Krugman, Paul. “Uma tragédia latina”. São Paulo: Valor Econômico, 16 de julho de 2001. Jel: F Uma tragédia latina Paul Krugman Nos anos 90, a Argentina experimentou uma recuperação dramática depois de décadas de má administração econômica e, no processo, tornou-se um ícone da nova ordem mundial. Na última semana, porém, o governo argentino descobriu que só poderia rolar a dívida de curto prazo oferecendo uma taxa de juros de 14%, cinco pontos acima da taxa de um mês antes. E os rumores em Wall Street são de que o problema de um eventual não pagamento de dívida pela Argentina não é uma questão de "se", mas de "quando". Tanto os mercados como o governo argentino estão tratando a questão essencial como um problema de gastos deficitários. De fato, num esforço desesperado para recuperar a confiança do mercado, o presidente Fernando de la Rúa reclamou cortes draconianos de despesas. Mas o problema crucial da Argentina não é fiscal, e sim monetário. Há dez anos, o ministro da Economia, Domingo Cavallo, herói econômico da nação, introduziu no país um aclamado sistema monetário, o "currency board". Agora ele descobre sua obra ameaçada pela imperfeição trágica daquele sistema. Primeiramente, uma palavra sobre os pavorosos valores orçamentários de que vocês devem ter ouvido falar. A Argentina, tem uma dívida pública equivalente a 45% de seu PIB; ela está com um déficit orçamentário de mais de 2% do PIB. Puxa, os números do orçamento estão quase tão ruins quanto os dos Estados Unidos quando George Bush, o velho, era presidente! Por que um nível de dívida e déficits que só causou desaprovações amenas nos EUA provoca pânico na Argentina? Em certa medida, trata-se de um círculo vicioso: como os investidores acreditam que a inadimplência é provável, eles exigem taxas de juros exorbitantes, que podem perfeitamente empurrar o país para a inadimplência. Mas a principal resposta é que, por trás de um orçamento levemente problemático, existe uma economia profundamente encrencada. A economia argentina cresceu entre 1990 e 1998, mas vem se contraindo sistematicamente desde então. O desemprego, que permaneceu alto mesmo durante os bons anos, subiu acima de 16%. Esse desempenho melancólico contribui para o problema orçamentário de três maneiras. Uma economia deprimida significa baixa arrecadação tributária; é difícil cortar gastos ou elevar impostos quando a população já está sentindo uma boa dose de pânico econômico; e é difícil convencer os investidores de que você vai sair dos problemas quando sua economia está, de fato, encolhendo. É fácil criticar a liderança política argentina por sua inabilidade para eliminar o déficit orçamentário. Mas quando foi a última vez em que se viu os líderes norte-americanos elevarem impostos e cortarem gastos face a uma recessão perversa? Por que a economia Argentina está deprimida? Basicamente, isto se deve ao "currency board", que atrela o valor do peso a um dólar e garante (tecnicidades à parte) que cada peso em circulação seja lastreado por um dólar em reservas. Quando foi introduzido, esse sistema ofereceu uma bem-acolhida garantia de que a hiperinflação não voltaria, e contribuiu para uma estonteante recuperação econômica. Agora, porém, os defeitos letais do sistema se tornaram evidentes. A competitividade internacional da Argentina foi minada pela desvalorização no Brasil e pela fraqueza do euro; a demanda doméstica caiu junto com a perda de confiança de consumidores e empresas; mas como o "currency board" não permite flexibilidade à política monetária, as autoridades não podem responder no estilo Greenspan, abrindo as torneiras monetárias. Cavallo, a quem conheço e admiro (embora não possa afirmar que conheço sua alma) compreende isso muito bem. Mas ele não está disposto a abandonar sua criação. Seria um golpe humilhante para ele e para a credibilidade de seu governo. Além disso, como boa parte da dívida do setor privado argentino é em dólares, qualquer desvalorização do peso ameaça provocar uma grande ruptura financeira. Alguns analistas de Wall Street acreditam que o governo argentino vai ficar inadimplente por manter o peso atrelado ao dólar. Talvez - mas isso seria uma estratégia bizarra, escolhendo o pior de dois males. Os países avançados - a cujo status a Argentina aspira - consideram o não pagamento de dívidas um pecado mortal, mas uma moeda se desvalorizando no máximo um leve embaraço. E a inadimplência sem desvalorização, embora alivie as pressões orçamentárias da Argentina, não faria nada para ajudar sua economia. Entretanto a estratégia oposta funcionou para o maior vizinho da Argentina. Há dois anos, o Brasil foi obrigado a uma desvalorização que, na previsão de muitos, provocaria uma ruína econômica. Não provocou. Detesto sugerir que a Argentina deva imitar o Brasil, mas ele e seu país estão rapidamente ficando sem opções.