos
onde os debates dos próprios objetivos da participação pode
ter lugar, o seu
significado político e potencial democratizante é substituído por formas estritamente
individualizadas de tratar questões tais como a desigualdade social e a pobreza.
(Dagnino, 2004:102)”
Se antes os temas da pobreza e da desigualdade social faziam parte das lutas
organizadas para assegurar direitos iguais a todos os cidadãos, a partir do avanço
de modelos neoliberais, as políticas sociais são formuladas como esforços
emergenciais dirigidos a setores sociais específicos, nos quais os alvos das
políticas não são vistos como cidadãos com direito a ter direitos, mas como
indivíduos carentes que necessitam, então, de caridade.
56
É assim que a dimensão de cidadania é deslocada para a noção de
solidariedade, distanciando-se da responsabilidade pública e das lutas políticas.
Dessa forma, os indivíduos que se encontram excluídos do mercado de trabalho
formal são vistos como não-cidadãos, pois estão à margem do setor produtivo. O
projeto neoliberal não só destitui a noção de cidadania do ativismo político, como
traz a tona a marginalização social. Como aponta Telles (2001), já discutido no
capítulo anterior, cria-se a ideia de um “Estado benevolente” baseado em um
imaginário social de tutela, e não de igualdade entre os indivíduos.
Por isso o foco proposto é se uma política social – no caso, o Bolsa Família, fruto de um “Estado Benevolente” influencia a participação em espaç os públicos
e na forma como direitos e igualdade são compreendidos por esses indivíduos
excluídos da sociedade. Isso teria reflexo na figuração social da pobreza, podendo
alterar visões de mundo e levar à reivindicação da cidadania ampliada.
2.2
Programa Bolsa Família
Os programas de transferência de renda se dividem entre Programas de
Renda Mínima e de Renda de Cidadania. Os primeiros dizem respeito à
distribuição do benefício feita para aqueles que estão em situação de carência ou
necessidade. Já os Programas de Renda de Cidadania distribuem um valor igual
para todos os cidadãos, independente da situação social deles. Tais programas
também são chamados de Renda Universal.
No Brasil, há o Programa Bolsa Família (PBF), cujo objetivo é atender
todos os cidadãos considerados em situação de pobreza, e o Benefício de Prestação
Continuada (BPC) que distribui recursos àqueles considerados como incapazes de
garantir seu próprio sustento – idosos e portadores de necessidades especiais. O
BPC transfere um salário mínimo para idosos ou portadores de necessidades
especiais, cuja renda por pessoa seja de até ¼ do salário mínimo. Como aponta
Rabelo (2011), a diferença fundamental é que o BPC se configura como direito
social, enquanto o PBF, como política de governo.
57
As primeiras medidas para garantir a renda mínima no Brasil aconteceram
em 1995 em cinco cidades brasileiras: Santos, Brasília, Ribeirão Preto e Campinas.
Em 1991, um projeto de lei de autoria do Senador Eduardo Suplicy buscava a
implantação de um Programa de Garantia de Renda Mínima (PGRM). O projeto
sofreu bastante alterações e somente foi aprovado em 1997 e iniciado em 1999.
Porém em 2001 ele acabou sendo substituído pelo Programa Nacional de Renda
Mínima, vinculado ao Bolsa Escola (Silva; Yasbek; Giovanni, 2004:41).
Outra lei de autoria do Senador Eduardo Suplicy é de 2004 e institui a
Renda Básica de Cidadania que prevê o atendimento a todos os brasileiros, porém
priorizando, em um primeiro momento, as camadas mais pobres, segundo
avaliações do executivo. Embora a lei seja de 2004 (nº 10.835, de 08/01/2004) e
tivesse perspectiva de ser implantada a partir de 2005, seu início ainda não
ocorreu.
O programa brasileiro Bolsa Família, é fruto da unificação de quatro
programas de transferência de renda que vigoravam no início de 2002 e que não
eram co-relacionados: Bolsa Escola (2001), Bolsa Alimentação (2001), Auxílio
Gás (2002) e Cartão Alimentação (2003); além de ter incorporado o PETI –
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil-, a partir de 2005. Todos os
programas unificados em torno do Bolsa Família eram do governo federal.
O PBF foi instituído em outubro de 2003 e configura-se como um
programa de transferência direta de renda com condicionalidades, vinculado ao
Programa Fome Zero do governo federal e ao Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome (MDS). O programa beneficia famílias em situação de
pobreza e de extrema pobreza e tem como objetivo assegurar o direito humano à
alimentação adequada, promovendo a segurança alimentar e nutricional e
contribuindo para a conquista da cidadania pela população mais vulnerável à fome.
O Bolsa Família possui três eixos principais: transferência de renda,
condicionalidades e programas complementares. A transferência de renda promove
o alívio imediato da pobreza. As condicionalidades reforçam o acesso a direitos
sociais básicos nas áreas de educação, saúde e assistência social. Já os programas
58
complementares objetivam o desenvolvimento das famílias, de modo que os
beneficiários consigam superar a situação de vulnerabilidade.
Estima-se que o PBF contemple 12 milhões e 600 mil famílias, atendendo
famílias com crianças de 0 a 15 anos, em situação de pobreza (renda mensal per
capita de R$ 70,00 a R$ 140,00) e em extrema pobreza (com renda mensal per
capita de até R$ 60,00). As famílias que se encontram em situação de extrema
pobreza são incluídas no programa mesmo que não possuam filhos menores de
idade.
A essas famílias já é destinada o benefício mínimo (R$ 70,00), podendo
somar-se o benefício variável que são R$ 32,00 por cada criança ou adolescente até
15 anos. O benefício variável tem o limite de repasse de R$ 96,00 por família, ou
seja, são incluídas até três crianças ou adolescentes. Em 2008 foi instituído o
Benefício Variável Jovem (BVJ), que contempla os adolescentes de 16 ou 17 anos
que estejam frequentando a escola. O valor repassado é de R$ 38,00 por cada
adolescente, no máximo de dois por família.
Já as famílias consideradas pobres (com renda entre R$ 70,00 e R$ 140,00
reais per capita) podem participar do PBF desde que tenham adolescentes de até 17
anos. Nesse caso, a família receberá ou o benefício variável ou o BVJ. O programa
prevê, ainda, o Benefício Variável de Caráter Extraordinário, que é repassado às
famílias caso se verifique que a unificação dos programas que deram origem ao
PBF (Cartão Alimentação, Bolsa Escola, Auxílio Gás e Bolsa Alimentação) tenha
causado prejuízo, perdas financeiras, para os beneficiários. Nesse caso, o valor
calculado dependerá de cada caso.
Assim, o valor repassado pelo programa varia de R$ 32,00 a R$ 242,00
reais, dependendo da situação familiar: renda per capita e número de crianças e
adolescentes na escola. Para efeitos de cálculo, uma família extremamente pobre
(com renda per capita de até R$ 70,00 reais) só receberá o benefício máximo (R$
242,00 reais), caso possua 3 crianças (R$ 32,00 per capita) e 2 adolescentes (R$
38,00), totalizando 5 crianças e/ou adolescentes frequentando a escola. Se a família
for considerada pobre (renda familiar per capita entre R$ 70,00 e R$ 140,00 reais),
receberá em média valores entre R$ 42,00 e R$ 152,00 (caso haja crianças e/ou
59
adolescentes). Em média, o valor repassado para a maioria das famílias brasileiras
é de R$ 115,00 reais.
Para o gerenciamento de todos os beneficiários e suas situações, foi criado
em 2007 o Cadastro Único (CadÚnico), ferramenta do governo federal que auxilia
na identificação de famílias em situação de pobreza. É um cadastro nacional
utilizado para selecionar as famílias beneficiárias dos programas sociais do
governo federal, em especial do PBF. Uma vez cadastradas, as família devem
atualizar seus dados a cada 2 anos, sob o risco de perder o benefício caso não o
façam.
O CadÚnico prevê, de acordo com portaria de 2010, que, caso o
beneficiário apresente um acréscimo em seus rendimentos entre o período de
revisão cadastral, de 02 anos, não terá seu benefício cortado, desde que a renda não
ultrapasse o limite de ½ salário mínimo per capita mensal. Até 2009, “vários
cadastros (como o do Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS) eram
cruzados com as informações do CadÚnico para detectar se alguma família estaria
recebendo uma renda total acima do estabelecido” (Rabelo, 2011: 96). O problema
desse cruzamento de dados é que muitas vezes a renda adicional era fruto de
trabalhos temporários, devido à alta rotatividade nos empregos. Dessa forma, ao
ter o benefício cortado e ao fim do período empregado, as pessoas terminavam sem
renda alguma. Essa medida atende, assim, a instabilidade de renda a que os
cidadãos em situação de pobreza estão expostos, um dos objetivos do PBF.
Os beneficiários do programa precisam atender às condicionalidades por ele
estabelecidas. Tais condicionalidades referem-se a uma série de atividades a serem
cumpridas nas áreas de saúde e educação. No que diz respeito à saúde, as famílias
beneficiárias com crianças de até 07 anos de idade devem: manter o calendário de
vacinação atualizado; e pesar, medir e realizar exames clínicos. Para famílias com
gestantes e mães em período de amamentação, é necessário: participar de programa
de pré-natal; fazer acompanhamento pós-parto; e participar de campanhas
educativas sobre aleitamento materno e alimentação saudável. Na área de
educação, crianças de 06 até 15 anos devem estar matriculadas na escola e
apresentarem frequência escolar de 85%; entre os adolescentes de 16 a 17 anos, a
frequência exigida é de 75%.
60
Ainda há condicionalidade ligada à área de assistência social: crianças ou
adolescentes de até 15 anos em risco ou que tenham sido retiradas do trabalho
infantil pelo Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) devem
participar dos Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV),
vinculado ao PETI, e apresentar frequência mínima de 85%.
O descumprimento das condicionalidades por qualquer membro da família
pode implicar em advertência e sanções que vão desde o bloqueio por 30 ou 60
dias, até o cancelamento do benefício. No que diz respeito às condicionalidades na
área de educação, o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome
(MDS) classifica as ausências dos alunos na escola em faltas justificáveis e faltas
não injustificáveis. As justificáveis são casos de doença do aluno ou de parentes e
óbitos familiares, desde que devidamente comprovados e aceitos pela escola;
problemas com o deslocamento até a instituição de ensino (enchentes, falta de
transporte escolar) ou inexistência de unidades escolares próximas ao local de
residência declarado. Já as faltas não justificáveis são: gravidez precoce, vivência
nas ruas, negligência dos responsáveis, trabalho infantil ou exploração sexual.
Ressalta-se que o descumprimento das condicionalidades por qualquer membro da
família implica na suspensão de todos os benefícios. Porém, caso o
descumprimento seja apenas do adolescente, o BVJ é cancelado, mas os outros
benefícios são mantidos.
Contudo, há exceções sobre a aplicação da suspensão do benefício. Por
vezes as famílias não conseguem cumprir as condicionalidades dada sua situação
de extrema vulnerabilidade. Nesses casos, foi instituído em 2011 que os
municípios são responsáveis por fazer o acompanhamento dessas famílias por meio
de reuniões e visitas domiciliares promovidas por assistentes sociais e psicólogas.
Dessa forma, se for constatada a situação de extrema vulnerabilidade e
consequente dificuldade no cumprimento das condicionalidades, as assistentes
sociais – através dos relatórios de acompanhamento-, podem solicitar a suspensão
temporária da aplicação de sanções às famílias (advertência, bloqueio ou
cancelamento do benefício).
Tal acompanhamento é de responsabilidade dos Centros de Referência da
Assistência Social (CRAS) e dos centros de Referência Especializada da
61
Assistência Social (CREAS). As reuniões e os acompanhamentos visam um
atendimento mais amplo às famílias para que possam superar o quanto antes a
situação de vulnerabilidade extrema. Uma vez que essa situação seja superada, a
família volta a ter a obrigação de cumprir as condicionalidades.
A gestão do Programa Bolsa Família é descentralizada e compartilhada por
União, estados, Distrito Federal e municípios. Os três entes federados trabalham
em conjunto para aperfeiçoar, ampliar e fiscalizar a execução do Programa. Os
municípios são responsáveis por disponibilizar e manter as estruturas necessárias
para o cumprimento das condicionalidades nas áreas de educação, saúde e
assistência social; manter os dados cadastrais das famílias atualizados e
disponibilizar
os
relatórios
de
acompanhamento.
Para
efetivar
essas
responsabilidades foi criado o Conselho Municipal de Assistência Social – CMAS,
formado por representantes do governo e da sociedade civil com poder deliberativo
e controlador da Política de Assistência Social, sendo responsável em parte
também pela sua fiscalização.
Para estimular a participação ativa dos municípios foi instituído em 2006
pelo governo federal o Índice de Gestão Descentraliza – IGD. Esse índice é
responsável por avaliar a atualização do CadÚnico e do acompanhamento das
condicionalidades. é ainda com base nesse índice que o MDS repassa recursos aos
municípios. Em 2010 foi instituído o Índice de Gestão descentralizada Estadual –
IGD-E, a fim de estimular ações de apoio operacional por parte dos Estados.
Importante lembrar que, embora a gestão do PBF seja descentralizada entre
os três entes federados, nem os estados e nem os municípios podem acrescentar
condicionalidades ao programa, apenas acompanhar, fiscalizar e dar apoio para que
todas as condicionalidades determinadas pelo governo federal sejam cumpridas.
De acordo com dados do sítio do Ministério, há diversos estudos que
apontam para a contribuição do Programa na redução das desigualdades sociais e
da pobreza. Entre eles, o 4° Relatório Nacional de Acompanhamento dos Objetivos
de Desenvolvimento do Milênio aponta queda da pobreza extrema de 12% em
2003 para 4,8% em 2008. Por isto e também por sua gestão descentralizada
envolvendo todas as esferas públicas de poder e quantidade de beneficiários, o
62
Programa Bolsa Família é tido como um dos principais programas de transferência
de renda do mundo. Um dos principais aspectos destacados em diversos estudos é
o fato de o programa reunir condicionalidades que garantem a proteção de toda a
família e em vários aspectos: alimentação, saúde, educação e assistência social.
O PBF figura como uma política social voltada para o enfrentamento da
pobreza em suas várias dimensões. Ultrapassando a questão material, interessa
analisar se o programa consegue alcançar a dimensão da pobreza política (Demo,
2003), É essa pobreza política que faz com que os pobres não se reconheçam como
sujeitos de direitos, tornando a carência material o centro de suas histórias e
fazendo com que a imagem de inferioridade seja internalizada.
O programa propõe o enfrentamento da pobreza em três momentos
distintos. No primeiro momento, de curto prazo, o objetivo é aliviar os efeitos mais
imediatos da pobreza: fome e desintegração familiar. Já à médio prazo, o foco é
permitir que os beneficiários acessem o sistema de direitos sociais por meio do
cumprimento das condicionalidades nas áreas de educação e saúde, buscando,
principalmente, a superação da pobreza geracional – transmitida de geração para
geração. Por último, no longo prazo, o programa visa o desenvolvimento social,
incentivando a participação dos beneficiários em ações para geração de emprego,
capacitação profissional, ampliação do micro-crédito, etc.
Assim, interessa analisar se esses três momentos impactam na figuração
social da pobreza e em como as identidades e visões de mundo são influenciadas a
partir do benefício e do consequente cumprimento das condicionalidades e
participação em programas de capacitação profissional.
Tendo em vista tais objetivos, dois trabalhos foram usados como aportes
teóricos para auxiliar e ampliar as interpretações acerca do Programa Bolsa
Família e o impacto sobre as relações sociais das beneficiárias. Com enfoques
diferentes, tanto a pesquisa de Rabelo (2010) e de Rego (2008 e 2013), estudam o
BF a partir da visão de mundo das beneficiárias e contribuem para as
interpretações do trabalho de campo apresentados no próximo capítulo.
63
Rabelo (2010), ao analisar a cidade de Porto Alegre, procura identificar
quais os sentidos que as beneficiárias atribuem ao PBF. Segundo ela, o BF c umpre
um importante papel na sociedade, na medida em que amplia a renda,
proporcionando maior consumo, ao mesmo tempo em que as condicionalidades
cumprem um papel importante sobre a visão de mundo das beneficiárias, afastando
a ideia de favor que muitas vezes é atribuída ao benefício. Rego (2008 e 2010)
considera que o BF cumpre um papel “moral”, pois, ao garantir a sobrevivência, os
indivíduos podem se ocupar de outros aspectos de suas vidas que antes não
podiam. Enfatiza ainda a questão de gênero que permeia o programa, uma vez que
o benefício é transferido em nome das mulheres. Isto é importante, pois, segundo
ela, as mulheres passam a ter um papel de protagonistas da vida privada familiar
que poderia se refletir nos demais círculos sociais das beneficiárias.
As duas pesquisas citadas procuram analisar se e de que modo o BF
poderia se constituir como uma política pública de cidadania ou de cidadanização,
nas palavras de Rabelo. Além disso, as análises e os resultados obtidos durante as
pesquisas de campo ajudam na interpretação da pesquisa aqui realizada.
Com base nas pesquisas supracitadas e nos conceitos de privação relativa,
figuração social da pobreza e cidadania ampliada, o próximo capítulo analisará
como o PBF influenciar e mudar as figurações sociais da pobreza e visões de
mundo de seus beneficiários. O foco será as análises obtidas com base nas
entrevistas com beneficiárias do programa no bairro do Jardim Helena, periferia da
zona leste da cidade de São Paulo.
64
Capítulo 3 – Figuração social da pobreza: pesquisa empírica
“A cidadania é o direito a ter direitos, pois a
igualdade em dignidade e direitos dos seres humanos
não é um dado. É um construído de convivência
coletiva, que requer o acesso ao espaço público. É este
acesso ao espaço público que permite a construção de
um mundo comum, através do processo de asserção
dos direitos humanos.” (Hannah Arendt)
3.1 O PBF no Jardim Helena
As análises teóricas desenvolvidas até aqui acerca dos conceitos de
exclusão, figuração social da pobreza e cidadania ampliada são importantes para a
pesquisa de campo aqui proposta, uma vez que o objetivo do MDS é construir
políticas que possam efetivar a transição da situação de dependência em relação
aos programas de transferência de renda para um estágio sustentável de inclusão
social que combine participação no mercado de trabalho com garantia de direitos
(Weissheimer, 2010: 68). Então, é no âmbito dessas ações e programas
complementares para que as famílias superem a situação de extrema pobreza e
exclusão social na qual se encontram, que está centrada a discussão proposta nesta
pesquisa. A pobreza, como já explicitado, não é entendida apenas no campo
econômico, mas vivenciada no campo político e cultural como privações que
impedem indivíduos de desenvolverem suas capacidades.
A vivência da exclusão social reflete diretamente na figuração social
acerca da pobreza e na visão de mundo construídas. Além de retirar-lhes a
dimensão de cidadania, já que o ser cidadão na sociedade brasileira está
diretamente ligado ao fato de estar inserido no mercado de trabalho e ter um
65
emprego formal. Assim, é o acesso aos direitos trabalhistas que determina a
cidadania e influencia na forma como as figurações sociais são construídas.
Dessa forma, o PBF foi pensado como uma política de transferência de
renda aliada a políticas estruturantes que permitam a inserção de jovens e adultos
no mercado de trabalho e consequente desligamento do programa, e a atividades
que promovam o protagonismo das famílias na formulação e implementação de
propostas coletivas por melhorias na qualidade da vida familiar e comunitária,
proporcionando atividades de geração de renda e inserção social através de uma
rede de proteção social.
Assim, o trabalho de campo é uma importante ferramenta para observar se
o PBF consegue cumprir os objetivos propostos e como a participação nessa
política social influencia a subjetividade dos beneficiários, influenciando ou não as
construções das figurações sociais e visões de mundo.
A pesquisa de campo desenvolvida configurou-se no acompanhamento de
reuniões socioeducativas e oficinas profissionalizantes, e em entrevistas abertas
realizadas com as beneficiárias em no bairro Jardim Helena, situado na periferia da
região leste de São Paulo e distante cerca de 30 km do centro da cidade.
O distrito do Jardim Helena, pertence à subprefeitura de São Miguel
Paulista que é composta de 3 distritos: São Miguel Paulista, Jardim Helena e Vila
Jacuí. O Jardim Helena é um distrito no extremo leste da cidade de São Paulo que
cresceu às margens do Rio Tietê e faz divisa com os distritos de Vila Curuça e
Itaim Paulista, pertencentes à subprefeitura do Itaim Paulista; com o distrito de São
Miguel Paulista e com as cidades de Guarulhos e Itaquaquecetuba. Por estar
situado longe do centro da cidade de São Paulo e longe do centro das duas cidades
com as quais faz divisa, o Jardim Helena se caracteriza como um bairro dormitório, no qual seus moradores têm que percorrer longas distâncias diárias em
busca de locais de trabalho e serviços públicos, regressando para casa apenas ao
fim do dia, para dormir.
Esse deslocamento diário promove mudanças na sociabilidade de seus
moradores que muitas vezes estabelecem laços sociais longe de suas residências,
66
além de impactar fortemente a qualidade de vida, uma vez que, em um grande
centro urbano como a cidade de São Paulo e sua região metropolitana, percorrer
uma longa distância todo dia implica em muitas horas perdidas durante o trajeto
em transportes públicos insuficientes.
O Jardim Helena está em uma área de grande vulnerabilidade social e
ambiental, por ser próximo ao Rio Tietê e sofrer com enchentes, e é tido como um
dos locais mais carentes e populosos da cidade de São Paulo.
Mapa da região leste da cidade de São Paulo
Fonte: Encontra São Paulo
67
Percentual de domicílios particulares permanentes beneficiários do Bolsa
Família na cidade de São paulo
Fonte: Plataforma SAGI
68
Percentual de domicílios particulares permanentes com renda domiciliar per
capita de até 70 reais na cidade de São Paulo
Fonte Plataforma SAGI
69
3.2 Pesquisa empírica: desenvolvimento
Após alguns contatos infrutíferos com o Centro de Referência de
Assistência Social (CRAS) 6 dos bairros de Itaquera e de São Miguel Paulista, zona
leste da cidade de São Paulo, e com a Secretaria Municipal de Assistência Social,
para obter mapas ou facilidade de contatos com os beneficiários; o loc al definido
para observação e seleção dos beneficiários para realização das entrevistas foi o
Serviço de Assistência Social à Família (SASF) situado no distrito do Jardim
Helena, que permitiu a inserção em suas atividades.
O SASF visitado funciona com uma parceria entre a Secretaria de
Assistência Social do município de São Paulo e a organização não-governamental
Movimento de Orientação à Criança e ao Adolescente (MOCA). Seu objetivo é
ofertar
ação socioassistencial
a
famílias em
territórios
que apresentam
concentração de beneficiários de Programas de Geração de Renda (BPC) – Bolsa
Família, Renda Mínima, Renda Cidadã -, e em situação de vulnerabilidade e risco
social. As principais atividades desenvolvidas são as oficinas para geração de
renda, que ocorrem trimestralmente; reuniões socioeducativas e encaminhamentos
para diversas áreas: conselho tutelar, defensoria, saúde, educação, habitação e
geração de renda.
As atividades de pesquisa no SASF se caracterizam, principalmente, por
observação de campo e, posteriormente, realização de 20 entrevistas. As
observações de campo aconteceram durante as oficinas de geração de renda
(bordado em fita, manicure, pintura, etc) e permitiram aproximação com as
beneficiárias, uma vez que durante os intervalos das oficinas foi possível conversar
sobre a história de vida delas, o que é de suma importância para a pesquisa, já que
a heterogeneidade das pessoas decorre, principalmente, de suas trajetórias de vida.
Isso porque, ainda que haja homogeneidade quanto às condições de vida e a
vulnerabilidade a qual estão expostas, são as trajetórias de vida que influem
diretamente na subjetividade dos indivíduos e nas suas percepções acerca do
6
O Centro de Referência de Assistência Social – CRAS é uma unidade pública estatal de base territorial,
localizada em áreas de vulnerabilidade social. Executa serviços de proteção social básica, organiza e
coordena a rede de serviços socioassistenciais, locais da política de assistência social.
70
mundo social no qual estão inseridos. Sendo assim, as relações estabelecidas entre
os beneficiários e o Estado, e o modo como entendem o Bolsa Família e a
cidadania não dependem exclusivamente de sua situação atual, mas de uma
trajetória que deve ser levada em conta, principalmente quando se propõe pesquisa
de campo.
A etnografia é importante, também, porque está atrelada a um processo de
compreensão e interpretação articulado com as teorias propostas, o qual permite
avançar na observação dos aspectos que vão além da própria fala dos
entrevistados. Isto é, a observação de campo permite compreender as relações
sociais estabelecidas entre as beneficiárias durante as oficinas e com o próprio
SASF - como ambiente de socialização e de participação política.
No município de São Paulo, os SASF funcionam em parcerias com
Organizações Não-Governamentais que se responsabilizam por atividades de
geração de renda, inserção social e encaminhamento para outros serviços públicos.
Para a presente pesquisa foram acompanhadas tanto as reuniões
socioeducativas quanto as oficinas de geração de renda. As oficinas são trim estrais
com uma aula por semana, com duração de 2 horas e voltadas para o público
feminino. Os cursos acompanhados foram: bordado em fita, patchwork, pintura em
pano de prato e manicure; um aspecto muito importante e é que as instrutoras
também são moradoras da região. Ao fim de cada trimestre, as alunas recebem um
certificado.
A periodicidade das reuniões socioeducativas é diferente. As beneficiárias
são divididas em equipes que são acompanhadas por uma assistente social e uma
técnica social, cada equipe deve comparecer uma vez por mês para a reunião e
assinar a lista de presença, a escolha do tema das reuniões é trimestral e as têm
duração de duas horas. Ser assídua nessas reuniões é importante para saber dos
próximos eventos e ter preferência na hora de se inscrever nas oficinas, ainda que
qualquer pessoa da comunidade possa se inscrever.
O benefício do BF é concedido no nome das mulheres e as atividades do
SASF são voltadas para elas, já que, segundo as técnicas sociais, enquanto os
71
homens saem para procurar emprego ou trabalhar, elas estão em casa sem outra
ocupação além dos filhos e do lar. As reuniões socioeducativas e as oficinas
contribuiriam, assim, para a emancipação das beneficiárias, no campo social e
financeiro, tornando-as protagonistas dentro do lar.
O tema escolhido para as reuniões dos meses de julho, agosto e setembro de
2012 foi “Meio-ambiente e Sustentabilidade”. A escolha justifica-se por ter
ocorrido a Rio +20, pelo trabalho com reciclagem estar próximo delas e por muitas
viverem em áreas de risco, de vulnerabilidade ambiental. A dinâmica das reuniões
obedece à pedagogia histórico-crítica, em linhas gerais, todas as discussões
iniciam-se com uma dinâmica em grupo cujas reflexões acerca do tema partem das
experiências vivenciadas pelas beneficiárias até chegar ao tema proposto para
discussão.
A dinâmica no início de cada reunião tem por objetivo desinibir e estimular
a participação, compartilhando opiniões e testemunhos sobre o assunto. Segundo
as técnicas sociais, ao utilizarem os exemplos dados pelas beneficiárias, elas
reforçariam o conhecimento prévio que elas têm sobre o tema. As reuniões tinham
um bom público e às vezes, ao término da reunião eram distribuídos alguns itens
de alimentação.
As reuniões socioeducativas enfatizavam bastante o aspecto do “faça sua
parte”.
Tomando
como
exemplo
as
reuniões sobre
“Meio
ambiente e
Sustentabilidade”, as orientações que as mulheres recebiam sempre diziam respeito
a não jogar lixo nas margens do rio (Tietê, que passa perto do SASF e da
residência de várias delas) e, sempre que possível reaproveitar materiais. Além
disso, as técnicas sociais disponibilizaram o telefone do “Cata-bagulho”, serviço
municipal que recolhe objetos e matérias que não tem onde serem descartados, tais
como: sofá, colchão, sobras de matérias de construção, entulho, etc.; e pediram que
elas divulgassem na vila onde moram, para vizinhas e amigas.
Em todas as reuniões esse aspecto do “faça sua parte” era enfatizado. Esse
fazer a sua parte enfatiza a dimensão de deveres da cidadania, na qual ser cidadão
significa cumprir obrigações perante a sociedade e agir dentro do padrão esperado.
72
A relação com o poder público aparecia sempre que se necessitava de um serviço,
sem o incentivo à participação política.
Tais reuniões socioeducativas poderiam se configurar como formas
importantes de inserção social e espaços de ativismo político, se constituindo em
um caminho para ampliação dos debates políticos e possível cidadania ampliada.
Todavia, a ênfase está na dimensão dos deveres da cidadania e não na participação
como cidadão ativo.
Obtive maior aproximação com as beneficiárias durante as oficinas
profissionalizantes. Como minha presença era estranha, procurei realizar as
atividades e iniciar a conversa sobre os trabalhos que fazíamos. Com o tempo
percebi que, se elogiasse o trabalho, logo me agradeceriam e explicariam o motivo
de tanto capricho ao desenvolver as atividades.
Todas as mulheres com quem conversei disseram gostar muito dos cursos e
os viam, à primeira vista, como uma forma de distração e motivo para sair de casa
e da rotina:
“Gosto muito dos cursos, só não faço o curso de sexta porque é o único de manhã e
meu menino estuda à tarde, daí não tenho com quem deixar e trazer vai atrapalhar.
E aqui é o único que lugar que fico só, posso conversar, sem marido, filho e vizinho
pra atrapalhar minhas ideias.” (Josi, 28 anos)
As mulheres que tem filhos até 10 anos podem leva-los, há uma sala com
brinquedos e livros para crianças. Enquanto as mães fazem o curso, os filhos
brincam sob o cuidado de uma técnica social. Se já são mais velhos, podem ficar
ao lado das mães, desde que não atrapalhem a aula, alguns acabam participando.
Tatiana, 34 anos, leva as duas filhas, Vitória e Emily, às oficinas. Suas
filhas possuem um problema de saúde que atrasa o crescimento, por isso fazem
tratamento no Hospital São Paulo, Vila Clementino, região sul da cidade. Para
Tatiana, significa sair de casa às 4h da manhã para caminhar até a estação e pegar
o primeiro trem, garantia de que chegará às 8h no hospital e não enfrentará o
transporte tão lotado. Para ela, as oficinas servem como distração:
73
“eu venho aqui e pinto, bordo, faço as flores de fita... saio da minha rotina, sabe?
Consigo me distrair, daí só penso nos meus problemas quando estou indo embora.”
(Tatiana, 34 anos)
De fato, de todas as entrevistadas, apenas duas disseram que encaram as
oficinas como uma chance de ganhar dinheiro, todas as outras disseram que é um
passatempo pra ocupar a mente e que poderiam depois fazer algo para presentear
parentes e amigos e também enfeitar a casa. Além de encararem o curso como um
lugar para se fazer amizades.
Assim, ao longo do tempo e com assuntos particulares pude me aproximar
e realizar as entrevistas, pois “falar do Bolsa Família significa falar de renda e
ninguém gosta de falar sua renda por aí, pra desconhecidos.” (Neusa,
coordenadora do SASF)
Sobre as principais mudanças proporcionadas pelo Bolsa família, destaca -se
a mudança no papel social das beneficiárias em suas residências. Por receberem o
benefício, passam a ter responsabilidade financeira sobre o lar e isso parece, diante
da fala de algumas mulheres, conferi-lhes uma maior liberdade frente ao
companheiro e um poder decisório maior sobre os gastos e demais decisões sobre a
família. Janaína relata que, agora com o benefício, ela decide como gastar o
dinheiro e ele tem destino certo todo mês, é usado pra comprar artigos pessoais
para suas filhas, além de alimentos que antes não podiam, como iogurtes e frutas:
“O importante é que está no meu nome e eu cuido da casa e delas, então eu que sei
do que precisa e o quanto precisa. Antes ficava esperando ou tinha que pedir, agora
posso comprar, só cuidar pra não acabar.” (Janaína*, 32 anos)
Em falas como essa está contida, também, a dimensão de planejamento de
futuro que o BF proporcionou. A maioria das entrevistadas convive com as
incertezas financeiras do trabalho informal, para elas o BF é a única renda fixa
mensal e que permite planejamento de gastos, ampliando a noção de
responsabilidade financeira que tinham. Essa ideia de planejamento reforça a
74
ampliação do poder decisório que essas mulheres passaram a ter no âmbito
privado, familiar, pois, na medida em que são elas que recebem o benefício, o
planejamento é discutido levando em conta suas opiniões.
O benefício normalmente é utilizado para comprar alimentos que antes não
tinham acesso, roupas ou material escolar para os filhos. É comum aparecer na fala
das beneficiárias que o dinheiro recebido precisa ser destinado à compra de
alimentos ou roupas, comprar cosméticos ou itens que são considerados supérfluos
parece ser uma prática moralmente condenável, confessada em voz baixa em meio
a sorrisos envergonhados e garantias de que foi apenas uma vez.
A compra de roupas novas é um aspecto importante, pois estar melhor
vestido significa ser tratado de forma diferente, como disse Tânia, 39 anos: “se
você se veste mal, te tratarão mal. Se se vestir melhor, te tratarão melhor. É pelo
que se tem, não pelo que é”. É a diferença no modo de se vestir que confere mais
segurança a elas e permite que frequentem lugares aos quais não iam antes. A
compra de roupas e sapatos novos, parece fazer com que as beneficiárias se sintam
mais seguras e se coloquem em posição de igualdade frente pessoas que antes se
portavam como inferiores, tanto no âmbito privado, familiar, como no âmbito
público.
As condicionalidades são consideradas importantes, pois, na visão das
beneficiárias, seriam a contrapartida delas frente ao benefício. Isto porque, ao
exigir contrapartidas, é como se o governo quisesse assegurar o futuro de seus
filhos para que eles tenham melhores condições de vida. Aqui aparece novamente a
dimensão
do
dever
contido
na
cidadania,
pois
o
cumprimento
das
condicionalidades é visto como um dever para assegurar que seus filhos te nham
um futuro melhor.
Por fim, todas as beneficiárias expressaram, ainda, o desejo de um emprego
formal e desligamento do programa, pois, ao se conseguir o trabalho formal que
assegure todos os direitos, “você tem uma vida tranquila”(Maria Geane, 33 anos).
Para elas, a inserção no programa deve ser algo temporário, “até que as coisas se
acertem” e seja possível garantir sua renda.
75
3.3 Resultados da pesquisa
O programa Bolsa Família, desde que foi implantado, é alvo de muitas
pesquisas com variados enfoques. Algumas destacam o papel do programa na
diminuição da pobreza, ao passo que outras demonstram que, apesar da diminuição
da pobreza absoluta, o programa não consegue diminuir a exclusão social, cerne do
problema da desigualdade social no país.
Embora o PBF tenha conseguido diminuir os índices de pobreza absoluta,
parece ainda não ter conseguido promover a igualdade social. Porém, o enfoque da
pesquisa não está no debate entre assistencialismo e emancipação, mas na
compreensão da pobreza como privação relativa que, além da dimensão econômica
do consumo, leva em conta as dimensões políticas e culturais, essenciais para
promover mudanças nas visões de mundo e na figuração social da pobreza, sendo
um caminho para a cidadania ampliada.
Pode-se dizer, com base nas análises das entrevistas realizadas no âmbito
desta pesquisa, que a categoria de figuração social da pobreza é importante para
analisar as mudanças sociais que ocorreram na vida das beneficiárias. A pergunta
que se faz, baseado no trabalho de campo, é se a transferência de renda e o
aumento de consumo são capazes de proporcionar uma mudança na figuração
social da pobreza, fazendo com que sujeitos antes excluídos da cidadania passem a
ser compreendidos como sujeitos de direitos iguais e não mais como não-cidadãos,
ocupando uma posição de inferioridade.
De acordo com Telles (2001), o debate acerca da justiça social no Brasil
nunca foi pautado pelo imaginário igualitário, mas sim pelo imaginário tutelar, no
qual as políticas sociais não são compreendidas como direitos, mas como fruto de
um Estado benevolente. De acordo com a hierarquização da sociedade brasileira,
só se é visto como um sujeito de direitos pelo seu status social. Assim, ao se
conseguir um trabalho formal e ter acesso aos direitos trabalhistas não significa
que será visto baseado em um imaginário igualitário, mas sim numa dimensão
moralizante: o trabalhador é aquele indivíduo que saiu da dimensão da pobreza e é
reconhecimento por aspectos moralizantes positivos, pobre, porém honesto, e não
como um cidadão com direito a ter direitos.
76
É nesse momento que o próprio acesso aos direitos trabalhistas divide os
cidadãos pobres entre os trabalhadores dignos de direitos, pois são honestos, e os
cidadãos pobres que não possuem acesso ao trabalho formal e, por isso, são
divididos entre a figura do pobre coitado, que por não ter condições de
sobrevivência é tido como alguém que precisa da proteção do Estado, e o pobre
suspeito, visto como vagabundo e potencial delinquente.
Essas três caracterizações são importantes para pensar como a visão de
mundo é influenciada pelo BF, uma vez que a identidade é construída de forma
relacional, baseada na visão que tenho sobre mim e na que o outro faz de mim.
Nesse sentido, ao se analisar as entrevistas realizadas, pode-se perceber que as
beneficiárias passaram a sentir segurança, seja para discutir no âmbito privado ou
familiar, seja para transitar em ambientes, os quais antes seriam olhadas com
estranheza. É essa segurança que projeta credibilidade e dignidade aos
beneficiários dentro de seus círculos sociais.
Contudo, essa credibilidade não é suficiente para que tais cidadãos passem a
ser vistos como pobres, porém honestos e sujeitos com direitos sociais. Entretanto
os retira da esfera da desconfiança, do pobre suspeito, uma vez que as mudanças
positivas em sua credibilidade e confiança o garantem uma postura de segurança
que os distancia do pobre quase bandido. Sendo assim, os beneficiários do
programa bolsa família, além da ampliação do consumo, passariam a figura r como
pobres coitados, que merecem a tutela do Estado por terem fracassado ao garantir
sua sobrevivência.
Dessa forma, a cidadania ampliada não faria parte do caminho dos
beneficiários, uma vez que os indivíduos precisam se compreender como sujeitos
de direitos, participando e lutando nos espaços públicos por reconhecimento. O
próprio PBF abarcaria a dimensão de participação nas questões públicas com o
Conselho Municipal de Assistência Social – CMAS, formado por representantes do
governo e da sociedade civil, com poder deliberativo e de fiscalização. Todavia, a
gestão do SASF no qual esta pesquisa foi realizada nunca participou e afirmou não
sabe como atua e quem faz parte do CMAS.
77
Capítulo 4 - Considerações Finais
A pesquisa realizada procurou demonstrar de que forma o recebimento do
Bolsa Família, principal política social do governo federal, impacta sobre a
figuração social da pobreza, reconfigurando a forma como ela é compreendida
pelas beneficiárias do programa. Assim, a pesquisa centrou-se em como a
participação na política de distribuição de renda, Bolsa Família, influencia a
subjetividade
das
famílias
beneficiárias,
alterando
visões
de
mundo
e
reconfigurando a figuração social da pobreza.
Os estudos sobre pobreza e exclusão social aqui apresentados mostraram
como esses dois conceitos são multifacetados e apresentam diversas interpretações.
Contudo, sua análise é importante, pois demonstra como as concepções sobre
pobreza mudaram ao longo dos anos, passando de algo compreendido no âmbito
privado, familiar, para o âmbito público, integrando a agenda das políticas
nacionais.
O conceito de exclusão ultrapassa a dimensão de carências contida no
conceito de pobreza, pois leva em conta as privações materiais às quais os
indivíduos estão expostos, e as privações culturais e políticas decorrentes da
primeira. Dessa forma, quem está excluído tem sua cidadania negada na medida
em que suas experiências de privações e de busca por inserção social via mercado
de trabalho os afastam do debate público. Além disso, estar excluído do mercado
de trabalho faz com que estes indivíduos percam a capacidade de organização e
reconhecimento de grupo, levando ao não acesso a direitos sociais por um
sentimento de inferioridade frente aos demais cidadãos, os “incluídos”.
Retomando a história brasileira, fica claro que o reconhecimento de um
indivíduo como sujeito detentor de direitos sempre esteve atrelado à inserção no
mercado de trabalho. Assim, o reconhecimento de alguém como cidadão depende
de seu vínculo profissional, sendo os direitos sociais traduzidos como direitos
trabalhistas. E este é um aspecto importante da sociedade brasileira, pois, ao
vincular direitos sociais aos direitos trabalhistas, produz a divisão dos cidadãos
78
entre o pobre trabalhador e o pobre incivil, criando categoria de cidadãos e
destituindo estes últimos de sua cidadania plena.
Essa divisão entre os cidadãos gera a oposição entre os trabalhadores, que
possuem acesso aos direitos socais – vinculado aos direitos do trabalho, como
supracitado-, e os não-cidadãos que não possuem vínculos formais de trabalho e,
por isso não estão inseridos na cidadania. Assim, a sociedade brasileira apresenta
suas figurações sobre a pobreza: o pobre, porém honesto (trabalhador), e o pobre
incivil, que pode ser visto como o coitado que necessita da proteção do Estado, ou
o pobre suspeito que, devido sua condição de pobreza, é visto como potencial
bandido. A este último, como vimos, está reservada a violência policial – apoiada
por vários setores da sociedade-, que interpreta as leis e os julga antes no olhar
(violência simbólica) e depois na forma violenta como são tratados.
Desse modo, a construção da identidade do pobre é sempre feita em negativo:
não sou bandido, porque sou trabalhador. Isso significa que não se fala quem é,
mas quem não é (não sou bandido). Deixando claro que a figura social do pobre
honesto está acima da figura social do pobre excluído, que ora merece a
benevolência do Estado, ora a coerção da força policial.
Rabelo (2010) apresenta que um dos aspectos importantes relatados pelas
beneficiárias do BF como meio de reconhecimento social é o incremento no poder
de consumo. Parece óbvio, porém a importância do consumo diz respeito a poder
melhorar sua aparência; transitar por locais que antes não frequentav am, seja por
vergonha ou por não reconhecimento de pertencer àquele mundo; e melhorias em
seus locais de moradia. Nesse sentimento, o poder de consumo é visto como um
passo ao reconhecimento social que permite, segundo a autora, maior segurança e,
portanto, diminuir a vivência da exclusão social, permitindo enfrentar a
discriminação e o estigma.
No que tange as condicionalidades, a autora supracitada, nos mostra que elas
também cumprem um papel importante sobre o impacto na subjetividade das
beneficiárias, na medida em que afastaria a ideia do benefício como favor, uma vez
que exige o cumprimento de deveres.
79
Para a autora, maior do que as transformações materiais seriam as
transformações simbólicas no campo político e social que o benefício representa.
Segunda ela, o benefício proporciona mudanças sobre a visão de privação relativa:
embora não seja visto como caminho à cidadania plena, pensada dentro do campo
emancipatório, a possibilidade do aumento do consumo e o reconhecimento da
dignidade seriam caminhos simbólicos para uma maior demanda por igualdade
social por parte das beneficiárias. Assim, levaria os indivíduos à reivindicação do
reconhecimento de igualdade moral como cidadãos brasileiros.
Rego (2008 e 2013) considera que o Bolsa Família é uma política de
urgência moral, uma vez que garante condições mínimas para maior participação
no campo social e político. O recebimento do valor monetário possibilitaria uma
expansão na “moral” dos beneficiários, isto é, ao garantir a sobrevivência das
famílias – preocupação primeira -, os indivíduos estão livres para cuidar e garantir
outros aspectos que dizem respeito à humanização. Nesse sentido, o BF possibilita
uma mudança na privação relativa: a transferência monetária garantiria a
sobrevivência e, com isso, os indivíduos ganhariam liberdade para se ocuparem
com questões sociais e políticas, no seu sentido amplo.
A autora também aponta que a libertação da vergonha figuraria como um
caminho à cidadania, uma vez que a vergonha diz respeito à identificação da
situação de exclusão em que se encontram e à situação de inferioridade, percebida
por conta do tratamento que lhes são dispensados. Assim, vencer a barreira da
vergonha significaria uma condição para se chegar à cidadania, na medida em que
traz segurança para que as mulheres beneficiárias possam falar livremente, seja no
âmbito das relações privadas, familiares, ou público, frente à vizinhança ou no
comércio, por exemplo.
Depoimento semelhante sobre uma maior segurança e liberdade sobre a
fala também foi citado durante a pesquisa de campo aqui realizada. Algumas
beneficiárias relataram que, a partir do recebimento do benefício, estão mais
seguras para opinar, tanto frente à sua família como em meio aos círculos sociais
que frequentam, seja comércio, trabalho ou nos círculos sociais. Uma das razões
apontadas foi que o benefício permite que elas decidam ou compartilhem os
assuntos familiares.
80
“Porque antes eu tinha que esperar ele (marido) me dar o dinheiro que ele consegue
com os bicos (trabalhos temporários) que faz. Daí ele me dava uma quantia e falava
as coisas mais importantes pra comprar, porque não era pra gastar tudo. Mas agora
eu recebo a bolsa e já saio pra comprar. E ele não pode falar nada, porque agora eu
decido o que comprar pra casa e pras minhas filhas. Ele paga as contas com o que
recebe, mas agora eu quero saber pra onde vai o dinheiro que sobra direitinho.
Antes ficava com ele e eu nem ligava. Agora não, é coisa séria. Tem que dividir.
(Maria Geane, 33 anos)”
“Quando você não tem dinheiro, parece que não tem nada, né? Antes ia no
mercadinho lá da vila e de vez em quando via que o troco tava errado, mas não
reclamava, não. Porque de vez em quando comprava fiado, né? Então não podia
reclamar. Mas agora eu compro as besteiras (bolachas, iogurtes, doces) p ros filhos
lá e já olho o troco, porque nunca mais comprei fiado. Teve uma vez que reclamei e
me olharam como se eu tivesse escondido as moedas, mas falei logo que tava
reclamando porque era certo, porque dinheiro pra pagar eu tinha. Aí me deram o
troco certo. (De Jesus, 30 anos)”
A importância do aumento do consumo apontado por Rabelo (2010)
apareceu durante as entrevistas. A possibilidade de aumentar o consumo, segundo
as entrevistadas, permite que elas e seus filhos se apresentem melhor, com roupas
melhores, e faz com que as outras pessoas não as lancem mais um olhar de
desconfiança ou, nas palavras de uma delas: “com um olhar de reprovação, como
se não era pra gente estar ali” (Francisca, 33 anos). Segundo elas, agora podem
transitar em shoppings e frequentar lojas que antes nem passavam perto, e fazem
questão de dizer que às vezes não querem comprar nada, apenas entram em
algumas lojas pra verem o que está na moda e comprarem em um lugar mais
barato, muitas vezes no próprio bairro.
A esperança depositada no futuro, principalmente no futuro dos filhos, de
que eles tenham uma vida melhor e com mais oportunidades, está sempre presente.
De acordo com as falas, seus filhos terão uma maior oportunidade, pois têm a
possibilidade de estudarem mais e se prepararem para o mercado de trabalho. Para
elas a questão do desemprego é muito importante e dizem que encontrar um
trabalho com carteira assinada é difícil, mas que com mais anos de estudos, as
oportunidades aumentam. Aqui percebemos a valorização do trabalho form al frente
81
às incertezas de ganhos e benefícios dos trabalhos informais, além da fala de que,
com um trabalho formal, você tem todos os direitos.
A exclusão social é aqui entendida como manifestação de injustiça
(distributiva) “que se revela quando pessoas são sistematicamente excluídas dos
serviços, benesses e garantias oferecidos ou assegurados pelo Estado, pensados,
em geral, como direitos de cidadania” (Zaluar, 1997: 120). Já a pobreza, como
aponta Telles, “nunca foi enfrentada no horizonte da cidadania” (2001: 19), isto é,
a sociedade brasileira tem suas regras e relações sociais pautadas pelos interesses
privados, onde os privilégios de alguns ou de uma classe se sobrepõe à ideia de
justiça e de universalidade dos direitos.
Dessa forma, o que se pode inferir é que o recebimento do Bolsa Família
tem influência direta na credibilidade e na dignidade dos beneficiários. Ao receber
o benefício, famílias que antes viviam sob as incertezas do desemprego ou
sazonalidade do trabalho informal, têm a oportunidade de estabilidade de alguma
renda e planejamento. Ainda que o recebimento seja condicionado, essa
estabilidade e planejamento dão a dimensão de segurança quanto ao futuro,
fazendo com que a preocupação que antes estava em garantir a renda se volte ao
planejamento. Já a credibilidade se refere a dois aspectos: tanto a ter crédito
(monetário) quanto sobre a credibilidade do indivíduo, entendida como a confiança
com que são vistos. Essa credibilidade é a confiança que os outros a creditam pela
responsabilidade do planejamento e pela postura de segurança que assumem dentro
dos círculos sociais frequentados.
Retomando as reflexões acerca das figurações sociais da pobreza, percebe se que os beneficiários do Bolsa Família estão em um nível de privação relativa e
exclusão social que os situam na figura do pobre suspeito: pobre quase bandido. O
recebimento do benefício possibilita que os indivíduos frequentem lugares aos
quais antes não iam, que as tomadas de decisões sejam compartilhadas no âmbito
familiar e, também, um aumento da segurança perante as situações impostas pelos
círculos sociais, resultando em maior credibilidade (confiança) e dignidade,
tornando-os merecedores de respeito.
82
Todavia, essas mudanças não implicam necessariamente na avaliação de
que o Bolsa família promova alteração substancial nas figurações sociais da
pobreza, pois, embora essas pessoas agora frequentem lugares que antes “não eram
pra elas”, isso não significa que a percepção social acerca delas tenha mudado, ou
pelo menos, que tenha mudado a ponto de que sejam encaradas pelos outros como
iguais, como sujeitos detentores dos mesmos direitos.
Desse modo, essa convivência em espaços novos, aumento do consumo e de
credibilidade frente às mais variadas situações não significa que a figuração so cial
do pobre excluído tenha mudado a ponto de passarem a ser vistos como pobre,
porém honesto, e, portanto, sujeitos de direitos. Entretanto essa mudança de
situação permite supor que tais pessoas deixaram de estar associadas à figura do
pobre suspeito, para passarem a estar associadas à figura do pobre coitado que
merece piedade por não conseguir manter a si e a sua família. Neste sentido, a
partir de políticas distributivas, a beneficiária pode passar a ser vista como pobre
excluída, nos termos da privação relativa, que não consegue assegurar as condições
mínimas para seu sustento e de sua família, além de estar destituída de uma gama
de relações políticas e culturais.
Por fim, o Programa Bolsa Família provocou realinhamentos de relações
sociais e econômicas que são importantes e influenciam no modo de vida das
beneficiárias. No entanto, do ponto de vista da figuração social da pobreza e da
construção de identidade relacional, levando em conta a visão que tenho sobre mim
e a visão que os outros têm sobre mim, os papéis sociais continuam a estar bem
definidos, de maneira que e os pobres excluídos continuam sendo vistos como não cidadãos.
De todo modo, como aponta Rego (2013: 228), “a mobilidade social
continua sendo um obstáculo para a sociedade brasileira”, na qual cada um tem o
seu lugar, dividindo a sociedade em grupos opostos, entre os cidadãos e os não cidadãos, entre a figura que os outros fazem de mim e que são internalizadas,
influenciando a visão de mundo que construímos. Mais ainda:
83
“[...] os pobres internalizam frequentemente a imagem negativa construída pelo
resto da sociedade e se culpam pela sua situação, tornando-se vítimas do discurso de
autolegitimação formulado pelos grupos dominantes” (Rego, 2013: 228).
De modo que o ideal, perante toda a sociedade, seria a garantia de um
emprego fixo, pois a carteira de trabalho ainda é a comprovação moral de
honestidade e de que o indivíduo é merecedor de direitos.
Assim, de acordo com a pesquisa de campo realizada e com base nos
aportes teóricos dados pela pesquisa de Rabelo (2010) e Rego (2008 e 2013), podese inferir que, embora o programa Bolsa Família proporcione melhoras nos
padrões de consumo e permitam uma participação maior das mulheres nas tomadas
de decisões e segurança para compartilhar opiniões, não se pode afirmar que todas
as mudanças produzidas por essas medidas sociais ao longo dos anos produziram
um caminho para os direitos, inseridos numa lógica de cidadania ampliada
(Dagnino, 2004), permitindo às beneficiárias do Bolsa Família uma maior
autonomia e consequente aumento na demanda por direitos (Rego, 2010) e nem
que a possibilidade do aumento do consumo e o reconhecimento da dignidade
seriam caminhos simbólicos para uma maior demanda por igualdade social por
parte das beneficiárias (Rabelo, 2010).
84
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