2. HÉRNIAS DA PAREDE ABDOMINAL Luís Massaro Watanabe Prof. Adjunto da Área de Clínica Cirúrgica da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília. Prof Doutor da Escola Superior de Ciências da Saúde da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde. E- mail: [email protected] Endereço: SQN 316 Bloco A Apartamento 102 – Bairro Asa Norte – Brasília-DF CEP: 70775-010 Residência: (61) 3274.3696 – Celular: (61) 9983.7136 – Consultório: (61) 3242.5252. Paulo Mendelssonh Ferreira Otero Prof. Adjunto da Área de Clínica Cirúrgica da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília 2 Hérnia da parede abdominal é definida como protrusão anormal de órgão ou víscera intra-abdominal recoberta por peritônio através de um orifício natural ou anômalo. A protrusão é resultante da pressão intra-abdominal ser maior que a externa e que, ao contrapor-se a parede abdominal, resulta em aumento da sua área de fraqueza. O princípio de Pascal ajuda na compreensão do processo de formação da hérnia: O aumento na pressão intra-abdominal gera uma tensão que é transmitida, às paredes do abdome. Com base na lei de Laplace (T = PR/2w, onde T é a tensão sobre a parede, P é pressão do compartimento, R é o raio do compartimento e w é a espessura da parede), a tensão exercida sobre a parede do abdome é diretamente proporcional ao raio do compartimento. A tensão será maior com o aumento do raio e a redução da espessura da parede. Assim, a aplicação da lei de Laplace pode ter relevânc ia no entendimento da evolução da hérnia. A progressão é relacionada com aumento da tensão sobre a cavidade herniária, em função do aumento do raio e da redução da espessura da parede, com o surgimento do defeito. Por conseguinte, após o aparecimento do defeito da parede abdominal, a hérnia teria a tendência de progredir pelo aumento da tensão no interior saco herniário . A maioria das hérnias da parede abdominal está localizada na região inguinal. As hérnias ventrais, causadas por fraquezas da parede abdominal anterior, são classificadas como primárias (hérnia umbilical, hérnia epigástrica, hérnia de Spieghel) e secundárias (hérnia incisional). As hérnias lombares são as causadas por defeitos na parede abdominal póstero- lateral. O foco deste fascículo está direcionado para hérnias da parede abdominal, com exceção das hérnias inguinais, flemorais e incisionais, que são delineadas em outros fascículos. 3 HÉRNIA LOMBAR Introdução As hérnias lombares são protrusões relativamente raras, que surgem através de defeitos na parede abdominal póstero- lateral. História A hérnia lombar foi evidenciada pela primeira vez em 1672 por Barbette, mas a primeira publicação foi feita em 1731 por DeGarangeot. Em 1750, Ravaton realizou o primeiro reparo cirúrgico de uma hérnia lo mbar estrangulada em uma mulher grávida. O trígono lombar inferior foi descrito por Jean Louis Petit em seu livro Traité des Maladies Chirurgicales, que foi publicado em 1774, vinte e quatro anos após a sua morte. Petit delineou os limites anatômicos do defeito, que recebeu a denominação de trígono lombar inferior ou trígono de Petit. Grynfeltt (1866) foi o primeiro a descreve r uma hérnia através do trígono lombar superior, que se firmou como trígono de Grynfeltt. Como Lesshaft, em 1870, também relatou uma hérnia no trígono lombar superior, esse espaço triangular tem sido também denominado, por alguns autores, de trígono de Lesshaft. Aspectos morfológicos e fisiológicos A região lombar é definida superiormente pela 12ª costela, medialmente pelo músculo eretor da espinha, inferiormente pela crista ilíaca e lateralmente pelo músculo oblíquo externo. Os defeitos das hérnias lombares, congênitos ou adquiridos, têm como base a aponeurose do músculo transverso do abdome e, com a expansão da hérnia, subseqüente envolvimento das camadas mais superficiais. 4 As hérnias lombares ocorrem através do trígono lombar inferior de Petit e através do trígono lombar superior de Grynfeltt. No trígono de Petit, o limite inferior ou base do espaço triangular é a crista ilíaca, o limite lateral é a margem posterior do músculo oblíquo externo, o limite medial é a margem anterior do músculo latíssimo do dorso (grande dorsal) e o assoalho é formado pelas aponeuroses dos músculos oblíquo interno e transverso do abdome. O trígono de Grynfeltt distingue-se por ter uma localização superior e medial e por ser um espaço triangular mais largo, em comparação ao trígono de Petit. A maior regularidade do trígono de Grynfeltt em relação ao de Petit, relatada pela maioria dos autores, não foi observada em estudos recentes. Os trígonos de Petit e Grynfeltt foram identificados em cerca de 82% e não observados em aproximadamente 18% dos espécimes analisados . O trígono de Grynfeltt é um espaço triangular invertido (vértice dirigido inferiormente), com o limite superior ou base do espaço triangular formada pela 12ª costela e a margem inferior do músculo serrátil póstero- inferior; o limite medial definido pela margem lateral do músculo eretor da espinha ; o limite lateral demarcado pela margem posterior do músculo oblíquo interno; e o assoalho constituído pela fáscia transversal e aponeurose do músculo transverso do abdome. O trígono de Grynfeltt está coberto pelos músculos oblíquo externo e grande dorsal. O pedículo neurovascular formado pelo 12º nervo intercostal e pelos vasos intercostais penetra o assoalho do trígono superior. Com base na localização anatômica, as hérnias lombares têm sido classificadas em superior, inferior e difusa. As hérnias lombares difusas, geralmente decorrentes de processos cirúrgicos, traumáticos ou infecciosos, têm localização variada dentro da região lombar, visto que não se restringem aos trígonos inferior e superior, com inclusive extensão para fora dos limites dessa região. 5 Etiofisiopatologia As hérnias lombares podem ser de origem congênita ou adquirida. A hérnia congênita surge na infância, em decorrência de defeitos no sistema musculoesquelético da região lombar e está associada com outras más- formações. As hérnias adquiridas podem ser primárias, caracterizadas pelo aparecimento espontâneo, ou secundárias, resultantes de intervenções cirúrgicas prévias, infecção ou trauma. Enquanto as hérnias primárias são raras, a maioria das hérnias lombares é secundária. Os fatores predisponentes da hérnia lombar adquirida primária incluem a idade, obesidade, magreza extrema, emagrecimento intenso, doenças crônicas debilitantes, atrofia muscular, bronquite crônica. No emagrecimento acentuado, a perda do tecido adiposo parece favorecer o rompimento do assoalho do trígono lombar superior no local de penetração do pedículo neurovascular. As hérnias primárias estão usualmente associadas ao esforço físico vigoroso, especialmente em pacientes com idade avançada ou com perda substancial de peso. As hérnias primárias são encontradas mais freqüentemente no lado esquerdo do abdome. As hérnias lombares adquiridas secundárias estão associadas com processos que modificam a integridade da parede abdominal, tais como a contusão abdominal, esmagamento, fraturas da crista ilíaca, incisões cirúrgicas, infecções ósseas (pelve e costelas), abscesso hepático, hematomas retroperitoneais infectados. A hérnia traumática lombar deve ser considerada em qualquer paciente com trauma abdominal grave, especialmente com hematoma de flanco ou fratura pélvica. No entanto, a maioria das hérnias foi observada em vítimas de colisão de veículos e contidas pelo cinto de segurança. A localização da hérnia não corresponde necessariamente ao local do trauma, mas predileção para locais de fraqueza anatômica da região lombar. O mecanis mo da lesão é relacionado ao aumento agudo da pressão intra-abdominal atribuída à desaceleração brusca, transmitida pelo cinto de segurança em função do impacto. O trígono lombar 6 inferior é referido como o local mais freqüente de hérnias lombares traumáticas. Portanto, a hérnia lombar de origem traumática não segue o consenso de que o local mais comum da hérnia lombar seja o trígono lombar superior. As hérnias lombares incisionais estão associadas com as incisões lombares para nefrectomia, adrenalectomia, reparo de aneurisma de aorta abdominal, ressecções de tumores de parede abdominal, cirurgias plásticas com rotação do músculo latíssimo do dorso. A prevalência de hérnia lombar após lombotomia é de cerca de 10 a 30% [30]. A divisão ou lesão intra-operatória do nervo subcostal, com a atrofia da musculatura da parede abdominal pela desnervação e o enfraquecimento subseqüente do músculo e da aponeurose, tem sido relacionada como fator predisponente da hérnia lombar incisional. A relação percentual entre as hérnias lombares congênitas e as hérnias lombares adquiridas não tem modificado com o tempo, com valores aproximados de 20% e 80%, respectivamente. Quanto ao agente etiológico das hérnias lombares adquiridas, igualmente não foi observada mudança no percentual de hérnias primárias (50 a 55%), porém houve aumento considerável nas hérnias incisionais (10% para 31%) e redução das hérnias de origem infecciosa (17% para 2%). Quanto ao conteúdo das hérnias lombares, observa-se à extrusão de gordura préperitoneal ou vísceras intra-abdominais (omento, intestino grosso, intestino delgado, rim, baço, estômago) através do defeito na parede abdominal. Propedêutica pré -operatória O diagnóstico clínico das hérnias lombares é considerado difícil, sobretudo em pacientes obesos e nos assintomáticos. A apresentação clínica mais comum da hérnia lombar é a presença de abaulamento na parede abdominal póstero- lateral que se torna mais evidente com a tosse e o esforço físico. A região abaulada usualmente é redutível e 7 desaparece com o decúbito. As queixas referidas pelo paciente incluem o desconforto abdominal, fadiga e dor na região dorsal. Ocasionalmente, as hérnias lombares são assintomáticas. Ao exame físico, a palpação do abdome não é considerada um meio apropriado de diagnóstico de hérnia lombar, porque não permite a diferenciação entre a hérnia verdadeira e o adelgaçamento da parede abdominal por atrofia muscular. Embora menos comum, a hérnia lombar pode estar associada com um quadro clínico de obstrução intestinal, caracterizada por náuseas, vômitos, distensão abdominal e palpação de um abaulamento não redutível na parede abdominal póstero- lateral. Quando se palpa um tumor não redutível, torna-se fundamental estabelecer o diagnóstico diferencial com outros processos patológicos comuns, tais como lipomas, fibromas, hematomas e abscessos, tumores renais e hérnias musculares. Diversos autores têm destacado o benefício da tomografia computadorizada (TC) no diagnóstico da hérnia lombar, com fornecimento de informações adicionais para o processo de decisão terapêutica. A indicação da TC baseia-se principalmente na dificuldade de avaliar o defeito da parede abdominal pela palpação do abdome. A TC propicia uma avaliação clara do tamanho do defeito da parede abdominal e das relações anatômicas, a definição das diferentes camadas musculares, a identificação do conteúdo da hérnia e a exclusão de outros processos patológicos. A TC é também a modalidade de escolha para a diferenciação diagnóstica entre a hérnia lombar real e o adelgaçamento da parede abdominal póstero- lateral por atrofia muscular, cujo comportamento pode ser semelhante à de uma hérnia. A parede abdominal delgada pode propiciar abaulamento ao esforço, com redutibilidade à palpação, que não pode ser diferenciada pelo exame clínico de uma hérnia verdadeira. Com base nos casos relatados na literatura de cirurgias desnecessárias em pacientes com atrofia muscular sem defeito aponeurótico, a TC poderia evitar, nesses casos, a intervenção operatória. Por conseguinte, a TC tem sido recomendada como 8 procedimento de rotina na avaliação pré-operatória de pacientes com hérnia lombar. A TC é importante na avaliação completa do defeito da parede abdominal, com definição da localização, do tamanho e do conteúdo da hérnia, para facilitar a elaboração de um plano cirúrgico e promover a escolha da técnica mais apropriada. Condutas operatórias: indicações, técnicas e táticas Com base na evolução natural da hérnia lombar, caracterizada pelo crescimento persistente e aumento progressivo dos sintomas, a maioria dos cirurgiões indica o reparo cirúrgico da hérnia, exceto em pacientes de alto risco. Como a intervenção operatória torna-se mais complexa em casos avançados, a cirurgia deve ser indicada logo após o diagnóstico, para evitar a progressão da hérnia. Diversas intervenções operatórias são descritas para o reparo do defeito da parede abdominal nas hérnias lombares. Os procedimentos relatados incluem o fechamento primário ; a rotação de retalho musculofascial, tais como a fáscia glútea ou a fáscia lombar; e o uso de material protético. O fechamento primário do defeito da parede abdominal é considerado freqüentemente inadequado no tratamento das hérnias lombares. A rotação de retalhos musculofascial, além de requerer dissecção extensa, tem o potencial de criar tecidos isque miados. Em função da inerente fragilidade dos tecidos circunjacentes ao defeito e o uso difundido de malha na prática cirúrgica, a malha sintética como elemento de reforço da parede abdominal tem sido a conduta mais usual. Diversos tipos de próteses têm sido usados no reparo das hérnias da parede abdominal. As três opções básicas de materiais protéticos usados são as malhas de polipropileno (Prolene ®, Marlex® ), poliéster (Mersilene ®) e o politetrafluoretileno expansivo (GoreTex®, DualMesh®, MotifMESH®). A malha de polipropileno é uma das mais usadas no reparo de hérnias da parede abdominal, com taxas de complicação 9 relativamente baixas. No entanto, como o polipropileno e o poliéster causam resposta inflamatória quando colocado diretamente sobre as vísceras, recomenda-se que essas malhas não sejam colocadas em situação intraperitoneal, para minimizar a formação de aderências e o risco de erosão intestinal, com subseqüente formação de fístula digestiva. O politetrafluoretileno expansivo (ePTFE) é indicado para uso intraperitoneal, por reduzir a formação de aderência s às vísceras subjacentes. Todavia, ainda não se conhece a repercussão clínica das aderências associadas ao ePTFE. As malhas de polipropileno e poliéster, em decorrência dos processos adversos, têm sido cobertas por membranas ou películas protetoras, para minimizar a formação de aderências e fístulas. Essas malhas, denominadas compostas ou de dupla camada (TiMesh®, Parietex Composite®, Parietene Composite® ), foram manufaturadas também para uso intraperitoneal. Embora não haja consenso sobre a melhor abordagem no reparo das hérnias lombares, as duas mais usadas incluem a abordagem aberta com incisão lombar e a abordagem laparoscópica (transabdominal ou extraperitoneal total). A dificuldade para estabelecer um procedimento como o mais favorável tem sido relacionado com a raridade relativa das hérnias lombares, os limites pouco precisos do defeito aponeurótico, a fraqueza dos tecidos circunvizinhos e a experiência clínica limitada de cirurgiões no tratamento dessas hérnias. A abordagem cirúrgica aberta é a opção mais comum, com particular indicação para pacientes com grandes defeitos ou com recidivas decorrentes de reparo por via laparoscópica. Uma desvantagem da via de acesso aberta é a necessidade de dissecção extensa dos planos parietais em torno do defeito, mas tem como vantagem o controle do grau de tensão da malha na reconstrução parietal, com maior potencial para um apropriado resultado funcional e estético. No entanto, o reparo das hérnias da parede abdominal posterior é considerada difícil, em decorrência da ausência de uma definição clara dos 10 planos musculofasciais, da presença de um limite ósseo e da fraqueza dos tecidos adjacentes. A abordagem laparoscópica tem sido considerada uma opção segura e efetiva, especialmente para o tratamento de pacientes com orifícios herniários pequenos ou moderados. No entanto, resultados bem-sucedidos foram também observados no tratamento laparoscópico de grandes hérnias lombares incisionais. Em comparação com a via de acesso aberta, o reparo por via laparoscópica tem se revelado menos invasivo e igualmente eficaz, além da vantagem da redução da dor pós-operatória, da permanência hospitalar, da necessidade de analgésico e das complicações de ferida. Como em outras hérnias da parede abdominal, a visão interna do abdome permite definir com mais clareza o local, o tipo, o tamanho e as bordas do defeito da hérnia lombar. Além disso, a abordagem laparoscópica proporciona uma excelente visão da área lombar e menor risco de lesões de estruturas adjacentes durante o reparo. Na abordagem laparoscópica, o paciente é posicionado em decúbito lateral, com a mesa cirúrgica em flexão, para expandir o espaço entre o gradil costal e a crista ilíaca. Além de ampliar a área operatória, esta posição possibilita que a malha seja colocada e fixada sem prejudicar posteriormente a mobilidade lateral do tronco. A malha é selecionada com base na avaliação do tamanho do defeito e deve ter a dimensão suficiente para permitir a cobertura completa do defeito, além de uma margem adicional de pelo menos 5 a 6 cm, em torno de todo o perímetro, para que propicie a sobreposição da borda do defeito. Os pontos de fixação da malha variam de acordo com a localização da hérnia. Superiormente, a malha é fixada na 12ª costela ; inferiormente, na crista ilíaca; medialmente, na aponeurose do músculo eretor da espinha; e lateralmente, na aponeurose do oblíquo externo. Para a sutura da malha na crista ilíaca, furos são feitos na borda óssea, 11 utilizando-se de um instrumento de perfuração. Recomenda-se que os furos sejam colocados a 1 cm da borda para evitar a lesão de nervos presentes nessa área. Acompanhamento pós-operatório As complicações pós-operatórias do reparo das hérnias lombares incluem seromas, hematomas, infecção da ferida operatória e dor. Por conseguinte, as orientações para o paciente incluem a observação de sinais indicativos de hematoma e de infecção de ferida; o uso de analgésicos para o controle da dor; e instruções sobre o retorno ao trabalho e às atividades físicas habituais. HÉRNIA DE SPIEGHEL Introdução As hérnias de Spieghel são protrusões que se desenvolvem através de defeitos na aponeurose de Spieghel, delineada como uma região côncava limitada pela linha semilunar de Douglas e pela borda lateral do músculo reto abdominal (linha semicircular). As hérnias de Spieghel são relativamente raras (0,1 a 2% de todas as hérnias da parede abdominal) e podem ocorrer em qualquer grupo etário. No entanto, a maioria das hérnias de Spieghel ocorre em pacientes com idade entre 40 e 70 anos, com uma média de idade de cerca de 60 anos [32]. A hérnia de Spieghel parece ter uma predisposição maior em mulheres e pode ser bilateral. 12 Histórico Em 1645, Adriaan van der Spieghel, anatomista belga, foi o primeiro a descrever as estruturas anatômicas da linha semilunar e a sua relação com a borda lateral do músculo reto abdominal. A protrusão através de um defeito na aponeurose de Spieghel foi reconhecida pela primeira vez por Klinkosch, em 1764. Aspectos morfológicos e fisiológicos O defeito herniário ocorre através de uma faixa aponeurótica, delimitada lateralmente pela linha semilunar de Douglas e medialmente pela linha semicircular da borda lateral do músculo reto abdominal, denominada de “aponeurose de Spieghel”. A linha semilunar se estende desde a extremidade da 9ª cartilagem costal até o tubérculo púbico. Do ponto de vista anatômico, as hérnias de Spieghel estão localizadas acima do ponto onde os vasos epigástricos inferiores cruzam a linha semilunar. A hérnia que se localiza abaixo dos vasos epigástricos inferiores é denominada de hérnia inguinal direta, visto que a protrusão ocorre através do triângulo de Hesselbach. No entanto, alguns autores descrevem a hérnia de Spieghel baixa, localizada abaixo dos vasos epigástricos inferiores, que necessita ser diferenciada da hérnia inguinal direta. O local mais comum da hérnia de Spieghel é a região da linha semilunar delimitada pelos vasos epigástricos inferiores e a linha arqueada ou semicircular, o que corresponde a região de 6 cm acima da linha que passa entre as espinhas ilíacas ântero-superior (Figura 1). A linha semilunar de Douglas é o ponto que define a mudança na composição diferenciada da lâmina posterior da bainha do músculo reto abdominal. Acima da linha semilunar, a lâmina posterior é formada pelas aponeuroses dos músculos oblíquo interno e transverso do abdome. Abaixo dessa linha, as aponeuroses dos músculos oblíquo interno e transverso do abdome tornam-se parte da lâmina anterior da bainha do reto abdominal, o que deixa apenas a fáscia transversal para cobrir a face 13 posterior do músculo reto abdominal. A debilidade da lâmina posterior, abaixo da linha arqueada, gera uma área de fraqueza, com predisposição para a formação da hérnia. Apesar das variações, a linha semilunar está localizada usualmente à cerca do ponto médio entre a cicatriz umbilical e o púbis. Em quase todas as hérnias de Spieghel o saco herniário não atravessa a aponeurose do músculo oblíquo externo. A aponeurose do oblíquo externo permanece intacta, com o saco herniário alojando-se entre os planos musculares situados abaixo dessa aponeurose. Em casos eventuais, o saco herniário pode atravessar a aponeurose do oblíquo externo e alcançar o tecido subcutâneo. A maioria das hérnias de Spieghel apresenta um saco herniário, que se encontra vazio em um terço dos casos. As estruturas usualmente observadas no interior do saco herniário incluem o omento, o intestino delgado e o cólon. O orifício da hérnia de Spieghel é usualmente pequeno, circular ou oval, bordas bem definidas e com indicações de ter diâmetro menor do que 2 cm em 57% dos casos. O orifício herniário pequeno está associado com maior risco de estrangulamento. Etiofisiopatologia A hérnia de Spieghel ocorre através de defeitos aponeuróticos congênitos ou adquiridos. A origem congênita é considerada nas hérnias de Spieghel que ocorrem em crianças e recém- nascidos. Em crianças, a hérnia de Spieghel foi também relacionada com fatores traumáticos, causados por guidom de bicicleta e outros tipos de traumas fechados. Em adultos, a hérnia de Spieghel é referida como uma protrusão através de áreas de separação das fibras dos músculos oblíquo externo e transverso do abdome. É considerado fator predisponente o aumento da pressão intra-abdominal causado por esforço físico excessivo, tosse crônica, esforço à micção, ascite, obesidade mórbida e multiparidade. A rápida perda de peso em pacientes obesos e as operações abdominais prévias parecem ter 14 um papel no desenvolvimento da hérnia. Como base na observação de que muitos pacientes com hérnia de Spieghel tinham operações abdominais prévias adjacentes à linha semilunar, sugere-se que a contração do processo cicatricial poderia causar áreas de fraqueza na aponeurose de Spieghel, com o aumento do risco de hérnia. Propedêutica pré -operatória. O diagnóstico clínico da hérnia de Spieghel é freqüentemente difícil, porque as queixas são vagas e o saco herniário é, em geral, pequeno, com tendência de se estender entre os planos musculares da parede abdominal anterior (hérnia intraparietal) e de permanecer abaixo da aponeurose do músculo oblíquo externo. A dificuldade diagnóstica torna-se ainda maior no paciente obeso. O retardo diagnóstico é freqüente. Por conseguinte, o diagnóstico de hérnia de Spieghel requer um alto índice de suspeição, dado a falta de sinais e sintomas consistentes. As queixas mais freqüentes referidas pelo paciente com hérnia de Spieghel são dor abdominal ou uma massa palpável intermitente na borda lateral do reto abdominal. A dor é usualmente localizada e associada à postura. A dor e o abaulamento podem aumentar com a tosse, o esforço e a manobra de Valsalva. Alguns pacientes são assintomáticos e o achado de hérnia é incidental. Como o orifício herniário é usualmente estreito, verifica-se que uma proporção significativa de pacientes apresenta encarceramento ou, até mesmo, estrangulamento. Na hérnia estrangulada, a queixa principal é a dor e a sensibilidade acentuada no local da hérnia. As manifestações clínicas de obstrução intestinal ocorrem se o intestino faz parte do conteúdo estrangulado. Os sinais e sintomas de estrangulamento ou obstrução podem aparecer como as primeiras queixas clínicas. Outra complicação potencial é a hérnia de Richter, caracterizada pela protrusão ou estrangula mento de apenas 15 parte da parede intestinal, usualmente a borda antimesentérica, sem sinais concomitantes de obstrução intestinal. No exame físico, dor ou sensibilidade à palpação pode ser o único achado observado. As hérnias pequenas não são usualmente palpáveis, em razão do tamanho e da integridade da aponeurose do oblíquo externo. Nas hérnias grandes, pode-se palpar uma massa, que, quando redutível, pode produzir uma sensação gorgolejante na redução manual. Se for evidenciada uma massa não redutível, torna-se importante o diagnóstico diferencial com lipomas e tumores intra-abdominais e de parede abdominal. As técnicas de imagem são instrumentos úteis no esclarecimento diagnóstico de casos duvidosos . A ultra-sonografia (US) e a TC de abdome, com atenção especial sobre o local da dor ou a massa palpável, são úteis na localização do defeito musculoaponeurótico e no delineamento do conteúdo do saco herniário. A acurácia da US é operador dependente. Na US, a manobra de Valsalva constitui em uma estratégia que permite avaliar o movimento de deslizamento do conteúdo do saco através do orifício herniário. A TC tem sido considerada o método de escolha no diagnóstico da hérnia de Spieghel, por fornecer maiores detalhes sobre o defeito parietal e elementos para o dia gnóstico diferencial de patologias intra-abdominais e da parede abdominal. Condutas operatórias: indicações, técnicas e táticas. A intervenção operatória é o tratamento indicado para todos os pacientes com hérnia de Spieghel, em função do risco elevado de estrangulamento. O reparo primário da hérnia de Spieghel apresenta um alto índice de sucesso, com poucos casos de recorrência. A abordagem operatória clássica é o reparo por uma incisão transversa sobre o local da hérnia. Após a abertura da aponeurose do oblíquo externo, o procedimento consiste na dissecção do saco herniário e reparo primário do defeito, mediante a reaproximação das 16 camadas aponeuróticas. Em hérnias grandes, recomenda-se o uso de material protético como elemento de reforço da parede abdominal, de forma que a malha seja colocada no espaço pré-peritoneal ou intraperitoneal, com ancoragem nos músculos e aponeuroses, sem tensão. A malha deve ter tamanho suficiente para cobrir todo o defeito e se estender além da borda por pelos menos 3 cm. Se a opção for para o uso intraperitoneal, a escolha da malha tem que considerar as complicações específicas relacionados com o material protético, ou seja, risco de aderências e de fístulas digestivas. Quanto ao reparo com malha, algumas alternativas técnicas foram descritas, embora com resultados ainda não validados por outros estudos. Com base nos princípios do reparo com material protético estabelecido pelo grupo de Lichtenstein, alguns autores relataram que a colocação da malha entre o músculo oblíquo externo e o músculo oblíquo interno é também segura e efetiva. O procedimento de introdução da malha entre os músculos oblíquos caracteriza-se por ser mais simples e pela possibilidade de colocar uma malha ampla que cubra adequadamente o defeito herniário. Essa opção baseia-se na dificuldade de colocação da malha pré-peritoneal, em decorrência do peritônio ser fino e muito aderente ao tecido musculoaponeurótico. Outros autores propõem o uso da malha dupla PHS (Prolene Hernia System), tamanho grande, no reparo da hérnia de Spiegel, quando o orifício herniário tem o mesmo diâmetro do conector. O procedimento consiste na inserção da malha inferior no espaço pré-peritoneal, do conector na obliteração do orifício herniário e da malha superior sobre o músculo oblíquo interno. A malha é fixada nas bordas do defeito muscular e o oblíquo externo é fechado sobre a malha. A conclusão dos autores é que o uso do PHS simplifica a técnica e produz menos desconforto pós-operatório. O reparo da hérnia de Spieghel, por via laparoscópica, é relatada por alguns autores, especialmente pela abordagem transperitoneal. As vantagens são semelhantes às 17 observadas em outros procedimentos laparoscópicos, inclusive com a possibilidade de esclarecer diagnósticos incertos ou controversos. Nas hérnias encarceradas, a via laparoscópica transperitoneal possibilita que os órgãos encarcerados sejam reduzidos e examinados, sob visão, quanto à integridade e viabilidade. Além disso, diante de um diagnóstico incerto, a abordagem transperitoneal permite também a exploração da cavidade abdominal. O reparo laparoscópico da hérnia de Spiegel por dissecção extraperitoneal total é também considerado seguro e efetivo, sem as inconveniências da via transperitonenal e a necessidade de anestesia geral. A desvantage m da via extraperitoneal total é não permitir o exame da cavidade abdominal nos casos de incerteza diagnóstica e ser considerada menos segura no reparo das hérnias encarceradas e estranguladas. Acompanhamento pós-operatório. Nos reparos das hérnias da parede abdominal, as orientações pós-operatórias são semelhantes. Na hérnia de Spieghel, as instruções ao paciente incluem a observação de sinais indicativos de hematoma e de infecção de ferida; o uso de analgésicos para o controle da dor; e instruções sobre o retorno ao trabalho e às atividades físicas habituais. HÉRNIA EPIGÁSTRICA Introdução A hérnia epigástrica é a protrusão que ocorre através de um defeito aponeurótico na linha alba, entre o umbigo e o apêndice xifóide. A hérnia epigástrica é observada em 3 a 5% da população, especialmente entre as idades de 20 e 50 anos, e mais comumente em 18 homens do que em mulheres. Os defeitos são geralmente pequenos e cerca de 20% das hérnias epigástricas são múltiplas. Histórico As hérnias epigástricas foram descritas desde 1285, mas o termo hérnia epigástrica foi introduzido por Leveille em 1812. Em 1895, William Mayo desenvolveu a técnica operatória de imbricação aponeurótica, que é ainda muito usada no reparo de hérnias ventrais. Aspectos morfológicos e fisiológicos A linha alba é formada pelo entrecruzamento das fibras tendinosas de todas as camadas das bainhas anterior e posterior do músculo reto abdominal. Askar ressaltou que as bainhas anterior e posterior do reto abdominal, acima da cicatriz umbilical, tinham três camadas de fibras tendinosas, com formação de um padrão cruzado em tríplice decussação que confere à linha alba uma textura aponeurótica mais firme e mais resistente à herniação. Esse autor relacionou a formação da hérnia epigástrica com a presença de um padrão único de decussação aponeurótica. Todavia, os diferentes níveis de decussação propostos por Askar não foi confirmada em estudos histológicos de biópsias de linha alba. A hérnia epigástrica está localizada mais comumente no ponto médio entre a cicatriz umbilical e o apêndice xifóide. O diâmetro dos defeitos pode variar de milímetros para diversos centímetros. A gordura pré-peritoneal é o conteúdo da maioria das hérnias pequenas. A protrusão de vísceras intra-abdominais é incomum, mas quando ocorre, o omento é o mais encontrado. Ele pode ser diferenciado da gordura pré-peritoneal pela presença de vasos atravessando o orifício herniário. 19 Etiofisiopatologia A fraqueza de origem congênita das fibras aponeuróticas da linha alba foi considerada, por muito tempo, a hipótese do desenvolvimento de hérnia epigástrica. A causa da hérnia epigástrica foi relacionada também com a protrusão de gordura préperitoneal em defeitos aponeuróticos criados por vasos sangüíneos que atravessam a linha alba. Entretanto, essa teoria é questionada porque tais vasos sangüíneos não têm sido observados na dissecção do saco herniário, durante a intervenção operatória. Askar, com base na freqüência elevada de uma única faixa de decussação aponeurótica em pacientes com hérnia epigástrica, referiu que esse padrão de decussação seria o fator predisponente para o desenvolvimento de hérnia na linha alba. Outros autores, não reconhecendo a teoria de Askar, propuseram como elemento favorecedor da hérnia na linha alba a combinação de baixa densidade e adelgaçamento das fibras tendinosas. Na fase inicial, a protrusão é pequena e contém gordura pré-peritoneal. À medida que a hérnia aumenta de tamanho, acredita-se que o peritônio seja tracionado através do defeito aponeurótico, com formação de um saco herniário. Episódios identificáveis de aumento da pressão intra-abdominal, tais como tosse crônica e esforço físico excessivo, foram observados na história de pacientes com hérnia epigástrica. Há pouca dúvida que o esforço excessivo contribui para a progressão da hérnia. A gestação repetida tem sido referida como a principal causa de hérnias epigástricas adjacentes à cicatriz umbilical. Propedêutica pré -operatória. A hérnia epigástrica é usualmente assintomática. A dor epigástrica, quando presente, leva à necessidade do diagnóstico diferencial com outras afecções do abdome superior. No processo de diferenciação diagnóstica, a dor da hérnia epigástrica surge com o esforço e alivia com o repouso. Outra queixa freqüente é o relato de uma pequena massa palpável na 20 região epigástrica, o que exige a diferenciação com tumores subcutâneos (lipoma, fibroma ou neurofibroma). Ao exame físico, observa-se uma massa na linha média, acima da cicatriz umbilical, de consistência firme e elástica. A dor ou a sensibilidade à palpação é de intensidade variável. O orifício herniário geralmente não pode ser palpado, porque, na maioria das vezes, o defeito é pequeno e a massa não é redutível. No paciente obeso, a palpação da hérnia epigástrica torna-se consideravelmente mais difícil. A identificação da hérnia epigástrica, pela US ou pela TC, pode ser necessária em pacientes obesos. À US, a manobra de Valsalva pode auxiliar na identificação do conteúdo herniário. O Doppler pode ser útil na diferenciação entre vasos omentais e gordura préperitoneal. Condutas operatórias: indicações, técnicas e táticas. Em adultos, a maioria das hérnias epigástricas é tratada por intervenção operatória, porque as hérnias pequenas têm risco aumentado de encarceramento e as grandes são sintomáticas ou esteticamente desconfortáveis. Alguns autores referem que as hérnias epigástricas pequenas, menores que 1,5 cm, e assintomáticas não necessitam de tratamento cirúrgico. Em crianças, a conduta expectante foi recomendada para a hérnia epigástrica, com base na expectativa de fechamento espontâneo entre as idades de 2 e 6 anos. Entretanto, outros autores recomendam o reparo logo após o diagnóstico, justificado pela observação de que mais de 50% das 40 crianças com hérnia epigástrica tinham sintomas ou evoluíram com alargamento do defeito da parede abdominal. Embora a hérnia epigástrica seja muito comum e o procedimento de reparo relativamente simples, observa-se que não há uma abordagem consistente e universalmente aceita para o reparo das hérnias epigástricas. Reconhece-se a necessidade de diretrizes 21 baseadas em melhores evidências que delineiem sobre quando se indica o fechamento primário ou quando é essencial o uso do material protético. As taxas de recorrência de 20% associadas com a técnica de Mayo e suas modificações são consideradas inaceitáveis. No procedimento operatório das hérnias ventrais, reconhece-se que o fechamento do defeito aponeurótico deve interferir minimamente na biomecânica da parede abdominal anterior. Os princípios reconhecidos como importantes incluem: - a dissecção exagerada, a regularização das bordas e as manobras de alargamento artificial do orifício herniário podem, ao seccionar fibras tendinosas, levar ao enfraquecimento aponeurótico e aumentar o risco de recidiva da hérnia; - o reparo do defeito herniário não deve causar estiramento ou tensão excessiva na aponeurose, porque o tecido aponeurótico já exaurido tende a se esgarçar novamente; - os pontos devem ser passados através de um tecido saudável; - o fio de sutura deve ser forte o suficiente para sustentar o reforço durante o período crítico da cicatrização. A abordagem cirúrgica de eleição é o reparo do defeito aponeurótico através de uma incisão vertical ou transversal. A incisão vertical tem a vantagem de permitir, por meio do prolongamento da incisão, a exploração visual da linha alba, uma vez que as hérnias múltiplas são freqüentes. Uma das operações mais realizada no reparo dos defeitos herniários na linha alba tem sido a técnica de Mayo, que consiste na imbricação das bordas aponeuróticas, para propiciar uma maior superfície de adesão. Apesar da técnica de Mayo ter sido considerada tão promissora, uma alta taxa de recorrência, com variação de 20 a 28%, foi relatada por diversos estudos. A tensão na ferida, causada pelo processo de imbricação é considerada fator predisponente da recidiva. Como a técnica de Mayo é ainda realizada por muitos cirurgiões, tal conduta pode ser justificada pela falta de um procedimento operatório padrão para o tratamento das hérnias ve ntrais. Em decorrência da 22 tensão na ferida causada pela técnica de Mayo, alguns autores recomendam a sutura primária, borda com borda, dos defeitos aponeuróticos pequenos. Nas hérnias grandes, especialmente se houver tensão excessiva com o fechamento primário do defeito, recomenda-se o uso de material protético com a finalidade de criar um reparo livre de tensão. O reparo da hérnia epigástrica com uso de material protético tem sido indicado com maior freqüência, fundamentado pelos bons resultados obtidos nas herniorrafias inguinais. Na intervenção operatória, enfatiza-se como cuidado importante que o reparo com malha seja completamente livre de tensão. Os reparos com próteses são diferenciados pela técnica, pelo tipo de material e pela posição da malha. As várias técnicas relatadas com o uso de material protético incluem a colocação de malhas nos planos pré-peritoneal ou intraperitoneal; o reforço duplo com a malha PHS; e a obliteração do anel herniário com o tampão auto-expansível mesh plug. Acompanhamento pós-operatório. As complicações pós-operatórias (seromas, hemorragias, infecção) são mínimas nas herniorrafias epigástricas. HÉRNIA UMBILICAL Introdução A hérnial umbilical é a protrusão que ocorre através de um defeito aponeurótico na cicatriz umbilical. A hérnia umbilical é muito comum. Estima-se que cerca de 10% de 23 todas as crianças nascem com uma hérnia umbilical. A incidência é particularmente alta em crianças negras, com índices oito vezes maior do que em neonatos brancos. Além disso, a incidência de hérnia umbilical está aumentada em associação com certas doenças, tais como hipotireoidismo congênito, síndrome de Down, síndrome de Freeman-Sheldon, síndrome de Beckwith-Wiedemann, síndrome de Hunter-Hurler, osteogêneses imperfe ita e síndrome de Ehlers-Danlos. Em adultos, as hérnias umbilicais representam cerca de 6% das hérnias da parede abdominal. Em adultos, a hérnia umbilical é mais freqüente em mulheres e ocorre mais comumente na quinta e sexta décadas de vida. Histórico Em termos históricos, etmologicamente onphalos era a pedra central do templo de Apolo em Delfos, e esse termo foi utilizado para designar o ponto central de um recém nascido de onde saía o cordão umbilical. Hipócrates utilizou o termo grego hernios, para descrever as protrusões (hérnias) abdominais, e o papiro de Ebers, de aproximadamente 1500 AC, já detalhava o uso de fundas de proteção nos portadores de herniações. Aspectos morfológicos e fisiológicos O umbigo é formado pelo anel umbilical, um orifício na linha alba através do qual os vasos umbilicais do feto passam para o cordão umbilical, em direção à placenta. O anel umbilical é delimitado por quatro bordas: a fáscia umbilical posteriormente; a linha alba anteriormente; e lateralmente as bordas mediais das duas bainhas do músculo reto abdominal. A evolução natural dos defeitos aponeuróticos em crianças é fechar espontaneamente no decorrer dos primeiros 4 a 5 anos de idade. O anel umbilical diminui progressivamente de tamanho e evolui finalmente com o fechamento do anel. Os defe itos com diâmetros 24 menores do que 1 cm fecham espontaneamente em 95% dos casos, antes dos cinco anos de idade. No entanto, um anel umbilical com diâmetro maior do que 1,5 cm raramente fecha espontaneamente. Em contraste com as hérnias de crianças, as hérnias umbilicais de adultos não tendem ao fechamento espontâneo. O omento é o conteúdo mais freqüente das hérnias umbilicais, mas pode ser observado parte do cólon transverso ou intestino delgado. Etiofisiopatologia De acordo com o tempo real de ocorrência na vida, a hérnia umbilical é classificada em infantil ou adulta. A hérnia umbilical infantil aparece dentro de poucos dias ou semanas após a queda do cordão umbilical e é coberta por pele verdadeira. O aumento do tamanho do defeito é incomum. Apesar dos defeitos das hérnias infantis permanecerem pequeno s, o estrangulamento é raro. A hérnia umbilical adulta aparece dentro de um período remoto do fechamento do anel umbilical. Portanto, as hérnias adultas não resultam da persistência de hérnias infantis, mas, em quase 90% dos casos, por defeitos adquiridos por enfraquecimento gradual do tecido cicatricial que fecha o anel umbilical, relacionado com o aumento da pressão intraabdominal. As situações de aumento da pressão intra-abdominal incluem a multiparidade, a obesidade, a tosse crônica, o trabalho com grande esforço físico, a ascite, a diálise peritoneal prolongada e os grandes tumores intraperitoneais. Em pacientes cirróticos com ascite, a herniação umbilical ocorre em 20% dos pacientes, em função do aumento da pressão intra-abdominal, da fraqueza da parede abdominal pelo mau estado de nutrição e do alargamento do anel umbilical por dilatação da veia umbilical em pacientes com hipertensão porta. Diferentemente das hérnias infantis, o estrangulamento é freqüe nte nas hérnias umbilicais adultas. 25 Askar, em 1984, observou que tanto as hérnias umbilicais, paraumbilicais como as epigástricas são mais comuns naqueles pacientes que apresentam decussação aponeurótica única da linha alba, quando comparados com os pacientes normais que apresentam decussação tripla. Propedêutica pré -operatória O diagnóstico é geralmente feito pelo exame clínico, sem maiores dificuldades. A manifestação usual é a observação de um abaulamento na cicatriz umbilical, usualmente assintomático, mas que pode estar associado a desconforto ou dor. A hérnia umbilical infantil, em geral, manifesta-se como uma protrusão arredondada, pequena, comumente assintomática, facilmente redutível e que torna mais proeminente quando a criança chora ou tosse. Ao exame físico, a palpação de um anel aponeurótico e de um saco herniário facilmente redutível na cicatriz umbilical sela o diagnóstico. Em pacientes obesos, o diagnóstico pode não ser tão aparente, especialmente quando o orifício herniário é pequeno. O encarceramento, o estrangulamento e a evisceração são complicações relatadas em cerca de 5% dos pacientes com hérnias umbilicais. Em pacientes cirróticos com ascite volumosa, a distensão acentuada do saco herniário pode causar ulceração, necrose e ruptura da pele sobre a hérnia, com formação de trajeto fistuloso, drenagem de líquido ascítico e peritonite. Nas hérnias encarceradas, o diagnóstico diferencial deve ser feito com nódulo metastático umbilical de câncer gástrico (s inal de irmã Maria José), granuloma umbilical e cistos de úraco ou ônfalomesentérico. Em casos excepciona is ou atípicos, a US, a TC ou a ressonância magnética são necessárias como medidas diagnósticas auxiliares. 26 Condutas operatórias: indicações, técnicas e táticas. Nas crianças, a maioria dos cirurgiões recomenda a intervençaõ cirúrgica eletiva das hérnias umbilicais que não fecham espontaneamente por volta dos 4 ou 5 anos de idade. A intervenção operatória deve ser antecipada nas hérnias sintomáticas, muito grandes ou que evoluem com aume nto progressivo do anel herniário. Em adultos, cuja maioria das hérnias é adquirida, as indicações cirúrgicas e a técnica operatória mais apropriada ainda são objetos de controvérsias. Herniações pequenas, assintomáticas ou não percebidas pelos pacientes não necessitam tratamento operatório. No entanto, hérnias volumosas, sintomáticas e encarceradas necessitam de tratamento cirúrgico. Em pacientes cirróticos com ascite volumosa, a herniorrafia é indicada na presença de distensão e adelgaçamento da pele sobre a hérnia, com base no risco de ruptura e de desenvolvimento de peritonite. A cirrose e a ascite não devem ser fatores desencorajadores do reparo, mas medidas terapêuticas compensatórias da ascite significativa e dos distúrbios nutricionais devem ser instituídas antes da intervenção operatória, para reduzir a morbidade e a recorrência. O reparo do defeito aponeurótico na herniorrafia umbilical é comumente feito através de uma incisão transumbilical ou infra-umbilical. A incisão transumbilical, apesar de ser mais trabalhosa, oferece um excelente resultado estético. Dentre as técnicas mais utilizadas temos a clássica operação de Mayo, o reparo com malha de prolene por via aberta e o reparo com malha PHS. Na operação de Mayo, cuja técnica já foi anteriormente descrita, o aumento de tensão na ferida operatória resultante da imbricação aponeurótica é considerado o fator predisponente da recorrência. Em hérniações pequenas, o fechamento linear transverso do defeito aponeurótico, por simples aproximação das bordas, utilizando fio inabsorvível resistente, é considerada suficiente. Hérnias com orifícios maiores de 4 centímetros devem ser fechados com malha de polipropileno, porque há evidências de 27 menores índices de recorrência. Os índices de recorrências são maiores após o reparo por fechamento primário (11%), quando comparados com o reparo com malhas de polipropileno (1%). As técnicas relatadas com o uso de material protético são semelhantes aos reparos anteriormente descritos para a hérnia epigástrica. As malhas são colocadas também nos planos intraperitoneal e pré-peritoneal. A malha de prolene é convenientemente interposta entre o peritônio e a face posterior da bainha do reto abdominal, em decorrência do risco de erosão intestinal. O orifício herniário pode ser fechado sobre a malha desde que não cause aumento de tensão no local da sutura. A malha de prolene dupla PHS é também aplicada como elemento de reforço na herniorrafia umbilical, por propiciar o reforço protético tanto das bainhas posteriores como das bainhas anteriores dos músculos retos abdominais (Figura 2). Há relato de que a malha dupla PHS resultaria em menor dor pósoperatória, menor tempo de internação e menor tempo de cirurgia, quando comparado ao reparo simples com malha de prolene. Outra opção é a obliteração do anel herniário com a malha em forma de tampão auto-expansível “mesh plug”. O reparo da hérnia umbilical, por via laparoscópica, foi considerado uma alternativa segura e efetiva, além das vantagens no que diz respeito à dor pós-operatória, tempo de internação hospitalar e morbidade resultante dos procedimentos. A abordagem laparoscópica tem sido reservada para as hérnias grandes, maiores do que 3 cm, e para as hérnias recorrentes. CONSIDERAÇÕES FINAIS O reparo das hérnias da parede abdominal é ainda um desafio para os cirurgiões. Nas hérnias epigástricas e umbilicais, embora sejam freqüentes e não exijam procedimentos de 28 reparos complexos, não se observa, até o presente, um consenso sobre a melhor abordagem operatória. Reconhece-se a necessidade de diretrizes baseadas em melhores evidências que delineiem sobre quando se indica o fechamento primário ou quando é essencial o uso do material protético. As hérnias de Spieghel e as hérnias lombares apresentam peculiaridades que dificultam o diagnóstico e a aquisição de experiência clínica, em função da relativa raridade e da localização em regiões anatômicas não usuais. Outro fator desafiador é a redução das taxas de recorrência após o tratamento cirúrgico das hérnias da parede abdominal. Como a recorrência pós-operatória é comum, a tendência atual tem sido direcionada pela substituição do fechamento primário do defeito herniário pelo reparo livre de tensão, com o uso de material protético. À semelhança das hérnias inguinais, o uso de malhas protéticas no reparo das hérnias ventrais e lombares tem sido associado com resultados promissores. Diversos autores publicaram resultados de evidente redução das taxas de recorrência. Nas últimas décadas, o reparo das hérnias da parede abdominal, por via laparoscópica, tem se tornado uma opção segura e efetiva, com vantagens em comparação com a via aberta, tais como redução da dor pós-operatória, da permanência hospitalar, da necessidade de analgésicos e das complicações de ferida. Todavia, nas hérnias ventrais e nas hérnias lombares, a abordagem laparoscópica não atingiu o grau de definição que está sendo alcançada no reparo das hérnias inguinais. Literatura Recomendada 1. Askar OM. Aponeurotic hernias. Recent observations upon paraumbilical and epigastric hernias. Surg Clin North Am. 1984; 64: 315-333. 29 2. Arroyo A, Garcia P, Perez F et al. Randomized clinical trial comparing suture and mesh repair of umbilical hernia in adults. 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