Dolarização da economia é

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Dolarização da economia é
incompatível com o Brasil
GILSON SCHWARTZ
da Equipe de Articulistas
Justiça seja feita à breve experiência de Francisco Lopes no
Banco Central: o câmbio livre facilitou a constatação de que a
economia brasileira deve mesmo operar sob algo próximo a um
sistema de "flutuação suja". Sem a ação "artificial" do BC, o
mercado fica desorientado.
Mas todo cuidado é pouco, pois continua circulando em alguns
corredores palacianos a hipótese de levar o Brasil ao sistema
conhecido como "currency board" e que, na prática, equivale a
uma forma de dolarização da economia.
A rigor, depois de abandonado o regime anterior de bandas
cambiais, havia dois modelos alternativos: o câmbio totalmente
livre (na prática, um "não-modelo") e o câmbio totalmente fixo
(como na Argentina, onde a moeda local é plenamente conversível
em dólares, essência do "currency board").
Nos últimos dias, o ambiente ficou mais calmo. Mas ainda não
existe um novo regime cambial estabelecido. Ou seja, ainda há
espaço para discussão não apenas sobre o formato e os
instrumentos da flutuação suja, mas até de uma eventual transição
para um regime do tipo argentino.
A campanha pela instauração de um "currency board" no Brasil foi
desencadeada com toda força no auge da crise e, se recuou, não
está abandonada.
No calor da confusão, aparentemente havia quem desejasse que o
país transitasse diretamente do câmbio livre para o câmbio fixo.
De Menem a Cavallo (em Davos), passando por vozes
gabaritadas em Wall Street e na imprensa financeira internacional,
sem falar em técnicos dos organismos multilaterais (FMI incluído),
a solução parecia estar a um passo. A campanha continua, a
começar por declarações insistentes de técnicos do governo
argentino.
Tecnicamente, o "currency board" exige que, para cada real em
circulação, exista um dólar de lastro. É uma versão aparentemente
modernizada do padrão ouro, sistema que levava muita gente a
acreditar, no século 19, que o valor de uma moeda dependia da
quantidade de ouro disponível nas reservas do governo emissor.
Nos debates sobre a reforma do sistema financeiro internacional,
muitos economistas defendem o retorno a um sistema global
semelhante, com taxas de câmbio fixas e ancoradas em
moedas-chave ou, nas visões mais fundamentalistas, em ouro
mesmo.
No século passado, interessava à Inglaterra que o sistema fosse
utilizado o mais amplamente e pode-se dizer que esse era um dos
pilares da "pax britannica". Com a força dos EUA e a emergência
do euro, alguns analistas acreditam que os países deveriam
avançar na globalização fazendo uma escala: a sujeição de suas
políticas econômicas a alguma potência regional.
Para os mais entusiasmados com a globalização, moedas
nacionais são instituições tão anacrônicas quanto empresas
estatais e programações locais de música e televisão.
Resta saber se a adesão à flutuação totalmente livre do câmbio, na
gestão Francisco Lopes, não seria (involuntariamente?) uma forma
indireta de preparar o terreno para a criação de um "currency
board".
Afinal, quanto mais vale o dólar, vale relativamente menos o
estoque de reais (incluída a poupança) em relação ao total de
reservas do Banco Central. Quanto mais longe vai a
desvalorização do real, mais desejável se torna a opção de
agarrar-se à muleta de uma moeda forte, estrangeira.
Pode-se até mesmo imaginar a situação como uma espécie de
simulação de um rápido processo hiperinflacionário. Exatamente o
tipo de situação em que ocorrem mudanças de regime monetário,
experiência exaustivamente trabalhada nos modelos de inflação
inercial e desindexação em que se especializou Francisco Lopes.
Ao defenestrar Lopes, o presidente FHC parece ter evitado a
desintegração da moeda nacional no último minuto do segundo
tempo. Mas o jogo continua empatado e a prorrogação, sob o
comando do FMI, pode incluir novos lances ofensivos do time
que defende a dolarização da economia.
Dolarizar a economia significaria condená-la à mediocridade, a
pretexto de garantir para todo o sempre a credibilidade externa.
Num país com as dimensões do Brasil, é uma idéia absurda.
O país é um "global trader", ou seja, mantém relações comerciais
com vários blocos e regiões. Atrelar-se a uma moeda, de uma
região, é ignorar essa diversidade. Num país como o México, que
vende quase a totalidade das exportações para os EUA, a
dolarização faz sentido.
Adicionalmente, o mercado doméstico é muito mais relevante no
Brasil que o seu setor externo. Subordinar todos os mecanismos
de financiamento da economia à disponibilidade de reservas no
BC pode condenar o país a um crescimento medíocre.
O real que está aí ainda não tem valor definido, trata-se de uma
aposta ainda em aberto enquanto o cassino funciona a todo vapor.
Ainda assim, se temos uma moeda frágil e, mais do que nunca,
dependente de financiamento externo, ao menos estamos a vários
passos de uma total rendição.
É bom registrar que, num ambiente de ameaça à soberania
nacional (perder a moeda é perder o Estado), tornam-se
justificadas, do ponto de vista estritamente técnico, medidas
extremas de controle dos fluxos de capitais como as sugeridas
pela Folha em editorial de primeira página recente e defendidas,
entre outros, pelo economista Paul Krugman, do MIT.
Uma hiperinflação simulada ou qualquer outra forma de
desvalorização descontrolada do patrimônio nacional (público e
privado) pode exigir ações defensivas mais radicais, ainda que ao
custo de abalar temporariamente a confiança externa.
Entre o aparente compromisso com o livre mercado e os
compromissos vitais com a sobrevivência do Estado e da
capacidade de o país ter alguma política econômica própria, o
governo FHC vacilou perigosamente ao insistir no câmbio
totalmente livre.
Agora, esse risco parece reduzido, embora ainda esteja presente.
Na melhor das hipóteses, veremos que o regime cambial de
Gustavo Franco não era tão mau assim. O Brasil tem inflação, o
câmbio precisa deslizar e cabe ao BC atuar como estabilizador
das pressões de compra e venda de divisas no mercado cambial.
Errado, na gestão Franco, foi adiar teimosamente a correção da
taxa de câmbio. Como o nível da taxa então vigente era percebido
como errado, havia um risco cambial que exigia juros elevados
demais por tempo demais, minando as bases da confiança no
sistema. Era o rabo (câmbio) balançando o cachorro (a economia
brasileira).
Mas o mecanismo de deslizamento da taxa de câmbio
(desvalorização gradual), amparado no poder de intervenção do
Banco Central nos mercados de divisas (hoje infelizmente
subordinado à tesouraria do FMI), era correto.
Na prática, a economia brasileira precisa mesmo de uma âncora,
cambial inclusive, mas ninguém mais imagina ou deseja um câmbio
fixo ou valorizado. A flutuação, inevitavelmente, estará
condicionada por outras metas, a começar por uma meta de
inflação anual.
Sem "currency board", Armínio Fraga veio para um BC cujo
desafio maior deveria continuar sendo a defesa de uma moeda
nacional. Mesmo que isso desagrade a alguns argentinos,
burocratas internacionais e editorialistas de Wall Street.
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