SOBRE DIGNIDADE E MUDANÇAS. Cláudia Franco Corrêa Mestre e Doutora pela UGF/RJ. Professora do PPGD da Universidade Veiga de Almeida Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Vivenciamos um momento impar na sociedade brasileira no que é pertinente a demanda de reconhecimento de direitos em prol dos chamados grupos GLBTs. Percebe-se que a sociedade brasileira tem-se manifestado de todas as maneiras quanto as questões afirmativas julgadas como direitos por tais grupos e pessoas. No calor das discussões entre redes sociais, passeatas e sessões legislativas muito se fala e se emociona e, não raro, pouco se reflete, de modo a estabelecer um debate sólido e conducente de uma pauta efetiva de razões de acessibilidades jurídica e legal. De fato, não é defensável qualquer pauta que se baseie em direitos que excluam direitos, ou seja, não é plausível justificar qualquer direito que exclua uma pessoa de exercer direitos, de maneira especial, os ligados a cidadania pelo simples fato de um não-querer –ver. No Brasil ainda estamos (mal) acostumados a compreender que um direito termina quando o outro começa. Talvez, em decorrência das décadas de cabresto, tenhamos assumido que tal brocado seja verdadeiro. Na realidade, nas sociedades ditas modernas e democráticas, os direitos convivem, não há nenhuma implicação do exercício de um direito como limitador de outro. Isto se dá em diversas esferas das vidas das pessoas, cotidianamente. Não há nenhuma lesão a direito o fato de uma pessoa exercer livremente sua identidade sexual, ao contrário, o exercício do seu direito pode e deve coadunar-se com o pleno entendimento de uma sociedade livre e digna. E mais, tal direito deve ser assegurado amplamente, de modo que todas as pessoas tenham tratamento isonômico e sintam-se acolhidas no sistema da igualdade jurídica. Não se justifica na lei qualquer amparo a tratamento desigual e que importe em humilhar ou menosprezar qualquer cidadão em razão de sua identidade sexual. Cabe a todos nós, proporcionarmos um ambiente de harmonia social, de modo que qualquer pessoa sinta-se amparada pelo sistema jurídico, bem como pelo sistema social. Como afirma o filosofo português Castanheira Neves (1998), devemos elevar nossa compreensão de um pensamento puramente legalista. Principalmente na reafirmação dos direito fundamentais, compreendendo que não é a lei que dá validade jurídica a direitos, mas os direitos reconhecidos como fundamentais que se impõem à lei e condicionam a sua validade. Para Maria Berenice Dias (2000), é improcedente a eleição de fator sexista para subtrair dos homossexuais os direitos deferidos aos heterossexuais, postura, segundo a autora, que evidencia discriminação, transgressão ao princípio da isonomia e violação à cláusula constitucional de respeito à dignidade humana, bem como, de forma reflexa, afronta à liberdade pessoal e sexual. Efetivamente a Carta Magna salienta que todos são iguais perante a lei, contudo é relevante salientar que não basta que a lei seja aplicada igualmente para todos, mas é impreterível que a sociedade considere todos iguais perante aos olhos da lei, independentemente de suas concepções pessoais. Essa reverberação é essencial para que sejamos elevados a um patamar de sociedade democrática efetivamente. A igualdade, segundo observa Rizzatto Nunes (2002), serve para gerar equilíbrio real, visando concretizar o direito à dignidade. Assim a dignidade dá a direção, o comando a ser considerado primeiramente por todos. A Constituição Federal dispõe em seu artigo 1°: Art. 1°. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana. A deferência à dignidade da pessoa humana determina que a mesma seja o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional posto e o último arcabouço da guarita dos direitos individuais. Nessa mesma linha considera Ingo Wolfgang Sarlet: [...]Para além da liberdade pessoal e seus desdobramentos, situa-se o reconhecimento e proteção da identidade pessoal (no sentido de autonomia e integridade psíquica e intelectual), concretizando-se no respeito a privacidade, intimidade, honra e imagem, todas dimensões umbilicalmente vinculadas à dignidade da pessoa. (SARLET, 1998) A dignidade da pessoa é, desse modo, peça instrumental e viabilizadora para que o indivíduo possa se desenvolver livremente, na busca de sua realização como pessoa. Conforme assinala Delma Silveira Ibias: A valorização e o respeito aos direitos fundamentais do ser humano, como elementos de um legítimo estado democrático de direito, não podem chancelar qualquer discriminação baseada na orientação sexual. Uma sociedade justa, fraterna e democrática, não pode compactuar com tão cruel discriminação. Enfim, é necessário que seja-se intolerante com a intolerância. (IBIAS, 2002) O filósofo canadense Charles Taylor (2000), pondera que a questão do reconhecimento está diretamente ligada a questão da dignidade, tendo em vista a passagem do antigo regime para a modernidade, uma vez que o aparecimento da noção de identidade individual correlacionada ao perecimento das sociedades hierarquizadas que primavam mais pelo aspecto da honra e suas implicações ao alijamento de uma percepção universal de acesso à direitos, contribuíram substancialmente para as concepções que tratamos brevemente neste texto. Uma sociedade hierarquizada baseia-se primordialmente no conceito da honra e, portanto, intrinsecamente condicionada a desigualdade. Em tais sociedades a posição social do indivíduo estava subordinada a esfera de identidade. Nesta ótica, não prima-se a igualdade, haja vista que somente aqueles que detém a honra estariam aptos a gozar de certos direitos, visto como verdadeiros privilégios. Há neste aspecto, uma elaboração distintiva de pessoa e individuo que desenrolará uma concepção não igualitária e de cidadania deficiente. O cenário que permitia que a pessoa pudesse se auto reconhecer como importante era, em grande medida, determinado pelo lugar que ocupa na sociedade e pelo papel ligado a essa posição. Neste contexto, o referido autor viabiliza uma análise depurada da efetiva noção atualizada de dignidade, utilizando-a como sentido universal e igualitário, que nos faz compreender a possibilidade de categorização universal de acesso a direitos individuais que todos, sem exceção, podem exercê-la. Existe um sentido universal e igualitário, como, por exemplo, da dignidade da pessoa humana ou de dignidade cidadã, ou seja, a designação da possibilidade de uma eficaz igualdade nos direitos individuais que são potencialmente universalizáveis (SOUZA, 2005). Após esse breve contexto de inserção dos aspectos de igualdade associada a concepção de dignidade, podemos refletir que ainda há muito que se caminhar em direção da efetividade de direitos de igualdade, ainda que já se tenha conquistado, por força de decisão judicial em sede do STF, o direito ao casamento, permeia-se uma amplitude no direito de não passar por certos constrangimentos, pois os sistemas de identificação estatal ou privados ainda não absorveram tais “novidades”, como ocorre no caso da necessária identificação do pais, levando em consideração as figuras de pai e mãe e não da filiação em si. Nas fichas cadastrais que seja necessária a identificação do sujeito é comum encontramos um item cuja exigência é a identificação dos nomes do pai e da mãe. E quando a pessoa tiver dois pais ou duas mães? Também é comum, em atendimentos em setores públicos e privados, quando a pessoa se identifica como casada perguntar o nome do marido quando o sujeito é do sexo feminino e da esposa quando for do sexo masculino e raramente pergunta-se o nome do cônjuge genericamente. Na realidade as mudanças precisam ser muito mais viscerais que legais. Crê-se que a institucionalização de práticas educadoras e socializadoras que atendam os novos ventos de cidadania igualitária sejam bem vindas, pois, indubitavelmente contribuirão para um lugar bem melhor de se viver. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. DIAS, Maria Berenice. União homossexual: O preconceito & a justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. IBIAS, Delma Silveira. Homossexualidade – Discussões jurídicas e psicológicas. Instituto Interdisciplinar de Direito de Família. Curitiba: Editora Juruá, 2002. NEVES, Castanheira. Entre o legislador, a sociedade e o juiz ou entre o sistema, função e problema. Boletim da Faculdade de Direito.Coimbra. V. LXXIV, 1998. NUNES, Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Editora Saraiva, 2002. SARLET, Ingo Wolfgang (2001). Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado. SOUZA, Jessé. Subcidadania e Naturalização da desigualdade. Política & Trabalho, João Pessoa, v. 22, p. 67-97, 2005 TAYLOR, C. A política do reconhecimento. In: TAYLOR, C. Argumentos filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000.