Opinião 03 - Indevida confusão entre continência e litispendência

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Indevida confusão entre continência e litispendência parcial
Noto com certa freqüência uma confusão entre o fenômeno da continência, previsto pelo
art. 104 do CPC e a litispendência parcial. A distinção, diga-se de passagem, é mais
importante no aspecto doutrinário que prático, mas ainda assim vale a pena esboçar uma
tímida reação contra um forte movimento que confunde indevidamente os dois fenômenos
processuais.
A continência decorre da existência de duas ou mais ações que tenham as mesmas
partes, a mesma causa de pedir, e o pedido de uma, por ser mais amplo, contém o pedido
da outra. Conforme previsto no art. 105 do CPC, havendo continência entre ações a
consequência prática é sua reunião para julgamento pelo juízo prevento. Ainda que essa
reunião não seja conseqüência inexorável da continência, devendo o juiz observar no
caso concreto a efetiva economia processual e harmonização dos julgados derivados da
reunião (Daniel Neves, Manual de Direito Processual Civil, São Paulo, Método, 2009, n.
4.7.2. 1.4, pp. 142-144), a conseqüência não é a extinção de uma das ações, tampouco
sua diminuição objetiva, mas a simples reunião para julgamento perante um mesmo juízo.
O termo “litispendência” é equivoco, podendo significar pendência da causa (da
propositura ao trânsito em julgado) ou pressuposto processual negativo verificado na
concomitância de ações idênticas, ou seja, ações com os mesmos elementos (pedido,
causa de pedir e partes). Tomando-se o termo pelo segundo significado apresentado, a
consequência é a extinção do processo mais recente, sendo mantido o processo no qual
ocorreu a primeira citação válida (STJ, REsp 778.976/PB, 4.ª Turma, Rel. Min. João
Otávio de Noronha, j. 08.04.2008). A litispendência parcial verifica-se sempre que houver
identidade de partes, causa de pedir e a repetição de pedido já formulado cumulado com
novos pedidos.
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Repetindo-se as partes e a causa de pedir, o autor na ação A pede a condenação do réu
a ressarci-lo por danos materiais, e na ação B pede a condenação do réu a ressarci-lo por
danos materiais e danos morais. Nesse caso, caberá ao juiz diminuir objetivamente a
ação B, excluindo o pedido condenatório de danos materiais, mera repetição de pedido já
formulado na ação A. Como se pode notar, diferente da continência, a consequencia da
litispendência parcial é a diminuição objetiva do processo (chamado erroneamente por
alguns de “extinção parcial do processo”).
O que fica claro no singelo exemplo é que na ação B o pedido do autor não é mais amplo
que o pedido formulado na ação A, mas uma mera repetição cumulada com novo pedido.
A pretensão do autor na ação B é mais ampla que na ação A, mas de forma alguma o
pedido da ação B é mais amplo que o pedido da ação A, e entre eles não existe a relação
conteúdo-continente indispensável à configuração da continência.
É comum a confusão, ainda mais em textos que versam sobre tutela coletiva. Importante
lembrar que nesse caso a identidade de partes não leva em consideração as partes
processuais, tendo relevância apenas as partes materiais, ou seja, os titulares do direito
material em juízo discutido (Teresa Arruda Alvim Wambier, “Litispendência em ações
coletivas”, in Processo Civil coletivo, São Paulo, Quartier Latin, 2005, p. 290, com rica
indicação doutrinária). Dessa forma, um cidadão que promove uma ação popular e o
Ministério Público que move uma ação civil pública são considerados partes iguais, desde
que defendendo em juízo uma mesma coletividade ou comunidade.
Naquele que é um dos melhores e mais completos livros a respeito de improbidade
administrativa, o autor afirma que entre uma ação popular na qual se veiculam os pedidos
de anulação do ato administrativo lesivo ao erário publico e a condenação dos réus ao
ressarcimento e uma ação de improbidade administrativa na qual se veiculam os mesmos
pedidos, acrescidos do pedido de sanções previstos no art. 12 da Lei 8.429/92, existe
continência, nos termos do art. 104 do CPC. (Rogério Pacheco Alves, Improbidade
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administrativa, 3ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006, pp. 640-641). Como se nota do
exemplo extraído da obra mencionada, a hipótese é nitidamente de litispendência parcial,
e não de continência.
Apesar de inegável a distinção entre os dois institutos, na praxe forense as
conseqüências práticas da confusão entre eles são praticamente inexistentes. Ainda que
corretamente o juiz reconheça a litispendência parcial e diminua objetivamente o
processo, as ações continuarão a ser conexas, considerando a identidade de causa de
pedir entre elas. Em razão dessa conexão – e não da continência, inexistente – as ações
serão reunidas perante o mesmo juízo, consequência idêntica da que seria gerada pela
continência. Mesmo que erroneamente reunidas ações com pedidos que se repetem
(“falsa continência”), sendo o mesmo juízo que as julgará o problema de decisões
conflitantes estará afastado. Tudo leva a crer, portanto, que o erro não traga maiores
complicações práticas, mas essa é apenas a regra, e, ainda que excepcionalmente,
problemas poderão surgir.
A reunião de demandas conexas ou em continência não é consequência obrigatória
dessa identidade parcial entre as ações; como lidar com a não reunião de ações em
litispendência parcial imaginando tratar-se de continência? Como lidar com a óbvia
possibilidade de decisões conflitantes? E mesmo que as ações sejam reunidas perante o
juízo prevento, o que ocorrerá com a extinção de uma delas com ou sem a resolução de
mérito, prosseguindo a outra ação? Sendo de mérito a solução, julgando o pedido que é
repetido na outra ação, ocorrerá coisa julgada parcial? Mas nesse caso, se existe coisa
julgada material parcial, enquanto as ações tramitavam, não existia entre elas a
litispendência parcial?
Por essas e por outras que é sempre melhor aplicar a melhor técnica, ainda que
aparentemente não existam consequências práticas da indevida confusão entre diferentes
fenômenos processuais.
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