descomplicabilizando: a morfologia e as marcas sociais

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PESQUISA LINGÜÍST ICA
–
Revista da Pós -Graduação em Lingüística
LIV – Departamento de Lingüística, Línguas Clássicas e Vernácula da UnB
DESCOMPLICABILIZANDO: A MORFOLOGIA E AS MARCAS SOCIAIS DE
SUA PRODUTIVIDADE∗
Maria Aparecida Curupaná da Rocha de Mello (UnB)
Resumo: Neste texto propõe-se debater a utilização de questões lingüísticas
como demarcadoras de posicionamento na escala social, bem como suas
expressões de manutenção nesta escala. Propõe-se também insurgir contra o
anticientificismo de textos que impõem sobre língua, os quais vêm
assinados por profissionais das mais diversas áreas diferentes da
Lingüística. Nesse percurso, o foco deste artigo está nas questões de ordem
morfológica, como a produtividade das regras, que torna possível a criação
de novas palavras na língua, notadamente com o sufixo causativo –izar,
trazendo à tona a discussão acerca da capacidade criativa do falante nativo e
a recursividade como articulador desta faculdade.
Palavras-chave: produtividade; regra de formação de palavra; preconceito
lingüístico.
Abstract: This text is written with the intention of discussing linguistic
issues to be used as indicators of position in the social scale and its
expressions of maintenance in that scale. Moreover, it is also intended to
rise against the anti-scientificism of texts dealing with the language of
authors that do not necessary have the level of proficiency and may often
belong to entirely different areas of knowledge. Thus, this article focuses on
morphological issues, such as the rules of productivity, which enables the
creation of new words in the language, namely the –ise causative suffix.
This brings up the discussion about the native speaker's creative capacity
and recursivity as the articulator of such faculty.
Key-words: productivity; word formation rules; language-related prejudice.
Diz a sabedoria popular que “de músico, médico e louco, todos nós temos um
pouco”. Considerando que a sabedoria popular manifesta-se na cultura de um povo,
então, a máxima acima representa uma verdade dentro do conjunto valores de uma
comunidade. Como indivíduo inserido na coletividade que incorpora o axioma acima,
entendo que o mesmo está inacabado, ou seja, falta ainda acrescentar que, de lingüistas,
também todos nós temos um pouco.
∗
Texto apresentado no Seminário de Pesquisa e Pós-Graduação, do Programa de Pós-Graduação em
Lingüística da UnB, em setembro de 2005. A primeira versão deste trabalho foi apresentada como
monografia para o curso de Variação Lingüística ministrado pelo professor Dr. Marcos Bagno em junho
de 2004.
Agradeço ao professor Dr. Hildo Honório do Couto pelas sugestões, críticas e, principalmente, pela
orientação amiga de todas as horas. Todas as inadequações e falhas neste trabalhos são de minha
responsabilidade.
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É comum ouvirmos pessoas, das mais variadas formações acadêmicas,
arbitrando em questões lingüísticas. Quase sempre com assertivas infundadas
cientificamente e repletas de preconceitos. Para esses “pseudolingüistas”, existe uma
única variedade lingüística. Esta, por sua vez, constitui, na desinformação desses juízes,
a “língua”. As outras variedades têm nomes depreciativos diversos, mas, para eles, não
são línguas. Interessante notar que, no imaginário dessas pessoas, somente elas possuem
a capacidade de domínio da língua. Ou, por outro lado, são elas as únicas detentoras da
competência lingüística. Quanto a nós, membros efetivos da massa popular, somos
diversos adjetivos desdenhosos, menos falantes competentes.
Nas relações sociais, a teia de diversidade se espraia para as variadas relações
comunitárias. Assim sendo, a estratificação e os modelos sociais são refletidos nos
julgamentos lingüísticos. A ideologia, definida como um princípio de normas, crenças e
valores sustentados por uma dada sociedade, tem importância vital na construção da
escala de valores lingüístico-social, quando da racionalização e amparo dos valores
ideológicos vigentes. Não é novidade que esses valores são impostos por um
pensamento oligárquico, cujas minorias (extremas minorias) do poder são impositoras
das normas da sociedade, como por exemplo, a moral, os padrões de beleza, de convívio
social etc, dentre estas normas, também a norma lingüística. Para a Sociologia da
Linguagem, é interessante entender como a edificação da escala social, marcada nos
moldes ideológicos, refletem (pré)conceitos lingüísticos. A este respeito, BAGNO
(2000, p.48 afirma que é“(...) impossível dissociar preconceito de ideologia. Talvez se
possa até arriscar ver na relação ideologia-preconceito uma hiperonímia”
Neste prisma, vemos que a sociedade legitima os valores ideológicos, mesmo
que estes valores sejam perniciosos ao grupo. No caso específico das questões
lingüísticas, o sentimento depreciativo dos usuários do português brasileiro é inerente
ao imaginário do falante. A idéia é comercializada nos diversos veículos de expressão:
na instituição escolar, nos periódicos de todas as formas e, conseqüentemente, no
próprio discurso do brasileiro, com assertivas do tipo: “o português é uma língua muito
difícil”, ”não sabemos mesmo falar o português” ou ainda pior “a português é a língua
mais difícil do mundo” 1 .
Considerando que a minha língua é marca de minha identidade cultural, o
pensamento da incapacidade de desempenhar nosso papel lingüístico-cultural na
sociedade é bastante constrangedor. Embaraçoso não só pela negação da pessoa do
falante como membro efetivo de sua sociedade, mas também pelo fato de que outros
indivíduos se julgam (ou se acham) mais capacitados que outros a impingir normas
descabidas, do ponto de vista lingüístico, mas repletas de soberba e presunção. Agravase o episódio por sabermos que esses sujeitos, em suas respectivas arrogâncias, não
possuem qualquer conhecimento científico ou acadêmico e, na atualização lingüística
do dia-a-dia, utilizam as mesmas variedades de uso que a maioria dos outros falantes de
sua comunidade. Com a diferença notória de ser, esse fato, totalmente desconhecido por
ele mesmo. Decorre disso que, o pseudolingüista se acha (ou se julga) falante apenas de
uma variedade lingüística: a padrão ou a norma culta. A esse respeito, COUTO (1991,
p.75) registra que
“Há no mínimo dois conceitos de norma lingüística. Segundo um deles, norma é o ‘como se
diz’. De acordo com o outro, norma é ‘como se deveria dizer’. (...) a norma que o sistema de
ensino (gramáticos, professores, escolas etc) tenta impor é a segunda, pelo simples fato de o
povo (mesmo culto) não falar nem escrever de acordo com o que ela prescreve. (...) se
1
A esse respeito, BAGNO ( 2001) em Preconceito lingüístico: o que é, como se faz , evidencia os
diversos mitos da ideologia popular em relação ao português brasileiro.
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levarmos em conta as diversas facetas da língua portuguesa no Brasil, verificaremos que, na
realidade, existem tantas normas quantas forem as modalidades lingüísticas dos
brasileiros”
(grifo nosso)
Vê-se, portanto que, a existência de diferentes níveis de linguagem é fato
desconhecido para os curiosos (e palpiteiros) da língua. É de se supor que estes
“inocentes lingüistas“ usam apenas a variedade dita “culta” em todos os contextos
discursivos a que são submetidos nas interações comunicativas do dia-a-dia. Por
exemplo, para se discutir a atuação da “zaga” no jogo Brasil e Argentina, para fazer um
galanteio fogoso à namorada e para um discurso solene é utilizada apenas um tipo de
linguagem, aquela chamada de “culta”. Sem diferenças formais. BAGNO (2001, p.108)
afirma que o termo “norma culta” é usado na tradição gramatical como uma variedade
de língua que efetivamente não é utilizada pelas pessoas cultas do Brasil. Ele está
associado a uma idealização do português europeu. Como sabemos, muito distante da
nossa realidade, tanto do ponto de vista lingüístico, quanto do lado cultural. Vale
salientar que, a despeito de ambos os países falarem uma língua com nome de
português, formam comunidades de fala totalmente distintas. Ou ainda, para usar as
palavras de Chico Buarque, “ há léguas a nos separar, tanto mar, tanto mar...”
Quando alguns pseudolingüistas se arvoram em dizer bobagens que marcam
seus (pré)conceitos e atitudes egocêntricas não fazem senão um papel petulante e de
extrema arrogância. Mas há ainda aqueles que vão além da soberba e atingem os limites
do disparate, documentando, por meio de publicações textuais, sua cegueira e estupidez
lingüística. Podemos citar um, dentre os inúmeros casos dispersos pela imprensa.
A revista Época do dia 25 de agosto de 2003 trouxe um texto reagindo sobre os
verbos terminados em –ilizar 2 com o título de: Complicabilizando, assinado pelo
jornalista e escritor Ricardo Freire. Desconsiderando as questões formais do texto, que é
bastante profissional, clara e concisa, mas pontuando somente aquelas referentes ao
conteúdo expostos pelo pseudolingüista, algumas questões devem ser analisadas e
consideradas.
Na Lingüística, a idéia de que a língua é um sistema que se articula na
criatividade dos falantes, é uma verdade. Considerando que esta criatividade é
sustentada pela competência e observável na produtividade, há movimentos
morfologicamente imprevisíveis. ARONOFF (1976) diz que “embora algumas coisas
sejam possíveis em morfologia, algumas são mais possíveis que outras”
Por exemplo: na língua temos padeiro (pão + -eiro), cuja regra se aciona
utilizando um nome substantivo concreto - pão e um sufixo –eiro, cuja carga semântica
denota aquele que cuida, produz ou trata do significado do substantivo, no caso, do pão.
Da mesma forma temos: sapateiro, quitandeiro, açougueiro etc. Nada, do ponto de vista
morfológico, está impedindo que também tenhamos o xeroqueiro 3 (xerox + eiro).
A essa mobilidade morfológica de produção de novos itens lexicais a partir
dos já existentes na língua chamamos de produtividade. Um dado item é produtivo na
língua quando cria, ou gera, novos itens do mesmo tipo, em outras palavras, um certo
morfema é produtivo porque o falante o utiliza para gerar novas palavras a partir de
outro lexema.
2
Na verdade, o que o autor julga ser o sufixo –ilizar, é na verdade o sufixo –izar, conforme veremos
adiante.
3
Essas formas morfologicamente perfeitas e que não há um equivalente ocupando o seu espaço
semântico na língua , ou melhor, bloqueando sua geração no léxico, são chamadas por Rocha (1999) de
‘inércia morfológica”. Mas a idéia primeira foi proposta por Hale (1973), com a noção de formas
possíveis, mas não reais na língua, as quais traziam um traço de [- inserção lexical].
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A morfologia, por sua vez, trata das partes que compõem as palavras para
desvendar como acontecem as articulações a partir dos itens lexicais disponíveis para o
falante. É certo que ela trata também das regras que se acionam para formação de novas
palavras. Como parte integrante do chamado “núcleo duro” da lingüística, juntamente
com a sintaxe, a semântica e a fonologia, a morfologia está se dispondo cientificamente
da observação e entendimento entre os níveis lingüísticos que afloram no componente
morfológico. Por outro lado, somente os fatos lingüísticos a interessam, portanto, ser ou
não dicionarizado, ou mesmo aceita por gramáticos ou pseudolingüistas não são objetos
de sua preocupação.
No caso do -izar, que é bastante produtivo no momento atual, aponta para um
fenômeno um tanto interessante na língua. Ao contrário do que pensam alguns
pseudolingüistas, as formações com –bilizar são antigas no português. Algumas datam
do séc. XVII 4, como é o caso de insensibilizar, de 1614. Há várias formas do séc. XIX,
como: esterilizar, de 1563, civilizar, de 1767, mobilizar, de 1858, impassibilizar, de
1936, impermeabilizar, de 1873 e sociabilizar e 1881. Há também formas novas como
disponibilizar que datam de 1990 e algumas do começo do século passado, como
flexibilizar, de 1913.
No texto Complicabilizando, há, logo nos primeiros parágrafos a rejeição de
algumas formas terminadas em –ilizar e -bilizar. Mais à frente, o autor aponta:
“Sim, estou me associando à campanha nacional contra os verbos que acabam em ‘ilizar’. Se
nada for feito, daqui a pouco eles serão mais numerosos do que os terminados simplesmente
em ‘ar’”
Algumas considerações são pertinentes para entendimento lingüístico desta
passagem. Em primeiro lugar, o que o autor julga terminado em –ilizar, são formas
derivadas por afixação do sufixo –izar. Portanto, o “il” do (il)izar e o “bil” –(bil)izar
pertencem ao lexema, ou à palavra-base. A depender das formas adjetivais ou
substantivas que foram acionadas pela RFP (regra de formação da palavra) resultará em
uma forma terminada em –ilizar ou –bilizar.
As formas em –izar cristalizou-se com o traço semântico dos verbos causativos
ou factivos 5 , que são acionados a partir do sufixo –izar. As mesmas formações
encontradas em: memorizar, mecanizar, modernizar etc. Em formações como estas, a
noção do traço causativo é ativado mediante o sufixo –izar – equivalente ao –ise
(memorise) do inglês. Segundo COUTO (comunicação pessoal) também aparece como
–iser no francês, -izzare, no italiano e –isiern, no alemão, este, indo do francês para o
alemão. Assim, nas formações com processos derivacionais com os afixos acima, o
resultado lexical será de um verbo causativo ou factivo, com propriedades semânticas
próprias do adjetivo, estas, por sua vez, causadas no verbo. Portanto, de disponível Æ
disponibilizar - causar a disposição de algo. Em outras palavras, tornar algo disponível.
Por exemplo: a água já está disponível ao consumo – convêm disponibilizar a água
para o consumo.
Outro argumento completamente desconhecido pelos “pseudolingüistas” em
defesa da RFP X-izar é que, no acionamento da regra que gera uma determinada palavra
para o léxico da língua, há o monitoramento de regras que se encontram no léxico do
falante, juntamente com os itens lexicais a serem utilizados na ativação da regra. Em
outros termos, para o maior entendimento dos pseudoligüistas, há “ingredientes”
lexicais, juntamente com “receitas” para formar outros itens lexicais a partir dos
ingredientes já conhecidos pelo falante. Considerando os nossos novos itens lexicais em
4
5
Fonte de datação: Houaiss eletrônico
Verbos que o processo faz do objeto agente da ação dominada do sujeito.
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–bilizar, como estabilizar, solubilizar, disponibilizar etc, a regra é acionada a partir das
formas adjetivais que já se encontram na língua - e no léxico do falante – formas
derivadas em –vel. Lembrando sempre que o –vel pertence à palavra-base da RFP, ou
seja, pertence ao semantema. Como a língua (e seus falantes) é sistemática e
coerentemente artística, o –vel retoma a sua forma latina em –bil diante do sufixo –
dade. Assim temos na língua: amável Æ amabilidade ou aceitável Æ aceitabilidade
etc. Seguindo o mesmo curso, o -vel também vira –bil diante de –izar, como: disponível
Æ disponibilizar, imóvel Æ imobilizar. Esta forma latina foi a configuração primeira
do –vel no português, ou seja, o seu “modelo” de entrada no português.
“Do latim –bílis, que significa algo ‘passível de’ ou ‘agente de’ processo indicado pelo
radical verbal, o sufixo -bil chega ao português como -vel. Na passagem para o português
há vários casos de /b/ Æ /v/, como brabus Æ bravo ou caballus Æ cavalo. Assim, pela
mesma regra tem-se -bil Æ -vel. Segundo o dicionário eletrônico Houaiss, em Camões,
havia a variação -bil ~ -vel (possíbil, imóbil; notável, memoráveis)”
(SALLES & MELLO, 2004)
Podemos também argumentar que a produtividade de um item lexical segue
momentos de maior ou menor produtividade, ou seja, uma dada RFP pode ser produtiva
em um momento e deixar de ser em outro momento. No português, por exemplo, os
sufixos –estre e –este, bem como a sua RFP são considerados improdutivos, temos
terra Æ terrestre, seis meses ´ semestre e céu Æ celeste, no entanto, nada de novo tem
sido gerado na língua a partir do sufixo –este ou -estre . Por outro lado, o sufixo –izar
está em um momento produtivo no português. Novos itens lexicais vêm sendo
agregados ao léxico com o acionamento da RFP com o sufixo –izar, cuja regra é a
seguinte: de uma Substantivo ou Adjetivo, obtém-se um Verbo com o sufixo –izar,
representada das seguintes formas:
S Æ V –izar ou A Æ V –izar
A produção de verbos na língua também segue um curso que mantém a
produtividade para os verbos da 1ª conjugação. O que significa dizer que as novas
formas verbais produzidas no português são terminadas em –ar. Considerando o léxico
como um componente aberto nos estudos lingüísticos, a produtividade das palavras das
classes maiores (substantivos, verbos, adjetivos e advérbios) pode acontecer
corriqueiramente na língua, uma vez que o falante é dotado de criatividade e a
morfologia torna possível a criação de novas palavras a partir das RFPs.
Voltando a atenção para o Complicabilizando, vemos que é inoportuna e
inadmissível a seguinte afirmação:
"Se nada for feito, daqui a pouco eles (os verbos terminados em –ilizar) serão mais
numerosos do que os terminados simplesmente em ‘ar’”.
(grifos nossos)
Inadmissível pelo fato de os verbos terminados em –ilizar, -bilizar, (na verdade os
verbos acionados a partir da RFP com o sufixo –izar), serem verbos da primeira
conjugação, portanto, todos pertencentes ao mesmo conjunto dos verbos terminados em
–ar. Sendo assim, eles podem até aumentar o número dos verbos terminados em –ar,
mas não podem ser mais numerosos que eles mesmos. Talvez o nosso pseudolingüista,
que notadamente não consegue segmentar as palavras em morfemas distintos, não tenha
notado que o –ar é fracionado morfologicamente como “a” - vogal temática indicativa
da 1ª conjugação, e “r” - marca desinencial do infinitivo. Da mesma forma que ele não
notou a recorrência, tampouco a fronteira de morfemas do –izar, nas formas -ilizar e –
bilizar.
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Outro fato morfológico desconhecido pelo autor o chamado “bloqueio”, quando uma
forma pronta na língua, bloqueia a existência de outra forma nova. Por exemplo, se
temos na língua a forma viajante, a forma *viajador é bloqueada por viajante, por
questões pragmáticas, uma vez que, do ponto de vista morfológico, há condições de
produtividade para *viajador. Quando chegou para a nossa comunidade lingüística a
parafernália digital com computadores e sistemas para o seu uso, algumas formas
vieram para o léxico junto com a tecnologia 6 . Temos então, a forma “reinicializar”,
forma esta que não foi bloqueada pela já corrente na língua “reiniciar”. O fato do
bloqueio não ter sido acionado deve-se ao fato de reinicializar ser utilizado somente na
informática, ou seja, ele traz traços semântico e pragmático diferentes do “reiniciar”,
cuja forma de uso é mais restrita. Também, quanto a essa questão, há na lingüística a
idéia semântica de que duas palavras são absolutamente sinônimas “se, e somente se,
tiverem mesma distribuição e forem completamente sinônimas em todos os seus
significados e contextos de ocorrência” (LYONS, 1987, p. 143). Veja que não
reinicializamos um namoro, mas sim o reiniciamos, por outro lado, só reinicializamos o
sistema da máquina em um contexto informático. Portanto, decididamente, reiniciar não
é a mesma coisa que reinicializar.
O último parágrafo do Complicabilizando é realmente uma pérola lingüística:
“Precisamos reparabilizar nessas palavras que o pessoal inventabiliza só para
complicabilizar. Caso contrário, daqui a pouco nossos filhos vão pensabilizar que o certo é
ficar se expressabilizando dessa maneira. Já posso até ouvir as reclamações: "Você não vai
me impedibilizar de falabilizar do jeito que eu bem quilibiliser". Problema seu. Me inclua
(grifos nossos)
fora dessa”.
Em primeiro lugar, mais uma vez o autor julga as formas terminadas em
–bilizar como a mesma em –ilizar, não segmentando, desta forma, o sufixo –izar nestas
produções. Em segundo lugar, as formas *reparabilizar, *inventabilizar,
*complicabilizar, *expressabilizar, *impedibilizar, *falabilizar e *quilibiliser são
agramaticais. O que o nosso “lingüista” não sabe é que os nossos filhos só criam e
produzem formas perfeitamente gramaticais para língua. Quando a criança está em um
processo de aquisição da língua, ela é capaz de produzir formas nunca ouvidas, ela
utiliza os dados expostos em sua cadeia de interação lingüística, das regularidades e das
regras que foram internalizadas. Formas como: - “se você quer que eu seje, eu sejo” 7 .
Nota-se que, na produção da conjugação verbal, ela está de acordo com o paradigma dos
verbos da 1ª conjugação, se é para considerarmos algo “errado”, então que seja (ou seje)
a tremenda irregularidade do verbo ser, cujos radicais não são nem mesmo “parentes”
fonéticos (eu sou, eu fui, ele é). Para a criança, a gramaticalidade é um parâmetro
bastante sério na aquisição da língua. Ela não produziria formas como aquelas citadas
pelo autor pelo simples fato de que elas não têm, no léxico, a forma adjetival em –vel
para o acionamento da RFP, o –bil que está no -bilizar (suposto afixo do
pseudolingüista), é sempre parte integrante da palavra-base adjetiva terminada em –vel.
Especificamente sobre o *reaparabilizar e o *pensabilizar, segue-se ainda que os
verbos reparar e pensar, são verbos transitivos indiretos, cuja transitividade não permite
a adjetivação com o –vel, uma vez que essa regra impõe restrições sintáticas
6
Nota-se que as formas verbais novas, que se atualizaram a partir do advento da informática, são da 1ª
conjugação.
7
O uso da analogia explica a ocorrência de ‘seje” e “esteje”. Uma vez que, a irregularidade é fortemente
marcado na conjugação dos verbos ser e estar, o falante (ou a criança) supões ser este um verbo regular da
1ª conjugação, aliás, a preferida da língua. Assim, a forma infinitiva do verbo seria ‘sejar” e ‘estejar”.
Dentro de tal postulação, acaba-se a irregularidade e as ocorrências das pessoas e tempos passam a ser
regulares.
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selecionando os verbos transitivos diretos para o seu acionamento. Portanto, é
lingüisticamente impraticável, mesmo para uma criança no processo de aquisição de
língua, a ocorrência das palavras como “*reaparabilizar” ou “*pensabilizar”,
exemplificadas pelo autor. Bem, pelo menos em crianças (ou pessoas) dotadas de
condições cognitivas ditas “normais”.
Há, no percurso do texto, o argumento de que é preferível o uso de um sintagma
ao uso de formas em –izar:
“(...) se você tornar disponível, quem sabe, eu aceite. Mas, se você insistir em
disponibilizar, nada feito. (...) ...eu monto, eu realizo, eu aplico, eu ponho em operação.
Se você pedir com jeitinho, eu até implemento. Mas, operacionalizar, jamais.(...).
(grifos nossos)
Fato bastante conhecido no universo da Lingüística é a relação entre a percepção
e a disponibilidade de uma palavra específica no léxico, uma vez que esta se encontra
imediatamente disponível ao processamento do falante. Diferentemente de quando o
mesmo falante tem de lançar mão de processamentos sintáticos para depreensão do
significado. Por exemplo, é mais rápida a codificação da palavra “relógio” do que do
sintagma “aparelho para marcar o tempo”. Essa conversa figura no palco das discussões
lingüísticas desde a década de 50, com a chamada hipótese Sapir-Whorf 8 , cuja idéia está
fundamentada no determinismo e na relatividade lingüística. Segundo os defensores da
Sapir-Whorf, a linguagem determina o pensamento e a diversidade das estruturas das
línguas é ilimitada. Um dos dados a favor da existência de uma versão mais fraca da
hipótese é o enquadramento dos falantes no exemplo acima, ou seja, a afinidade direta
entre a intuição e a disposição imediata de uma palavra na língua.
A publicidade conhece e aproveita as noções de disponibilidade léxica e
percepção. Muitas formas de merchandising acontecem com o uso, em suas respectivas
marcas, da redução nas palavras-bases de formações compostas e da criação de uma só
palavra. Este mecanismo morfológico é conhecido como a acrossemia. Por exemplo:
Brasil + Temperatura Æ Brastemp, Nestlé + Cacau Æ Nescau, Petróleo + Brasileiro Æ
Petrobrás ou ainda Companhia + Industrial + de Conservas + Alimentícias Æ Cica.
Também há a utilização da braquessemia (redução fonológica da palavra) para maior e
mais rápido processamento do público consumidor, como em Fantasia Æ Fanta.
Vê-se, portanto, que o nosso “lingüista” encontra-se em uma avenida de mão
única, sozinho em uma direção, mas certo de que todos estão errados.
Voltando à versão popular do dito de que “de médico, músico, louco e lingüista
todos nós temos um pouco”, as conseqüências pessoais e sociais são diferentes em cada
uma das possibilidades. Quando alguém se lança a inventar um verso melódico sem
conhecimento musical, estará, quando muito, afetando somente os ouvidos e a crítica
musical de seu público. Todos estamos sujeitos a momentos de loucura, ou seja, às
vezes, ser louco é até salutar, a depender do momento e do grau de insanidade. Mas,
esse grau pode resultar em conseqüências graves. Da mesma forma, quando nos
arrolamos a doutores da medicina, o alcance e as conseqüências podem refletir nas
pessoas as quais julgamos nossos pacientes. Se o paciente somos nós, podemos então
arcar com as conseqüências das nossas alienações. O mais grave é quando as seqüelas
acontecem com os outros. Da mesma forma, quando um pseudolingüista se arvora a
destilar seus preconceitos sociais e a marcar sua arrogância desmedida usando a química
lingüística sem conhecimento, as implicações são de ordem social. As taxações de
ignorante, de burro, de estúpido, de bronco etc valem-se, por um lado, para marcar
posição superior, na gradação social daquele que supostamente “sabe” a língua em
contrapartida aos pobres ignaros que não a possuem. A esses, o mundo é mais cruel e as
8
Conferir LIONS (1987)
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manifestações dos pseudolingüistas legitimam as estratificações na escala estabelecendo
a manutenção do poder. Ele, o pseudolingüista, não está senão tentando sustentar-se em
uma posição que o mantém no topo da escala, com o agravante da inescrupulosidade,
uma vez que usa os ocupantes da escala inferior como sustentáculos. Assim,
Complicabilizando é apenas o reflexo do cenário social de uma sociedade oligárquica e
injusta.
Referências Bibliográficas
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