Batista Jr, Paulo Nogueira. “Diplomacia bisonha”. São Paulo: Folha de São Paulo, 11 de outubro de 2001. Jel: F Diplomacia bisonha Paulo Nogueira Batista Jr. Nos últimos tempos, o Brasil tem sido atropelado por reclamações e exigências da Argentina. Nas negociações desta semana, o governo argentino obteve mais uma concessão: um regime temporário de salvaguardas, "inspirado" nas regras da OMC, como compensação para a desvalorização do real. A julgar pelas informações até agora disponíveis, a finalidade principal do novo regime é permitir que a Argentina estabeleça restrições seletivas às exportações do Brasil, sob a forma de sobretaxas ou quotas. A imposição de restrições pressuporia a comprovação de que um aumento súbito das exportações brasileiras esteja provocando um dano substancial a determinado setor da economia vizinha.Com isso, o Mercosul e as exportações do Brasil sofrerão um abalo que será tão mais forte quanto maior for o número de setores argentinos beneficiados, mais rápida e rigorosa a fixação de barreiras e mais longa a duração do regime "temporário". Ontem, a imprensa argentina noticiou que, nos bastidores, a delegação do país comemorava como "autêntica conquista" ter arrancado do Brasil uma compensação para setores industriais argentinos prejudicados pela desvalorização do real ("La Nación", 10 de outubro, www.lanacion.ar). Ainda não está claro como será implementado o regime de salvaguardas. Os argentinos estão defendendo uma aplicação ampla, que poderá acarretar prejuízo considerável para o Brasil. Na lista de produtos contemplados pelo mecanismo de proteção figurariam, entre diversos outros, papel, têxteis, metalúrgicos, calçados, bens de capital, eletrodomésticos, autopeças, ferramentas e brinquedos. Além disso, o chanceler argentino, Rodríguez Giavarini, explicou que a diferença entre o regime de salvaguardas e as regras da OMC estaria no prazo de aplicação das restrições, que seria muito menor no caso do Mercosul. Na OMC, a aplicação de salvaguardas é um processo que compreende várias etapas e pode durar até dois anos, explicou o chanceler. No Mercosul, a aplicação não demoraria mais do que dois meses ("Âmbito Financeiro", 10 de outubro, www.ambitoweb.com). Os argentinos estão apresentando as salvaguardas como um mecanismo que permitiria o convívio dos regimes cambiais radicalmente diferentes do Brasil e da Argentina. Segundo um jornal argentino, as compensações durariam "até o nascimento de uma moeda comum" ("Clarín", 10 de outubro, www.clarin.com). Um temporário a perder de vista, portanto. Sabemos que o ridículo é uma dimensão essencial da política, particularmente na América Latina. Nesta semana, contudo, os governos brasileiro e argentino passaram um pouco dos limites. Em nota oficial, anunciaram "a determinação de trabalhar com o objetivo de médio prazo de uma moeda comum". Eis o que deveríamos perguntar: que sentido faz programar uma união monetária com um país que não tem propriamente moeda nacional? O peso argentino é uma meia-moeda, uma espécie de recibo de depósito de dólares. A Argentina já está semidolarizada e, segundo alguma avaliações, à beira da dolarização plena. Só se a "moeda comum" a que faz referência a nota oficial for o dólar dos EUA... O auge do ridículo foi protagonizado pelo chanceler Giavarini, que anunciou uma gestão conjunta da Argentina e do Brasil nos EUA para pedir mais ajuda financeira. Acompanhado pelo ministro Lafer, que escutava atentamente e concordava com suas palavras, Giavarini protestou contra a situação de dois países que "fizeram todas as reformas, privatizaram, abriram suas economias e ajustaram seus gastos, mas têm taxas de risco superiores a mil pontos". Segundo ele, Argentina e Brasil estão em condições de sustentar que "fizeram todos os deveres e não merecem esta situação" ("Âmbito Financeiro", 10 de outubro, www.ambitoweb.com). Patético. É cada vez mais difícil perceber o que o Brasil está realmente ganhando com toda essa pantomima. Quanto valem as relações com o nosso "sócio estratégico"? Afinal, a Argentina é um país fragilizado, financeiramente ainda mais dependente do que o Brasil. A esta altura, devemos indagar seriamente se a aliança com a Argentina fortalece ou enfraquece o Brasil. Alguém imagina que a Argentina, no estado em que se encontra, poderá desempenhar um papel positivo nas negociações da Alca, por exemplo? A menos que a Fazenda e o Itamaraty estejam querendo insistir na surrada estratégia, que remonta aos tempos de Collor, de usar as relações com a Argentina e o resto do Mercosul como plataforma e pretexto para continuar submetendo a economia brasileira a um processo de integração internacional subordinada. Até quando a economia real do Brasil aceitará ser sacrificada no altar dessa diplomacia bisonha?