Recuperação econômica e atraso

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Recuperação econômica e atraso
CHADAREVIAN, Pedro C. “Recuperação econômica e atraso”. Valor Econômico. São
Paulo, 23 de março de 2010.
Não resta mais dúvida que a economia brasileira está entre as que mais se destacam
na atual conjuntura de recuperação econômica pós-crise financeira global. Seria perda
de tempo esforçar-se em provar o contrário. Exceção feita à China, que não entrou em
recessão, o Brasil é a economia que mais rapidamente se recupera, no seleto grupo
das dez maiores potências do planeta. Essa conjuntura excepcional - a previsão é de
expansão de até 5% em 2010 - tem causado verdadeira euforia entre os
representantes de multinacionais instaladas no país. Apesar da redução nos
investimentos, o Brasil manteve um nível elevado nas vendas e não sofreu o temido
aumento na inadimplência, garantindo assim a retomada de margens significativas nos
negócios.
O momento agora chama à reflexão dos economistas a respeito das possíveis causas
desse sucesso impressionante. Mas não totalmente inesperado. O governo apostava
em uma "marola" ao fim de 2008 e, convenhamos, errou por pouco. O Brasil termina
2009 com crescimento zero, o que o situa muito acima de países desenvolvidos que
seguem em depressão, como os da zona euro, o Canadá e a Grã-Bretanha; mas
também representa um desempenho melhor que alguns de seus rivais, digamos,
subdesenvolvidos industrializados, como México ou Rússia. Ainda de acordo com o
discurso oficial, a recuperação brasileira seria devido às políticas anticíclicas utilizadas
pelo governo a fim de estimular a economia. Essa argumentação, contudo, não resiste
a uma avaliação crítica, como a que trataremos de esboçar a seguir.
Ora, o Brasil é a potência econômica que menos gastou com o pacote de estímulos
para reativar a economia. Por si só, essa já seria uma razão suficiente para desconfiar
da ausência de relação entre as políticas anticíclicas e o contexto de recuperação
econômica atual. Naturalmente, os incentivos fiscais e monetários resultaram em um
atrativo adicional para os consumidores, bem como a extensão do seguro desemprego
trouxe algum alívio para os trabalhadores mais vulneráveis. No entanto, isso não é
suficiente para explicar a menor taxa de desocupação dos últimos sete anos. Além
disso, a taxa de juros foi reduzida, mas segue entre as maiores do mundo em termos
reais.
É preciso, portanto, buscar em outros fatores as razões da atual trajetória de
crescimento da economia brasileira em plena conjuntura recessiva entre os países
mais avançados. Fatores que despontaram em um contexto muito anterior à eclosão
da crise global e, portanto, às tímidas políticas anticíclicas da equipe econômica de
Lula.
Uma primeira pista importante é a recente reorientação do comércio internacional
brasileiro, cada vez menos dependente das trocas com EUA e União Europeia. A
China, que lidera a acumulação capitalista global, e os vizinhos do Mercosul,
relativamente poupados pela crise, estão se tornando os principais parceiros
comerciais do país. A demanda chinesa aquecida já pressiona novamente os preços
das commodities, o que beneficia diretamente a balança comercial brasileira.
Por outro lado, uma série de políticas adotadas ao longo do segundo mandato do
governo Lula, mas bem antes da crise, teve um impacto considerável no poder de
compra da população de mais baixa renda, ao mesmo tempo em que estimulou o
investimento privado. Trata-se de um perceptível ressurgimento, após um longo
intervalo, das políticas social e industrial no país, que se manifestam, acima de tudo,
pela generalização da concessão do Bolsa Família e de seguidos reajustes no salário
mínimo acima da inflação. A isso, adicione-se as centenas de bilhões dos planos
federais de investimento em infraestrutura (transporte, energia e moradia), e de crédito
do BNDES para grandes corporações nacionais e estrangeiras, em parte já aplicados.
Assim, paradoxalmente, a particularidade da recuperação econômica brasileira se
deve muito mais a fatores próprios ao subdesenvolvimento de nosso modelo do que ao
conjunto de medidas anticíclicas adotadas pelo governo. Em primeiro lugar, nosso
grave quadro de pobreza faz com que gastos públicos pouco expressivos como o
programa Bolsa Família (menos de 1% do PIB) provoquem uma reação mais do que
proporcional em uma demanda historicamente reprimida. Em segundo lugar, o déficit
histórico de infraestrutura justifica uma gama de investimentos tanto públicos como
privados, beneficiado pelo resgate do papel planejador do Estado. E, por último, o
grande negócio das eleições no Brasil, em um contexto político de sucessão
presidencial, resulta em injeção recorde de recursos na economia, especialmente
naqueles estados que alimentam a oposição ao governo Lula (São Paulo e Minas
Gerais).
Isso não implica, por certo, que nos países mais desenvolvidos estas situações não se
apresentem. O que nos diferencia em relação aos demais é sobretudo o grau com que
se manifestam a pobreza, a concentração do poder político e econômico, e o déficit
estrutural de nossa economia, trazendo infinitas oportunidades de investimento, cujos
efeitos sobre o mercado de consumo têm se mostrado determinantes para a atual
trajetória de crescimento. Mas são poucos os motivos para comemorar. Se o atraso
relativo da economia brasileira resulta em vantagens evidentes em momentos de crise,
ele não pode ser dissociado de seu lado negativo, que se traduz pela insegurança
econômica latente de sua população, pela tendência de reconversão qualitativa da
estrutura produtiva para segmentos de baixo valor agregado (como a especialização
em commodities agrícolas e industriais), pela corrupção recorrente associada à falta de
regulação do processo de financiamento de campanhas eleitorais. A se manter a
reduzida autonomia de decisão nas esferas política e econômica frente às forças
conservadoras que perpetuam essas mazelas históricas, dificilmente se resolverão as
contradições de nosso modelo. E o atual contexto será lembrado apenas como mais
um entre tantos momentos efêmeros de prosperidade de uma economia por demais
instável.
Pedro C. Chadarevian é professor de Economia da Universidade Federal de São
Carlos. Doutor em Economia pela Universidade de Paris 3 - Sorbonne Nouvelle.
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