A b o rdagem Interdisciplinar no Manejo da Doença Renal Crônica Interdisciplinary Approach in the Management of Chronic Kidney Disease Marcus G. Bastos Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora; Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Nefrologia da UFJF e Fundação IMEPEN Departamento de Clínica Médica e Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Nefrologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora e Fundação IMEPEN RESUMO A doença renal crônica apresenta alta prevalência na população e se associa com alta morbimortalidade. A complexidade da doença e a freqüente necessidade de múltiplas intervenções para manter um estado saudável tem estimulado o desenvolvimento de modelos diferentes de cuidados de saúde. No presente trabalho, o autor examina a evolução de pacientes expostos a modelos diferentes de manejo da doença renal crônica e apresenta o racional da necessidade da abordagem interdisciplinar para o controle biopsiquicossocial da doença. Descritores: Doença renal crônica. Prevenção secundária. Abordagem interdisciplinar. ABSTRACT Chronic kidney disease has a high prevalence and has been associated with high morbidity and mortality. Its complexity and the frequent need of several interventions in order to maintain a health state have stimulated different models of management of the disease. In this review, the author examines the outcome of patients managed in different ways and discuss the rational for a interdisciplinary approach to controlling the biopsychosocial aspects of the disease. Keywords: Chronic kidney disease. Secondary prevention. Interdisciplinary approach. INTRODUÇÃO A doença renal crônica (DRC) já atingiu proporções epidêmicas. O crescimento do número de casos da doença decorre do aumento da prevalência do diabetes mellitus, da obesidade, da maior longevidade do ser humano, concomitantemente aos avanços diagnósticos e terapêuticos da ciência médica. Por exemplo, nos Estados Unidos da América, a DRC acomete aproximadamente 11% da população adulta1. O número de pacientes com filtração glomerular (FG) entre 15 e 59mL/min/1,73m2, ou seja, estágios 3 e 4 da DRC, é cem vezes maior do que o de pacientes em terapia renal substitutiva (TRS)1. Além do mais, um paciente com DRC tem mais chances de evoluir para o óbito decorrente das doenças cardiovasculares do que de se beneficiar da diálise ou transplante renal2. Quadro 1. Se o paciente com doença renal crônica evolui para diálise ou transplante, significa que o tratamento a ele ofertado foi um sucesso! A otimização do manejo da DRC baseia-se em três pilares: 1. Diagnóstico imediato da doença; 2. Encaminhamento precoce para tratamento nefrológico; e 3. Implementação das medidas de preservação da função renal. O diagnóstico da DRC, particularmente nos seus estágios iniciais, quando ela é freqüentemente assintomática, ficou enormemente facilitado pela aceitação praticamente unânime da nova definição da doença, proposta pelo grupo de trabalho que compôs o Kidney Disease Outcomes Quality Initiatiative (K/DOQI) da National Kidney Foundation americana 3. Assim, por definição, é portador de DRC qualquer indivíduo que, por um período ≥3meses, apresentar filtração glomerular <60mL/min/1,73m2, assim como aqueles com FG >60mL/min/1,73m2 e alguma evidência de lesão da estrutura renal (por exemplo, albuminúria). O K/DOQI também propôs estagiar a DRC de acordo com a FG (mL/min/1,73m2) em estágio 1, FG >90, estágio 2, FG 60-89, estágio 3, FG 30-59, estágio 4, FG 15-29 e estágio 5, FG <15, estando ou não o paciente em TRS 3. J Bras Nefrol Volume XXVIII - nº 3 - Supl. 2 - Setembro de 2006 O outro pilar para o manejo otimizado da DRC refere-se à necessidade de encaminhamento imediato dos pacientes para acompanhamento conjunto com equipe nefrológica. Por exemplo, Batista et al4 avaliaram a implementação das medidas nefroprotetoras preconizadas pelo K/DOQI e pela Sociedade Brasileira de Nefrologia em pacientes com DRC estágios 3, 4 e 5 em um ambulatório de hipertensão arterial e diabetes. Embora os pacientes fossem acompanhados por clínicos gerais, endocrinologistas e cardiologistas, foi observado que 65% deles apresentavam pressão arterial sistólica >130mmHg e 65% estavam em uso de medicamentos que bloqueiam o eixo renina-angiotensina. Entre os diabéticos, 48% apresentavam controle inadequado da glicemia. Porém o que mais chamou atenção foi a documentação das principais complicações da DRC: a dosagem de hemoglobina e a proteinúria, obrigatória nestes pacientes com doença já avançada, foi documentada em somente 28% e 16%, respectivamente, dos prontuários auditados. Além do mais, não se constatou nenhuma documentação relativa aos distúrbios do metabolismo de cálcio e do fósforo, acidose metabólica ou dosagem de albumina. Este estudo é apenas um dos muitos disponíveis na literatura que ilustram como os pacientes com DRC chegam aos nefrologista: tardiamente no curso de suas doenças, com as complicações da doença não documentadas ou corrigidas, já com comorbidades, particularmente as cardiovasculares, sem confecção de acesso vascular e sem a mínima noção sobre as opções terapêuticas em caso de necessidade de TRS. Por chegarem tardiamente aos nefrologistas, os pacientes têm mais chance de evoluir para o óbito no primeiro ano de diálise. O terceiro pilar do manejo ótimo da DRC é a implementação das medidas nefroprotetoras, diagnóstico e tratamento das complicações e comorbidades da doença e preparo biopsiquicossocial para TRS5. Modelos de manejo clínico da DRC Didadicamente, poderíamos dividir o manejo da DRC em três modelos: 1. Pacientes sem acompanhamento ou com acompanhamento clínico não nefrológico; 2. Pacientes com acompanhamento nefrológico convencional; e 3. Pacientes com acompanhamento nefrológico interdisciplinar. Como já mencionado, infelizmente não é incomum recebermos pacientes com DRC em estágio avançado da doença, já necessitando de tratamento dialítico de urgência ou mesmo de emergência. A DRC nesses pacientes freqüentemente evolui sem que seja diagnosticada em seu início e, mesmo quando isso ocorre, eles 37 são encaminhados para o nefrologista tardiamente, em fase avançada da doença. Não existe consenso na literatura sobre o tempo mínimo de acompanhamento nefrológico antes do início da TRS. Alguns autores consideram 3 meses como tempo mínimo necessário, mas talvez 6 meses fosse o mais adequado, e possivelmente 12 meses seria o ideal. Por exemplo, considere a vacinação contra o vírus da hepatite B. Nos pacientes com DRC, recomenda-se 4 doses da vacina: a primeira no tempo zero, a segunda após 30 dias, a terceira no sexagésimo dia e a quarta, se ainda não ocorreu imunização, no sexto mês. Outro exemplo, a confecção de acesso vascular para hemodiálise. É fácil imaginar ter que se esperar alguns dias entre a solicitação do procedimento e a sua autorização, consulta com cirurgião vascular, marcação do centro cirúrgico e, finalmente, a confecção da fístula arteriovenosa (FAV). Idealmente, a FAV não deveria ser puncionada por um período mínimo de 60 a 90 dias. Se, porventura, a FAV não desenvolver, mais 60 a 90 dias, no mínimo, serão necessários entre a realização da nova fístula até sua primeira punção. Se o paciente é portador de DRC, progride com falência funcional renal e não tem acesso a tratamento dialítico, fatalmente evoluirá para o óbito. Os pacientes que são acompanhados por especialistas não-nefrologistas, quando conseguem chegar para TRS, geralmente apresentam parâmetros clínicos muito aquém dos desejáveis. Roubicek et al.6 compararam pacientes com DRC com acompanhamento nefrológico precoce (definido por um período ≥16 semanas do início da TRS) com pacientes com acompanhamento tardio (definido por um período <16 semanas do início da TRS). Os autores observaram que, comparados aos pacientes com acompanhamento tardio, aqueles com acompanhamento precoce por nefrologista permaneceram menos dias hospitalizados quando do início da diálise, necessitaram menos diálise de urgência, a pressão arterial era mais bem controlada, apresentaram menos edema agudo de pulmão, mais freqüentemente iniciavam a diálise com acesso vascular permanente e, conseqüentemente, necessitavam de menos acesso vascular central temporário. Como já mencionado anteriormente, estes pacientes com encaminhamento tardio apresentam 37% mais chances de evoluir para o óbito no primeiro ano do tratamento dialítico. Contudo, o acompanhamento nefrológico convencional per se não é garantia de sucesso no manejo da DRC. Por exemplo, Kausz et al.7 realizaram uma análise retrospectiva em prontuários de 602 pacientes com DRC definida como creatinina sérica ≥1,5mg/dL em mulheres e ≥2,0mg/dL em homens, no período de outubro de 1994 38 Abordagem Interdisciplinar no Manejo da Doença Renal Crônica a setembro de 1998, acompanhados em cinco ambulatórios de nefrologia na área de Boston, Massachusetts, Estados Unidos. Quando da primeira consulta, a média da creatinina e da FG dos pacientes foi de 3,2mg/dL e 22,3mL/min/1,73m2 respectivamente. Trinta e oito por cento dos pacientes apresentavam hematócrito <30% e somente 18% apresentavam estudos da reserva de ferro. Entre os pacientes com hematócrito <30%, somente 59% foram tratados com eritropoetina humana recombinante e, entre estes, somente 47% receberam suplementação de ferro. As alterações do metabolismo de cálcio e do fósforo foram observadas em 55% dos pacientes e, mesmo assim, a dosagem do PTH foi realizada em somente 15% dos casos. Adicionalmente, observou-se que o perfil lipídico foi avaliado em menos da metade dos pacientes e o tratamento com inibidor da enzima da conversão da angiotensina foi instituído em 65% dos pacientes com diabetes (49% de todos os pacientes). Finalmente, entre os pacientes que evoluíram para a diálise, somente 41% iniciaram o tratamento com fístula arteriovenosa previamente confeccionada. O terceiro modelo de manejo da DRC é aquele realizado por equipe interdisciplinar. Na verdade, esta proposta de acompanhamento aos pacientes com DRC não é uma novidade, tendo sido sugerida em uma reunião de consenso patrocinada pelo Instituto Nacional de Saúde americano no início da década passada. Até o momento, este modelo tem sido estudado de maneira limitada e os resultados não são definitivos. Há cerca de 10 anos, Levin et al. 8 observaram que, comparativamente ao acompanhamento nefrológico convencional, os pacientes seguidos por uma equipe interdisciplinar cursaram com menor necessidade de diálise de urgência, permaneceram menos dias internados no primeiro mês de diálise, bem como houve menor custo de tratamento da doença. Por outro lado, Harris et al. 9 avaliaram, em clínicas de cuidados primários, 437 pacientes com DRC divididos, randomicamente, em dois grupos: um grupo foi acompanhado segundo orientação interdisciplinar e o outro recebeu cuidados clínicos convencionais. Ao final do estudo, os autores não observaram diferença entre os grupos no que se refere à preservação da FG ou taxa de mortalidade, embora mais recursos tinham sido gastos com os pacientes que receberam orientação interdisciplinar. Contudo, neste estudo, o manejo interdisciplinar foi feito por generalistas que realizaram os seus atendimentos seguindo recomendações por escrito. Assim, questionase se o fracasso em se demonstrar diferença entre os dois modelos esteja mais relacionado a não implementação das recomendações interdisciplinares do que ao insucesso do modelo. Mais recentemente, Goldstein et al.10 e Curtis et compararam o modelo de manejo nefrológico convencional com o interdisciplinar. Em ambos os estudos, os autores demonstraram que os pacientes acompanhados por equipe interdisciplinar apresentaram melhores parâmetros clínicos e bioquímicos no início de diálise, bem como maior sobrevida no período pós-dialítico, comparativamente àqueles que foram manejados convencionalmente por nefrologistas. al.11 Impacto do manejo interdisciplinar na evolução da DRC A explicação para resultados melhores do manejo interdisciplinar relativamente ao nefrológico convencional na DRC não está completamente estabelecida. A premissa básica do modelo de atendimento interdisciplinar é ofertar o expertise de diferente profissionais de saúde a portadores de doenças complexas, como é o caso da DRC. É possível que o aconselhamento nutricional relativo a ingestão de sal, proteína e adequação do peso, o reforço freqüente da necessidade de aderência medicamentosa, o esclarecimento sobre a necessidade do controle da pressão arterial, o controle glicêmico nos diabéticos, o auxílio no preenchimento dos formulários para obtenção dos medicamentos de alto custo necessários ao tratamento da anemia e hiperparatireoidismo secundário, o apoio psicológico, a minimização do absentismo às consultas, o aconselhamento antitabágico, a facilitação ao acesso a outros especialistas (urologistas, cirurgiões vasculares, cardiologistas, ginecologistas), a confecção de FAV e o início da diálise em condições mais adequadas constituam intervenções fundamentais para o sucesso do modelo. A maioria destas tarefas é mais facilmente implementada quando o nefrologista conta com o auxílio da enfermagem, do assistente social, do psicólogo e do nutricionista com treinamento nefrológico. Além do mais, o atendimento interdisciplinar permite diminuir o tempo de atendimento do nefrologista e, assim, permite intensificar o acompanhamento ambulatorial. Por exemplo, no PREVEN-RIM (Quadro 2), o nosso PREVEN-RIM Preservação da filtração glomerular Reduzir a proteinúria Estagiamento da DRC Vacinação Evitar drogas nefrotóxicas Normalização da pressão arterial Reeducação alimentar para sal e proteína Identificar e tratar as comorbidades Manejo da anemia, acidose metabólica, alterações do Ca e P Quadro 2. J Bras Nefrol Volume XXVIII - nº 3 - Supl. 2 - Setembro de 2006 Programa Interdisciplinar de Prevenção Secundária da DRC, os pacientes no estágio 3 da doença são acompanhados a cada 3 meses; os no estágio 4 a cada 2 meses e os no estágio 5, mensalmente. Com esta estratégia, minimiza-se o tempo de exposição dos pacientes aos efeitos deletérios dos fatores de risco de progressão da DRC (hipertensão arterial, proteinúria, hiperglicemia), bem como das suas complicações (anemia, distúrbios do metabolismo de cálcio e do fósforo, acidose metabólica, desnutrição) e comorbidades (particularmente as cardiovasculares). CONCLUSÃO Estudos recentes evidenciam a complexidade da DRC e impõem um modelo de atendimento integral aos pacientes. O grande desafio passa a ser ofertar este modelo a todos os pacientes com DRC no Brasil. Para tal, há necessidade de se conduzirem estudos de custobenefício e assim oferecer dados conclusivos que convençam as nossas autoridades de saúde a financiar este modelo de manejo da DRC. REFERÊNCIAS 1. Coresh J, Astor BC, Greene T, Eknoyan G, Levey AS. Prevalence of chronic kidney disease and decreased kidney function in the adult US population: Third National Health and Nutrition Examination Survey. Am J Kidney Dis 2003; 41:1-12. 2. Keith DS, Nichols GA, Gullion CM, Brown JB, Smith DH. Longitudinal follow-up and outcomes among a population with chronic kidney disease in a large managed care organization. Arch Intern Med 2004; 164:659-63. 39 3. K/DOQI clinical practice guidelines for chronic kidney disease: evaluation, classification and stratification. Am J Kidney Dis 2002; 39(Suppl 2):S1-S246. 4. Batista LKC, Pinheiro HS, Fuchs RC, Oliveira T, Belchior FJE, Calil ACS, et al. Manuseio da doença renal crônica em pacientes com hipertensão e diabetes. J Bras Nefrol 2005; 27:8-14. 5. Bastos MG, Carmo WB, Abrita RR et al. Doença renal crônica: Problemas e soluções. J Bras Nefrol 2004; 26:202-15. 6. Roubicek C, Brunet P, Huiart L, Thirion X, Leonetti F, Dussol B, et al. Timing of nephrology referral: influence on mortality and morbidity. Am J Kidney Dis 2000; 36:35-41. 7. Kausz AT, Khan SS, Abichandani R, Kazmi WH, Obrador GT, Ruthazer R, Pereira BJ. Management of patients with chronic renal insufficiency in the Northeastern United States. J Am Soc Nephrol 2001; 12:1501-7. 8. Levin A, Lewis M, Mortiboy P, Faber S, Hare I, Porter EC, Mendelssohn DC. Multidisciplinary predialysis programs: quantification and limitations of their impact on patient outcomes in two Canadian settings. Am J Kidney Dis 1997; 29:533-40. 9. Harris LE, Luft FC, Rudy DW, Kesterson JG, Tierney WM. Effects of multidisciplinary case management in patients with chronic renal insufficiency. Am J Med 1998; 105:464-71 10. Goldstein M, Yassa T, Dacouris N, McFarlane P. Multidisciplinary predialysis care and morbidity and mortality of patients on dialysis. Am J Kidney Dis 2004; 44:706-14. 11. Curtis BM, Ravani P, Malberti F, Kennett F, Taylor PA, Djurdjev O, Levin A. Nephrol Dial Transplant 2005; 20:147-54. Endereço para correspondência: Marcus G. Bastos Rua Ivan Soares de Oliveira, 234, Parque Imperial 36036-350, Juiz de Fora, Minas Gerais E-mail: [email protected]