2016-10-07 RevistaBrasileiradeCiênciasCriminais 2016 RBCCRIMVOL.121(JULHO2016) 7.CONSENTIMENTO–ORTOTANÁSIAEADEQUAÇÃOSOCIAL 7.Consentimento–Ortotanásiaeadequaçãosocial Consent– Orthothanasiaandsocialadequacy (Autor) MIGUELREALEJR. ProfessorTitulardeDireitoPenalnaUniversidadedeSã[email protected] Sumário: 1Oslimitesdoconsentimentodoofendidonopassado 2Novadimensãodoconsentimento:bioéticaedireitoàmortedigna 3Relaçãomédico/paciente 4Ortotanásia 5Enquadramentonaestruturadodelito ÁreadoDireito:Penal Resumo: O artigo discorre sobre o consentimento do ofendido e o tratamento do instituto perante a dogmática moderna. Além de analisar questões genéricassobreotema,oautorincluiaperspectivadaeutanásiaeortotanásiaafimdeavaliararelevânciaepertinênciadoconsentimentopara oDireitoPenalatual.Aofinal,oautorconclui,diferentementedoapregoadoporNelsonHungria,queoinstitutotemgranderelevânciaparaa interpretaçãoconcretaeequânimedodireito. Abstract: Thisarticlediscussestheconsentoftheaggrievedpersonandhowthedoctrineisaddressedinthescopeofmoderndogmatics.Additionally,it examines general questions regarding the theme, the author includes the prospect of euthanasia and orthothanasia in order to assess the relevanceandpertinenceoftheconsentforthecurrentCriminalLaw.Finally,theauthorconcludes,unlikeproclaimedbyNelsonHungria,that thedoctrinehasgreatrelevancetotheconcreteandequitableinterpretationofthelaw. PalavraChave:Consentimentodoofendido-Eutanásia-Ortotanásia-Teoriadodelito. Keywords:Consentoftheaggrievedperson-Euthanasia-Orthothanasia-Theoryofcrime. 1.Oslimitesdoconsentimentodoofendidonopassado OConsentimentodoOfendidoveioaserprevistonoCódigoPenalitalianode1930,emseuart.50,segundooqualconstituíacausadejustificação, assimdescrita:“nonèpunibilechiledeoponeinpericoloundiritto,colconsensodelapersonachepuòvalidamentedisporne”. OProjetoAlcântaraMachado,grandementeinspiradonodiplomapeninsular,oreproduziaaodispornoart.15,n.1comocausaexcludentede injuridicidade:“oprévioconsentimentodequempossavalidamentedispordobemjurídicoofendidoouameaçado”. Nelson Hungria, figura dominante na revisão do projeto, criticou duramente a adoção do consentimento como causa excludente da ilicitude eliminando-o por considerá-lo “evidentemente supérfluo”. 1 Referia-se Hungria aos casos em que o dissenso do sujeito passivo é claramente elemento constitutivo do crime, pois na hipótese de seu assentimento o crime claramente não se tipifica. Se o não consentimento é elemento essencialdocrime,oconsentimentoexclui,evidentemente,asuacaracterização. Daí haver razão, na observação de Hungria, no sentido de ser meridianamente claro não se reconhecer criminalidade em fato carecedor de condiçãoessencialparasuaqualificaçãolegalcomocrime.Seriaahipótese,porexemplo,docrimedeInvasãodoDomicílio,noqualaautorização do proprietário do imóvel, evidentemente, desfaz o caráter típico da conduta de entrar na residência, pois realizada a ação de acordo com o titulardobemjurídico. Nocasodocrimedeinvasãodedomicílio,comodizMaggiore,odissensoéconstitutivodofato, 2elogooconsensonãofazsurgirocrime,como decorrênciadoprópriotipopenal.Oacordoemfazeralguémentraremsuacasanãoafrontaobemjurídicodavidaprivada,masviabilizaasua realização, pois constitui um ato de exercício do domínio do âmbito da existência do lar ou do exercício da propriedade ao se dispor sobre o acesso a eles. Como diz Manuel Da Costa Andrade, neste caso a autorização da intervenção de terceiro é emanação e parte integrante da realizaçãododireito. 3 Mas quando o dissenso não é elemento integrante do tipo, como na hipótese acima lembrada do crime de invasão de domicílio ou dos crimes sexuaispraticadosmedianteviolênciaougraveameaça,oconsentimentoéexternoaotipoedizrespeitoaumaautorizaçãodosujeitopassivoa que o seu bem protegido pelo direito seja lesado ou posto em perigo. Em que casos poder-se-ia admitir um relevo a esta subjetivação do bem jurídico?Quandoointeressesocialquelevouasealçardeterminadofatoàcondiçãodedelitodeveriacederpassoàautodeterminaçãodosujeito passivoapontodetornarirrelevantealesãoaobemjurídicoqueveioaserconcretamenteferido? Ouniversotorna-sebastanteestreito.Hungriajádesafiava:emquecasosoconsentimentopodeserexcludentedocrime?Erespondia:“nãohá investigaralhureshipótesesdelivredisponibilidadededireitospenalmentetutelados”. 4 Aprimeiralimitaçãodizrespeitoàtitularidadedobemjurídico,ouseja,oconsentimentohádeserconcedidoporumtitularidentificáveldobem jurídico,razãopelaqualPierangellientendequeoconsentimentoédesercabívelnoscrimescontrabenspatrimoniais;contraintegridadefísica; contraahonraecontraaliberdadeindividual. 5 Alémdomais,obemjurídicodeveservalidamentedisponível.Nãosepodeconfundiraoutorgadodireitodeagir,aaçãopenalprivada,coma naturezadisponíveldobemjurídico.Sãoquestõesdenaturezadiversa, 6poisaoutorgadainiciativadaaçãopenalaosujeitopassivoatendeao interessedestedetornarpúblicoounãodeterminadofatolesivoàsuahonrasexual,umestupor,porexemplo.Nãosetratadeconsentimento,e muitomenosprévio.Masdejuízodeconveniênciadapersecuçãopenal. Restaaindagaçãoacercadoquevenhaaserdireitodisponível?Maisfácilantesresponderquaisdireitosseriamindisponíveis:osdireitosque atingemcoletividadenãopersonificada,comoafépública,aincolumidadepública,asaúdepública,aadministraçãopública,aadministraçãoda justiça. DizPedrazziseremdisponíveisporexcelênciaosdireitospatrimoniais. 7Podemserdisponíveisoutrosatributosdapersonalidadecomoahonra, aliberdadeindividual,avidaprivada. Em relação à vida há unanimidade no sentido de ser a mesma indisponível. 8 Até mesmo quando sua supressão se dá a pedido, com fim humanitário,poisigualmentepunida,tãosomentesendoapenareduzida.Senãosepuneosuicídio,todavia,incrimina-seoauxílioaosuicídio. Mas,comoressaltaPierangelli,obemjurídicopodetransmudar-sedeindisponívelemdisponívelevice-versa,dandocomoexemploaeutanásia quenãoerapunívelnoCódigoSoviéticode1922sendo,todavia,incriminadonalegislaçãovigenteem1996. Assim, o consentimento do ofendido remanesce como uma questão desimportante, cuja superfluidade chega a ser incomodativa como dizia Hungria? Ou ganha importância em face das novas perspectivas trazidas pela bioética, das mudanças havidas nas relações médico-paciente e tambémmuitoespecialmentepeladiversacompreensãodaéticamédicafrenteàortotanásia? Cumpreexaminar,portanto,aquestãopelosseguintesângulos:odireitoàmortedignaeanovaposiçãodomédicofrenteaosdoentesemfase terminal;emqueconsisteaortotanásia;qualofundamentolegitimadordestascondutaseseuenquadramentonaestruturadodelito. 2.Novadimensãodoconsentimento:bioéticaedireitoàmortedigna Muitasnovasvertentesabriram-secomoreconhecimentodaautonomiadapessoaparadecidirdasuamorte,doenfrentamentodasuadoença, dadefiniçãodoseutratamento,comalteraçõesprofundasnarelaçãomédico/paciente. São difíceis e complexos problemas suscitados atualmente nas instâncias internacionais e nas legislações internas pela denominada “ajuda à morte”, graças, também, aos progressos da medicina intensivista que prolonga por meios artificiais o processo de morte. O elevado desenvolvimento científico e técnico, surpreendente por seus avanços, levou ao surgimento de nova disciplina, de cunho multidisciplinar, a Bioéticaqueunsconsideramseinter-relacionarcomoBiodireito. 9Este,todavia,nãoconstituiumadisciplina,comterritóriopróprio,masapenas umregramentoesparsodojáconsolidadooudomaisgravedentrodacomplexidadeedaextremavariaçãodasquestõestrazidaspelaBioética. A Bioética surge nos anos 70 do século passado impondo limites ao incomensurável campo aberto pelo desenvolvimento tecnocientífico da medicina,apartirdoprincípiodadignidadehumana,queveioaserconsagradonopreâmbulodaDeclaraçãoUniversaldosDireitodoHomemde 1948.Constoutambémdasconstituiçõesdopós-guerracomoaitalianaeadaRepúblicaFederaldaAlemanha 10passandoaserreconhecidopelos maisdiversospovoscomoumvalorquesesabeoqueé,independentementedeserclaramenteconceituado, 11brotadaconsciênciaconstruída aolongodotempofrenteàsbarbáriescometidasequeserevelapelosbensaseremtuteladoseprotegidoscontraviolações. O princípio da Dignidade Humana apresenta-se em diversas instâncias que vão do geral ao particular: valor fonte dos demais valores; valor fundamentaldarepública;notacaracterísticadetodohomemcomoseemcadaqualhouvesseahumanidade;noplanodasingularidadedecada umoprincípiodadignidadetemcomocorolárioaliberdadedodesenvolvimentodaprópriapersonalidade;outrocorolárioresidenorespeitoao princípiodaautodeterminação. 12 A dignidade da pessoa humana consiste, portanto, em um feixe concentrado de atributos reconhecidos como próprios do ser humano para garantiadesuahigidezfísica,psíquicaemoral.Bensintegramopatrimôniodecadahomemcomoseoconstituísseaprópriahumanidade,com destaqueparaosvaloresdavida,daintegridadefísica,daliberdade,dahonraedorespeitoàautonomiaparadecidirdeseuprópriocorpo,desua doençaedesuamorte. Pode-senotara claradecorrência dosurgimento daBioética apartir doprincípioda Dignidadeda PessoaHumana. ABioética, quenãopossui objetodeterminado, 13sendofluidooseuuniversodiantedasconstantesinovaçõestecnológicas,buscaafixaçãodelimitesmoraisedecritérios paraasoluçãodecasospráticosocorridosnodiaadiaedepropostasdepesquisa, 14tendoporfimresponderàperguntadoqueécertofazerem facedosprogressoscientíficosparapreservarapessoacomoumfimenãocomoinstrumentoparaoutrosinteresses. A noção de dignidade da pessoa desempenha, portanto, o papel de diretriz da Bioética, como diz Andorno, estabelecendo linhas orientadoras impeditivasdasatisfaçãodeinteressesvioladoresdosvalorescomponentesdonúcleoduroinerenteaoserhumano. Muda-se,então,ofoco:adignidadedavidaestavaemviversofridamenteoprocessodemorte,mesmoseinvencíveisasdores,semsepermitira abreviaçãodofiminexoráveleinafastável,conformediagnósticomédicoseguro,sejapormeiodaomissãodemeiosinúteis,sejapelaintervenção direta. Apessoahumananãomaisapenasévistacomosujeitadedireitos,dotadadecapacidadejurídica,masportadoradopoderdeescolheropróprio destino,poisdotadadeautonomia,comocoroláriodadignidadequeareveste,impondo-seorespeitoàssuasdecisões,atendidoodireitodeser corretamenteinformadasobresuasaúde,osatosmédicosaseremnelapraticados,asuacura,oseuprocessodemorte. Assim,aqualidadeintrínsecaefundamentaldapessoahumanadeseautodeterminar,decidindodeseuprópriodestino,desfazodeverdeviver contraasuaprópriavontade 15elevaasereconheceralegitimidadedaopçãolivrede,quandoinvencívelosofrimento,nãoprolongaraagonia deixando transcorrer, sem intervenções inúteis ou obstinadas, o processo de morte, tomados rigorosamente os cuidados legais exigíveis, para anteciparamortebrevíssimaeinafastável. Do contrário, estar-se-á a impor a dor impossível de ser eliminada, em imolação, deixando-se de olhar o homem concreto em sua dignidade existencial,apessoahumanaemsuaessênciaeexistência,paravislumbraromártirembuscadasalvaçãoeternacomoformaobrigatóriaatodos ossereshumanos,quandodevehaverumaescolhaporcadaqualnadefiniçãodosentidomaisprofundodesuavida. Em vista dessas considerações é possível enfrentar seja a profunda mudança na relação médico/paciente, seja o problema da ortotanásia e da eutanásiapassivasobumanovaperspectiva,masquenemporissodeixadeapresentardilemasdedifícilsolução. 3.Relaçãomédico/paciente Esta nova perspectiva teve, como não poderia deixar de ter, influência na relação entre médico e paciente, que sofreu entre nós um grande avançoem2010comonovoCódigodeÉticaMédica. Parasedeterminarosentidodeumconjuntonormativocaberealizarumainterpretaçãointegral,sistemática,teleológicaesociológica,poisnãoé aletradaleiqueimporta,masoespíritodalei,atravésdapróprialei:“Audelàducode –maisparlecode”,naexpressãodeGeny.Aointérprete cabealcançararazãosubstancialepráticadoescopoquedeterminouaediçãodanorma,aqualdeveiluminarasuaaplicação. O Código de Ética inicia-se com considerandos que indicam a razão de legislar. Em um dos considerandos diz-se estar na “busca de melhor relacionamento com o paciente e a garantia de maior autonomia à sua vontade”. Dentre os princípios, como normas prospectivas, de caráter finalístico, estabelece-se que o médico “ aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos”.Faz-se,porém,umadendo:“desdequeadequadasaocasoecientificamentereconhecidas”. Napartedispositiva,veda-seaomédico“deixardegarantiraopacienteodireitodedecidirlivrementesobresuapessoaouseubemestar”,(art.24) bemcomo“desrespeitarodireitodopacientededecidirlivrementesobreaexecuçãodepráticasdiagnósticasouterapêuticas” (art. 31). Fazem-se exceções,contudo,poisédeverdomédicoexercersuaautoridadeparalimitarodireitodedecidirdopaciente,mormente“emcasodeiminente riscodemorte”. Dessa maneira, amplia-se o dever de informar do médico, bem como se garante que o paciente seja ouvido sobre as práticas diagnósticas e terapêuticas, mas sempre com uma limitação: “desde que não haja iminente perigo de morte”. O Código estabelece um conflito de valores que apenas pode-se resolver no caso concreto, levando-se em alta conta o valor fim constante dos considerandos e dos princípios, qual seja o de garantirodireitodopacientededecidirsobresuapessoa. Só no caso concreto, com prudência e bom senso, cabe dar maior ou menor peso à autodeterminação do paciente em face da beneficência indicadapelomédico.Porexemplo:Umadecisãofilhadaignorânciaedotemorexagerado,emcontrariedadeaoindicadopelaciênciamédica, nãopodeseraceitapelomédico.Omesmonãosucedeemcasosnosquaisumaoperaçãodealtoriscopodeaumentaraprobabilidadededano, com dolorosa convalescença, malgrado haja possibilidade de eventual benefício. Nesta hipótese, a decisão deve ser do paciente, dando-se prevalênciaàautodeterminação. 16 4.Ortotanásia Examinadaanovarelaçãomédico/pacientedaqualdefluiespecialmenteodireitodeopacientedeserinformadoededecidirsobreotratamento a que será submetido, haja ou não, ao meu ver, risco de vida, cumpre verificar as formas de ação do médico que têm como resultado o não prolongamentodoprocessodemorte(ortotanásia)eonãoprolongamentodeumavidavegetativamantidaartificialmente(eutanásiapassiva), cujofiméconscientementedesejadopelopacientecapazdedecidir. Duas formas básicas existem, a comissiva e a omissiva, a primeira por ação direta no processo de morte antecipando, graças à interferência realizada,amortedopaciente,asegundapelanãointerferência,deixando-sequeocursodadoençasigaoseucaminhosemmedidasartificiais oudemanutençãodavidaporserinviávelqualquerpossibilidadedecura,comadoçãoexclusivadepaliativoseliminadoresoulimitadoresda dor. Em ambas as hipóteses deve-se ter por pressuposto a anuência válida do paciente, por si mesmo ou por seu representante. Interessa estudar apenashipótesedaortotanásia,queconsistenainterrupçãodequalquertratamentovisandoàcuraparadeixarqueoprocessodemortesigao seucursonatural. A ortotanásia distingue-se, também, da eutanásia passiva, pois enquanto naquela a morte é próxima e inafastável, nest’outra a morte é mais distante,malgradojápresenteadoençacomaafliçãodesofrimentosdecorrentesdoaprisionamentodocorpoàtotalimobilidade,instalando-se umasobrevivênciaàcustadealimentaçãoinduzida.Mas,nesteartigo,limitooestudoàhipótesedaortotanásia. AfiguratípicadaortotanásiaprecisaseradequadaàscondiçõesdescritasnoCódigodeÉticaMédica,paranãoseincorrernofenômenodaescada abaixo”, ou seja, no crescimento da permissão para a eliminação de vidas humanas motivada por interesses imorais, como econômico ou de conveniênciaegoística,frente,porexemplo,pessoasportadorasdegravesdeficiências. Participei da elaboração de dois anteprojetos de Parte Especial do Código Penal, em 1984 e em 1997 nos quais se previa que a ortotanásia não constituía crime, pois excluída era a criminalidade na hipótese de se “ deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestadapordoismédicosamortecomoiminenteeinevitável,edesdequehajaconsentimentodopaciente,ounasuaimpossibilidade,deascendente, descendente,cônjuge,companheiroouirmão" Desenhava-se,nosAnteprojetos,destarte,commaisprecisãooquadroemquedeveseencaixaracondutaparaseirrelevanteemfacedodireito penal:(i)morteiminenteeinevitável;(ii)atestadodestasituaçãopordoismédicos;(iii)açãoconsistenteemdeixardemanterartificialmentea vidadopaciente;(iv)consentimentodopaciente;(v)naimpossibilidadededaropacienteoconsentimentodeveesteserdadopeloascendente, descendente,cônjuge,companheiroouirmão,figurapenalqueadianteseráanalisada. Mas,posteriormenteaosAnteprojetosreferidos,baixouoConselhoFederaldeMedicinaaResolução1.805/2006aqual:"épermitidoaomédico limitaroususpenderprocedimentosetratamentosqueprolonguemavidadodoenteemfaseterminal,deenfermidadegraveeincurável,respeitadaa vontadedapessoaoudeseurepresentantelegal".EstanormafoiantecipadamentesuspensaatésentençafinalemAçãoCivilPúblicainterposta peloMinistérioPúblico. Veio a ser prolatada, então, a sentença baseada em alentada manifestação da Procuradora da República Luciana Loureiro Oliveira, que, contrariandoaorientaçãoanterior,defendeualegalidadedodispositivoautorizadordaortotanásia. CombasenaopiniãodeLuísRobertoBarroso,reconheceuaprocuradorahavernaortotanásiaoexercíciodeumdireitoàautodeterminação,com respeitoàvontadelivredopaciente,eaprevalênciadoprincípiodadignidadedapessoahumana,quecompreendeodireitoaumamortedigna. Sobreveio em 2010, como já acima acentuado, o novo Código de Ética Médica, no qual se estatui, como princípio, que o médico evitará procedimentosdesnecessários,oquesecompletacomodispostonoart.41§1.ºautorizadordaortotanasiaaosedeixarquetranscorraoprocesso naturaldamorte,nãoprolongandoindefinidamentepormeiosartificiaisumavidadolorosaemestadoterminal,desdequehajaconsentimento dopaciente. Dispõeoparágrafodoart.41:“Noscasosdedoençaincuráveleterminal,deveomédicooferecercuidadospaliativosdisponíveissemempreender ações diagnósticas inúteis e obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representantelegal”. Determina-se,então,nãoseremadotadasmedidasterapêuticasinúteisquevisemobstinadamenteprolongaravida,masapenasaplicarcuidados paliativosparaminorarador. Reconhece-sequeodireitodevidadignacompreendeodenãosofrermanobrasinvasivasnãocurativasapenasprolongadorasdocursodamorte, dando-sevalidadeàvontadedopaciente, 17emestadoincuráveleterminal,nosentidodeserauxiliado“nomorrer”,commeiospaliativosesem imposiçõesobstinadasdelevaravantenãoavida,massimojáinstaladoprocessodolorosodemorrer. O direito de vida digna compreende o direito à morte digna, ou seja, o direito de não sofrer manobras invasivas não curativas que apenas encompridamocursodaagonia,razãopelaqual,emgrandeavanço,oCódigodeÉticaMédicareconheceavalidadedavontadedopaciente,em estadoincuráveleterminal,nosentidodeserauxiliado“nomorrer”,commeiospaliativosesemimposiçõesinúteiseobstinadasdeprolongarnão avida,massimoprocessodolorosodemorrer. 18 5.Enquadramentonaestruturadodelito ÉumacontradiçãoaortotanásiaconstituircrimeesereticamenteaprovadapeloConselhoFederaldeMedicina. É preciso ressaltar, como acima assinalado, que há duas situações diversas, mas muito próximas: a ortotanásia e a eutanásia passiva. Na eutanásia passiva há a manutenção artificial da vida, que se viabiliza exclusivamente por meio de respiração por aparelhos ou por meio de alimentaçãovenosa,emumaexistênciavegetativa,semriscodemorteimediato. Aanáliseconjuntadasduassituaçõesdemandariadesdobramentoincabívelnopresenteestudo,razãopelaqualmefixoemexaminarahipótese daortotanásia,jádisciplinadapeloCódigodeÉticaMédica. Creioseraconselhávelquealeipenalestatuaclaramenteasituaçãodeortotanásiaedaeutanásiapassiva,paraquehajamodelosdeaçãolícita, comosseusrequisitoselimitesbemfixados,visandoasedefinirmelhoradisciplinaconstantedasnormaséticas. 19 Todavia,independentementedaprevisãodaexclusãodeilicitudedeformaexpressapormeiodelei,pode-se,semdúvida,combasenateoriado delito,consideraratípicastaisações,comoadianteseverá. RoxinconsideranãoseroConsentimentodoOfendidoumacausaexcludentedailicitude,poisasjustificativassempredecorrem,comonoEstado deNecessidadeenaLegítimaDefesa,deumconfrontodeinteresses,dadoesteinexistentenoConsentimento. Assim,paraRoxin,oconsentimento“representaumcorpoestranhonosistemadascausadejustificação”,poisestasdescansamnosprincípiosde ponderaçãodeinteressesedenecessidade. 20Noconsentimento,aseuver,todavia,háumavontadelivredoportadordobemjurídicosemque hajacontraposiçãodeinteresses. Dessaforma,Roxinnãoelegecomoumvalorasecontraporaointeressesocialdeproteçãodobemjurídicoaautodeterminaçãodotitulardobem concretoemjogo,vistaestavontadecomomeramanifestaçãodescoloridademaiorsignificaçãovalorativa. JánãopensadessamaneiraJescheck,paraoqualavaloraçãosubjetivadosbensjurídicospeloindivíduoédeserreconhecida.Aseuver,emum Estado de Direito Liberal o uso sem restrições da liberdade pessoal, como um valor social, tem de ser ponderado frente ao interesse da comunidadedepreservaçãodosbensjurídicos. 21 Igualmente,FigueiredoDias,dárelevoàautonomiapessoaleaoconsequentedireito“deautodeterminaçãodotitulardobemjurídicolesado”, 22 deformaaqueessavontadesejareconhecidasuperioraointeressesocialdepreservaçãodobemjurídico,tuteladoabstratamentepelaleipenal. Haveria,aseuver,aocontráriodeRoxin,umacolisãodeinteresses:deumladoointeressedejurídico-penaldepreservaçãodobemjurídicoque o legislador elegeu tutelar; de outro o interesse relevante de preservação da autonomia pessoal e da vontade do titular do bem jurídico concretamenteemjogo.Estabelece-seumconfrontoentreaefetividadedosistemasocial,queprevêapuniçãodofatolesivoaobemjurídicoque veioaserlesadoedeoutroaefetividadedavontademanifestadapelotitulardobemjurídicoqueemsuaautodeterminaçãodispôsdobem. Nocaso,sendoobemdenaturezaestritamenteparticular,ointeressedacomunidadedevecederpassoaointeressedeautorealizaçãodosujeito passivo.DizFigueiredoDias:“todaavezemquealeiprotejaaliberdadededisposiçãodoindivíduoaconcordânciadointeressadofazcomque nãopossanemdevafalar-seemviolaçãodobemjurídico”. Malgrado Roxin não veja no Consentimento um confronto de interesses, considera, todavia, que, se os bens jurídicos devem servir ao desenvolvimentodoindivíduo,nãoháqualquerlesãoquandootitulardobemjurídicoferidoreconheceaaçãocomoválida.Adestruiçãodeuma coisa que o seu proprietário não se importa ver destruída e até autoriza que o seja atende à realização de seu proprietário como autodeterminação. Por essa razão, com o mais estrito rigor há de se repensar o consentimento com relação à omissão de medidas de prolongamento da vida de doentes terminais para manutenção artificial da existência, tendo em vista a relevância assumida nos tempos atuais pela autodeterminação pessoal,daimportânciadadecisãolivreeconscientedopacientefrenteaoseuprocessodemorte,comorefleteasnormaséticasemdocumentos internacionaisenocódigodamedicinanacional. Assim, diante da importância reconhecida à vontade expressa do paciente a dever ser admitida como relevante, definidora de como e quando morrer,respeitadosrigidamenteosrequisitosprevistosnoCódigodeÉticaMédica,nãoseestaráaofenderobemjurídicovidamassimaagirem vistadovalorsocialmentereconhecido,ouseja,odireitodealguémautodeterminarcomoquerqueasuavidasedesenrolenoprocessodemorte inevitávelparaterumfimdevidadigno,umamortedigna. Manifesta-se,destamaneira,umdireitoàvidaeàmortecomdignidadecomoreconhecimentodaautonomia,aspectosestesentrelaçadosque, conforme Letícia Möller, conformam-se aos princípios consagrados na nossa Constituição, estando ademais identificados com os direitos humanospositivadosemdocumentosinternacionais. 23 Nãoseverificaummenosprezoaobemjurídicovida,nãoseatuaemafrontaàvida,masematendimentoàdignidadedavidaquecompreende ter uma morte livremente decidida e digna, dando-se eficácia ao princípio da benevolência. Não se vislumbra, portanto, na Ortotanásia uma causa de exclusão de crime, mas antes uma ação socialmente adequada, quando só aparentemente se lesiona um bem jurídico, ao se visa exatamenteapreservaressevalor,ouseja,avidacomovidadignaquecompreendeamortedigna. Permito-mereproduzirtextodeminhaInstituição, 24noqualescrevoquenaaçãosocialmenteadequadaháumacoincidênciadevaloresefins que animam o agente com os desejados pela comunidade, pois se o boxeur luta para ser um bom esportista, a sociedade espera e deseja um aprimoramento do boxe como esporte; se o cirurgião faz uma incisão no paciente querendo curá-lo, há um desejo geral de que os doentes se recuperem. LembroaliçãodeFiore,paraqueméosignificadoeafunçãodaaçãoqueatornamsocialmenteadequada,poisoseusignificadoeasuafunção podemserconsideradospositivoseatémesmonecessáriosàvidasocial. 25 Renato Silveira, em trabalho definitivo sobre Adequação Social, bem indica que na verificação da Adequação Social de uma conduta, há uma apreciaçãodelitualjáantesdatipicidade,umespaçoprévioaotipodeinjusto,masquenemporissodeixaderealizaruma“argutaponderaçãode interesses”. Por via do exame da Adequação Social estabelece-se, diz Renato Silveira, o que pode ou não ser tolerável, tendo-se por consequência desta constataçãodaconsonânciadacondutacomaordemsocial,comasexpectativassociaisoafastamentodocomportamentodaesferatípico-penal. Esteodadorelevante:aexistênciadeumaponderaçãodeinteressescujapreponderânciabrotaemdesfavordaincriminaçãodaaçãodomédico emfacedodesejoconscienteelivredopacientedeverdignificadooseuprocessodemortecomovalorreveladomaisrecentementecomopróprio dadignidadedapessoahumana. Seria uma afronta ao desejo do paciente de ter uma morte digna, se em cada caso de ortotanásia, cotidianamente ocorrido nos hospitais, se admitisse a configuração típica a ser desconstituída pela verificação de causa supralegal de exclusão de ilicitude em inquérito policial a ser arquivado. Assim,aortotanásiaconfiguracausadeatipicidade,poisdeimediato,ictuoculi,verifica-sealicitudedacondutamovidaporvaloresdorespeitoà decisãodopaciente,deprestígioàdignidadedapessoahumana,emumasituaçãolimite,impedindoqueemseufinalaexistênciadavidaseja destituídadedignidade,torturadaporaçõesobstinadaseinúteisdetentativadeumacuraimpossível,comprolongamentodeagoniasemfimque opacienteconscientementenãodeseja. Nãosetrata,deoutraparte,apenasdehumanitarismo,compaixãonoseacederaohomicídioapedidodequemtemfortessofrimentos,oque poderia corresponder à hipótese da eutanásia ativa. Na ortotanásia, como já acima visto, há a desistência, por parte do médico, com pleno conhecimento e anuência do paciente ou de pessoa por ele responsável, em não se dar continuidade a medidas obstinadas de manutenção artificialdavidaoudeprolongamentoinútildoprocessodemorte,paraseterumamortedigna. Nestasituação,nãohátãosóumfimhumanitáriooudecompaixão,comonaeutanásiaativa,masorespeitoàvidadignaparaseterumamorte digna fruto do processo natural da doença, omitindo-se, com anuência do doente ou de seu representante, uma intervenção que por sua obstinaçãofazavidaindignaeamorteaseseguirdesnecessariamentemaissofridaesemapazalmejada. Ocorreemfacedaortotanásiaumreconhecimentoimediatodalicitude 26ematençãoaovalordavidaeàsuadignidade,apresentando-seuma aprovaçãosocialnãosendoexcludentedailicitude,mas,ictuoculi,lícita,adequadaaosvaloreshojepresentesnomeiosocial. Luzón-Peña considera que as causas de atipicidade não estão muito distantes das causas de exclusão da ilicitude, pois se baseiam em uma ponderaçãodeinteresses,mesmoporquesegundoentendo,eigualmenteLuzón-Peña,tipicidadeeantijuridicidadeseconfundemeseestádiante de elementos negativos do tipo. A distinção entre causa de atipicidade e de exclusão de ilicitude está na imediatidade da revelação de ser a condutajuridicamenteirrelevante. Esta imediatidade brota do reconhecimento da ausência de falta ética na ortotanásia pelo próprio Código de Ética Médica, enquadrando-se na hipótesedeumaAçãoSocialmenteAdequada,dadaaconsonânciacomaordemsocialdiantedaevoluçãosofridacomoreconhecimentogeralda plenavalidadedaautodeterminaçãodopacientefrenteacomosedevedesenrolarseutratamento. Se for, para segurança, dos médicos, conveniente que a lei penal trouxesse, como previsto nos Anteprojetos de Código Penal, figura específica destipicandoaconduta,todavia,ateoriadodelitopermiteexcluirdeincidênciapenalaortotanásia.Configura-se,semdúvida,umahipótesede açãosocialmenteadequada. Por fim, não entendo que em vista do desvalor do resultado e da renúncia à tutela penal dever-se-ia pensar na hipótese de não haver risco juridicamentedesaprovadooucriaçãodeumriscojuridicamentedesaprovado.Eseexisteumconsentimentohaverianãoumriscodesaprovado, masumriscopermitido. 27 Estaposiçãolevariaaumaneutralidadevalorativa,emquesobressaiapenasacircunstânciadehaverumaautorizaçãoparaodanoourisco,sem avaliaçãodoseusignificadovalorativo,oqueempobreceodireitopenal. PesquisasdoEditorial EUTANÁSIA,ORTOTANÁSIAEDISTANÁSIA-REFLEXÕESBÁSICASEMFACEDACIÊNCIAMÉDICAEDODIREITO,deEliasFarah-RIASP 28/2011/131 AEUTANÁSIAEAORTOTANÁSIANONOVOCÓDIGOPENAL,deEudesQuintinodeOliveiraJúnior–RT931/2013/241 ASPECTOSFILOSÓFICOSEJURÍDICOSSOBREAMORTE,AEUTANÁSIA,AORTOTANÁSIAEOSUICÍDIOASSISTIDO,deMarileneAraújoRDCI90/2015/215 ©ediçãoedistribuiçãodaEDITORAREVISTADOSTRIBUNAISLTDA.