CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS No último dia 20 de abril, o Supremo Tribunal Federal realizou audiência pública para colher dados científicos acerca do início da vida humana e, com aporte nessas informações, julgar o mérito da ADI nº 3510-DF, proposta pelo então Procurador-Geral da República, Cláudio Fonteles, contra o art. 5º e parágrafos da Lei de Biossegurança (L. 11.105/05), que dispõem sobre a utilização de células-tronco de embriões humanos em pesquisas e terapias. Argumenta a PGR, com base na opinião de especialistas em bioética e sexualidade, que tais dispositivos afrontam a Constituição Federal no que diz respeito ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana, considerando-se que a vida tem início com a fecundação do óvulo e, portanto, "o embrião é vida humana". Com o objetivo de enriquecer o debate a respeito da dimensão da vida humana, a Revista Consulex convidou renomados juristas para escrever sobre o tema, sob o enfoque jurídico, científico, filosófico e sociológico. QUE VIDA, BIOLÓGICA OU MORAL? "Ao elevar o embrião inviável à condição de ser humano, o sofrimento de milhares de seres humanos reais está sendo relegado à mais absoluta irrelevância. E essa não parece ser uma escolha moralmente adequada por quem luta em favor da vida." Pouco tempo antes de deixar o comando do Ministério Público Federal, o então Procurador-Geral da República, Cláudio Fonteles, propôs ação direta de inconstitucionalidade contra dispositivos da Lei de Biossegurança que autorizam a pesquisa, para fins terapêuticos, com células de embriões inviáveis para fertilização. Argumenta o ex-Procurador-Geral da República que a lei é inconstitucional, pois violaria o direto à vida, bem como o princípio da dignidade humana – ambos entrincheirados em nossa Constituição. O raciocínio é simples. A vida começa com a fecundação. O direito à vida é protegido pela Constituição. Logo, fazer pesquisa com células embrionárias é atentar contra a dignidade da vida humana. Esse raciocínio é tão cartesiano quanto incorreto. O primeiro equívoco do ex-Procurador-Geral é não reconhecer que o debate colocado ante o Supremo Tribunal Federal é de natureza prevalentemente moral, e não de natureza "estritamente científica". A questão fundamental, portanto, não é quando começa a vida biológica, mas sim que grau de proteção jurídica deve ser conferido à vida em cada etapa do seu desenvolvimento. Reconhecer que o embrião tem vida não significa que estejamos dispostos a equipará-lo moral e juridicamente a uma pessoa. Seria como comparar uma semente de jacarandá encontrada no chão da floresta com uma árvore centenária que protegemos com nossa legislação ambiental. A dor de ver uma semente sendo comida por um passarinho não é equiparável àquela de ver uma árvore derrubada por um raio, como nos lembra o filósofo Michael Sandel. Todos que já perderam uma pessoa querida sabem o que significa a morte de um ser humano, e esta não pode ser comparada com o não-desenvolvimento de um embrião, ainda mais quando falamos de um embrião que se encontra fora do útero e é inviável para fertilização. Essa distinção no valor atribuído a cada uma das diversas etapas de evolução da vida já é feita pelo nosso direito e, até onde sei, jamais foi questionada pelo ex-Procurador-Geral da República Cláudio Fonteles. Nosso Código Penal permite, por exemplo, o aborto quando houver risco de vida para a mãe. Ou seja, na ponderação feita pelo legislador, ele deu mais importância à vida da mãe do que à expectativa de vida do feto – e é razoável que assim tenha feito. Importante destacar, por outro lado, que a pesquisa autorizada pela Lei de Biossegurança se resume apenas aos embriões produzidos fora do útero materno para fins de fertilização, mas que não se demonstraram viáveis para esse mesmo fim, seja por um problema de natureza fisiológica, seja porque, depois de três anos congelados, não mais podem ser implantados com segurança em um útero materno. Ou seja, estamos falando de embriões que não possuem nenhuma expectativa de evoluir para a condição humana. A equiparação mecânica feita pelo ex-Procurador-Geral é, portanto, destituída de sentido. Isso não quer dizer que o embrião não tenha valor e que não deva ser protegido. Antes o contrário. Ele tem valor e devemos protegê-lo. Porém, essa proteção deve ser distinta daquela proteção que conferimos às pessoas. É exatamente isso o que faz a Lei de Biossegurança. Ela proíbe a pesquisa com qualquer embrião que seja viável. Mais do que isso, proíbe qualquer pesquisa que não tenha fins terapêuticos, portanto, humanitários. O terceiro aspecto preocupante do argumento levado a cabo pelo exProcurador-Geral da República é a sua omissão em relação à dignidade e à própria vida de milhões de pessoas humanas que sofrem doenças graves e letais, como Parkinson, diabetes, doenças coronárias ou lesões de medula, que poderiam ser beneficiadas com o progresso nas pesquisas com células-tronco. Ao elevar o embrião inviável à condição de ser humano, o sofrimento de milhares de seres humanos reais está sendo relegado à mais absoluta irrelevância. E essa não parece ser uma escolha moralmente adequada por quem luta em favor da vida. OSCAR VILHENA VIEIRA é Advogado, Mestre em Direito pela Universidade de Colúmbia (EUA) e Doutor em Ciências Políticas pela USP. Professor de Direito Constitucional da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas e Diretor Jurídico da Conectas Direitos Humanos. É autor, entre outras obras, de Direitos Fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF. A CIÊNCIA OU O LIXO A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo. Esse verso de Vinicius de Moraes me veio à mente quando o Ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, determinou a realização de audiência pública para debater a legitimidade das pesquisas com célulastronco embrionárias. Pela primeira vez, o Judiciário fazia uma abertura formal para a sociedade civil, permitindo sua participação no processo de formação do convencimento dos Ministros acerca de um tema controvertido e delicado. O precedente merece ser celebrado. A questão em debate é a seguinte. O ex-Procurador-Geral da República ingressou com ação direta de inconstitucionalidade contra a Lei de Biossegurança, aprovada em 2005, que permite a utilização, em pesquisas científicas, de embriões inviáveis ou congelados há mais de três anos. Tais embriões são resultantes dos procedimentos de fertilização in vitro, método de reprodução assistida destinado a superar a infertilidade conjugal. As células-tronco embrionárias são extremamente promissoras para a investigação médica devido a sua capacidade de se transformar em todos os tecidos do organismo humano. A audiência pública produziu algumas conclusões muito nítidas. Em primeiro lugar, a de que não existe consenso no meio científico acerca do início da vida humana. O momento exato em que um aglomerado de células se transforma em um ser moral divide as opiniões de cientistas e filósofos em todo o mundo, e a resposta a essa questão sempre estará sujeita à crença subjetiva ou religiosa de cada um. De qualquer forma, é possível afirmar, categoricamente, que, no estágio atual da ciência reprodutiva, a implantação do embrião produzido in vitro no útero materno é condição indispensável para seu desenvolvimento regular. Não por outra razão, a pergunta a ser feita na ação judicial perante o Supremo Tribunal Federal não é acerca do momento em que tem início a vida, mas outra, bem diversa: qual o destino a ser dado aos embriões excedentes do processo de fertilização in vitro, legalmente praticado no Brasil, e que não foram implantados em um útero materno? Por qual fundamento alguém haveria de optar por deixá-los indefinidamente congelados ou descartá-los em lugar de permitir que eles sirvam ao fim digno de contribuir para a ciência e para a superação do sofrimento de inúmeras pessoas, estas, sim, inequivocamente seres vivos? Deve-se assinalar que todos os pesquisadores que efetivamente atuam nessa área concordam que a utilização de células-tronco adultas não é capaz de proporcionar tratamento adequado para diversas doenças. Por essa razão, as pesquisas com células-tronco embrionárias seguem sendo o melhor caminho disponível na busca de cura para doenças graves e que causam grande sofrimento, como distrofias musculares, lesões medulares (paraplegia e tetraplegia), diabetes e mal de Parkinson, entre outras. Há um último argumento institucionalmente importante em favor da manutenção da lei. É que, por maioria expressiva, o Congresso Nacional se manifestou sobre o tema, permitindo as pesquisas, mas tomando a cautela de proibir práticas eticamente condenáveis, como a comercialização de embriões e a clonagem. Mais que isso: a lei exige, para a utilização dos embriões em pesquisas, que os genitores, isto é, os doadores do sêmen e do óvulo fecundados, autorizem essa prática. Portanto, em um tema que envolve o que em filosofia se denomina desacordo moral razoável (pessoas bem-intencionadas e esclarecidas professam convicções totalmente opostas), o legislador tomou a decisão correta: a de permitir que cada um viva a sua autonomia da vontade, a sua própria crença. Não há razão para o Supremo Tribunal Federal desautorizar a decisão do Congresso Nacional, que é razoável e equilibrada. Jogar o embrião fora, em lugar de permitir que ele sirva à causa da humanidade, é uma escolha de difícil sustentação ética. Uma escolha autoreferente, que não leva em conta o outro, o próximo, o que precisa. No mesmo verso de Vinicius, agora completo: A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro. LUÍS ROBERTO BARROSO é Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e Advogado do Movimento em Prol da Vida (Movitae), sociedade sem fins lucrativos que defende, no STF, as pesquisas com células-tronco embrionárias. ESTADO LAICO NÃO É ESTADO ATEU OU PAGÃO Desde a Constituição do Império de 1824, os textos magnos pátrios consagram o princípio da liberdade religiosa, o que se dá amplamente a partir da Carta Republicana de 1891. O Estado laico, longe de ser um Estado ateu – que nega a existência de Deus –, protege a liberdade de consciência e de crença de seus cidadãos, permitindo a coexistência de vários credos. Aliás, é princípio fundamental do cristianismo e muito precioso aos católicos, que compreendem a parcela maior dos brasileiros, o profundo respeito à liberdade religiosa de cada um, como bem se afirma na declaração "Dignitatis Humanae", do Concílio Vaticano II. As Constituições fazem expressa menção, em seus preâmbulos, à confiança depositada em Deus (1934), colocando-se sob sua proteção (1946), ou afirmando o amparo divino, como pouco humildemente se fez em 1988. Esta percepção da importância de Deus como fundamento de uma sociedade fraterna radica na indissociável conexão entre a história, a cultura e o próprio Criador, o que é imprescindível para a elaboração de políticas públicas que não colidam com a liberdade religiosa nem desrespeitem a profunda religiosidade da nação brasileira. Daí a enorme distância entre o pluralismo religioso do Estado laico e um Estado ateu ou pagão, que nega a existência de Deus ou prega a divinização do ocupante do poder. Nero lançou, no ano 64, uma feroz perseguição aos cristãos, que se seguiu ao longo do século II, para a preservação do culto pagão aos imperadores. Hitler, com políticas de extermínio do povo judeu — e também de cristãos, ciganos e deficientes físicos –, sustentou um Estado ateu em que o Füher era o senhor supremo da vida e da morte. Por outro lado, Bento XVI, o Papa do Amor e da Paz da encíclica "Deus Caritas Est", ao abrir a V CELAM, em Aparecida (SP), considerando "a realidade urgente dos grandes problemas econômicos, sociais e políticos da América Latina e do mundo", afirmou: O que é esta "realidade"? O que é o real? São "realidade" só os bens materiais, os problemas sociais, econômicos e políticos? Aqui está precisamente o grande erro das tendências dominantes no último século, erro destrutivo, como demonstram os resultados tanto dos sistemas marxistas como, inclusive, dos capitalistas. Falsificam o conceito de realidade com a amputação da realidade fundante, e por isso decisiva, que é Deus. Quem exclui Deus de seu horizonte falsifica o conceito de "realidade" e, em conseqüência, só pode terminar em caminhos equivocados e com receitas destrutivas. A primeira afirmação fundamental é, pois, a seguinte: Só quem reconhece Deus, conhece a realidade e pode responder a ela de modo adequado e realmente humano. A verdade dessa tese é evidente ante o fracasso de todos os sistemas que colocam Deus entre parênteses. Para se evitarem "caminhos equivocados e com receitas destrutivas", é indispensável que o Estado laico também dialogue com a ciência, que, quando busca a verdade e é conduzida com vistas à preservação da dignidade humana em plenitude, não contradiz verdades de fé. E nos temas de proteção à vida, a ciência moderna comprova que ela se dá a partir da concepção, o que já impõe substancial amparo jurídico do Estado. A proteção constitucional e legal à vida – única e irrepetível – a partir de seu início, confirma, pois, aquilo que algumas das maiores religiões já afirmam desde tempos imemoriais. Assim, quando se defronta com temas como aborto, pesquisas destrutivas com células-tronco embrionárias, comercialização de embriões humanos por clínicas de fertilização artificial, não se pode calar a manifestação de cristãos, judeus, muçulmanos e até mesmo de ateus, como expressão da rica realidade dos que compõem a sociedade brasileira. Quando se sustenta que o Estado deve ser surdo à religiosidade de seus cidadãos, na verdade se reveste este mesmo Estado de características pagãs e ateístas que não são e nunca foram albergadas pelas Constituições brasileiras. A democracia nasce e se desenvolve a partir da pluralidade de idéias e opiniões, e não da ausência delas. É direito e garantia fundamental a livre expressão do pensamento, inclusive para a adequada formação das políticas públicas. Pretender calar os vários segmentos religiosos do País não é apenas antidemocrático e inconstitucional, mas traduz comportamento revestido de profunda intolerância e prejudica gravemente a saudável convivência harmônica do todo social brasileiro. IVES GANDRA DA SILVA MARTINS é Advogado Tributarista e Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UniFMU, UniFIEO, Unip e das Escolas de Comando e Estado Maior do Exército (Ecem) e Superior de Guerra (ESG). ANTONIO CARLOS RODRIGUES DO AMARAL é Mestre em Direito pela Universidade de Harvard (EUA) e em Educação pela USP. Professor de Direitos e Garantias Fundamentais da Universidade Mackenzie e Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SP. O EMBRIÃO REGENERATIVO HUMANO IVES GANDRA DA SILVA MARTINS é Advogado Tributarista e Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UniFMU, UniFIEO, Unip e das Escolas de Comando e Estado Maior do Exército (Ecem) e Superior de Guerra (ESG). ANTONIO CARLOS RODRIGUES DO AMARAL é Mestre em Direito pela Universidade de Harvard (EUA) e em Educação pela USP. Professor de Direitos e Garantias Fundamentais da Universidade Mackenzie e Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SP. O EMBRIÃO REGENERATIVO HUMANO "O embrião humano é precioso em razão da capacidade que tem de tornar-se um ser pessoal na hipótese de encontrar um útero para sua nidação, e uma sociedade para sua educação. Mas nenhuma moral diz que todo ente potencial deve ser atualizado. E seria tanto mais absurdo dizê-lo no momento em que a Biologia ensina que todas as células do nosso corpo, no caso, as células-tronco, têm potencial embrionário." O embrião é o produto das primeiras modificações do ovo fecundado, tanto nos animais como nas plantas, que vai dar origem a um novo indivíduo. Um embrião é, por conseguinte, fruto da junção de um gameta feminino (óvulo) e um gameta masculino (espermatozóide), a partir das primeiras modificações do ovo fecundado. Fixa-se na placenta dos mamíferos e é aqui que ocorrem as trocas metabólicas entre a mãe e o embrião. O embrião humano é o concepto quando está em sua fase de diferenciação orgânica, da segunda à sétima semana depois da fecundação – etapa conhecida como período embrionário. Origina-se do embrioblasto, estrutura multicelular que, em conjunto com o trofoblasto e a blastocele, constitui o blastocisto recém-implantado no endométrio, que é a mucosa que reveste a parede uterina. Formado por fibras musculares lisas e estimulado por hormonas ováricas chamadas estrogênio (produzido pelos folículos) e progesterona (originada pelo corpo lúteo ou amarelo), tem um aumento na sua espessura devido à grande concentração destas hormonas no sangue (ocorrendo o contrário na menstruação). É o endométrio que permite o alojamento do zigoto na parede do útero (nidação). É ele também que, durante os primeiros meses de gravidez, permite a formação da placenta, que vai proporcionar, ao longo de toda a gestação, nutrientes, oxigênio, anticorpos e outros elementos essenciais à sobrevivência, saúde e desenvolvimento do novo ser. O período embrionário termina na 8ª Óvulo, que é uma célula sexual feminina produzida pelos ovários. Após a fecundação, o óvulo passa a se chamar zigoto. Fecundação do óvulo – também conhecido como ovócito II – tem um período para sair do ovário. Quando este chega, o ovário libera o óvulo, que fica armazenado na tuba uterina, mais especificamente em uma região denominada ampola, da mulher. No dia fértil, o óvulo é liberado da tuba uterina para o endométrio – útero – na expectativa de que um espermatozóide o fecunde. Assim que fecundado, ele se multiplica até originar o bebê, porém, se nenhum espermatozóide o alcançar, o óvulo morre e começa uma descamação da parede do endométrio, gerando novamente a menstruação. Quando a mulher tem sua primeira menstruação, é porque os óvulos já estão formados e, ao saírem dos ovários, significa que ela já pode engravidar. As características do óvulo, assim que é libertado para as trompas de Falópio – fenômeno designado por ovulação –, são corpo arredondado e com pouca mobilidade, o que indica encontrar-se pronto para a penetração do espermatozóide (fecundação). Após a fusão destas duas células sexuais, tornase impossível a entrada de qualquer outro espermatozóide.O óvulo é uma célula muito pequena, assim como os espermatozóides, só podendo ser visualizado com um microscópio. Ovócito secundário é o gameta sexual feminino. Em Biologia, chama-se fertilização o momento em que um espermatozóide penetra num óvulo (nos animais) ou o tubo polínico penetra no óvulo (nas plantas) durante o processo de reprodução. Em geral, a fecundação é intra-específica, isto é, processa-se apenas entre indivíduos da mesma espécie. Mas há casos de fecundação inter-específica, entre indivíduos de duas espécies evolucionariamente próximas. Os indivíduos que nascem com essa característica designam-se híbridos (exemplo: os cavalos e os burros podem cruzar-se, dando origem a um híbrido: o macho ou mula). O óvulo, gameta feminino, possui barreiras para a penetração dos espermatozóides: a corona radiata (mais externa, composta de células foliculares) e a zona pelúcida (camada glicoprotéica situada após a corona radiata). Os espermatozóides, gametas masculinos, possuem na cabeça o acrossomo, que começa a liberar enzimas hidrolíticas ao entrar em contato com tais barreiras. Após vencê-las, ocorre a fusão entre as membranas dos dois gametas. Imediatamente após a fecundação, a membrana do óvulo altera-se para impedir a entrada de outros espermatozóides. Os 23 cromossomos de cada gameta se unem, formando o zigoto, com 46 cromossomos. Chama-se feto o estágio de desenvolvimento intra-uterino que tem início após oito semanas de vida embrionária (sendo conhecido antes como embrião) e vai até o fim da gestação. Após o parto, o feto passa então a ser considerado recémnascido. Há um trabalho desenvolvido por Flávio Henrique Paraguassú-Braga e Adriana Bonomo que vale a pena ser reproduzido no presente estudo: As células-tronco estão presentes desde a vida embrionária até a vida adulta, e provavelmente até nossa morte. São elas as responsáveis pela formação do embrião e também pela manutenção dos tecidos na vida adulta. No início da vida embrionária, as células-tronco são virtualmente totipotentes, ou seja, apresentam capacidade de gerar quaisquer tecidos do organismo. Contudo, após a formação do embrião propriamente dito, diversos tecidos mantêm células-tronco que participam da fisiologia normal (e da patologia também) na vida adulta. Conceitualmente, as células-tronco apresentam duas características fundamentais: a) auto-renovação ilimitada, por exemplo, a capacidade de multiplicar-se gerando células iguais à célula-original durante toda a vida, e ; b) pluripotência, como, por exemplo, a capacidade de gerar diferentes tipos celulares. Apesar de existirem em baixa freqüência, seus números são suficientes para manter os tecidos que necessitam de renovação constante. Em alguns sistemas onde são bem caracterizadas, sua freqüência é estimada em 1 para cada 100.000 células totais daquele tecido. As células-tronco, à medida que se dividem, geram progenitores comprometidos com uma capacidade de proliferação ainda mais limitada e um restrito potencial de diferenciação devido ao comprometimento com uma linhagem celular única. A partir deste ponto, esta célula já comprometida, chamada precursor, possui morfologia definida e seu potencial proliferativo é limitado ou mesmo nulo. As células-tronco mais bem conhecidas são as células-tronco do tecido hematopoiético, identificadas por Till e McCulock há mais de 40 anos. Recentemente, outros tecidos tiveram suas células-tronco identificadas, como do sistema nervoso, fígado, pele e mucosas, intestinos e até mesmo coração. Anne Fagot-Largeault, em Embriões, Células-Tronco e Terapias Celulares: questões filosóficas e antropológicas, Estud. av.,v. 18,nº 51,São Paulo,2004, com arrimo em estudos feitos na Académie des Sciences, De la transgenèse animale à la biothérapie chez l’homme, sob a direção de Moshe Yaniv, RST nº 14, Paris, Lavoisier (Tec & Doc), 2002, observou: As propriedades terapêuticas das células-tronco contidas nos tecidos dos corpos adultos já são utilizadas há muitos anos em duas indicações: a) coleta (durante um período de remissão), cultura e reinfusão das próprias célulastronco hematopoiéticas em doentes de leucemia colocados em aplasia celular por uma quimioterapia; e, b) coleta, cultura e transplante das células-tronco da própria pele em grandes queimados. Mais recentemente, dois brilhantes sucessos da terapia celular tornaram-se públicos na França. Em 2000, a equipe de Alain Fisher tratou "crianças-bolhas" (atingidas por um déficit imunológico de origem genética) retirando células-tronco de sua medula óssea, cultivandoas e, após modificá-las geneticamente, reinfundindo-as. Em 2001, a equipe de Philippe Ménasché coletou células-tronco de um músculo da perna (mioblastos) de uma pessoa atingida por enfarto do miocárdio; estas células foram colocadas em cultura e, em seguida, reinfundidas no coração, onde o enxerto foi assimilado e melhorou a performance cardíaca, tendo as células enxertadas adotado o ritmo de trabalho das células do coração. Trata-se, nestes casos, de auto-transplantes. A vantagem técnica dos auto-transplantes é que eles não provocam rejeição imunológica. O princípio dos auto-transplantes é, em geral, considerado como isento de problemas éticos. A clonagem terapêutica visa ao desenvolvimento não de um indivíduo humano, mas de uma linhagem celular humana. Uma equipe sul-coreana1, recentemente, provou que é possível derivar uma linhagem de células-tronco embrionárias (pluripotentes) de uma célula resultante da transferência para um ovócito humano enucleado do núcleo de uma célula somática (no exemplo citado, uma célula pertencente à corona que circunda o ovócito:a doadora de núcleo é, neste caso, a mesma pessoa que doou o ovócito). Referida equipe construiu, pela transferência de núcleo (i.e. por clonagem), uma célula embrionária e deixou esta célula multiplicar-se in vitro até o estado de blastocisto, após o que as células-tronco pluripotentes do blastócito foram retiradas e reproduziram-se em várias gerações, que conservaram características genéticas estáveis, idênticas àquelas da célula somática de onde o núcleo provinha. Elas também mostraram sua capacidade de engendrar células diferenciadas nas três vias correspondentes aos folhetos embrionários (ectoderma, mesoderma, endoderma), a partir dos quais se desenvolvem os principais tipos celulares do organismo. A clonagem humana de caráter terapêutico não é mais, portanto, um fantasma. O que isto significa? Imaginemos uma mulher com diabetes insulino-dependente. Ela consente em receber tratamento hormonal indutor de ovulação, em ter coletado, por meio de punção, os ovócitos produzidos e em transferir núcleos de células de seu próprio organismo para estes ovócitos. Suponhamos a transferência bemsucedida e, pronto, temos células embrionárias com genoma idêntico ao desta mulher. Se conseguirmos direcionar e estabilizar a diferenciação de uma linhagem celular oriunda dessas células embrionárias para a via da fabricação de células betapancreáticas produtoras de insulina, poderemos propor-lhe um transplante imunocompatível – um autotransplante – para equilibrar seu diabetes. Em teoria, esta solução é muito sedutora. Aqui não é preciso recorrer a um "banco" que forneça material para transplante mais ou menos comparável, nem que o paciente se submeta a tratamento imunossupressor, mas tem-se uma construção pontual ajustada ao perfil imunológico de um ser individual. Na prática, é preciso reconhecer que estamos ainda muito longe da aplicação terapêutica. O fraco rendimento do método é uma primeira dificuldade: a equipe coreana estimulou a ovulação em dezesseis mulheres (informadas sobre o projeto e participantes voluntárias); 242 ovócitos foram recolhidos, sobre os quais praticou-se uma transferência de núcleo; cerca de trinta embriões foram obtidos, os quais desenvolveram-se até o estado de blastocisto, e um só desses embriões produziu linhagens celulares que puderam ser cultivadas. É dificilmente concebível que tantos recursos sejam mobilizados para cada paciente à espera de um transplante, mas é praticamente certo que a técnica vai melhorar. Uma segunda dificuldade decorre de que somente as mulheres em idade de procriar fabricam ovócitos: se o diabético for um homem, ele fornecerá o núcleo a ser transferido, mas precisará recorrer a uma doação de ovócito. Entre as objeções de princípio à clonagem terapêutica, o risco de exploração das mulheres doadoras foi freqüentemente citado; na realidade, especialistas em fertilização assistida respondem que a coleta de ovócitos de corpos (mortos) acidentados, ou de peças operatórias separadas do corpo, seriam suficientes para cobrir a demanda. As dificuldades técnicas não são, portanto, de modo algum insuperáveis. Permanece uma terceira dificuldade, que é ética ou cultural. É paradoxal, à primeira vista, que a pesquisa sobre clonagem terapêutica seja proibida em certos países (França e Itália) e autorizada em outros (Inglaterra, Suécia, Coréia do Sul e Israel) e, ainda, que a "clonagem humana" (todas as finalidades confundidas) tenha sido condenada com veemência por políticos (como o Presidente dos Estados Unidos) ou instituições (v.g., o Conselho da Europa) antes mesmo que sua viabilidade fosse demonstrada. É preciso que as implicações éticas e/ou políticas sejam particularmente sensíveis para que o recente resultado coreano seja comentado timidamente por cientistas respeitáveis, como Axel Kahn e Nicole Le Douarin – Le Monde e Libération, ambos de 13.02.04. Uma associação internacional que milita por um "humanismo laico"2 nega, porém, que a clonagem coloque questões éticas mais graves do que outras inovações tecnológicas: O futuro desenvolvimento da clonagem de tecidos humanos ou mesmo de seres humanos não pode criar dificuldades de natureza moral cuja resolução iria além da capacidade da razão humana. As questões morais levantadas pela clonagem não são nem mais importantes nem mais profundas do que aquelas às quais os seres humanos já foram confrontados a respeito de tecnologias como a energia nuclear, as recombinações de DNA ou a cifragem dos computadores. O coração do problema é que, no domínio cultural ocidental, a sacralização do ato humano procriador, ligada a uma cultura judaico-cristã (ou a seus componentes mais fundamentalistas), induziu fortes resistências à interrupção da gravidez, às técnicas de fertilização assistida e à instrumentalização do embrião humano, todas elas consideradas como faltas ao respeito devido ao ser humano, na medida em que sua existência responde a um projeto divino: Desde o seio materno Iahweh me chamou, desde o ventre de minha mãe pronunciou o meu nome, diz a Bíblia (Isaías, 49, 1). Nos países onde a lei proíbe qualquer forma de clonagem terapêutica, os principais argumentos a favor da proibição são que a célula obtida pela transferência de núcleo é um embrião potencial que, se fosse implantado no útero, seria susceptível de desenvolver-se em um ser humano completo; e que passaremos, portanto, muito facilmente, da clonagem terapêutica para a reprodutiva. Ainda que os dois argumentos sejam próximos, têm uma tonalidade muito diferente. O segundo é do tipo "encosta escorregadia" e, portanto, fácil de refutar: nossas sociedades sempre souberam fixar os limites que não devem ser transpostos e penalizar os contraventores. Não se transfere um embrião no estado de blastocisto para o útero de uma mulher por acaso ou distração. O primeiro argumento repousa sobre o pressuposto de que a célula obtida pela transferência de núcleo tem a dignidade do embrião humano; e aquele que considera o embrião uma "pessoa humana", com todos os direitos que lhe são inerentes, julgará escandalosa a eventualidade de instrumentalizar esta célula. Mas é filosoficamente questionável confundir "célula humana" com "pessoa humana". A própria Igreja Católica, durante muito tempo, defendeu a doutrina da "animação mediata", que dizia que Deus infunde a alma no ser humano em gestação após ter atingido um estágio suficiente de desenvolvimento (por volta de três meses), e Tomás de Aquino admitia que, antes desta "animação", o aborto não é homicídio3. A "personalização" do embrião humano desde o ato fecundador que produz a primeira célula embrionária pode, a rigor, ter sentido através do projeto parental de levar este ser à personalidade, mas não quando se tratar de embrião não acolhido por ventre materno e que não tem, por si próprio, capacidade de afirmar-se como sujeito moral. A noção de "pessoa humana potencial" tinha sido conservada pela Comissão Consultiva Nacional de Ética Francesa, para significar que o embrião humano é precioso em razão da capacidade que tem de tornar-se um ser pessoal, na hipótese de encontrar um útero para sua nidação, e uma sociedade para sua educação. Mas nenhuma moral diz que todo ente potencial deve ser atualizado. E seria tanto mais absurdo dizê-lo no momento em que a Biologia ensina que todas as células do nosso corpo, no caso, as células-tronco, têm potencial embrionário. Feitas essas breves considerações, é necessário dizer que a gravidez não é um dever natural nem jurídico da mulher, nem do homem. Fosse assim, após a primeira menstruação todas as mulheres deveriam engravidar para que se cumprisse uma etapa, posto que, para a compreensão de uns, métodos anticonceptivos ou contraceptivos são condenados. Mas no que consistiria a anticoncepção? Não manter relação sexual com heterossexual? Manter relações sexuais com heterossexual, estando a mulher em seu período fértil, e o homem não alcançar o orgasmo? Manter relação sexual com heterossexual sem penetração e ejaculação masculina? Vê-se, pois, que a anticoncepção é uma faculdade, exceção feita aos casos em que se usa o constrangimento e a violência. O posicionamento sempre radical da Igreja Católica, que não possui nenhum traço de ponderação divina, perfil inconfundível de Jesus e Deus, busca incansavelmente colocar sob julgamento a vontade e as escolhas humanas. Assim foi quando queimaram centenas de mulheres, atribuindo-lhes o poder da bruxaria, durante o período da Santa Inquisição ou do Santo Ofício. Não deve prevalecer, tampouco, o pensamento dos Kardecistas, quando examinam a questão como impediente aos espíritos de encarnarem. A clonagem terapêutica ou o embrião para a regeneração humana guarda a mesma finalidade de diminuir o sofrimento dos encarnados e de lhes ampliar a compreensão da razão pela qual estão neste estágio. A evolução humana se faz por vários métodos, seja pela reencarnação ou pela contribuição que se dá àqueles já encarnados. Deus não quer sacrifícios exagerados de ninguém. Bem diz a experiência que as encarnações dos últimos 25 anos não têm trazido grandes contribuições, pois uma grande massa desses encarnados vêm lançando desgraça e sofrimento aos demais, um perfeito lote de delinqüentes. Que reste para nós, ao menos o lenitivo de que a ciência possa conferir melhora aos mais velhos, aos recém-nascidos, enfim, a todos os que sofrem males físicos, a possibilidade de, por meio da clonagem terapêutica ou do embrião regenerativo humano, um aprimoramento da criação divina. A par de tudo isso, resta a questão de que para o legislador pátrio o intuito é de preservação do ser já instituído como pessoa humana, postergando essas discussões diletantes. Não adianta querer buscar maior realidade em fatos que por si só delimitam fronteiras. Assim, o embrião para a regeneração humana também traz consigo um benefício para si e para os demais já encarnados, uma missão importantíssima na evolução humana, posto que mesmo na sua formação embrionária já se mostra capaz de atribuir qualidades que se estenderão por toda a humanidade. Não é somente pela encarnação plena que se traduz a atuação espiritual daqueles que estão buscando evoluir, mas, sim, pela oportunidade de contribuir para a evolução humana. Não fosse essa a Vontade Divina, por certo não teria lançado para os seus filhos tal inspiração científica, como prova inquestionável de sua existência. NOTAS 1 W. S. Hwang et al., Evidence of a Pluripotent Human Embryonic Stem Cell Line Derived from a Cloned Blastocyst, Science, 12 fev. 2004, on-line. 2 Council for Secular Humanism, Declaration in Defense of Cloning and the Integrity of Scientific Research, Free Inquiry Magazine, 1997, 17 (3), www.secularhumanism.org. 3 Thomas d’Aquin, Sommé Théologique, II, 2, Question 64, Art. 8. Para um comentário, ver Fagot-Largeault e G. Delaisi de Parseval, Les droits de l’embryon humain et la notion de personne humaine potentielle, Revue de Métaphysique et de Morale, 1987, pp. 361-385 LUIZ CLÁUDIO AMERISE SPOLIDORO é Juiz de Direito aposentado e Advogado militante.