BEM JURÍDICO: SIGNIFICADO, RELEVÂNCIA E VALOR COM A DOGMÁTICA DO DIREITO PENAL Daiane Zappe Viana1 INTRODUÇÃO O presente trabalho aprecia a constitucionalização do bem jurídico, e sua concepção junto ao Direito Penal, que visa à proteção de valores jurídicos radicados na Constituição. Assim, o presente tema é extremamente importante, eis que o significado de bens jurí­dicos está implí­cita ou explicitamente descrito na Constituição. Nesse contexto, a atividade legiferante, ao determiná-los e valorizálos, deverá o fazer, tendo por base vinculativa os preceitos constitucionais interligados com o Direito Penal. A definição das funções do Direito Penal modernamente por unanimidade doutrinária é a proteção de bens jurídicos. Assim, a importância do bem jurídico é captada sob dois enfoques: o político-criminal, que serve para determinar os rumos do Direito Penal, e o dogmático, para aprender a identificar os objetos concretos da tutela penal. O bem jurídico-penal é o verdadeiro valor que se procura proteger por meio do Direito Penal. Ou seja, o bem jurídico é um valor da ordem social juridicamente protegido. Em razão de o Direito Penal proteger os bens jurídicos mais importantes contra as formas mais graves de agressão, tem-se, que, em geral, são eles garantidos já por terem encontrado reconhecimento constitucional, ainda que indiretamente. Impossível seria que o Direito Penal outorgasse proteção a bens jurídicos incompatíveis com os valores superiores tutelados constitucionalmente, ou com o princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, o fundamento primeiro do injusto material deita suas raízes na Constituição, sendo o bem jurídico o fator limitador do legislador penal. 1 Mestra em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra – Portugal, coordenadora do Curso de Direito da FCJ Unime Lauro de Freitas-BA, professora de Direito Constitucional – Criminologia e Direito Penal. 50 Bem Jurídico: significado, relevância e valor com a dogmática do Direito Penal A ideia de bem jurídico é de extrema relevância, pois a moderna ­ciência penal não pode prescindir de uma base empírica nem de um vínculo com a realidade que lhe propicia a noção de valor, pois, sem a presença de um bem jurídico de proteção prevista no preceito punitivo, o próprio Direito Penal, além de resultar materialmente injusto e éticosocialmente intolerável, careceria de sentido como tal ordem de direito. A presente pesquisa se torna extremamente atual, pois em um momento em que se projeta uma reforma da parte especial do Código Penal brasileiro, e é a função político-criminal do bem jurídico um dos critérios principais da individualização e delimitação da matéria destinada a ser objeto da tutela penal. Justifica, por fim, a eleição do tema, a ausência de precisão no conceito de bem jurídico, e ainda a divergência doutrinária existente – se o bem jurídico é criado pelo legislador ou encontrado pela norma. SÍNTESE EVOLUTIVA Com o movimento intelectual denominado Iluminismo, e as profundas modificações inseridas na cultura humana, nasce a ideia de que o Direito Penal protege certos bens e interesses da sociedade.2 Na nova ordem instituída pelo Iluminismo, a religião foi substituída pela razão e, como consequência, a própria organização social passou a decorrer de atos humanos e, portanto, racionais. Foi o racionalismo cartesiano que inspirou os mentores do movimento em questão, cuja essência pode ser resumida na preocupação de fundar uma ordem social em cujo centro figurasse o ser humano, superando a excessiva deificação das instituições, própria da Idade Média, em que o homem tinha um lugar secundário e onde o mundo material e também o social eram concebidos como 2 De acordo com o liceu de Luiz Luisi, o Iluminismo pode ser identificado a partir de duas teorias básicas: o jusnaturalismo e o contratualismo. A primeira impõe que […] “o direito natural seja afastado de qualquer compromisso teísta…”, desenvolvendo a noção de que “[…] o homem, por ser tal, em virtude de dados que lhe são inerentes, é visto como um fim em si mesmo, e titular de uma série de direitos”. Já a teoria do contrato social … “deixa de considerar o pacto como um fato histórico, para encará-lo como um postulado dialético, ou seja, uma hipótese meramente reguladora. A sociedade política, isto é, o Estado, não surge efetivamente de um ajuste real, mas deve ser estruturado e organizado como se tivesse sua origem em um contrato firmado por seus membros”. (LUISI, Luiz. Filosofia do Direito. Porto Alegre: Editora Sérgio Antônio Fabris, 1993, p. 128). Mais do que uma corrente de ideias, o Iluminismo vem a ser uma atitude cultural e espiritual de grande parte da sociedade da época, cujo objetivo é a difusão do uso da razão para dirigir o progresso da vida em todos os aspectos. É, por assim dizer, produto do embate de duas linhas bem distintas: o racionalismo cartesiano e o empirismo inglês. Daiane Zappe Viana 51 uma realidade objetiva, regida por leis e princípios determinados, estando o homem inserido neste contexto e regido pelas mesmas leis, sendo apenas um dado do todo. No campo do Direito, desenvolveu-se a célebre Escola Clássica do Direito Natural,3 no interior da qual nasceu e se desenvolveu o Jusnaturalismo na sua versão moderna, que fez do indivíduo a própria razão de ser do mundo, deferindo-lhe a condição de detentor de direitos inatos. Isso implicou radical mudança de postura: em vez de ser um simples e pouco relevante elemento no mundo natural e social, o homem passou a ter uma função ativa na reformulação e construção da realidade. Numa palavra, ele passou a ser o construtor de sua história.4 Conclui-se portanto que o Estado existe em função do homem e somente se legitima quando a isso responder. A forma de expressá-lo é afirmar que todo homem é detentor do direitos subjetivos ou inatos, ou seja, independentemente de sua condição social ou pessoal, sem depender igualmente do beneplácito do soberano, é o homem o sujeito de direitos, devendo a ordem jurídica, mormente o Estado, respeito a estes direitos subjetivos, sob pena de ilegitimidade.5 Dentre estas prerrogativas, pontificavam a liberdade geral, a igualdade de todos perante a lei e a propriedade privada, entre outros, que se consolidam como direito natural. Especificadamente no Direito Penal, até o século XVII se caracterizava por um profundo atraso e pela crueldade das sanções, levando ao extremo a obsessão da vingança pública. A grande fonte de renovação penal se deu no fim do século XVIII, através da obra de Beccaria6, Dos Delitos e Das Penas, combatendo a má 3 Fala-se de uma “Escola de Direito Natural”, nos séculos XVII e XVIII, porque todos os autores deste período - Grócio, Locke, Pufendorf, Voltaiere, Montesquieu, Rousseau, entre outros - têm como base de suas formulações o axioma de que o homem, por ser tal, é expoente de direitos inatos. É em torno deste conceito que são formuladas as teses que irão compor o assim chamado Jusnaturalismo Moderno, que ressalta o aspecto subjetivo do direito natural, ou seja, os direitos inatos do indivíduo existem como decorrentes da condição humana, do que decorre a necessidade de seu respeito por parte da autoridade política. (Norberto Bobbio, in Dicionário de Política, verbete JUSNATURALISMO; editora UnB, Vol. I, p. 658.) 4 LUISI, Luiz. Direitos Humanos – Repercussões Penais…, p. 75. 5 “[…] No Jusnaturalismo moderno ressalta, fortemente, o aspecto subjetivo do direito natural, ou seja, os direitos inatos. […] É precisamente devido a esta característica que o Jusnaturalismo moderno, isto é, o dos séculos XVII e XVIII, molda profundamente as doutrinas políticas de tendência individualista e liberal, expondo, com firmeza, a necessidade de respeito, por parte da autoridade pública, daqueles que são declarados direitos inatos dos indivíduos”. (BOBBIO, Norberto, op. cit., p. 658). 6 CESARE BONESANA, MARQUÊS DE BECCARIA, nasceu em Milão no ano de 1738, e faleceu em 1794. Educado em Paris pelos Jesuítas, estudou literatura e matemática, e foi influenciado, 52 Bem Jurídico: significado, relevância e valor com a dogmática do Direito Penal sorte dos desgraçados que sofriam as cruezas de uma legislação retrógrada servida por métodos punitivos bárbaros. Luisi, em texto inserto na obra Os Princípios Constitucionais Penais, p. 116 e seguintes, analisa Beccaria e sua obra quanto a contribuição fornecida para a dogmática penal e política jurídica. No tocante à dogmática afirma que “…a lei penal foi por ele submetida a outro tipo de análise. Tratou de saber, no mérito, se era justa ou injusta”, tratando-se de uma “… postura valorativa. Atitude … de quem se preocupa, olhando para o futuro, de traçar as grandes diretrizes de uma legislação penal, inspirada no respeito à liberdade”, identificando nisso a missão precípua do Direito Penal moderno. Entretanto, é no campo da política jurídica em que se manifestou a grandeza da contribuição de Beccaria. De fato, “… foi um crítico do ‘jus conditum’, isto é, das leis e práticas penais de seu tempo, e um formulador de postulados inovadores, que vieram a se transformar em leis vigentes e incorporadas nos modernos Códigos Penais”. Sugestiva esta passagem: O princípio fundamental em que se alicerça a obra de Cesare Bonesana … é a inviolabilidade moral do homem, na sua concepção como pessoa e fim, e na ilegitimidade de seu uso, como meio e coisa. … Aliás, esta ideia, que é contribuição inestimável do cristianismo, só se afirmou no mundo moderno por obra dos iluministas. O homem, compreendido como ente moral inviolável, inclusive perante o Estado, a pessoa humana como um ‘prius’ face ao Estado, não poderia ter-se afirmado no clima intelectual e político da Contra-Reforma, e nem entre as fogueiras da Inquisição ou no império das monarquias absolutas. Somente com o advento do Iluminismo, é que o indivíduo passaria a ser entendido como uma realidade anterior ao Estado, que mesmo neste e integrando-o, conserva uma série de direitos originários, a que não renunciara e não podia renunciar. E, no concernente a esses direitos, que são intrínsecos ao homem, ao Estado não é deferido ignorá-los ou violá-los, mas sim respeitá-los e fazê-los respeitar. Portanto, lícito é afirmar que o Iluminismo faz do conceito do homem, como entidade moral inviolável, inclusive para o Estado, uma espécie de religião laica, apesar de seu irracionalismo religioso. profundamente, por autores como Montesquieu e Helvetius, voltando-se, posteriormente, ao estudo da filosofia, sendo um dos fundadores da sociedade literária em Milão, preocupada em divulgar na Itália os princípios da Filosofia Francesa. No mesmo sentido, participou da redação do jornal Il Caffè, entre 1764 e 1765. Daiane Zappe Viana 53 Portanto, é através de Beccaria que o Direito Penal foi inserido neste novo ordenamento jurídico referido, dotando-se de uma missão bem definida: a incumbência de proteger os direitos subjetivos, traduzindo a forma mais severa de preservá-los. Com efeito, o crime passa a ser visto como uma lesão a um direito subjetivo, decorrendo que a conduta criminosa não se dirige, necessariamente, contra algo do mundo real, podendo atingir uma faculdade jurídica decorrente do direito. Consoante esta concepção, o delito ataca ou põe em risco um direito subjetivo, ou seja, o crime incide sobre um direito subjetivo natural da pessoa, um dos bens fundamentais para cuja tutela o Estado fora estruturado, como a liberdade, a saúde, os membros do corpo, o patrimônio, etc. Assim, o crime passou a ser visto como violação de um direito subjetivo e a pena era a consequência instituída pela lei, fundada na necessidade de preservação destes direitos. Eram os direitos inatos reconhecidos no contrato social os únicos bens tuteláveis pelo Direito Penal, e o crime uma ofensa a estes direitos, cuja afronta ensejaria a aplicação da pena. O Direito Penal é então utilizado para a efetivação da proteção dos direitos subjetivos. Relativamente às consequências desta concepção, percebe-se que o Direito Penal sofreu, como não poderia deixar de ser, as influências destas teorias contratualistas,7 que têm na categoria do direito subjetivo sua base e essência, sendo o crime um ato a ele lesivo. A importância disso reside no fato de o direito subjetivo passar a ser instrumento eficaz de garantia da liberdade8 à medida que se erigiu em um nítido limite ao legislador penal, que não podia criminalizar fatos que não afrontassem tais direitos. Nas elucidativas palavras de Rudolphi, […] O Estado é considerado como decisão conjunta dos homens e por certo com o objetivo de assegurar a maior liberdade possível para todos os cidadãos. A única tarefa legítima do Estado, portanto, era a proteção dos direitos de seus cidadãos e dos seus próprios para a realização de seus fins, definidos no contrato social. Como núcleo material de todo delito aparece, conforme isso, a lesão de direitos subjetivos.9 7 “[…] A concepção material de delito como lesão a um direito subjetivo decorre da teoria contratualista aplicada no âmbito penal […]” (PRADO, Luiz Régis, op. cit., p. 28). 8 PRADO, op. cit., p. 28 9 RUDOLPHI, Hans Joachim. Los Diferentes Aspectos del Concepto de Bien Jurídico. In: Revista Nuevo Pensamiento Penal, Ediciones Depalma, año 4, nº 7, julio-septiembre de 1975, Buenos Aires, p. 333 54 Bem Jurídico: significado, relevância e valor com a dogmática do Direito Penal Portanto e sinteticamente, o Iluminismo foi responsável pela inserção, no âmbito do Direito Penal, da ideia de objeto jurídico do delito, ou seja, a tutela penal deveria ser reservada apenas para os comportamentos que violassem certos bens e valores, o que fez numa tentativa de superação do período anterior marcado pela barbárie e arbitrariedade da justiça penal. Assim, o delito passou a ser considerado como uma violação ao pacto social e no qual se identificava lesão a um direito subjetivo do indivíduo ou da comunidade, com o qual se propunha expurgar do Direito Criminal as condutas que fossem reprováveis apenas sob a ótica da moral e da religião, sem causar dano a alguém. É a perspectiva segundo a qual o Direito Penal, com suas drásticas conseqüências, somente poderia atingir condutas que efetivamente lesassem os direitos subjetivos, e isso por causa da máxima liberdade concedida a cada cidadão. O movimento Iluminista tinha como propósito reduzir quantitativamente a legislação em geral, e também a penal, para que a ordem jurídica fosse baseada em poucas, clara e simples leis. Aplicando este princípio ao Direito Penal, o artigo 8º da Declaração Francesa de 1789 previu que as penas fossem as “estrita e evidentemente necessárias”.10 Esta preocupação encontrava eco no direito positivo da época, pois a Europa era vítima de aguda insegurança jurídica proveniente da crescente complexidade das sociedades e das várias ordens jurídicas concomitantemente vigentes no mesmo lugar e para as mesmas pessoas, resultando na incapacidade de o direito solucionar os conflitos que se apresentavam, contexto no qual se inseria a preocupação Iluminista de simplificar as leis e reduzir seu número. A solução apresentada para fazer frente a tal insegurança foi a efetivação de códigos, surgindo o célebre Movimento das Codificações, inserto no contexto da Revolução Francesa, e cuja obra-prima foi o Código Napoleônico, a legislação civil da França aparecida em 1804.11 10 Artigo 8º. “A lei só pode estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias, e ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito, e legalmente aplicada”. 11 As codificações são o fruto máximo da cultura racionalista e Iluminista, no fim do séc. XVIII. Ante a dificuldade em identificar o direito vigente, especialmente na França, o que implicava insegurança jurídica, surge a necessidade de elaborar um direito simples e unitário. Por isso, as ideias de simplicidade e unidade do direito são as ideias de fundo da codificação, para fazer frente à multiplicidade de direitos territoriais vigentes. E a codificação é o clímax do jusnaturalismo, na medida em que seus princípios maiores – liberalismo e individualismo – são positivados e inscritos nos códigos. (GUSMÃO, Paulo Dourado. Introdução ao Estudo do Direito. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 170-176). Daiane Zappe Viana 55 O Movimento Codificador, portanto, procurou instrumentalizar a preocupação Iluminista de simplificação das leis. Com a inserção do Direito nos códigos, em nenhum outro lugar este precisaria ser buscado. E a produção de leis, notadamente penais, deveria obedecer aos princípios antes enunciados, ou seja, o liberalismo e o individualismo, concretizados pela incriminação de condutas ofensivas a direitos subjetivos. Contudo, este propósito foi claramente frustrado e, poucas décadas depois, já se denunciava a necessidade de disciplinar a atividade criminalizadora do legislador. Com efeito, […] em um trabalho datado de 1819, Carl Joseph Anton Mittermaier enfatizava ser um dos erros fundamentais da legislação penal do seu tempo a excessiva extensão dessa legislação, e que a criação de um número avultado de crimes era uma das formas em que se manifestava a decadência não só do Direito Criminal, mas da totalidade da ordem jurídica.12 Esse fato engendrou, nas primeiras décadas do século XIX, a ideia de que o delito constitui lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico, sendo o Direito Penal, assim, um sistema de proteção de bens jurídicos. Ou seja, o objeto jurídico do crime, que até então era identificado nos direitos subjetivos, passou a ser o bem jurídico, com o nítido objetivo de, novamente, limitar a atuação do legislador penal, circunscrevendo a busca dos fatos merecedores de sanção penal àqueles efetivamente danosos à coexistência social. Entretanto, e eis a nota essencial deste primeiro período, tais condutas deveriam ser lesivas a entidades reais, e não subjetivas. Com efeito, o excesso de leis penais gerou a preocupação de frear a ação do legislador criminal, e nisso tomaram relevo, inicialmente, as formulações teóricas de Johann Michael Franz Birnbaun.13 Em livro escrito no 12 As codificações são o fruto máximo da cultura racionalista e Iluminista, no fim do séc. XVIII. Ante a dificuldade em identificar o direito vigente, especialmente na França, o que implicava em insegurança jurídica, surge a necessidade de elaborar um direito simples e unitário. Por isso, as idéias de simplicidade e unidade do direito são as idéias de fundo da codificação, para fazer frente à multiplicidade de direitos territoriais vigentes. E a codificação é o clímax do jusnaturalismo, na medida em que seus princípios maiores – liberalismo e individualismo – são positivados e inscritos nos códigos. (GUSMÃO, Paulo Dourado. Introdução ao Estudo do Direito. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p.170-176). 13 Consoante a ideia mais aceita, é este o autor que cunhou a noção de bem jurídico. A esse respeito, escreve Mauricio Antonio Ribeiro Lopes “… a teoria do bem jurídico está presente desde a obra de VON LISZT, do começo do século. Antes dele, porém, BINDING deu paternidade ao 56 Bem Jurídico: significado, relevância e valor com a dogmática do Direito Penal ano de 1834, intitulado “Sobre a Necessidade de uma Revisão Jurídica de Conceito de Crime, Especialmente no Concernente à Violação da Honra”, postulava que, ao invés de objetivar a tutela de direitos subjetivos, como entendiam os Iluministas, o Direito Penal deveria servir para proteger, somente, os bens jurídicos materiais ou corpóreos. Ou seja, ao Direito Penal devem interessar somente bens que podem ser radicados diretamente no mundo material – mundo do ser ou da realidade – importantes para a pessoa e a coletividade e passíveis de lesão pela ação criminosa. Trata-se de uma tentativa, portanto, de superação das concepções individualistas antes reinantes, desembocando na concepção materialista de bem jurídico como objeto de proteção penal, em substituição à de direito subjetivo, sendo decisivo, para ensejar a tutela penal, a existência de um bem radicado diretamente no mundo da realidade, de relevância individual ou coletiva passível de lesão através do crime. No contexto do excessivo número de leis penais, a ideia era a de fornecer um critério para disciplinar e restringir a criação de tipos penais, passando o objeto da tutela penal a ser identificado no bem jurídico, mas tão-somente bens jurídicos materiais poderiam existir. Dentro de um prisma liberal, a doutrina do bem jurídico é erigida com nítido objetivo de limitar o legislador penal, se impondo como um dos pilares da teoria do delito. Surge ela, pois, como evolução e ampliação da tese original garantista do delito como lesão de um direito subjetivo e com o propósito de continuar a função limitativa do legislador, circunscrevendo a busca dos fatos merecedores de sanção penal àqueles efetivamente danosos à coexistência social, mas lesivos de entidades reais-empíricos-naturais- do mundo exterior.14 Assim, o ponto conclusivo que se vislumbra é que somente os bens jurídicos fundamentais devem ser objetos de atenção do legislador penal. termo ‘bem jurídico’ e segundo KAUFMANN, tem o mérito de ter outorgado ao bem jurídico ‘o direito de cidadania na dogmática jurídico-penal’. Grande parte dos autores, contudo, entende que esse conceito deve ser atribuído a BIRNBAUM.” (Op. cit., p. 289). Mais adiante, p. 294, afirma que BIRNBAUM introduziu o conceito de bem jurídico-penal em substituição ao de direito subjetivo e … enunciou, pela primeira vez, já em 1834, o conceito de bem jurídico e sua importância na análise do injusto típico. 14 GONZALEZ RUS. Op. cit., p. 13. Daiane Zappe Viana 57 TEORIAS SOCIOLÓGICAS E CONSTITUCIONAIS A evolução da noção de bem jurídico se dá com grandes contribuições das mais diversas facetas, até o aparecimento das concepções modernas, principalmente as teorias sociológicas (funcionalistas e interacionistas simbólicas) e as constitucionais. Na Alemanha, em especial, vicejaram as teorias sociológicas do bem jurídico que o situaram diretamente na realidade social, ressaltando a necessidade de uma maior vinculação do Direito Penal às demais ciências sociais. Podem ser mencionadas as de K. Amelung, G. Jakobs, H. Otto, J. Habermas, W. Hassemer, R. P. Callies, Mir Puig, Gomes Menitez, entre outros, que sinteticamente passamos a analisar: Amelung entende ser a noção de bem jurídico válida como teoria sistêmica e critério de nocividade social. A legitimação substancial da referida noção encontra-se para Jakobs na vigência da norma enquanto objeto da tutela; na mesma trilha de Luhmann, este último autor afirma que a missão do Direito Penal é assegurar a validade fática ou a vigência das normas jurídicas, no sentido de garantir expectativas indispensáveis ao funcionamento do sistema social. Possui a função de estabilizar a ordem social através da imputação de condutas. O delito como transgressão da norma penal significa oposição à prescrição normativa que se vê contrariada pela sanção, que impõe ou restabelece a obediência ao Direito.15 Na concepção de Otto, o bem jurídico é uma relação real ou fática (situação) de um sujeito com um objeto, entende-se por bem jurídico uma determinada relação concreta do indivíduo com algo que sirva para o desenvolvimento de sua personalidade. Já Habermas propõe uma série de critérios para a criação de bens jurídicos, em especial a identidade social. Para Hassemer, o que importa não é a posição objetiva do bem e da conduta lesiva, mas a valoração subjetiva, com as variantes dos contextos social e cultural. Formula-se uma doutrina realista do bem jurídico, ancorada em diretrizes político-criminais de ordem racional. As teorias sociológicas são classificadas, por este autor, conforme cumpram uma função crítica ou sistemática. As críticas situam a noção do bem jurídico além do Direito Penal, transcendem o sistema. Já as sistemáticas reduzem15 JAKOBS, G. Derecho Penal. Parte General. Trad. J. Cuello Contreras e J. L. S. Gonzales de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1995. 58 Bem Jurídico: significado, relevância e valor com a dogmática do Direito Penal no a uma criação do legislador e são, por isso, imanente ao sistema.16 Para Callies o conceito de bem jurídico se insere dentro de uma estrutura social de interação, vinculada ao Estado de Direito Democrático. De maneira semelhante, porém adotando ainda a ideia de danosidade social, posiciona-se Mir Puig. O Direito Penal deve proteger os sistemas sociais, enquanto garantia do indivíduo. Interessando a dimensão social do bem jurídico, necessidade social/possibilidade de participação no sistema social. Salienta-se que este último autor não considera o aspecto funcional em si, desconectado dos objetos concretos próprios do conceito de bem jurídico, importando o peculiar conteúdo atribuído à palavra funcional: aponta para o sentido (funcional) da análise em que aqueles objetos merecem proteção como bens jurídicos.17 Por seu turno, Gomez Benitez considera útil o conceito social de bem jurídico, desde que submentido a certas correções, tais como conteúdo social do conceito (expressão direta de funcionalidade) e o dano social identificado com a necessidade de prevenção geral de penar.18 A doutrina sociológica funcionalista, originada com a obra de Durkhein, desenvolveu-se, especialmente, com Parson, Merton e Luhmann. Nela a sociedade é compreendida como um sistema global ou de interação, formado sobretudo por normas de organização, ao qual se vinculam todos os fatores sociais (sociedade/indivíduo), sendo a funcionalidade critério principal de exame de qualquer conduta. Nessa concepção em que as diferentes partes de um sistema social são consideradas em função do todo, o Direito tem não só uma função positiva, mas uma função positiva primária no tempo em que é o instrumento de conservação por excelência, é o subsistema que depende em última barreira além da qual está a inevitável desintegração do sistema. Nesse sentido, o Direito é visto como um subsistema do sistema social geral, e o delito vem a ser o comportamento disfuncional, um obstáculo ao funcionamento do sistema social. Esta teoria representa uma descrição asséptica e tecnocrática do modo de funcionar do sistema, mas não uma valoração, e muito menos uma crítica a ele.19 16 HASSEMER, W. Fundamentos del Derecho Penal. Trad, de Muñoz Conde e Arroyo Zapatero. Barcelona: Bosh, 1984. p. 36. 17 MIR PUIG, S. Objeto del delito. Nueva Enc. Jurídica. Barcelona: F. Seix, 1982. t. XVII, p. 766. 18 GOMES BENITEZ, J. M. Sobre la teoria del bien jurídico. Rev. Da Fac. de Derecho de la Universidad Complutense de Madrid, n. 69, s/d. 19 MUÑOS CONDE. Derecho Penal y control socila, p. 26. Daiane Zappe Viana 59 No entanto, nenhuma teoria sociológica conseguiu formular um conceito material de bem jurídico capaz de expressar não só o que é que lesiona uma conduta delitiva, como também responder por que uma sociedade criminaliza determinados comportamentos e não outros. Já as teorias constitucionais do bem jurídico, grandemente acolhidas pela doutrina italiana, procuram formular critérios capazes de se impor de modo necessário ao legislador ordinário, limitando-o no momento de criar o ilícito penal. O conceito de bem jurídico deve ser inferido na Constituição, operando-se uma espécie de normativização de diretivas político-criminais. Estas teorias podem ser classificadas em teorias de caráter geral e fundamento constitucional estrito, sendo a divergência entre elas tão-somente quanto à maneira de vinculação à norma constitucional. Nas primeiras, costuma-se fazer referência ao texto maior de modo genérico, amplo, com remissão à forma de Estado constitucionalmente estabelecida, aos princípios que inspiraram a norma fundamental e com base nos quais se constrói o sistema punitivo. Dentre elas estão principalmente as concepções de W. Sax. M. Marx, D. Pulitanò, G. Fiandaca, C. Roxin e H. J. Rudolphi, estas duas últimas revelando certa influência funcionalista. Roxin parte da ideia de Constituição, mais especificadamente, da noção de Estado Democrático de Direito e Social de Direito. Na esfera penal, significa que seu objetivo só pode ser o de garantir ao indivíduo uma vida de paz em sociedade. Assim, isso quer dizer que: […] em cada situação histórica e social de um grupo humano os pressupostos imprescindíveis para uma existência em comum se concretizam numa série de condições valiosas como, por exemplo, a vida, a integridade física, a liberdade, a actuação ou a propriedade, as quais todo mundo conhece, numa palavra os chamados bens jurídicos; e o Direito Penal tem que assegurar estes bens, punindo a sua violação em determinadas condições. No estado moderno, junto a esta proteção de bem jurídico previamente dados, surge a necessidade de assegurar, se necessário através dos meios de Direito Penal, o cumprimento das prestações de caráter público de que depende o indivíduo no quadro da assistência social por parte do Estado. Com essa dupla função, o Direito Penal realiza uma das mais importantes das numerosas tarefas do Estado, na medida em que apenas a proteção dos bens jurídicos constituti- 60 Bem Jurídico: significado, relevância e valor com a dogmática do Direito Penal vos da sociedade e a garantia das prestações públicas necessárias para a existência possibilitam ao cidadão o livre desenvolvimento da sua personalidade, que a nossa Constituição considera como pressuposto de uma condição digna.20 Nessa mesma trilha, Rudolphi entende que os valores fundamentais devem ter referência constitucional e o legislador ordinário está obrigatoriamente vinculado à proteção de bem jurídicos prévios ao ordenamento penal, cujo conteúdo é determinado em conformidade com os citados valores. Assim, o bem jurídico é concebido como uma valiosa unidade de função social, indispensável para a sobrevivência da comunidade e que tem a norma constitucional como parâmetro basilar. Doutra banda, as teorias constitucionais estritas, representadas por F. Bricola, E. Musco, J. J. Gonzalez Rus e E. Gregori, orientam-se firmemente e em primeiro lugar pelo texto constitucional, em nível de prescrições específicas, a partir das quais se encontram os objetos de tutela e a forma pela qual deve se revestir, circunscrevendo dentro das margens mais precisas as atividades do legislador infracontitucional.21 CONCEITO DE BEM JURÍDICO DIMENSÃO FORMAL: K. BINDING E DIMENSÃO MATERIAL: F. LISZT O bem jurídico possui uma transcendência ontoaxiológica, dogmática e prática que em certo sentido é basilar e, por isso, indeclinável. De sua essência, entidade e conteúdo depende, não só a estruturação técnica, senão a própria existência do ordenamento punitivo de qualquer Estado. Referência obrigatória, no estudo evolutivo do bem jurídico, são as formulações de Binding e de Franz Von Liszt, opostas em si, mas que foram de suma importância na discussão em torno do objeto da proteção penal. A construção teórica de Binding caracteriza-se por um positivismo legalista, uma concepção formal de bem jurídico: este está fundado no direito positivo vigente; trata-se do bem ou interesse protegido pela norma penal, consistindo o delito na lesão a um direito subjetivo do Estado. Há, 20 ROXIN, C. Problemas fundamentais de Direito Penal. Trad. De Ana Paula dos Santos Luís Natscheradetz. Lisboa: Veja, s/d. p. 27-28. 21 GONZALEZ RUS, J. J. bien jurídico y Constitucion. Madrid: Mach, Serie Univ. 201, s/d. p. 24. Daiane Zappe Viana 61 portanto, uma identificação entre o bem jurídico e o fim das normas penais, que criam o bem jurídico e são sua única e definitiva fonte de revelação. Nessa perspectiva, o conceito de bem jurídico abandona qualquer pretensão de legitimação material, ou seja, de limite à liberdade criminalizadora do legislador, perdendo a função crítica e orientadora à medida que é este quem cria o bem jurídico. Em outros termos, o bem jurídico é uma criação do Direito, que elege os bens merecedores de tutela penal. Há uma associação entre o bem jurídico e a norma jurídica, resultando numa concepção formalista de Direito Penal, desaparecendo qualquer conotação metajurídica,22 num definitivo afastamento do pensamento Iluminista. O contexto em que se insere a formulação deste autor é a Alemanha logo após a unificação, que se encontrava atrasada economicamente em relação aos demais países da Europa, e sua reestruturação exigia um poder estatal forte, razão pela qual a teoria política preocupou-se em afirmar a autonomia do Estado, e o resultado foi o triunfo da concepção de que este titular do direito deve exigir a obediência dos súditos. Seguiu-se um considerável domínio estatal, que se manifestou especialmente através do Direito, num genuíno positivismo jurídico justificado pela pretensão de progresso econômico.23 Para Binding, portanto, os bens jurídicos são criações do legislador e o delito é a lesão ao direito de mandar do Estado. O Direito Penal foi utilizado para a criação e manutenção das condições postas pela necessidade do progressismo econômico, sendo o bem jurídico identificado com as condições de uma vida sã em comunidade, mas tal qual o legislador a delineava. Por seu turno, Franz Von Liszt desenvolveu uma dimensão material do injusto penal. Em contraposição ao tratamento formalista da norma feita por Binding, formulou um conceito material de bem jurídico, que transcende ao sistema jurídico e, por isso, se mostra capaz de ofertar um limite ao poder punitivo do Estado. Assim, o bem jurídico era visto como o interesse vital juridicamente protegido: todos os bens jurídicos são interesses vitais do indivíduo ou da comunidade. Esses interesses existem independentemente da ordem jurídica, criados e estabelecidos pela vida em comunidade. Ao Direito cabe, apenas, reconhecer tais interesses e protegê-los.24 22 LOPES. Op. cit., p. 296. 23 MALARÉE, Hernan Hormazábal apud COPETTI, André Copetti, p. 92-93. 24 Nas exatas palavras de Luiz Régis Prado, “…o bem jurídico vem a ser, portanto, uma criação da experiência e como tal é um interesse vital do indivíduo ou da comunidade. Firma-se uma conceituação liberal de bem jurídico que precede o direito positivo, e independe dele, sendo endereçada mais ao legislador”. (PRADO, op. cit., p. 33). 62 Bem Jurídico: significado, relevância e valor com a dogmática do Direito Penal É assim que o bem jurídico desenvolve toda sua capacidade de limite à ação legiferante, pois representa, antes de tudo, uma realidade válida em si mesma, cujo conteúdo axiológico não depende do juízo do legislador. Contrariando a proposta de Binding, a norma não cria o bem jurídico, mas o encontra, revelando-se nisso seu aspecto restritivo. Afinal, o fim do direito não é outro que o de proteger os interesses do homem, e estes preexistem à intervenção normativa, não podendo ser de modo algum criação ou elaboração jurídica. Por isso, o ordenamento jurídico não cria o interesse; a vida o cria, mas a proteção do direito eleva o interesse vital a bem jurídico, havendo, por esse motivo, uma relação intrínseca entre Direito Penal e Política Criminal, que são unidos pelo bem jurídico que, desta forma, vem a ser uma criação da experiência e como tal é um interesse vital do indivíduo ou da comunidade, que ao Direito cabe proteger. Firma-se, assim, uma conceituação liberal de bem jurídico que precede ao direito positivo e independe dele, sendo endereçada mais ao legislador. O injusto penal compreende a conduta que, além de culpável, é ilícita, no aspecto formal, quando há a transgressão de uma norma estatal e, no aspecto material, quando opera uma lesão a um interesse vital ou bem jurídico.25 De acordo com Rudolphi o esforço empreendido por Liszt é no sentido de encontrar uma determinação essencial do delito, fazendo-o com base no bem jurídico, dirigindo a formulação contra o Estado: […] O ponto de partida de sua teoria é constituído pela tese de que o direito existe por vontade humana e que, portanto, o fim de todo direito penal seria somente a proteção de interesses humanos vitais. Estes interesses humanos vitais que Liszt chama bens jurídicos quando são protegidos juridicamente, não são para ele um produto da ordem jurídica, mas sim, da vida e, portanto, estão dados a ele previamente.26 O resultado que Liszt alcança é o conceito de bem jurídico cujo núcleo material é independente do direito vigente. Retira-o das circunstâncias sociais concretas da comunidade e, exatamente por isso, presta-se a ser um limite ao legislador penal. 25 PRADO, op. cit., p. 33. 26 Op. cit., p. 334. Daiane Zappe Viana 63 Numa análise comparativa das formulações de Binding e Von Liszt, o contributo do primeiro está na visão positivista de bem jurídico, superando e afastando-se do pensamento iluminista de vinculação do objeto de proteção penal com valores pré-jurídicos. O último, combatendo aquela postura, advoga a necessidade de identificar o bem jurídico nos interesses vitais do homem, que existem por si, cabendo ao Direito protegê-los, gerando uma perspectiva limitadora da intervenção penal. CONCEPÇÃO SISTÊMICA DE WELZEL Num sentido objetivista, Welzel considera o bem jurídico como um bem vital da comunidade ou do indivíduo, que por sua significação social é protegido juridicamente.27 Neste norte a missão do Direito Penal vem a ser a tutela dos bens jurídicos mediante a proteção dos valores éticos sociais da ação mais elementares. De inspiração fenomenológica, esta orientação estabelece que os bens jurídicos realizam certas funções dentro do contexto amplo e dinâmico da vida social. Segundo sua concepção dos valores ético-sociais da ação, a ameaça penal deve contribuir para asseguramento dos interesses individuais e coletivos fundamentais, através do valor-ação. Daí, ser o delito formado de um desvalor da ação e de um desvalor do resultado. Nessa esteira, o bens jurídicos seriam reflexa e consequentemente protegidos a partir do momento em que se criminalizavam as ações éticosocialmente reprováveis. O grande perigo da concepção de Welzel seria fazer com que houvesse um alargamento significativo da área de intervenção do Direito Penal, na medida em que ocorreria o risco de criminalizar condutas que não atentassem contra os bens jurídicos. Reforçar a consciência ética dos cidadãos é tarefa não dos meios, mas dos fins do Direito Penal nomeadamente da prevenção geral positiva.28 O autor que pode ser considerado o mais importante na formulação do conceito de bem jurídico na perspectiva sistêmica é Hans 27 WELZEL, Hans. Derecho Penal alemán. P. G. Trad. De Bustos Ramíres e Yanés Pérez. Santiago: Jurídica do Chile, 1970. p. 15. 28 TORRÃO, Fernando. A Propósito do Bem Jurídico Protegido Nos Crimes Sexuais. In: Boletim da Faculdade de Direito. Estudos no Curso de Mestrado. Universidade de Coimbra, Coimbra, 1995. p. 550. 64 Bem Jurídico: significado, relevância e valor com a dogmática do Direito Penal Welzel. Num estudo datado de 1939, afirmou: em realidade, só há bens jurídicos à medida que eles estão em função, é dizer, à medida que eles atuam na vida social, e sua ação está receptivamente na mesma. Vida, saúde, liberdade, propriedade, etc., não estão simplesmente na sociedade, mas sua existência consiste em um ser em função, isto é, exercendo efeitos sobre a coesão social e dela recebem efeitos.29 Com ele, o bem jurídico é introduzido nos domínios do pensamento finalista, tratando-se de um conceito pré-jurídico, existente na realidade social, influenciando-a e sendo influenciado por esta. Portanto, o bem jurídico é visto como um bem vital do indivíduo ou da comunidade que, pela sua importância na manutenção do sistema social, é protegido juridicamente. A tendência inaugurada por Welzel frutificou. Excelente desenvolvimento foi procedido por Rudolphi, na obra já citada. Afirma este pensador haver uma tendência moderna em caracterizar o bem jurídico com base na chamada teoria dos estados, segundo a qual os bens jurídicos são estados de coisas cuja conservação interessa aos indivíduos ou à sociedade em geral: […] O Estado não é algo estático, nem algo que, uma vez criado, se encontra simplesmente ali, mas algo que a todo o momento se transforma e se desenvolve como consequência de novas forças. A vida social é um organismo vital, que diariamente se reproduz segundo determinadas leis e com base em certas situações sociais. Também os pressupostos para uma vida em comum próspera dos cidadãos na sociedade não são um estado qualquer, mas uma unidade funcional viva. Os bens jurídicos cuja proteção é tarefa do Direito Penal tampouco são objetos estáticos que permanecem em repouso, mas unidades funcionais sociais sem as quais nossa sociedade em sua estruturação concreta não seria capaz de existir.30 Portanto, Rudolphi denomina os bens jurídicos como unidades funcionais constitutivas da vida social, que são próprias de cada sociedade, e que se modificam no tempo de acordo com as transformações que nela se 29 RUDOLPHI, op. cit., p. 343. ������� Idem. Daiane Zappe Viana 65 operam e que podem gerar a necessidade de outras unidades funcionais. Rudolphi define bem jurídico como “conjuntos funcionais valiosos constitutivos da nossa vida em sociedade, na sua forma concreta de organização”.31 O bem jurídico é visto como condição de uma vida próspera, fundada na liberdade e responsabilidade individual. A toda evidência, Welzel anteviu o porvir. Assinala-se a propósito de tal concepção que o bem jurídico “é pois o orifício da agulha pelo qual têm que passar os valores da ação: Nenhuma reforma do Direito Penal pode ser aceitável se não se dirige à proteção de algum bem jurídico, por mais que esteja orientada aos valores da ação”.32 O que faz o Direito Penal é estabilizar esses valores ético-sociais da atitude interna de uma forma característica e tendo em conta determinados limites que são precisamente os dos princípios da legalidade e da proteção dos bens jurídicos. Somente respeitando esses limites podem ser justificados os mandatos e proibições que impõe o Direito Penal e se pode esperar que seja ele o que a teoria da prevenção geral positiva pretende: exemplo e garantia dos valores éticosociais da atitude interna. Isso é exatamente, na tradição conceitual de Welzel, a formalização do controle social. NOÇÃO MATERIAL-CONSTITUCIONAL DE BEM JURÍDICO A noção de bem jurídico implica a realização de um juízo positivo de valor acerca de determinado objeto ou situação social e de sua relevância para o desenvolvimento do ser humano. A dignidade da pessoa humana aparece desenvolvida, numa primeira explicitação, através dos princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade. A liberdade, a dignidade pessoal do homem são qualidades que lhe são inerentes, e a possibilidade de desenvolver-se livremente constituem um limite infranqueável ao Estado. Assim, são valores acolhidos constitucionalmente, como direitos invioláveis que lhe são inerentes, próprios da Carta de inspiração liberal, a legalidade e o pluralismo democrático, os direitos sociais, além dos coletivos e difusos. Trata-se na verdade de um sistema de valores ao qual se vincula a Constituição substancial. 31 RUDOLPHI, op. cit., p. 166. 32 HASSEMER, Muñoz Conde. Introdución a la criminologia y al Derecho Penal. Valencia: Tirant lo Blanche, 1989. p. 102. 66 Bem Jurídico: significado, relevância e valor com a dogmática do Direito Penal De semelhante, assegura ela uma unidade material de sentido ao ordenamento jurídico, unidade normativa-material, sobre a base de um contexto valorativo. Aliás, a especificidade constitucional reside exatamente no fato de ser uma norma portadora de determinados valores materiais que lhe dão sentido próprio e presidem sua interpretação e aplicação.33 Portanto, a nenhuma norma constitucional é facultado ignorar esse quadro axiológico, pois os valores constitucionais servem de lastro fundamentador para interpretação de todo ordenamento jurídico, de postuladoguia para orientar a hermenêutica teleológica e evolutiva da Constituição e de critério para avaliar a legitimidade das variadas manifestações do sistema e de legalidade. Nessa linha de raciocínio, a interpretação conforme a Constituição implica uma correlação lógica de proibição de qualquer construção interpretativa ou doutrinária que seja direta ou indiretamente contrária a valores fundamentais.34 A noção de bem jurídico, nesse contexto, emerge dentro de certos parâmetros gerais de natureza constitucional, capazes de impor certa e necessária direção restritiva ao legislador ordinário, quando da criação do injusto penal. A tarefa legislativa há de estar sempre que possível vinculada a determinados critérios reitores positivados na Lei Maior que operam como marco de referência geral ou de previsão específica, expressa ou implícita, de bens jurídicos e a forma de sua garantia. A linha reguladora constitucional de ordem hierarquicamente superior deve servir para impor contornos inequívocos ao direito de punir. Em um Estado de Direito democrático, a determinação dos valores elementares da comunidade deve estar, em princípio, delineada pela Constituição. Assim, são bens suscetíveis de proteção penal, por exemplo, os direitos constitucionais do cidadão, os valores objetivamente tutelados e outros que se inserem no contexto de garantia do Estado Democrático e Social de Direito ou lhe são conexos. Os bens dignos e merecedores de tutela penal, são, em princípio os de indicação constitucional específica e aqueles que se encontrem em 33 GARCIA DE ENTERRÍA, E. La Cosntitución como norma jurídica. In: La Cosntitución Española de 1978. Madrid: Civitas, 1981. p. 144-149. 34 Cf. GARCÍA DE ENTERRRÍA, op. cit., p. 149, GOMES CAOTILHO, J. J. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1983. p. 244-249. Daiane Zappe Viana 67 harmonia com a noção de Estado de Direito democrático, ressalvada a liberdade seletiva do legislador quanto à necessidade. Em que pese o caráter fragmentário do Direito Penal, o conceito de bem jurídico não é uma varinha mágica através da qual se pode separar desde logo, por meio de subsunção e dedução, a conduta punível daquela que deve ficar impune. Trata-se apenas de uma denominação daquilo que é lícito considerar digno de proteção na perspectiva dos fins do Direito Penal.35 O conceito material de bem jurídico reside, então, na realidade ou experiência social, sobre a qual incidem juízos de valor, primeiro do constituinte, depois do legislador ordinário. Trata-se de um conceito necessariamente valorado e relativo, isto é, válido para um determinado sistema social e em um dado momento histórico-cultural. Isso porque seus elementos formadores se encontram condicionados por uma gama de circunstâncias variáveis imanentes à própria existência humana. Ademais, a substancialidade do bem jurídico põe em destaque a necessidade de uma valoração ética. Daí ser importante a congruência entre o bem penalmente tutelado e os valores fundamentais. Em termos constitucionais, a desproporcionalidade, entre bem jurídico e espécie/medida da pena, encontra seu veto nos preceitos que amparam a justiça e a igualdade em sentido substancial, a partir do momento em que uma sanção desproporcionada seria uma evidente injustiça comparativa, contrária a ambos os princípios. FUNÇÕES DO BEM JURÍDICO O bem jurídico é erigido como conceito limite na dimensão material da norma penal, assim cumpre ressaltar que possui função de garantia ou de limitar o direito de punir do Estado. O adágio nullum crimen sine injuria resume o compromisso do legislador, mormente em um Estado Democrático e Social de Direito, em não tipificar senão aquelas condutas graves que lesionem ou coloquem realmente em perigo bens jurídicos. Esta função, de caráter político-criminal, limita o legislador em sua atividade no momento de produzir normas penais. Não se pode descurar do sentido 35 ROXIN, op. cit., p. 290. 68 Bem Jurídico: significado, relevância e valor com a dogmática do Direito Penal informador do bem jurídico na construção dos tipos penais.36 Outra função atribuída ao bem jurídico é a função teleológica ou interpretativa, como um critério de interpretação dos tipos penais, que condiciona seu sentido e alcance à finalidade de proteção de certo bem jurídico. Tem-se que o bem jurídico constitui o núcleo da norma e do tipo, todo delito ameaça um bem jurídico. Não é possível interpretar, nem portanto conhecer a lei penal, sem lançar mão da ideia de bem jurídico. Assim o bem jurídico “é o conceito central do tipo, em torno do qual giram os elementos objetivos e subjetivos e, portanto, um importante instrumento de interpretação”.37 Função individualizadora: como critério de medição da pena, no momento concreto de sua fixação, levando-se em conta a gravidade da lesão ao bem jurídico. Ainda, função sistemática, como elemento classificatório decisivo na formação dos grupos de tipos da parte especial do Código Penal. Os próprios títulos ou capítulos da parte especial são estruturados com lastro no critério do bem jurídico em cada caso pertinente.38 Na medida em que o bem jurídico se situa no ponto central de diferentes tipos penais da parte especial do Código e sendo uma exigência para o legislador orientar sua atividade na proteção de bens jurídicos, vem a ser um dos pontos de vista para conceber o núcleo material dos injustos, comum a todo comportamento ilícito. Resumidamente, a função limitadora opera uma restrição na tarefa do legislador, a teleológica-sistemática busca reduzir a seus devidos limites a matéria de proibição e a individualizadora diz respeito à mensuração da pena/gravidade da lesão ao bem jurídico. CONSIDERAÇÕES FINAIS A tarefa do Direito Penal, de acordo com as teorias sistêmicas, portanto, consiste em proteger as funções sociais e os mecanismos eficazes requeridos para a manutenção da sociedade ante os danos e perturbações 36 POLAINO NAVARRETE, M. El bien jurídico en el Derecho Penal. Sevilha: Public de la Universidad, 1974. p. 240. 37 JESCHECK, H. Tratado de Derecho Penal. P. G. Trad. Mir Puig e Munõz Conde. Barcelona: Bosh. V. 1, p 256. 38 Ibid, p. 353. Daiane Zappe Viana 69 que possam ameaçá-los. Em consequência, os comportamentos inidôneos para perturbar as funções sociais e que não provocam nenhum efeito nocivo à sociedade devem ser excluídos da tutela penal. Nessa trilha, constata-se que o presente tema é de suma importância, eis que apesar de o postulado de que o delito lesa ou expõe a perigo bens jurídicos, há ainda uma grande controvérsia a respeito do conceito de bem jurídico. Assim, as formulações teóricas tendentes a limitar a atuação legiferante penal não atingiram seu objetivo, eis que o conceito de bem jurídico não se mostrou capaz de fornecer o núcleo material do delito. Cumpre observar que o legislador não possui livre escolha dos bens jurí­dicos sobre os quais vai incidir a tutela penal, ficando limitado aos anseios sociais, bem como ao que preceitua a Constituição Federal. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA, Marcelo Fortes. Garantias Constitucionais de Direito Penal e de Processo Penal na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros Editores, 1993. BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999. BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Edipro, 1999. BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. Trad. Paulo José da Costa Jr. e Alberto Silva Franco. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 1. BITENCOURT, Cezar Roberto; PRADO, Luiz Régis. Princípios Fundamentais do Direito Penal. 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