1 Comentários a respeito da obra de Hermann Paul – Princípios Fundamentais da História da Língua Princípios Fundamentais da História da Língua, de Hermann Paul (1841-1921), um dos iniciadores do grupo dos “jovens gramáticos” ou neogramáticos, é uma obra de caráter abrangente na medida em que pretende dar conta da origem, cisão, classificação das línguas e das mutações fonéticas, semânticas e sintáticas que sofrem durante sua evolução. Além disso, seguindo a tendência de seu tempo, já procura dar foro científico aos estudos da linguagem, considerando-a como uma ciência histórica. Três contributos mais gerais de sua obra merecem ser destacados: as leis fonéticas têm caráter absoluto; a linguística é uma ciência histórica; e esta ciência deve recorrer consciente e sistematicamente à psicologia. Em relação a este último item, vale lembrar que no decorrer de toda obra, o autor critica as idéias de seu contemporâneo, Wilhelm Wundt (1832-1920) psicólogo e fisiologista alemão que postula a importância do que ele denomina “psicologia dos povos” como fator preponderante na formação e na evolução das línguas. O professor Wolfgang Roth, durante seu curso de Estilística Geral, na PUCSP, em 2000, comentou que, em sua juventude, no final dos anos quarenta, ainda existia uma disciplina obrigatória nas escolas denominada “Psicologia dos Povos”, fundamentada nos princípios postulados por Wundt e por seus seguidores. H. Paul coloca no indivíduo a responsabilidade pela criação e pela evolução da língua, apesar de o indivíduo não tomar consciência de sua atividade criadora. Bem é verdade que ele reconhece que os processos psicológicos mais simples são iguais em todos os indivíduos e que suas particularidades baseiam-se só em combinações diversas destes processos simples. Para conciliar esta dicotomia indivíduo X coletividade, Paul afirma que a língua se organiza dentro da natureza humana sobre bases da coletividade. Diante do grande número de temas estudados pelo autor, optamos por abordar algumas de suas ideias que nos parecem bem atuais: a competência linguística; a concepção de memória; os dêiticos e a questão da anáfora; a relação entre a metáfora e a cognição; a importância maior da língua oral; a crítica às gramáticas tradicionais; e sua visão funcionalista da gramática. A referência às obras consultadas será sempre feita no próprio texto. 1 2 Todas as manifestações da atividade da fala brotam deste espaço obscuro do subconsciente, existente na alma. Nele encontram-se - como forma psíquica altamente complexa, que consta de grupos diversos de idéias intimamente ligados uns aos outros - todos os recursos linguísticos que cada um tem ao seu dispor, e, podemos mesmo dizer, um pouco mais do que aqueles de que pode dispor em circunstâncias normais. A afirmação de H. Paul certamente nos remete aos conceitos postulados por Chomsky de gramaticalidade e de criatividade que todo falante possui intuitivamente de sua própria língua e que é denominada competência linguística. H. Paul tem uma concepção de memória muito simplista se comparada aos estudos cognitivos atuais que a classificam em diferentes tipos, com diferentes funções e com diferentes localizações no cérebro: por exemplo, no modelo adotado por Van Dijk que a divide em memória a curto prazo, memória episódica e memória a longo prazo ou semântica. A organização e a função da memória para a construção de enunciados linguísticos eram assim preconizadas por H. Paul: Os grupos de sons e os grupos de movimentos associam-se entre si. A ambos se associam as ideias, às quais elas servem de símbolos. Não só as ideias de significados das palavras, mas também as de relações sintáticas. E não só as palavras isoladas, mas séries maiores de sons – frases completas – se associam diretamente ao conteúdo ideológico que se lhes emprestou. Estes grupos, que, pelo menos originariamente, nos vêm do meio ambiente, constituem-se agora, na alma de cada indivíduo, em associações muito mais ricas e complexas, que só em muito pequena parte se realizam conscientemente, continuando então a atuar no subconsciente. É interessante observar que nosso autor apresenta os níveis fonológico, sintático e semântico da língua de modo semelhante a alguns gramáticos funcionalistas que têm uma visão dinâmica dos níveis da língua que interagem quando da formação dos enunciados e que consideram a semântica como base para a organização do texto. Além disso, quando H. Paul fala a respeito do conteúdo ideológico, já está prenunciando o componente ideológico, ideia fundamental de várias correntes atuais da análise de discurso. O conceito de dêitico (expressão cujo referente só pode ser determinado em relação aos interlocutores) e a questão da anáfora (um segmento de discurso é chamado anafórico quando é necessário referir-se a um outro segmento do mesmo discurso) são já tratados por H. Paul. Ao fazer sua distinção entre o emprego de palavras concretas e abstratas, ele afirma que existem algumas palavras que, de acordo com sua natureza, 2 3 estão destinadas à função de designar algo de concreto, às quais, não obstante, não se associa ainda a referência a qualquer coisa concreta determinada, antes lhes tem que ser emprestada pelo emprego individual. Estão neste caso os pronomes pessoais, possessivos, demonstrativos e os advérbios demonstrativos, e também palavras como agora, hoje, ontem. Um eu, um este, um aqui não servem, por natureza, senão para orientação no mundo concreto, mas em si não têm um conteúdo determinado e é preciso que sobrevenham primeiro fatores individualizantes para lhes emprestarem um tal conteúdo. Mais adiante, ele complementa: Um outro meio pelo qual conhecemos se a palavra se refere a alguma coisa determinada e concreta é, na conversa ou na exposição individual de quem fala, aquilo que precede a palavra. Se o sentido de uma palavra foi uma vez concretamente determinado, esta determinação pode manter-se no decurso da conversa; a recordação do que anteriormente foi dito substitui a presença direta do objeto. Esta referência retrospectiva (anáfora) pode ainda ser apoiada por pronomes e advérbios demonstrativos (dêiticos). A relação que a linguística atual da linha cognitivista, representada entre outros por Mark Johnson e George Lakoff, estabelece entre a metáfora e a cognição procura a confirmação da hipótese de que nossos cérebros são construídos pelo pensamento metafórico. Metáfora, para Lakoff & Johnson, é o nome que damos à nossa capacidade de usar os mecanismos inferenciais perceptuais e motores como base para os mecanismos inferenciais abstratos. A linguagem metafórica é simplesmente uma consequência dessa capacidade para o pensamento metafórico. H. Paul afirma que o indivíduo recorre geralmente aos círculos de ideias que desempenham um maior domínio em seu espírito, quando se trata da criação de metáforas naturais e populares, distintas da metáfora literária. A criação metafórica, segundo ele, permite, por exemplo, a transferência das condições e processos do espaço para o campo não espacial como é o caso da conceituação do tempo. Como exemplo, ele lembra que podem transferir-se para o tempo expressões de movimento como die Zeit geht dahin, verght (o tempo passa)…as condições de espaço oferecem também designações para a intensidade, como grosse Hitze, Kälte, etc (grande calor, frio)… ou ainda as expressões próprias para a percepção espacial são transferidas …para apreciação de valores como die Preise steigen, fallen, sinken (os preços sobem, caem, baixam). 3 4 Retomando Lakoff & Johnson, temos a afirmação de que o tempo é compreendido metaforicamente em termos de espaço, entidades e lugares, e que isso está de acordo com nosso conhecimento biológico. Por isso, faz sentido que o tempo possa ser compreendido em termos de coisas e movimento. Cotejando a metáfora cognitiva com o pensamento de H. Paul a respeito da metáfora, percebemos que ele já a relacionava com a cognição ao afirmar que a metáfora é um dos meios mais importantes para a criação de nomes de complexos de idéias, para os quais não existe ainda uma designação adequada. Mas o seu emprego não se limita aos casos em que se verifica esta necessidade externa. Muitas vezes somos levados por um impulso interior a preferir uma expressão metafórica, mesmo em casos onde existe já uma designação. A metáfora é precisamente alguma coisa que brota necessariamente da natureza humana. H. Paul ressalta a primazia da língua falada (ou linguagem falada, já que ele usa indiferentemente as duas expressões) sobre a escrita, o que certamente é corroborada pelas correntes linguísticas atuais ao afirmar que “…a escrita não só não é a própria língua, como de modo nenhum se lhe adapta.” (p.394) Mais adiante ele vai estabelecer uma analogia da língua falada com uma pintura a cores, enquanto que a escrita é um pálido esboço da primeira. Contudo, seus contemporâneos pensavam de modo diferente, sobrestimando as vantagens da escrita principalmente no que se referia à sua capacidade de ação. O próprio H. Paul reconhece que, através da escrita “… o círculo estreito a que em geral se limita a influência do indivíduo pode estender-se até ocupar a área de toda comunidade linguística, através dela pode esse círculo alargar-se para lá da geração viva, diretamente a todas as que vêm depois.” (p. 393). Nesse sentido, ele reconhecia a primazia da escrita. Não podemos nos esquecer de que ele não podia ao menos imaginar como a gravação da língua falada, conquista do século XX, iria impulsionar os estudos linguísticos. Pelo plano que propusemos, resta abordar a crítica que nosso autor faz a outras gramáticas e a sua antevisão de uma gramática com bases funcionalistas. Ele não se admirava do fato de as gramáticas de seu tempo serem problemáticas, já que se baseavam em categorias gramaticais tradicionais insuficientes para o agrupamento dos elementos da língua. Tendo em vista a sua visão da língua, ele pretendia que a gramática pudesse apresentar um sistema gramatical dividido com a sutileza necessária para poder adequar-se à divisão dos grupos psicológicos. 4 5 As gramáticas atuais de base funcionalista também criticam as categorias das gramáticas tradicionais e preconizam categorias mais fluidas e intercomunicantes, já que num estudo diacrônico fica visível que determinadas palavras sofrem o processo que os gramáticos funcionalistas denominam de “gramaticalização”, quando elas, à medida que se dessemantizam, vão se tornando “palavras gramaticais ou funcionais”, como é o caso de durante e mediante; a despeito de e a fim de; segundo, conforme e consoante. H. Paul, há mais de um século, já preconizava a fluidez das categorias, ao afirmar que a categoria gramatical é, de certo modo, uma congelação da categoria psicológica. Prende-se a uma tradição sólida. Ao contrário a categoria psicológica permanece sempre livre, vivamente ativa, podendo adquirir formas múltiplas e diversas conforme a concepção individual. A isto vem juntar-se que a alteração semântica tem muitas vezes influência no fato de a categoria gramatical nem sempre ficar adequada à psicológica. Como exemplo, ele apresenta os advérbios que provêm quase sem exceção de casos congelados de nomes. Concluindo nossas observações a respeito da atualidade de os Princípios Fundamentais da História da Língua, queremos salientar as semelhanças existentes entre os tipos de sujeito apresentados por Hermann Paul e pelo linguista M. Halliday, autor de An Introduction to Functional Grammar. Para o último, existem três tipos de sujeito: o sujeito lógico, o sujeito psicológico e o sujeito gramatical. No exemplo seguinte “The teapot my aunt was given by the duke”, temos os três tipos de sujeito: “o bule” é o sujeito psicológico pelo fato de vir em primeiro lugar, constituindo-se, portanto, no tema da oração; “minha tia” é o sujeito gramatical, pois o verbo concorda com ela; e “o duque’ é o sujeito lógico por ser o ator da ação. O conceito de sujeito psicológico já se encontra na obra de H. Paul, quando ele declara que o sujeito psicológico é a primeira quantidade de ideias existente no consciente de quem fala. Ele também conserva a ideia de sujeito gramatical que é aquele que concorda com o verbo, mas reforça a importância do sujeito psicológico que aparece sempre primeiro no consciente do falante. Acreditamos que as questões que fomos levantando durante nossa leitura crítica da obra de H. Paul tenha evidenciado a atualidade de suas ideias, mesmo que não estejam revestidas com o jargão linguístico de nossos dias. Na verdade, ele intuiu e, com as condições de que dispunha, tentou provar que todas as manifestações da 5 6 atividade da fala são previamente armazenadas na mente do indivíduo na forma de estruturas mentais complexas e que, muitas delas ficam no seu inconsciente, nunca chegando ao nível da consciência. A linguística, a partir de Chomsky, e, mais recentemente, a linguística de base cognitiva e funcionalista - representada em nossos comentários por Van Dijk, Lakoff & Johnson e M. Halliday – têm se preocupado com a base mental da linguagem, reconhecendo na figura de H. Paul um de seus precursores. 6