Revista da FAE Liberalização, desregulamentação e currency board: a experiência argentina na década de 1990 Giuliano Contento de Oliveira* Resumo A alta liquidez internacional e a crescente dívida pública externa após a crise mexicana constituíram a principal âncora da estabilidade econômica argentina durante a década de 1990. Este artigo discute a crise econômica argentina e apresenta os conflitos resultantes da paridade peso-dólar (19912001). A conclusão principal é a de que a manutenção de um regime de câmbio fixo em um contexto de fluxos de capitais voláteis, além das condicionalidades do próprio modelo econômico, causou seu fracasso. Palavras-chave: ajuste ortodoxo; crise argentina; regime de câmbio fixo; modelo econômico. Abstract The present article discusses the Argentinean economic crisis and shows trade-offs resulting from the peso-dollar parity (1991-2001). It also shows that the high international liquidity and the growing external public debt after the Mexican crisis constituted the main anchor on the Argentinean economic stability during the decade of 1990. The main conclusion is that the maintenance of a fixed exchange regime in a volatile capital flow context, beyond the conditionalities of its own economic model, caused its failure. Key-words: orthodox adjustment; argentinean crisis; fixed exchange regime; economic model. Rev. FAE, Curitiba, v.6, n.2, p.39-51, maio/dez. 2003 * Mestrando do Programa de Estudos Pós-Graduados em Economia Política da Pontifícia Universidade Católica ( PUC-SP ). O autor agradece os comentários feitos pelo Prof. Dr. Nelson Carvalheiro e pelo Prof. Dr. Braulio Oliveira. Obviamente, a observância de quaisquer erros e omissões é de inteira responsabilidade do autor. E-mail: [email protected] |39 Introdução De “país modelo” a “país antimodelo”. Esta foi a trajetória da Argentina no curto espaço de dez anos (1991-2001). Inicialmente concebida como vitrine do modelo de ajuste ortodoxo, esse país experimentou, no início do novo século, a crise econômica mais profunda de sua história desde o pós-guerra. O objetivo deste artigo é discutir a crise econômica por que passou a Argentina no início do século XXI. Sustenta-se o argumento de que esta crise deve ser atribuída principalmente à incompatibilidade existente entre o regime cambial adotado e as condicionalidades requeridas para a sua própria sustentação, que operaram no sentido de tornar a economia argentina altamente dependente do humor dos mercados financeiros internacionais. O artigo compreende três partes. Na primeira, é brevemente apresentada a proposta de ajuste ortodoxo, que visa reordenar o papel desempenhado pelo Estado na economia. Na segunda parte, são analisados o processo de adoção do modelo de currency board e algumas de suas principais conseqüências. Por fim, na terceira parte, é discutido o fracasso desse modelo, entendido principalmente enquanto resultante de suas próprias condicionalidades. 1 A proposta de ajuste neoliberal A duplicação dos preços do petróleo e o aumento das taxas de juros internacionais em fins dos anos 1970, em conseqüência da segunda 40 | crise do petróleo de 1979 e da política monetária restritiva de combate à inflação implementada pelos países desenvolvidos, respectivamente, desencadearam a chamada “crise da dívida externa latino-americana” dos anos 1980. Fortemente endividados no mercado externo sob taxas de juros flutuantes, os países da América Latina se viram incapazes de honrar o serviço de suas dívidas quando da súbita elevação das taxas de juros sobre o dólar, levada a cabo pelo banco central norte-americano (Federal Reserve System) no fim dos anos de 1970 e início dos anos de 1980 e logo acompanhada pelos demais países industrializados 1 . Este movimento implicou uma acentuada diminuição dos fluxos de entrada de recursos externos na América Latina, produzindo uma queda abrupta da taxa de crescimento da região e uma elevação significativa da inflação. Tal instabilidade passou a requerer um novo ordenamento no processo de desenvolvimento da região, cuja dinâmica passaria a ser comandada pelas leis do mercado, em substituição à intervenção estatal. As reformas de cunho estrutural, que no período pós- guerra visavam remover os obstáculos que se entrepunham no caminho da modernização econômica e social, passaram a ser voltadas à criação de condições aptas à acumulação privada e ao fortalecimento da competitividade internacional da economia (TORRE, 1997). O atraso da estrutura econômica dos países da América Latina em relação à nova dinâmica de acumulação comandada pela égide do mercado auto-regulador tornou hegemônico o argumento ortodoxo de que o descontrole inflacionário dos países da região centrava-se na 1 Para maiores detalhes sobre a crise da dívida, bem como sobre seus impactos sobre a América Latina, ver GriffithJones e Sunkel (1990). Revista da existência de um Estado sobredimensionado 2 , cujas características não mais serviam à nova lógica da expansão capitalista inaugurada pelos EUA a partir da década de 1970. Para os organismos multilaterais de crédito, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, cujas avaliações e propostas refletem a política externa norte-americana, o processo de desarticulação econômica e social pelo qual os países da América Latina foram afligidos a partir do final dos anos 1970 conduziu os Estados Nacionais a uma situação falimentar, visto que não mais possuíam condições de exercer um atributo essencial da soberania – o de fazer política monetária e fiscal (BATISTA, 1994). Os “pacotes” de ajuda financeira fornecidos por tais organismos aos países periféricos latinoamericanos requeriam – e ainda requerem – a assunção de programas de política econômica voltados à redução da participação do Estado na economia. Um outro fator fundamental que também agiu no sentido de impulsionar as reformas estruturais na região foi a crítica teórica e empírica, empreendida pelos adeptos do liberalismo econômico, ao intervencionismo estatal (RAMOS, 1997). Foi apenas em 1989 que as políticas econômicas balizadas na crença da suficiência e eficiência das forças de mercado, enquanto promotoras do crescimento econômico sustentado, foram formalizadas e sistematizadas, mediante o que se convencionou denominar “Consenso de Washington”. Trata-se de um encontro realizado em Washington, cujo objetivo foi avaliar e posteriormente avalizar as ditas “reformas estruturais”, empenhadas ainda de maneira incipiente na maioria dos países latinoamericanos, onde grande parte das recomendações já haviam sido transmitidas pelos EUA durante a administração Reagan ( BATISTA, 1994). De acordo com Stiglitz (1998, p.3), o Consenso de Washington: Rev. FAE, Curitiba, v.6, n.1, p.41-51, maio/dez. 2003 FAE [...] sustentou que bons desempenhos econômicos exigiam comércio liberalizado, estabilidade macroeconômica e a fixação correta de preços. Uma vez que o governo resolvesse essas questões – essencialmente, uma vez que o governo “saísse do caminho” –, os mercados privados produziriam distribuição e crescimento eficientes. Dentro dessa perspectiva, a condição necessária para que os países latino-americanos lograssem diminuir a inflação era reduzir ou suprimir o déficit fiscal (despesas maiores que as receitas) mediante, preferencialmente, redução das despesas, ou seja, diminuição da participação do Estado na economia, que seria operacionalizada por meio de uma série de reformas estruturais. Assim, o processo de privatização exerceria papel tríplice nessa lógica, pois ao mesmo tempo que reduziria os dispêndios do setor público lhe proporcionaria receita e, mais ainda, transferiria as atividades mercantis à esfera tipicamente de mercado. As reformas tributária e previdenciária também eram tidas como necessárias à eliminação da dinâmica inflacionária e, por conseguinte, estagnacionista 3 verificada nos países da América Latina, pois atendiam ao 2 O termo, embora não muito encontrado na literatura específica, expressa o fato de que o Estado passou a assumir grande parcela da responsabilidade quanto à dinâmica do processo de desenvolvimento econômico. As duas funções estratégicas desempenhadas pelo Estado, segundo GriffithJones e Sunkel (1990, p.38-39) foram “[...] a apropriação de recursos das atividades exportadoras altamente produtivas por um lado, e por outro sua realocação, visando promover o desenvolvimento industrial e social [...] [resultou numa] tendência sistemática e permanente ao déficit do setor público.” 3 Fernández-Arias e Montiel (1998, p.91) apresentaram essa causação da seguinte forma: “Se puede esperar que las tasas altas de inflación reduzcan el crecimiento económico a través de una variedad de mecanismos que pueden influir tanto sobre la tasa de acumulación de capital como sobre la tasa de crecimiento de la prudutividad total de factores.” |41 objetivo de amainar a cunha fiscal que incidia sobre o setor produtivo, de sorte a atribuir competitividade interna e externa ao setor privado, e suprimir parte substantiva dos gastos do setor público, respectivamente. Todas essas modificações também eram imprescindíveis para a outra grande demanda dos países da região, a saber, o crescimento econômico. Para tanto, essas reformas deveriam ser coadunadas às políticas de abertura comercial, tendo em vista os benefícios propiciados pelo livrecomércio4 , e de liberalização e desregulamentação da balança de capitais do balanço de pagamentos, ou seja, a parte do saldo total das transações econômicas de um dado país entre seus residentes e não residentes que não se refere à compra e venda de serviços ou bens, que segundo esta corrente faria aumentar a poupança e melhorar a eficiência dos investimentos privados. Outra reforma importante seria a do mercado de trabalho, cujo objetivo maior seria flexibilizar as leis trabalhistas, pois, de acordo com essa vertente, parcela substantiva do desemprego se devia à rigidez legal deste mercado ( RAMOS, 1997). A implementação desta reforma, ao diminuir o custo das empresas e aumentar o nível de produtividade da economia, tornaria os produtos mais competitivos internacionalmente, favorecendo a obtenção de saldos comerciais positivos e o acúmulo de reservas internacionais seguras. Em verdade, portanto, o que se observou foi um resgate das idéias liberais da concepção de Estado, um conjunto de propostas de política econômica destinado aos países em desenvolvimento e que serviria de contrapartida ao processo de renegociação de suas respectivas dívidas externas. Além disso, visava-se à estruturação de uma estratégia de desenvolvimento orientada para 42 | fora, em substituição aos modelos de “substituição de importações”, de modo que a integração internacional destas economias era condição indispensável (CINTRA, 1999). Propugnava-se, portanto, não somente a orientação das economias da América Latina para o mercado, mas também e principalmente a sua coordenação pelo mercado ( BRESSER PEREIRA , 1991). Isso significava propostas diametralmente contrárias àquelas antes levadas a cabo por grande parcela dos países latinoamericanos, baseadas no modelo de “industrialização por substituição de importações”. 2 A Argentina sob o modelo de ajuste ortodoxo Em março de 1991 foi implantado na Argentina o chamado currency board (conselho da moeda), modelo cambial originalmente concebido no século XIX para as colônias africanas, asiáticas, e caribenhas da Inglaterra e demais metrópoles européias, e que consiste em: a) estabelecer uma rígida paridade cambial da moeda local em relação à moeda de um outro país (âncora cambial); b) tornar a moeda local plenamente conversível em moeda estrangeira e vice-versa; e c) estabelecer uma regra que subordine a emissão de passivos monetários à existência de reservas da moeda que 4 Entre os principais benefícios, pode-se mencionar a tendência à redução do prêmio de risco cobrados pelos credores externos para a concessão de empréstimos, bem como a elevação da facilidade de incremento da produtividade das economias, haja vista a maior exposição das economias nacionais às novas tecnologias. Contribui, portanto, para o crescimento econômico (Fernández-Arias e Montiel, 1998). Revista da exerce a função de “lastro” (no caso da Argentina, o dólar), de modo a garantir a conversibilidade (BATISTA JR., 2002). Geralmente recomendado para países com crises monetárias pronunciadas e prolongadas, o currency board tem por objetivo mitigar a capacidade do Estado Nacional de fazer política monetária e cambial, garantindo assim a supressão da possibilidade de abusos inflacionários, mediante excessiva emissão de moeda e maxidesvalorização da taxa de câmbio, por exemplo. De acordo com Batista Jr. (2002, p.84), A idéia básica é trocar flexibilidade por credibilidade. Essa última passa a ser importada de uma moeda forte, de reputação inquestionável, como o dólar. As diversas tentativas frustadas de estabilização monetária observadas no decorrer da segunda metade da década de 1980 na Argentina5 e o elevadíssimo patamar atingido pela inflação em 1989 e 1990 (gráfico 1), de acordo com o governo, justificavam a adoção do currency board. Assim, a partir de uma lei, foi estabelecida a conversibilidade do austral, moeda local à época, em relação ao dólar americano, a uma taxa de 10 mil austrais por dólar 6 , e posteriormente à taxa de 1 peso, nova moeda argentina, por dólar. Tratou-se, por assim dizer, de um regime monetário bastante assemelhado ao do “padrão ouro”, só que com lastro em reservas em dólar ( LOPES, 1991; NAKANO, 1991). FAE A garantia do “lastro” da moeda doméstica foi possibilitada principalmente pela alta liquidez internacional observada no início da década de 1990, que atuou no sentido de engordar as reservas internacionais em posse das autoridades monetárias e, assim, proporcionar confiabilidade ao modelo. Já a sustentabilidade do regime cambial implantado seria alcançada por meio dos mecanismos de ajuste automático da economia, já que como a base monetária deveria ser igual ao nível de reservas internacionais7 , uma eventual fuga de capitais externos, por exemplo, seria absorvida pela queda da quantidade de moeda. Como a supressão da paridade cambial encontrava forte resistência junto à sociedade e à comunidade internacional, a despeito das restrições jurídicas envolvidas, a competitividade da economia deveria ser alcançada por meio de ganhos de produtividade, de modo a compensar a sobrevalorização do câmbio8 . Neste sentido, Heymann (2000, p.61) afirma que: 5 Desde o Plano Austral até o fim do governo Alfonsin nada menos do que nove tentativas de fixar ou estabilizar a taxa de câmbio na Argentina foram fracassadas. Logo no início do governo Menem, houve mais uma estabilização do câmbio fracassada, entre julho e dezembro de 1989. O Plano Cavallo foi, portanto, a décima-primeira tentativa de ancoragem cambial em apenas seis anos (Batista Jr., 1993). Para maiores informações a respeito dos planos de estabilização implementados na Argentina nesse período, ver Murphi (1991). 6 A combinação de taxa de câmbio fixa e livre acesso ao mercado de capitais foi estabelecida sob forma legislativa. 7 Aqui é importante esclarecer que o conceito de reservas internacionais adotado pelo governo argentino incluía títulos públicos a preços de mercado. Estes últimos poderiam perfazer 20% das reservas, mas em situações de crise poderiam alcançar 33%. Daí a crítica de que existia certa margem de manobra para que o Banco Central Argentino influísse na política monetária, tornando-a menos prócíclica. Para maiores informações a este respeito, ver Hermann (2001). 8 A competitividade da economia não se dava mediante desvalorização do câmbio, “desvalorização por fora”, mas, sim, pela redução do custo dos produtos e serviços mediante ganhos de produtividade do capital e do trabalho, “desvalorização por dentro”. Rev. FAE, Curitiba, v.6, n.1, p.43-51, maio/dez. 2003 |43 Em los noventa [...] se observaron apreciables aumentos de productividad (particularmente de la mano de obra, pero también del capital y otros insumos), difundidos en diversos sectores de producción. Esta evolución reflejó la activa conducta de las empresas en la búsqueda de oportunidades de negocios, lo que se vio facilitado por la condiciones de estabilidad de precios (que amplió el horizonte de decisiones), por el aflojamiento de las restricciones financieras y por la disponibilidad de insumos y bienes de equipo ampliada em razón de la apertura externa. Havia a crença de que as reformas econômicas e as privatizações potencializariam os efeitos positivos gerados pelos ganhos de produtividade, pois desonerariam a produção e dinamizariam as exportações, fazendo com que o desajuste inicial da conta-corrente (ou balança de transações correntes) do balanço de pagamentos, ou seja, a parte do saldo total das transações econômicas de um dado país entre seus residentes e não residentes que se refere à compra e venda de serviços (balança de serviços) e bens (balança comercial), fosse resolvido no médio prazo. Neste ínterim, o déficit em transações correntes deveria ser suprido pela entrada de recursos externos via conta capital e financeira do balanço de pagamentos. Assim, da mesma forma que o processo de liberalização comercial era fundamental para a manutenção do novo nível de preços relativos da economia, já que as importações atuam no sentido de inibir o aumento dos preços dos produtos domésticos, o processo de liberalização e desregulamentação da conta capital e financeira (ou balança de capitais) do balanço de pagamentos era indispensável para que o desequilíbrio em conta-corrente (saldo negativo nas transações de bens e serviços do país com o exterior) pudesse ser compensado pela entrada de capitais externos voluntários (registrados na balança de capitais). Disso se conclui que a adoção do regime de currency board implica assumir condicionalidades indispensáveis à sua sustentação, pois o desequilíbrio em conta-corrente do balanço de pagamentos 44 | do país impõe a necessidade de abertura de sua conta-capital e financeira, de modo a equilibrar o seu balanço de pagamentos sem perda de reservas internacionais. Tal abertura, no entanto, atua no sentido de tornar o país cada vez mais dependente do humor do capital internacional, pois qualquer reversão do nível de liquidez externa exerce impacto negativo sobre a economia, cuja magnitude dependerá da quantidade de recursos externos voluntários requerida para equilibrar o balanço de pagamentos. A adoção do regime de currency board implica assumir condicionalidades indispensáveis à sua sustentação, pois o desequilíbrio em conta-corrente do balanço de pagamentos do país impõe a necessidade de abertura de sua conta-capital e financeira O ousado processo de liberalização comercial levado a cabo pelo governo argentino pode ser evidenciado pelo aumento substantivo observado no intercâmbio de bens e serviços da economia durante a década de 1990. De acordo com Heymann (2000, p.07), [...] en 1982-1990 el intercambio de bienes y servicios [...] representó menos de 8% del PIB [...] mientras que la cifra para 1991-1998 rondó el 14,5% [...] y la de 1998 se acercaba a 19%. 9 O governo mexicano elevou o limite superior da banda cambial em 15%, anunciando a intenção de flexibilizar a margem de manobra da política econômica. No entanto, não conseguiu convencer o mercado, que entendeu tal medida como um indicativo de uma breve desvalorização da moeda local (o peso) e especulou contra ela. Seguiu-se uma acintosa depreciação da moeda doméstica, gerando inflação e recessão. Este movimento aumentou a aversão dos investidores internacionais em aplicações na América Latina, que foi prejudicada pela diminuição da entrada de recursos externos. Sobre a crise mexicana, ver Griffith-Jones (1996). Revista da Já o processo de liberalização e desregulamentação da conta capital e financeira pode ser constatado pelo significativo aumento do fluxo de entrada de recursos voluntários externos no país, que passou de um déficit de US$ 5,17 bilhões em 1990 para um superávit de US$ 20,41 bilhões em 1993. Embora a implementação do regime de conversibilidade tenha gerado um círculo virtuoso de baixa inflação e altas taxas de crescimento econômico entre 1991 e 1994, as repercussões negativas geradas pela crise do México9 (19941995) sobre a entrada de recursos externos na economia argentina colocou em dúvida a sustentabilidade da manutenção de um regime de câmbio fixo num contexto de livre mobilidade FAE de capitais e de regime político democrático10 . Como pode ser observado na tabela 1, em 1995 o PIB argentino sofreu a primeira queda (-2,8%) desde o início da implantação do currency board. Mas por que uma crise no México afetou um país como a Argentina? Longe de esgotar o assunto, o fato é que a chamada globalização dos mercados financeiros internacionais, intensificada a partir do início da década de 1990, alterou a própria natureza das crises financeiras, dada a ampliação da possibilidade de contágio entre regiões cujos fluxos comerciais e financeiros não são significativos. Sob a ótica dos próprios organismos internacionais (FMI e Banco Mundial), afirma Cunha (2000, p.210): 10 Esta tese é de Eichengreen (2000) e será aprofundada mais adiante. Rev. FAE, Curitiba, v.6, n.1, p.45-51, maio/dez. 2003 |45 O crescimento das poupanças institucionais e a proliferação de instrumentos de proteção e especulação teriam criado um duplo constrangimento: permitiram e estimularam – pela busca dos diferenciais de rentabilidade – a integração dos mercados emergentes nas carteiras dos investidores dos países desenvolvidos; por outro, reduziram, na ótica daqueles, os pay offs associados à busca de informações relevantes sobre cada um dos ativos país que compõem seus portfolios. Como desdobramento lógico, argumentase [...] que comportamrntos de “seguir o líder” seriam perfeitamente racionais, mesmo que implicando ciclos de booms and busts. Os efeitos negativos gerados pela crise mexicana sobre o fluxo de entrada de recursos externos via balança de capitais do balanço de pagamentos da Argentina, que caiu de US$ 20,4 bilhões em 1993 para 4,9 bilhões em 1995, demonstrou na prática que o modelo cambial implantado era sustentável apenas num contexto de alta liquidez internacional. Não fosse o empréstimo proporcionado pelas instituições multilaterais de crédito, de US$ 8,4 bilhões, talvez a queda do PIB argentino teria sido ainda maior em 1995. O chamado “efeito-tequila”, termo utilizado, grosso modo, para designar os impactos adversos gerados pelas crises externas sobre a entrada de recursos externos nos países emergentes, também evidenciou a alta vulnerabilidade do sistema bancário argentino a movimentos imprevistos. A forte fuga de depósitos provocada pelo aumento da preferência por liquidez dos agentes, em face do aguçamento da incerteza sobre o futuro da economia e o risco de desvalorização da moeda local, colocou os bancos lá operantes numa situação de extrema fragilidade ( HERMANN, 2001). Além disso, esta situação foi agravada pelo fato de o regime de conversibilidade implantado na Argentina restringir 11 a emissão monetária para financiamento de déficits do Tesouro ou operações de crédito da própria autoridade monetária, uma vez que tal conduta poderia 46 | colocar em risco a paridade peso-dólar prescrita em lei, o que limitava sobremaneira a margem de manobra para o banco central atuar como emprestador de última instância. O recurso utilizado pelo governo para contornar o problema do setor bancário foi a promoção de uma significativa reestruturação do sistema financeiro do país, fortemente marcada pela entrada de bancos estrangeiros. A desnacionalização do sistema bancário argentino passava a se configurar como principal base de sustentação da estabilidade financeira do país, tendo em vista a crença do governo nos laços existentes entre estas instituições e as suas matrizes, que atuariam no sentido de facilitar a entrada de recursos externos no país para salvaguardar os bancos e o sistema de pagamentos em períodos de crise. Já em setembro de 1998, dos dez maiores bancos do país, sete eram estrangeiros. A comprovação da maior solidez do sistema financeiro argentino pós-reestrutração teria sido a sua maior capacidade reativa à crise asiática (1997)12 quando comparada à crise mexicana. O resultado disso seria, ademais, a manutenção 11 Utilizou-se o termo restringir em vez de impossibilitar em razão dos motivos apresentados na nota de rodapé 7. 12 As causas da crise asiática não são unânimes na literatura específica. Há uma forte crença, no entanto, de que a acentuada expansão do crédito verificada nas economias do Leste Asiático, levada a cabo sob uma supervisão bancária deficiente, levou a maioria dos bancos da região a situações insustentáveis. Tratouse, ademais, de uma crise de superprodução, tendo em vista que a maior parte dos recursos tomados junto aos bancos foi canalizada para investimentos. Uma vez que as moedas do Leste Asiático estavam ancoradas no dólar, a desvalorização do iene (1995) e a desvalorização da moeda chinesa (1994), além da forte apreciação da taxa de câmbio real da região devido a grandes entradas de capital, afetaram negativamente a competitividade internacional dos países daquela região. Neste ambiente, a especulação contra as suas moedas foi inevitável (GRIFFITH-JONES, 1998). Para maior detalhamento sobre a crise da Ásia, ver Cunha (1999; 2000). Revista da quantitativa do financiamento externo voluntário no período. Todavia, embora não tenham sido observadas mudanças quantitativas significativas no fluxo de recursos externos entre os períodos pré e pós crise mexicana, o mesmo não pode ser dito acerca de seu caráter qualitativo, mais precisamente de sua composição. Na tabela 2 pode-se verificar que enquanto no período 1992-1994 as entradas de capital estrangeiro eram dirigidas em sua maior parte ao setor privado, totalizando US$ 8,6 bilhões (72,5% do total), no período 1995-2000 passam a ser destinadas principalmente ao setor público, somando US$ 8,8 bilhões (68,6% do total), dos quais US$ 7,6 bilhões correspondem a empréstimos externos. Disso se conclui que após a crise mexicana o regime de currency board passou a ser fortemente sustentado pelo crescente endividamento externo do setor público argentino (CALCAGNO et al., 2001). FAE nais influíssem sobremaneira na condução da política econômica argentina. “Os apreciáveis ganhos de produtividade” observados nos mais diversos setores da economia, conforme apontado por Heymann (2000), foram insuficientes para compensar a política do “peso forte”. Como pode ser observado na tabela 1, a manutenção da taxa de câmbio sob uma paridade fixa de 1 peso por 1 dólar até a desvalorização do peso ocorrida no início de 2002 fez com que a taxa de câmbio real efetiva do país ficasse situada num patamar altamente valorizado, sobretudo entre 1999 e 2001. O resultado foi o acúmulo de sucessivos déficits comerciais. Nos dois períodos nos quais a economia mais cresceu, 1992-1994 e 1996-1998, os saldos comerciais totalizaram US$ -12.051 milhões e US$ -8.917 milhões, respectivamente. Diferentemente do período marcado pela crise asiática, ocasião em que se observou certa continuidade do crescimento econômico e do ingresso de divisas via conta capital e financeira do balanço de pagamentos, a partir de 1999: a) o déficit em conta-corrente argentino diminuiu substancialmente (gráfico 2), sob forte influência do ambiente recessivo; b) o fluxo de entrada de recursos externos caiu bruscamente; e c) o crescimento cedeu lugar à desaceleração da economia (ver tabela 1). 3 O fracasso do modelo argentino 13 A acumulação sucessiva de elevados déficits em transações correntes, provocada pela sobrevalorização do câmbio,13 fez com que as expectativas dos mercados financeiros internacioRev. FAE, Curitiba, v.6, n.1, p.47-51, maio/dez. 2003 Segundo Wise (2001, p.174), “Apesar do ritmo impressionante da estabilização econômica, a inflação na Argentina ainda estava mais alta do que nos Estados Unidos durante o período de 1991-1994. O resultado disso [...] foi uma valorização real do peso [...]”. Os ganhos de produtividade mostraram-se muito aquém do suficiente para compensar a valorização do peso argentino. |47 A manutenção da paridade cambial era cada vez mais incompatível com a necessidade de ajustamento das contas externas, tendo em vista a extraordinária contração do nível de atividade econômica requerido para a redução do déficit em transações correntes – efeito inevitável do ajuste monetário do balanço de pagamentos.14 Além disso, o impacto negativo da elevada taxa de juros, expediente utilizado para a atração de financiamentos externo e interno voluntários, sobre o endividamento do setor público atuava no sentido de agravar a percepção dos investidores internacionais a respeito da incapacidade do governo argentino de honrar as suas obrigações. No último trimestre de 2001, como pode ser observado na tabela 1, a dívida bruta do governo federal argentino em percentagem do PIB alcançou a cifra de 57,3%. significativa do déficit em conta-corrente do balanço de pagamentos. O regime de câmbio adotado na Argentina durante uma década condicionou o país a empreender reformas liberalizantes que, se por um lado, possibilitaram a queda da inflação num primeiro momento, por outro, atuaram no sentido de aprofundar o caráter prócíclico de suas políticas monetária e fiscal, cuja principal função era atender aos desejos dos credores internacionais. Através da retórica de que a defasagem cambial seria compensada pelo aumento do nível de produtividade, o governo argentino sacrificou de vez seu poder discricionário no âmbito da política econômica do país. Assim, foi colocada em evidência a tremenda incompatibilidade entre o regime de currency board e suas próprias condicionalidades, já que o processo de liberalização que se impõe para o seu sucesso inicial é responsável, no período seguinte, por seu próprio colapso, dado o trade-off existente entre o regime de câmbio fixo e a alta mobilidade de capitais num contexto democrático. Tese defendida por Eichengreen (2000) mostra que não se trata de afirmar que a elevada mobilidade do capital implica, por si só, a impossibilidade de sustentar um regime de câmbio fixo, haja vista que no padrão-ouro pré Ficou evidente que a persistência da artificialidade cambial argentina era sustentada pela abundante liquidez internacional e, sobretudo de 1995 em diante, pelo crescente endividamento externo do setor público do país, e não pela solidez fiscal e pela sustentabilidade do regime de currency board, tampouco pelos efeitos positivos oriundos da cumplicidade dos bancos estrangeiros para com as suas respectivas matrizes, tornando inevitável a redução rápida e 48 | Primeira Guerra Mundial o grau de mobilidade 14 A existência de uma relação fixa entre a base monetária e o nível de reservas internacionais fazia diminuir, em momentos de saídas de capitais externos (perda de reservas internacionais), a quantidade de moeda na economia, o que provocava uma forte contração da absorção interna. A queda do nível de atividade econômica, por sua vez, reduzia o nível de importações e aumentava o de exportações, melhorando o balanço de comércio do país. Por esta razão diz-se que o ajuste do balanço de pagamentos se dava de forma automática. Para maiores informações, ver Hermann (2001). Revista da do capital era altíssimo e que não foi impedida a operação bem-sucedida do sistema. A diferença é que naquele período, mostra o autor, dado o baixo grau de sindicalização dos trabalhadores e de pressão da sociedade sobre os governos, o Estado poderia centrar os seus instrumentos de política econômica na defesa da paridade cambial estabelecida, na base do “custe o que custar”. Já a partir do século XX, com o fortalecimento da FAE Num contexto de generalizada desconfiança dos agentes econômicos em relação à solvabilidade do setor público, baixíssima capacidade de o Estado empreender políticas fiscais anticíclicas, livre mobilidade de capitais e câmbio fixo, a derrocada do modelo argentino estava consolidada. A manutenção exagerada de um modelo tipicamente transitório provocou uma crise de gravíssima proporção no país. democracia, a pressão da sociedade sobre os governos O peso argentino, antes amarrado ao dólar norteA persistência da americano, passou a ser uma passou a impedir a aplicação artificialidade cambial moeda flutuante e sem vincude políticas econômicas argentina era sustentada lação com as reservas altamente restritivas (leia-se pela abundante liquidez internacionais ( BATISTA JR ., custosas em termos sociais) na internacional e, sobretudo de 2002). Observou-se uma busca da defesa de uma 1995 em diante, pelo crescente desdolarização compulsória paridade fixa do câmbio, fenôendividamento externo do da economia seguida de meno que o governo argensetor público do país, e não uma expressiva desvaloritino certamente subestimou. zação do peso, o que conduziu pela solidez fiscal e pela No que concerne à o país a uma situação extresustentabilidade do regime política fiscal, embora não mamente frágil, elevando de currency board tenha sido verificado um consideravelmente a inflação ajustamento nas despesas das e acentuando de forma províncias mesmo após a crise mexicana, que expressiva a retração econômica em curso desde o atuou no sentido de aprofundar o desajuste último trimestre de 1998, como pode ser verificado financeiro do setor público15 , o governo argentino na tabela 1. levou a cabo um tipo de estrutura tributária predominantemente indireta (imposto sobre valor adicionado), tornando-a extremamente sensível à variação do nível de atividade e diminuindo a sua capacidade de suavizar os efeitos negativos Mas a reconstrução da moeda nacional argentina deve ser concebida enquanto condição indispensável para a retomada do crescimento econômico, não obstante os bruscos desajustes observados no curto prazo. A flutuação16 do peso sobre a economia em momentos de crise. De acordo com Carvalho (2002, p.38): Como a arrecadação dos tributos indiretos é muito sensível ao ritmo da atividade econômica, nas situações de crise a receita pública se contrai, o que limita a capacidade de intervenção anticíclica do Estado e aumenta as pressões para cortes dos gastos nos momentos em que seriam ainda mais necessários. Rev. FAE, Curitiba, v.6, n.1, p.49-51, maio/dez. 2003 15 Sobre este assunto, ver Wise (2001). 16 O termo flutuação aqui empregado significa a inexistência de uma taxa de câmbio fixa. Não significa a assunção do que a literatura específica chama de “livreflutuação”, mas sim do que a literatura denomina “flutuação suja”, ou seja, um tipo de flutuação em que o Estado pode intervir no mercado de câmbio em caso de valorização e desvalorização excessiva da moeda local. |49 é imprescindível porque tornará a política econômica argentina responsiva às demandas internas, e não mais uma mera resultante do nível de liquidez internacional, e fará com que esta economia volte a ser orientada para o mercado, ao invés de coordenada. Os efeitos positivos oriundos desta mudança já se fazem sentir em termos de retomada do nível de atividade econômica e controle da inflação (ver tabela 1). Conclusão As próprias condicionalidades do regime cambial implementado na Argentina foram responsáveis pela sua derrocada. A adoção do currency board, embora tenha possibilitado a supressão da alta inflação e gerado crescimento econômico na sua fase inicial, operou no sentido de tornar a economia argentina extremamente suscetível à reversão das expectativas dos mercados financeiros internacionais. O processo de liberalização e desregulamentação comercial e financeira, indispensável para a sustentação do plano e por isso exigido por ele, tornou o país refém das exigências dos credores internos e externos. O arrocho provocado pela implantação de políticas econômicas restritivas provocou uma forte convulsão social, que atuou no sentido de impossibilitar a defesa da paridade cambial prescrita em lei a partir do início de 2002, ocasião em que a desvalorização da moeda local foi inevitável, e embora tenha agravado a crise de confiança num primeiro momento fará com que a economia do país seja reativada e o ajuste necessário seja menos traumático. Referências BATISTA Jr., Paulo Nogueira. 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