J Bras Nefrol 2001;23(1):55-9 55 Atualização em transplante renal: Transplante simultâneo rimpâncreas Annemarie D Cotta e Euler P Lasmar Unidade de Transplante Renal (1ª Clínica Nefrológica), Hospital Felício Rocho, Belo Horizonte, MG. Disciplina de Clínica Médica II, Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG Endereço para correspondência: Annemarie Dusanek Cotta Av. Prof. Mário Werneck, 2104/903 30575-180 Belo Horizonte, MG Tel./Fax: (0xx31) 378-6723 E-mail: [email protected] Introdução O diabetes melittus acomete aproximadamente 6% da população americana e são diagnosticados em torno de 30.000 novos casos por ano nos Estados Unidos da América (EUA).1 O diagnóstico de diabetes melittus insulino-dependente (DMID) implica não só em metabolismo anormal da glicose devido à falta de insulina, como também em complicações a longo prazo como retinopatia, neuropatia, nefropatia e vasculopatia. Essas complicações, em geral, tornam-se evidentes após 15 a 20 anos do diagnóstico inicial. Aproximadamente 35% dos portadores de DMID desenvolvem nefropatia clínica, fazendo desta a principal causa de IRC (insuficiência renal crônica) nos EUA e a terceira causa no Brasil.2 O transplante simultâneo rim-pâncreas tem se tornado o tratamento de escolha definitivo para pacientes com DMID urêmicos. Nesses pacientes, o enxerto pancreático é a fonte endógena de insulina, deixando o paciente livre do uso de insulina exógena, com completa normalização dos níveis de glicohemoglobina e teste oral de tolerância à glicose normal em 80% dos pacientes, após cinco anos de transplante.3 Mais de 9.000 transplantes de pâncreas já foram realizados desde 1966 em todo o mundo, sendo 90% destes na forma de transplante simultâneo rimpâncreas(SPKT) e o restante, após um bem sucedido transplante renal (PAKT) ou como transplante pancreático isolado (PTA). Enquanto no SPKT os órgãos provêm de um mesmo doador cadáver, no PAK é transplantado um pâncreas de cadáver em um paciente com um enxerto renal funcionante de doador vivo ou cadáver. Com as novas técnicas cirúrgicas e novos esquemas de imunossupressão, a sobrevida do enxerto de pâncreas nos SPKT em um ano tem sido de 70% a 90%.4 Na universidade de Wisconsin, onde foram estudados 500 SPKT, de dezembro/1985 a outubro/1997, a sobrevida de pacientes em 1,5 e 10 anos foi 96,4%, 88,6% e 76,3%; a sobrevida do enxerto renal, 88,6%, 80,3% e 66,6%; e a sobrevida do enxerto pancreático 87,5%, 78,1% e 67,2%.5 Indicações Devido ao elevado risco cirúrgico e à maior morbidade do SPK quando comparado ao transplante de rim isolado, os receptores devem ter menos de 45 anos e estarem isentos de comorbidades importantes, sendo a principal contra-indicação a presença de doença cardiovascular já estabelecida e intratável.6 Infarto miocárdico prévio, bypass coronariano ou angioplastia percutânea são associados com uma mortalidade do receptor de 20% em um ano.7 Idade maior de 60 anos, tabagismo, fração de ejeção menor do que 40% e obesidade severa (mais do que 50% do peso ideal) são contra-indicações absolutas. Já as relativas são doença vascular severa, doença psiquiátrica e obesidade. Em compensação, cegueira, hipertensão arterial, doença vascular periférica (amputações, bypass periféricos e complicações cerebrovasculares) e duração do DMID não têm impacto na sobrevida do doente ou do enxerto.7 Seleção do doador Em geral, a maioria dos doadores que têm o diagnóstico de morte encefálica e que são apropriados para retirada de rins, pulmões, coração e fígado, são bons doadores de pâncreas. Embora a presença de hiperglicemia ou hiperamilasemia no momento da retirada possam estar associados a efeitos deletérios na função do enxerto, não são considerados contra-indicação para a doação do pâncreas.6 O doador ideal é aquele com idade entre 10 e 40 anos e com peso entre 30 kg e 80 kg. Hidratação 56 J Bras Nefrol 2001;23(1):55-9 Cotta AD & Lasmar EP Transplante simultâneo rim-pâncreas vigorosa com fluidos e uso de manitol é recomendada a fim de diminuir o edema pancreático.Como manobras de ressuscitação podem resultar em hiperglicemia, o uso de insulina nesses casos é indicado. A maioria dos autores relata preferência pela retirada em bloco (hepáticopancreaticoduodenoesplenectomia) e o uso de solução de Wisconsin para preservação dos órgãos, podendo o tempo de isquemia fria do pâncreas chegar a 30 horas, sem prejuízo na função do enxerto.8 Considerações cirúrgicas A forma ideal de drenagem da secreção pancreática exócrina permanece controversa. A drenagem vesical, na qual o segmento duodenal é anastomosado à bexiga, permanece amplamente usada, mas é associada à alta incidência de acidose metabólica, desidratação, pancreatite, infecção urinária de repetição e hematúria macroscópica. Embora a drenagem entérica, em que o segmento duodenal do doador é anastomosado ao duodeno do receptor, seja mais fisiológica, ela era associada, no passado, à diminuição da sobrevida do enxerto e a maiores complicações infecciosas. Além disso, com a drenagem vesical, seria mais fácil identificar episódios de rejeição através da medida urinária da amilase. Entretanto, com as novas drogas imunossupressoras e antibióticas e o uso da biópsia pancreática, tem se chegado à conclusão de que a drenagem entérica é tão boa ou melhor do que a drenagem vesical. Vários estudos comparativos vêm mostrando que a drenagem entérica da secreção pancreática exócrina representa uma alternativa viável, com baixíssimo índice de complicações, tanto metabólicas, quanto cirúrgicas e infecciosas e com menor tempo de hospitalização. Além disso, ela não está associada a maior perda do enxerto pancreático a longo prazo, como se pensava.9-11 Quanto às anastomoses vasculares, o suprimento arterial do pâncreas é reconstituído com um enxerto em Y derivado da bifurcação da artéria ilíaca do doador; 12,13 este é anastomosado à artéria ilíaca externa ou comum do receptor. A ilíaca interna ou a hipogástrica é anastomosada à artéria esplênica, e a artéria ilíaca externa ou a comum é anastomosada à artéria mesentérica superior. Quanto à drenagem venosa, é preferida a drenagem portal do enxerto à veia ilíaca do receptor, apesar da hiperinsulinemia resultante. 14 Imunossupressão A maioria dos centros têm optado pelo esquema quádruplo de imunossupressão: indução com anticorpo poli ou monoclonal por 7 a 14 dias, associado a azatioprina ou micofenolato mofetil (MMF), ciclosporina ou tacrolimus e corticóide. A maior eficácia do esquema quádruplo seqüencial usando globulina antitimocítica (ATG) comparado ao esquema triplo (azatioprina, ciclosporina e corticóides) foi avaliado em um estudo randomizado com cinqüenta pacientes submetidos a SPKT. Houve uma incidência significativamente menor de rejeição aguda no primeiro grupo: 36% versus 76% (p<0,01).15 Embora a eficácia do MMF não tenha sido ainda extensivamente estudada no SPKT, seu uso tem sido preferido devido à menor incidência de rejeição celular, tanto associado à ciclosporina quanto a FK506. Um estudo retrospectivo comparando 358 pacientes usando MMF (n=109, 3 g/dia) e azatioprina (n=249, 2 mg/ kg/dia) mostrou, em dois anos, melhor sobrevida tanto do rim (95% versus 86%) quanto do pâncreas( 95% versus 83%) no grupo MMF.16 O tacrolimus tem se mostrado também mais eficaz do que a ciclosporina Neoral no SPKT. Em estudo com 50 pacientes, usando ou MMF-tacrolimus ou MMF-Neoral, associados à prednisona e com indução com ATG, verificou-se que, em seis meses, a incidência de rejeição aguda foi de 10,2% no primeiro grupo versus 44,4% no grupo Neoral.17 Embora uma das preocupações em relação ao tacrolimus seja quanto a seu efeito diabetogênico, não parece haver aumento na incidência de diabetes mellitus: menor que 1% em análise de estudo multicêntrico envolvendo 14 centros e 362 receptores de pâncreas.18 As doses utilizadas pela maioria dos centros são: OKT=3-5 mg/dia a 10 mg/dia, ATG=10 mg/kg/dia, ciclosporina=dose inicial de 8 mg/kg/dia, MMF=1,0 g a 1,5 g duas vezes ao dia, azatioprina=2,5 mg/kg/dia e prednisona=dose inicial de 2 mg/kg/dia.Em alguns centros têm sido utilizados também anticorpos monoclonais como basiliximab e daclizumab. Complicações cirúrgicas As complicações cirúrgicas após o SPKT são a maior fonte de morbimortalidade e ocorrem em 35% dos receptores.19 Quando comparado ao transplante de outros órgãos sólidos, os transplantes pancreáticos em geral têm maior incidência de complicações. Um estudo que avaliou retrospectivamente complicações cirúrgicas em 441 pacientes (54% de SPKT; 22% J Bras Nefrol 2001;23(1):55-9 57 Cotta AD & Lasmar EP Transplante simultâneo rim-pâncreas de PAK; 24% de PTA) evidenciou necessidade de relaparotomia em 36% dos casos, sendo as causas mais comuns infecção intra-abdominal e pancreatite do enxerto (38%), trombose pancreática(27%) e sangramento de anastomose vascular (15%). A mortalidade peroperatória foi de 9%. Perda do enxerto pancreático ocorreu em 80% dos pacientes submetidos a relaparotomia, ao passo que naqueles que não foram reoperados, a perda do pâncreas foi de 41% (p<0,0001).20 Já foram relatados também casos de pseudoaneurisma de artéria mesentérica superior, com fístula artério-venosa envolvendo artéria e veia mesentéricas,19 além de torção aguda do pedículo vascular levando a infarto renal.21,22 Entre outras complicações, citam-se vazamento duodenal (17%), lesões ureterais (9%) e lesões uretrais (6%).23 Complicações clínicas O SPKT com drenagem vesical da secreção exócrina pancreática é associado à perda de grandes quantidades de bicarbonato na urina, levando à acidose metabólica com ânion-gap normal, hiponatremia e desidratação. Outra complicação da drenagem vesical é a ativação do tripsinogênio na bexiga, induzindo à cistite química com hematúria macroscópica subseqüente, uretrite e balanite. Infecção urinária de repetição também é muito comum, devido à urina persistentemente alcalina associada à imunossupressão do paciente.6 Hiperamilasemia é relativamente comum, geralmente devido a fatores relacionados ao doador ou lesões durante a retirada ou implante. Pancreatite de refluxo é associada a pacientes com bexiga neurogênica. A hiperglicemia pode ser resultado de disfunção pancreática secundária à rejeição, ou mesmo toxicidade por tacrolimus. Diabetes mellitus não insulino-dependente de novo é associada ao uso de esteróides. Rejeição A incidência de rejeição renal aguda (RRA) no SPKT é maior quando comparado ao transplante renal isolado, devido a mecanismo desconhecido.19 Estudo analisando 44 pacientes submetidos a SPKT evidenciou que 77% apresentaram RRA. Destes, 66% tiveram apenas um episódio de rejeição e 11% dois episódios. Em 85% dos casos, a RRA ocorreu no primeiro mês de pós-operatório, 62% das rejeições foram córtico-sensíveis e 38% não responderam a corticóides, levando a conclusão de que, apesar da imunossupressão intensiva, a frequência de RRA é alta no SPKT. Porém, a resposta ao tratamento foi favorável, não afetando a sobrevida renal a longo prazo. Entretanto, múltiplos episódios são associados a níveis basais de creatinina mais altos.19 Quanto à rejeição pancreática, a forma vascular leva a maior número de transplantectomias, mas os potenciais marcadores de rejeição (amilases sérica e urinária, glicemia e creatinina sérica) não indicam se o acometimento é vascular ou intersticial.24 Estes marcadores (aumento da amilase ou lipase séricas) ou queda persistente de 40% a 50% na amilase urinária têm apenas 80% de especificidade para rejeição aguda, sendo portanto imprescindível a realização de biópsia pacreática para diagnóstico adequado.25 Benefícios do transplante de pâncreas O maior benefício do transplante de pâncreas é, sem dúvida, a melhora na qualidade de vida do diabético, uma vez que o mesmo não tem mais necessidade das injeções diárias de insulina e do tratamento dialítico. Estudo comparando pacientes diabéticos submetidos a SPKT e a KTA evidenciou substancial redução na mortalidade do primeiro grupo em dez anos.26 Quanto à retinopatia, a maioria dos SPKT ocorrem 20 anos ou mais após o primeiro diagnóstico de DMID, quando os pacientes já apresentam lesões oftalmológicas em estágio avançado ou irreversível, quando não cegueira. Em 46 pacientes acompanhados por dez anos após um bem-sucedido SPKT, 14% apresentaram melhora da retinopatia, 76% se mantiveram estáveis e em 10% houve progressão das lesões retinianas.27 Em relação às alterações circulatórias, há alguma melhora na microcirculação, evidenciada pela redução na incidência de amputações e de úlceras diabéticas. Não foi demonstrado ainda benefício em relação à doença macrovascular. A polineuropatia diabética é uma complicação crônica comum do DMID. Vários estudos têm sugerido que o SPKT melhora a condução nervosa, mas permanece controverso se essa melhora é secundária à correção da hiperglicemia ou da uremia. Além de evitar a progressão da neuropatia com melhora sintomática importante, o SPKT parece estar associado a melhora mesmo em casos avançados.2,28,29 Nefropatia recorrente ou de novo é prevenida com o transplante de pâncreas e estudos têm mostrado significativa redução no espessamento da membrana basal glomerular e no volume mesangial.30 58 J Bras Nefrol 2001;23(1):55-9 Cotta AD & Lasmar EP Transplante simultâneo rim-pâncreas Conclusão O transplante de pâncreas vem assumindo cada vez mais importância no tratamento do DMID. O SPKT vem se tornando uma alternativa viável ao transplante renal isolado em pacientes urêmicos, devido ao melhor controle glicêmico e à melhor qualidade de vida proporcionados. Embora a mortalidade seja maior, o SPKT se justifica, uma vez que há prevenção de nefropatia diabética no enxerto renal, melhora da microangiopatia, da neuropatia autonômica e sensorial e, segundo alguns estudos, estabilização da retinopatia. Além disso, a sobrevida em dez anos, tanto do enxerto renal quanto do pancreático, é melhor no SPKT do que no transplante de qualquer outro órgão sólido, com exceção de transplantes entre doadores HLA idênticos.5 No futuro, avanços nas técnicas de imunossupressão e nos métodos diagnósticos irão melhorar os bons resultados obtidos atualmente com o SPKT. Referências 1. American Diabetes Association. Economic consequences of diabetes mellitus in the USA in 1997. Diabetes Care 1998;28(2):296-309. 2. Stratta R. Impact of pancreas transplantation on the complications of diabetes. Curr Opinions Organ Transplantation 1998;3:258-73. 3. Fernandez BM, Esmatjes E. Successful pancreas and kidney transpantation: a view of metabolic control. 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