A VIVÊNCIA SOCIAL DA MÚSICA Rosemyriam Cunha1, Faculdade de Artes do Paraná, Curitiba, PR RESUMO: O ser humano compartilha melodias, harmonias, ritmos, intensidades, letras e canções no seu dia a dia. Os motivos que o levam a suspender o ritmo de suas vidas para agregar-se a outras pessoas com o objetivo de partilhar um mesmo fato sonoro-musical despertam questionamentos. Esse trabalho busca investigar noções que historicamente nortearam as percepções a respeito da função da música na vida das pessoas. Estudos apontam que a arte dos sons pode superar o lugar de linguagem das emoções para assumir o espaço de elaboração e transformação de sentimentos por meio de uma dinâmica de construção de analogias, do movimento simbólico. Vygotsky e Langer são as referências teóricas que fornecem as bases para o entendimento de que o ser humano, ao partilhar suas músicas, demarca espaços de participação social coletiva ao mesmo tempo em que elabora e reafirma pautas identitárias, afetivas e emocionais individuais. PALAVRAS-CHAVE: partilha social da música; fato sonoro-musical;cognição e emoção. A música é apontada como a mais social das manifestações humanas. Esta observação talvez se deva ao fato de que a música permite que muitas pessoas se agreguem ao redor de uma fonte sonora compartilhando de um mesmo fato musical. O fenômeno pode ser observado em manifestações concretas da vida cotidiana. Há músicos que se propõem a executar seus instrumentos nas ruas ou em festividades ao ar livre e atraem ao seu redor uma quantidade de pessoas que se interessam em ouvir e participar de sua performance. Quando a proposta é a de interpretações em eventos fechados, em teatros e casas de show, as pessoas repartem um espaço físico delimitado com o objetivo de receber a música, a voz, as vibrações que serão ali executadas. Embalados por orquestras, bandas ou conjuntos musicais, as pessoas cantam e dançam envoltos por harmonias e melodias que desencadeiam movimentos corporais rítmicos em bailes e festivais. Além dessas manifestações sócio-culturais, os aparelhos eletrônicos facilitam a reprodução e repetição das músicas que são do gosto e preferência do ouvinte, também efetivando o contato deste com aquele que canta ou toca. Por que as pessoas suspendem o curso de suas vidas e param para escutar música? Por que inserem a audição musical entre as atividades do seu dia a dia? Por que procuram gravações que 1 Graduada em Música (EMBAP). Bacharel em Musicoterapia (FAP). Mestre em Psicologia da Infância e da Juventude (UFPR). Doutoranda em Educação (UFPR). Musicoterapeuta clínica. Professora Supervisora de Estágios, Departamento de Musicoterapia, Faculdade de Artes do Paraná. permitam a fruição repetida de um mesmo fato sonoro? Variadas respostas podem satisfazer essas questões: o significado da música; a identificação do ouvinte com o intérprete, com o estilo ou com a música em si; a sensação de beleza percebida; a emoção estética. Nenhuma dessas hipóteses serão aqui refutadas. Trata-se, porém, de ampliar os limites dessa discussão, tentando entender aspectos da dinâmica psicológica e neurológica que colaboram para que todos esses fenômenos se concretizem na vivência social da música. Para os fins desse trabalho, música refere-se ao fato sonoro, rítmico, melódico, poético e harmônico, construído e produzido pelo homem, sem que entrem em discussão as qualidades estéticas, características de estilos ou época histórica de sua composição. A música passa a ser considerada, por essa ótica, como uma manifestação acústica cultural e socialmente partilhada. Susanne Langer (1989) no livro Filosofia em Nova Chave, descreveu a trajetória do pensamento filosófico que norteava concepções a respeito da função da música na vida do ser humano, até a época da publicação dessa sua obra. Segundo a autora, a concepção de música como um estímulo capaz de produzir respostas emocionais remonta aos filósofos gregos. Mesmo as sociedades tribais são citadas como usuárias dos toques de tambores e outros instrumentos percussivos como forma de suscitar sentimentos pré-determinados nos membros de suas clãs (p. 212). Langer segue explicando que Kant defendia o lugar da arte como atividade cultural e a música se inseria como uma contribuição para o progresso intelectual. Para os darwinistas, a música seria produto de instintos, contrastando com a noção de música como uma manifestação secundária do sistema nervoso, defendida por William James. Os psicólogos Helmholtz e Wundt, consideravam a música como uma sensação prazerosa causada pelos arranjos tonais que a constituíam (p.211). Já os pensadores Rousseau, Kierkegaard e Croce, defendiam a idéia da música como catarse emocional e sua essência seria a auto-expressão, crença compartilhada pelos músicos Beethoven, Schumann e Liszt. Ao discutir a necessidade da forma artística para a auto-expressão (p.216), a autora concorda em dizer que essa teoria é ainda a mais aceita. Considera que embora possamos “usar a música para descarregar nossas experiências subjetivas e restaurar nosso equilíbrio emocional” (p.217), essa não seria a finalidade principal da arte dos sons. Para essa autora a música é semântica e não sintomática, sendo o seu significado não o de um estímulo para provocar emoções, não o de um sinal para enuncia-las; se tem um conteúdo emocional, ela o “tem” no mesmo sentido que a linguagem “tem” seu conteúdo conceitual – simbolicamente. Não é comumente derivada de afetos nem tensionada para eles; mas cabe dizer, com certas reservas, que é a respeito deles (p.271). Dessa forma, a arte musical deve superar o lugar de estímulo à formação de sentimentos ou de escoadouro emotivo. A música estaria mais próxima da expressão simbólica, no sentido de conteúdo de idéias, de formulação e representação de emoções, disposições, tensões e resoluções (p.221). Tais sentimentos seriam formalizados na obra musical e percebidos pelo fruidor, já que este também comunga da natureza das emoções ali organizadas. Nesse sentido, o intérprete não extravasa seus sentimentos ao executar a música. Ele torna-se mensageiro de uma forma concebida pela lógica do compositor que, ao construir sua obra, nela insere conteúdos emocionais humanos. O psicólogo russo Vygotsky defendeu tese semelhante no livro Psicologia da Arte (1999). Ele considerou que, o papel da música na vida do ser humano estaria reduzido, se as canções e melodias se prestassem apenas a contagiar emocionalmente muitas pessoas com os sentimentos de uma. Ao discutir o critério do contágio, denominação por ele apontada para o fenômeno da transferência de sentimentos via intérprete-fruidor, ele aponta para a possibilidade de se instituir um julgamento estético equivocado quando baseado em percepções que consideram boa a obra que suscita bons sentimentos e de pouca qualidade a obra que faz emergir sentimentos negativos (p.304). Para Vygotsky a verdadeira natureza da arte estaria contida no conflito entre emoções opostas, na contradição que se estabelece entre a forma e o conteúdo da obra que acarretariam na transformação dos sentimentos. A música, forma de arte construída por conteúdos retirados da vida, transcenderia seu próprio conteúdo em formas de expressão que pudessem ampliar os sentimentos individualizados para um sentido social e histórico. Para ele, “na arte supera-se certo aspecto do nosso psiquismo que não encontra vazão no cotidiano” (p. 308). Por essa via de entendimento, a música seria um instrumento a favor da reorganização de emoções e de transformação pessoal. Os sentimentos, antes presentes na vida e simbolizados no conteúdo e forma da obra, poderiam ser eliciados pela própria arte musical. O fruidor teria a oportunidade de percebê-los com um certo distanciamento, já que uma outra pessoa, ao transmitir o fato musical torna-se personagem das cenas e emoções ali representadas. Nessa dinâmica da emoção estética ou catártica, a pessoa poderia confrontar seus próprios sentimentos suscitados pela música, àqueles que se apresentam na obra. Esse confronto afetivo-cognitivo acarretaria na transformação desses sentimentos em outros diferentes dos originais. Para Vygotsky (1990), o ser humano constrói seu imaginário com base nos fatos que encontra e vivencia no decorrer das interações sociais. As fantasias seriam combinações de elementos retirados da realidade e reelaborados pela imaginação (p.16). Percebe-se por essa exposição que os sentimentos, imagens e pensamentos que se reorganizam enquanto o ser humano partilha a música, procedem de vivências reais, de experiências já apropriadas e constituintes de suas subjetividades. Esse movimento emocional que funde sentimentos e imaginação poderia ser melhor entendido sob a lei do signo emocional comum, exposta por Vygotsky no livro La imaginacion y el arte em la infancia (ibidem). Segundo esse enunciado, todos os elementos subjetivos que causam um efeito emocional coincidente tendem a unir-se entre si. Esses elementos podem ser diversificados e sem semelhança entre si. Assim, imagens, sons, emoções, pensamentos de cenas que se baseiam em sentimentos ou signos emocionais semelhantes tendem a se combinar, a se aglutinar. As imagens e sensações se unem por possuírem um tom afetivo em comum. Esse tipo de associação acontece com mais freqüência em estados de espírito nos quais a imaginação movimenta-se com liberdade e trabalha sem regras nem conceitos (p.22). Segundo o autor, todo um movimento de sentimentos, emoções e imaginações, seria desencadeado por associações operadas livremente no psiquismo das pessoas que ouvem e compartilham melodias, ritmos, canções. A subjetividade das pessoas seria povoada por imagens e sentimentos que, atraídos por um mesmo tom emocional, se aglutinariam em torno do fato sonoro-musical que os deflagrou. Não se trata, por essa via de entendimento, de que a música seja a linguagem das emoções. Parece que a música, como uma dimensão de comunicação não-verbal, se coloca como um ponto de partida comum às pessoas. A partir desse elemento coletivamente compartilhado, surgiria a possibilidade da movimentação individualizada do aparelho psíquico no sentido de reunir elementos afetivamente semelhantes e com eles construir analogias, colaborando com a reorganização afetiva e cognitiva das pessoas que co-participam de um mesmo fato sonoro. Como se poderia explicar a dimensão neurobiológica desse movimento de memórias, imagens, cenas, sons, sentimentos e emoções? Nesse sentido, recorre-se aos ensinamentos de André Lapierre (20002), analista corporal da relação. Esse autor fundamenta sua obra na psicanálise, conceitos que não serão adotados para os fins desse trabalho, porém sua exposição prática e suscinta do funcionamento cerebral pode auxiliar no entendimento da questão acima proposta. Para Lapierre, a estrutura neurológica e a estrutura psíquica do ser humano são interdependentes. Elas seriam o resultado da interação entre os fatores genéticos - que fazem com que todos os seres humanos comunguem de uma mesma evolução – e os fatores de adaptação aos eventos da vida diária. Estes últimos são individualizados e fazem com que a estrutura neuropsíquica de cada pessoa se constitua de forma diferenciada. Portanto, neurônios e conexões nervosas mais se desenvolvem quanto mais as demandas se fazem presentes. As demandas se dão devido ás vivências motoras, cognitivas e afetivas do ser humano. Essas experiências acarretam em sensações, percepções que motivam o funcionamento cerebral (p. 209). Dois circuitos funcionais, que ligam as estruturas anatômicas neurológicas, seriam encarregados de transmitir as informações que transitam pelas vias cerebrais: o circuito somatosensorial e o circuito neurovegetativo. No circuito somato-sensorial, as sensações chegam ao córtex. O processo de tratamento das informações é associativo e privilegia as sensações percebidas do meio exterior. Como resultado tem-se uma vivência consciente, lógica e dedutiva. Já no circuito neurovegetativo, as sensações passam pelo sistema límbico para eventualmente chegam ao córtex. O processo de tratamento dos eventos é analógico e privilegia as sensações internas ao organismo. Propicia uma vivência afetiva, emocional e simbólica (p.205). O autor segue explicando que na vida cotidiana, esses circuitos estão em equilíbrio, a vivência flutuando do funcionamento “associativo” ao funcionamento “analógico”, segundo a ativação preferencial de um ou de outro... Esses dois circuitos podem, entretanto, tornar-se incompatíveis: sob o efeito de uma emoção violenta, o circuito associativo é totalmente inibido e você fica incapaz e manter um pensamento intelectual. Em contrapartida, se estiver muito concentrado numa atividade intelectual, reagirá de modo retardado a um stress emocional (p.206). Parece que os circuitos neurobiológicos se encarregam de processar as sensações que são percebidas pelos sentidos tanto na realidade exterior como na realidade interior do organismo. Tomando-se por base o funcionamento da estrutura cerebral no que diz respeito aos circuitos neurobiológicos, pode-se inferir que tanto a dinâmica biológica como a psicológica se sucedem durante a partilha de fatos sonoro-musicais. Sob o ponto de vista da construção de analogias proposto por Vygotsky e da formulação de símbolos representando as emoções, apontado por Langer, a música socialmente vivenciada pode promover alterações fisiológicas e psíquicas nas pessoas. Essas alterações acarretam em dinâmicas cognitivas e emocionais que podem resultar numa nova visão de si mesmo e do ambiente ao redor, modificando pessoas individuais e coletivas. Por essa via de entendimento, a audição, a fruição musical, seja ela individual ou compartilhada, se torna um ato social com implicações que ultrapassam a auto-expressão ou o contágio das emoções. Conclusão Nesse trabalho foram discutidos temas referentes à partilha social de fatos sonoro-musicais. Indagando os motivos pelos quais as pessoas incluem no seu dia a dia ações que permitem o compartilhamento de um mesmo fato musical em concertos, bailes, shows, ou até junto a aparelhos eletrônicos, buscou-se compreender esses fenômenos á luz das idéias propostas por Langer e Vygotsky. Entendendo que a arte musical deve transpor as funções de estímulo desencadeador de sentimentos, de descarga emocional e do contágio afetivo, mostrou-se que a música pode se inserir na vida cotidiana como um fato que simbolicamente se reporta aos sentimentos e emoções do ser humano. Capaz de promover intenso movimento psíquico e neurológico, a música pode eliciar uma ambientação afetiva seguindo o princípio da lei do signo emocional comum. Atuando no campo da analogia, a música ao ser compartilhada, serviria como ponto de partida comum às pessoas para o desencadear de uma dinâmica subjetiva e individual na dimensão da emoção estética. Compartilhar fatos sonoros- musicais é uma atividade que faz parte da vida cotidiana do ser humano. Demarcada pelo gosto e preferência de cada pessoa, essa partilha acontece por meio de um movimento cognitivo e psicológico intenso. Ao compartilhar músicas as pessoas asseguram um espaço social individual e coletivo. As pessoas usufruem de um mesmo fato cultural que passa a se constituir em um significado pessoal e diferenciado para cada um. Ao compartilhar suas músicas o ser humano garante espaços de convivência e participação social, reorganizandose emocionalmente, reafirmando pautas identitárias e preferências musicais. REFERÊNCIAS LANGER, Suzane. Filosofia em nova chave. (2a. ed.). São Paulo: Editora Perspectiva, 1989. LAPIERRE, André. Da psicomotricidade relacional à análise corporal da relação. Curitiba: Editora UFPR, 2002. VYGOTSKY, Liev Semionovitch. 1999). Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes, ____________ . La imaginacion y el arte em la infancia. Madrid: Ediciones AKAL,1990.