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Publicado pela Revista Linguasagem – www.letras.ufscar.br/linguasagem
Enem; Linguagem; O Globo; equívocos, equívocos...1
Por Érika de Moraes (UNESP-Bauru)
Como linguista, senti-me invocada a falar sobre uma das reportagens que saíram a
respeito de questões sobre linguagem do Enem 2012. Não vou discutir aqui a qualidade das
questões, pois isso demandaria uma longa análise. Vou me ater à reportagem publicada no
jornal O Globo, que pode ser conferida no link (http://oglobo.globo.com/vestibular/enem-fazmesma-pergunta-oito-vezes-6679643#ixzz2CFDOscYw)
para
discutir
uma
espécie
de
"incompreensão constitutiva" no diálogo entre jornalistas e linguistas. Antes de qualquer
comentário, quero dizer que, para discutir esse assunto de maneira um pouco mais eficiente, é
necessário que todas as partes cedam um pouco.
Não considero produtivo desmoralizar o jornalismo. Com todas as suas imensas falhas,
das quais Escola Base é um dos mais famosos exemplos, ele ainda cumpre um papel de
popularização, denúncia etc. Com muitos e muitos defeitos, com muito abuso de poder, digase.
Quando escolhi estudar Jornalismo, entre outros motivos, foi por acreditar que ele era
melhor do que a ditadura sem imprensa “livre” (muitas aspas; quanto mais estudei, mais
percebi a quantidade de aspas. Liberdade era o meu sonho de adolescência.). Podemos
acreditar, quem sabe, que estejamos em uma fase de “aprendizado de democracia”, de uma
democracia brasileira que (re)começou elegendo o Collor. Nossa democracia, no máximo, é
uma adolescente. Se, por um lado, jornalistas pensam que sabem mais do que sabem, por
outro, cientistas também podem ser irredutíveis.
Tenho uma colega que é excelente assessora de imprensa (qualquer um que tenha
precisado de contato com a assessoria do Centrinho, de Bauru, pode corroborar o que digo) e
um dos exemplos que ela cita é que os profissionais de saúde têm muita resistência a chamar o
palato de céu da boca; então, ela explica que isso não compromete o sentido e vai ajudar a
popularizar o conhecimento.
Fico me perguntando se há uma forma de popularizar o conhecimento teórico sobre
linguagem. Se nós, linguistas, não estamos deixando de ceder, deixando de chamar o palato de
céu da boca e contribuindo para sermos compreendidos apenas por nós mesmos.
Colunistas como Sírio Possenti fazem um ótimo trabalho. Com alcance bem menor,
também já publiquei artigos no meu blog e em jornal local. Em alguns momentos, também,
existem encontros felizes entre jornalistas e fontes, havendo boa vontade de ambos os lados.
1
Uma
versão
modificada
deste
texto
foi
publicada
http://www.liquimix.blogspot.com.br/2012/11/enem-linguagem-o-globo-equivocos.html
no
11/11/2012.
em
dia
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Compreendo que é muito difícil falar na condição de fonte jornalística, pois o resultado
pode sair muito diferente daquilo que queríamos dizer. Mas, se fonte e jornalista dialogarem
minimamente (sem que a intenção seja meramente corroborar uma tese prévia), o resultado
pode ser satisfatório. É o que penso sobre uma entrevista que a jornalista Rose Araújo fez
comigo para a revista Na Mochila. Pode ser que algum linguista leia e me diga: “Érika, você
simplificou o assunto!”. Pode até ser que pequei em algo, mas sinto que fiz a minha parte em
popularizar conhecimento, no caso, com a interferência de uma boa jornalista. A pauta inicial
era sobre vícios de linguagem. Com diálogo, o assunto aprofundou-se.
Ninguém pense que é fácil buscar o equilíbrio. Nesse momento, sou obrigada a fazer
uma não-defesa dos jornalistas (e eu sou jornalista por formação e atuação) e também uma
não-defesa de como a Linguística chega até a imprensa, muitas vezes, por culpa nossa,
linguistas (e sou linguista por formação e atuação).
Simplificação tem limites
Eis um trecho da matéria de O Globo: “Num enunciado, o texto de referência foi
redigido com marcas orais características da análise do discurso, conteúdo específico de cursos
de Letras e Comunicação”.
Meu primeiro impulso foi dizer SOCORRO! Tentarei me explicar. O trecho associa
(reduz) “marcas orais de linguagem” a um “conteúdo específico, a Análise do Discurso”. A área
da Linguística que estuda “marcas orais” ou linguagem coloquial é a Sociolinguística. A Análise
do Discurso – ou deveria dizer “as”, pois são várias linhas e diversas abordagens – se ocupa de
complexidades de outra ordem, que vou evitar reduzir neste texto a um “ou seja”. Indico aos
leitores o capítulo de Fernanda Mussalim sobre Análise do Discurso, no livro “Introdução à
Linguística – Domínios e Fronteiras”, Vol. 2, da Cortez Editora. Pode-se, ainda, recorrer a
Dominique Maingueneau, Sírio Possenti, Eni Orlandi, aos clássicos de Pêcheux e Foucault. Se o
jornalista tivesse escrito “Sociolinguística” em vez de “Análise do Discurso”, ficaria um pouco
mais coerente, ainda assim bem redutor, algo equivalente a: “A medicina, que é o estudo dos
remédios”.
Não sei se é culpa da incompreensão entre jornalista e fonte, mas, na fala entre aspas
de uma entrevistada, professora mestre pela Sorbonne, está assim: “Há um desequilíbrio e um
foco exagerado na linguagem coloquial. (...) Do ponto de vista gramatical, nada é pedido
praticamente.”
Como professora (Doutora pela Unicamp), devo esclarecer que gramática não se opõe
à linguagem coloquial. A linguagem coloquial tem a sua gramática própria, que é diferente da
gramática escrita normativa. Poderia ser dito que o Enem deixou de cobrar exercícios de
gramática normativa, tradicional, mas não que “nada praticamente é pedido do ponto de vista
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gramatical”. Por definição conceitual, se estamos no campo da linguagem, necessariamente
estamos no campo da gramática, entendida em sentido amplo, não como sinônimo de “norma
padrão”.
Acredito que os leitores não especializados sejam suficientemente inteligentes para
entender que há uma diferença entre “gramática intuitiva da língua” e “gramática normativa”,
desde que nós, especialistas, nos esforcemos um pouco para explicar a trivial distinção entre
Língua e Norma.
“as universidades querem alunos que tenham capacidade para ler e escrever textos
acadêmicos e científicos ou querem alunos que saibam reconhecer variedades linguísticas?”,
responderia que não há incompatibilidade entre esses dois quereres. E ponderaria que a
escola (e o Enem etc.) deveria(m) enfatizar cuidadosamente a ambos. Não é raro, infelizmente,
que a balança penda desequilibradamente para um dos lados.
Atualmente, a realidade das Universidades, de modo geral, é que os alunos têm muita
dificuldade de redação. E, de modo geral, as aulas de Língua Portuguesa do ensino
fundamental e médio priorizaram os exercícios de gramática normativa, de forma isolada ao
treino de redação.
Respeito Bagno, discordo do tom
Por outro lado, a postura de Marcos Bagno (que muito admiro e estimulo meus alunos
a lerem – até obrigo, por razões do ofício) também não contribuiu (pelo menos nesse caso)
para o esclarecimento dos fatos junto ao grande público.
Entendo que é dificílimo falar com jornalistas. Que a maioria dos profissionais de
comunicação não deve ter lido os livros Preconceito Linguístico, A Língua de Eulália, A Norma
Oculta etc. Que, se leram, podem ter lido apenas trechos, como fizeram com o “Por um mundo
melhor”. Que leram e entenderam que “Bagno defende o português errado”. Enfim, Bagno já
deve ter esgotado sua paciência com boas razões. Já li críticas destrutivas, arrogantes,
ofensivas e infundadas sobre o trabalho deste autor. Ainda assim, acredito que devamos
tentar ser ouvidos, tentar explicar (de novo), e não reagir com acusação pessoal ao jornalista,
mesmo que, por hipótese, ele mereça.
Jornalistas, por sua vez, por mais defeitos que tenham (tantos e tantos) são alvos
fáceis de acusações de todo tipo (vide “Mil erros de Português”, de Sacconi, livro de princípios
totalmente opostos aos de Bagno e que elege, no tom, os jornalistas como alvos de deboche).
Meus alunos leem textos de Análise do Discurso e leem Bagno. Sempre digo a eles que,
por favor, leiam Bagno “com o coração aberto para um novo ponto de vista”, que não o leiam
como um simulacro (“a defesa do português errado”). Penso que, pelo menos, planto uma
semente.
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Com todo meu apreço e admiração por Bagno, também diria a ele que tentasse (sei
que é difícil) ter a paciência de explicar o ponto de vista da sociolinguística aos jornalistas e,
consequentemente, ao grande público. Esse deveria ser o nosso desafio, afinal, nós mesmos
(especialistas em linguagem) já estamos convencidos.
De qualquer forma, sou imensamente grata ao trabalho de Bagno, que permite
excelentes discussões em sala de aula (http://www.liquimix.blogspot.com.br/2012/04/emsala-de-aula.html). O desafio é ensinar quem não sabe ou quem tem mais dificuldade de saber.
Como uma professora de dança que ensine com dedicação não somente àquela aluna que já
nasceu com gingado, mas também àquela que sonha em dançar bonito, embora seja melhor
com os livros. E, aproveitando a metáfora, ainda que o passo não esteja perfeito, um
movimento de dança pode ser expressivo em seu conjunto assim como há várias formas de
expressar-se em uma língua.
Equilíbrio e diálogo
Entendo que o desafio de falar sobre linguagem é imenso, porque todo mundo
(especialmente jornalista) efetivamente acredita que sabe o que é linguagem na mesma
proporção em que se declara ignorante em física. Confunde-se o conhecimento empírico com
o científico sobre linguagem. E é uma ferida muito grande para o “ego eu” aceitar que
linguagem não é exatamente aquilo que pensava ser, enquanto não saber física parece que
não dói. Parece justo, porque a língua é parte de nossa identidade. É por isso que, nas palavras
de uma colega com quem dialoguei sobre o assunto, “os estudos da linguagem não se dão a
entender a um amplo público”.
Fico, então, numa posição de equilibrista e também difícil para o meu “ego-eu”. Como
jornalista e cidadã, considero absolutamente relevante popularizar o conhecimento científico
sobre linguagem (não sei se as questões do Enem resolvem, pois penso que o tema seja de
complexidade
maior).
Como
linguista,
sinto-me
no
grupo
dos
quase
sempre
“incompreendidos”.
Os fatos me levaram, neste texto, a posicionar-me, em certo sentido, contra jornalista,
contra fonte e até mesmo contra (o tom, não o argumento de) um linguista por mim
absolutamente respeitado. E isso não significa que me coloco como “dona da verdade”. É uma
tentativa de olhar como analista do discurso, de enxergar “do lado de fora de um ou de outro
posicionamento ideológico”, tentativa esta que pode ser vã se eu for lida por qualquer um dos
vieses ideológicos. Seria o caso de pedir para que o leitor me lesse “com o coração aberto”
(talvez esta seja uma forma simplificada de estimular uma leitura de analista de discurso) e
tentar perceber a questão de fora de um dos pontos de vista ideológicos. Possível? No mínimo,
difícil. Posso ser bem incompreendida, mas pelo menos tentei.
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