Dra. Francisca Silvânia de Sousa Monte

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A ECONOMIA DOMÉSTICA COMO CIÊNCIA DO COTIDIANO:
A PRODUÇÃO CIENTÍFICA EM ECONOMIA DOMÉSTICA
Francisca Silvania de Sousa Monte6
Bom dia a todos e a todas.
Inicialmente gostaria de agradecer o convite da Comissão Organizadora do Congresso
e pela oportunidade de apresentar algumas reflexões a respeito do tema dessa mesa; reflexões
estas que estão longe de se constituírem em uma fala pronta e acabada. Uma fala com este
tema teria que abordar necessariamente dois conceitos: cotidiano e ciência, além de Economia
Doméstica.
Entretanto, como não sou especialista em cotidiano e não me sinto à vontade para
fazer uma discussão aprofundada sobre o tema, vou apenas tomar de empréstimo o que li em
trabalhos de algumas colegas nossas que estudaram (ou estudam) cotidiano, tais como a profa
Amélia Carla Sobrinho Bifano da UFV, que tem trabalhado e pesquisado sobre o tema e a
profa Helena Selma de Azevedo, aqui mesmo da UFC, que fez a sua dissertação de mestrado
sobre o Cotidiano de Assentamentos de Reforma Agrária. Também andei relendo Michel de
Certeau; releitura no sentido de ler novamente e gostaria de ter tido tempo de reler o que
Agnes Heller escreveu sobre cotidiano para discutir a distinção que ela faz entre cotidiano e
rotina.
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Economista Doméstica - Dra. em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) - Profª do Curso de Graduação em Economia Doméstica da Universidade Federal do Ceará UFC - Fortaleza, Ceará.
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O cotidiano tem sido, desde o início da década de 90, objeto de estudo de vários
teóricos, entre os quais Heller, Lefebvre, Certeau e Hutchins; nesta apresentação, vou tomar
emprestada a definição apresentada pela profa. Amélia Carla no trabalho: “Uso cotidiano de
produtos no âmbito doméstico: interface empresa e economia familiar”: O termo cotidiano é
utilizado para denominar todas as atividades que possuem como característica comum a sua
repetição em ciclos ordinários, seja diariamente ou semanalmente. O fazer parte da vida diária
dos sujeitos. A atividade cotidiana é sempre o produto e a reflexão de relações múltiplas – de
valores e crenças, de pessoas umas com as outras e das condições de produção e reprodução
da atividade no tempo.
Passando agora de forma muito rápida para o nosso segundo conceito, ciência, vou
citar Trujillo Ferrari, quando define a ciência é uma sistematização de conhecimentos, um
conjunto de proposições logicamente correlacionadas de certos fenômenos que se deseja
estudar. “A ciência é todo um conjunto de atitudes e atividades racionais, dirigidas ao
sistemático conhecimento com objetivo limitado, capaz de ser submetido à verificação”. E
aqui eu gostaria de agradecer ao professor Alcides Gussi, pelas longas discussões que temos
feito sobre ciência desde o seu ingresso no Departamento de Economia Doméstica da UFC.
Neste sentido, em alguns momentos desta palestra vou reproduzir a sua fala.
No século XVII, criou-se realmente o que hoje chamamos de conhecimento cientifico.
Quando o conhecimento científico foi estruturado tal como, se concebe hoje, temos uma idéia
do paradigma racionalista da ciência: o conhecimento organizado numa “árvore” que
chamamos de “árvore da ciência” que engloba várias ciências: humanas, exatas, da natureza,
do homem. Era uma forma de conceber o conhecimento racional por conter especialidades
(como por exemplo, as ciências da natureza, a biologia, física, química) e cada uma com sua
especificação do conhecer.
Agora quando se fala de ciência num outro paradigma, muitos autores chamam de
paradigma pós-moderno, que quebra essa idéia de “árvore do conhecimento”, quando o
conhecimento é concebido em uma forma de rede, onde o objeto ou tema de estudo contenta
vários olhares, então, não teremos mais a biologia, a química e a física separadas, mais sim
num complexo, onde se constrói conhecimento a partir de redes encadeadas de saberes.
Trazendo agora para a discussão a Economia Doméstica, o terceiro “conceito”
proposto pelo tema da palestra, vou tentar fazer uma ligação em primeiro lugar com a ciência,
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através de uma questão: podemos dizer que a Economia Doméstica é uma ciência de saber
multidisciplinar, dentro desse novo paradigma que se concebe a ciência de hoje?
Uma questão relacionada com esta e que eu gostaria de colocar é: existe uma ciência
do cotidiano? O que seria uma ciência do cotidiano em (ou para a) Economia Doméstica?
Seria uma ciência do fazer? Da técnica?
A fomação em Economia Doméstica sempre esteve permeada pelo saber fazer; mais
ainda, aprendemos que a “Economia Doméstica é uma ciência que usa conhecimentos de
outras ciências para melhorar a qualidade de vida das famílias”. Ou seria o cotidiano da
família? Até que ponto o “aceleramento técnico” da economia doméstica tomando por
empréstimo a “técnica dos outros”, sem uma definição muito precisa de qual seria a “nossa
técnica” não contribuiu para que tenhamos dificuldade até mesmo em definir o que é o Curso?
Sempre que temos que responder o que é Economia Doméstica, quase sempre
respondemos: a Economia Doméstica trabalha nas áreas de alimentação, vestuário, saúde,
desenvolvimento da criança, saúde, etc.? Os outros campos do saber que compõem as nossas
“áreas” não conseguem lidar melhor com a exigência técnica requerida, uma vez que têm um
aprofundamento e uma especificidade que não possuímos dada a nossa natureza
multidisciplinar? Por que confundimos o ser com o fazer? Seria por sermos a ciência do
cotidiano? Mais uma vez, para mim fica a questão: de que cotidiano estamos falando?
Aprendemos também que somos especialistas em qualidade de vida; qualidade de vida
necessariamente tem a ver com cotidiano. Mas o que é qualidade de vida para a economia
doméstica? Qual a construção teórica que temos sobre qualidade de vida? (não esqueçamos
que estamos falando de ciência).
E já que estamos falando de ciência, de saberes e de fazeres, na minha releitura de
Certeau me deparei com um trecho que gostaria de ler aqui. Trata-se do “Saber não sabido” 7:
Há, nas práticas, um estatuto análogo àquele que se atribui às fábulas ou aos mitos,
como os dizeres de conhecimento que não se conhecem a si mesmos. Tanto num
caso como no outro, trata-se de um saber sobre os quais os sujeitos não refletem.
Dele dão testemunho sem poderem apropriar-se deles. São afinal os locatários e não
os proprietários do seu próprio saber-fazer. A respeito deles não se pergunta se há
saber (supõe-se que deva haver), mas este é sabido apenas por outros e não por seus
portadores. Tal como o dos poetas ou pintores, o saber-fazer das práticas cotidianas
não seria conhecido senão pelo intérprete que o esclarece no seu espelho discursivo,
mas que não o possui tampouco.
7
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1990, p.143.
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Transpondo esta leitura para a Economia Doméstica, isto significa que estamos
fadados a apenas reproduzir saberes de outras ciências? Não estou aqui desconhecendo as
fronteiras entre os diversos campos de conhecimento, presentes em quase todos eles; mas me
questionando sobre o ponto em que nos situamos como ciência, dado que temos interfaces
com vários campos de natureza diferenciada!
Quais seriam os saberes envolvidos no curso que se chama Economia Doméstica,
saberes e experiências que nos permitiriam fundar uma postura política diante do mundo e
que diferenciasse da técnica pela técnica e que também guardasse uma diferenciação em
relação aos demais campos? Algo que fosse especifico da Economia Doméstica e que
permitisse nos diferenciar, por exemplo, da nutrição, do serviço social, da pedagogia, do
estilismo, por exemplo?
Uma questão de fundo que deve ser posta é o que entendemos por cotidiano, de qual
cotidiano estamos tratando e, por efeito, o que significa a idéia de pesquisa com o cotidiano;
mais ainda o que significa pesquisar cotidiano em Economia Doméstica? Permitam-me
retomar a definição posta pela professora Amélia Carla:
“A atividade cotidiana é sempre o produto e a reflexão de relações múltiplas – de valores e
crenças, de pessoas umas com as outras e das condições de produção e reprodução da
atividade no tempo”. Como então, pesquisar o cotidiano?
Segundo Agnes Heller, a espontaneidade – ou o pensar e agir sem uma reflexão
consciente e crítica – seria a característica dominante da vida cotidiana. A espontaneidade
constitui-se em uma tendência de toda e qualquer atividade cotidiana.
É necessário que atividades, pensamentos e ações dos indivíduos sejam espontâneos
nessa esfera de sua vida, pois senão se tornaria inviável a produção e reprodução da sua
existência social. Imaginem se os seres humanos se dispusessem a refletir sobre a forma e o
conteúdo de todas as suas atividades, de todas as suas ações. Não conseguiriam realizar nem
uma pequena parcela de suas atividades cotidianas e, assim, garantir sua reprodução como
indivíduos. Se uma pessoa que vai atravessar uma rua se dispusesse a refletir e a considerar
todas as variáveis físicas e matemáticas em jogo nesse seu comportamento, levaria um bom
tempo fazendo cálculos sem sair do lugar.
Assim, na vida cotidiana, as interações sociais, o trabalho, o lazer, a formação dos
hábitos e costumes, o uso da linguagem, a assimilação de certas idéias e de certas normas
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consuetudinárias de comportamento dão-se de forma essencialmente espontânea, não
refletida, sem que se mantenha uma relação consciente para com todos esses elementos da
vida humana. Isto na vida cotidiana! Mas como se criar conhecimento no cotidiano?
Afinal o que é mesmo que desejamos estudar? É o cotidiano? É o doméstico? É a
qualidade de vida? É a família? Ou é tudo isto? Não seria complexo demais? Ou não estamos
sabendo dar os recortes necessários para quem faz (ou quer fazer) ciência? Para fazer isto, é
preciso executar um mergulho com todos os sentidos no que desejamos estudar. Sabemos
mesmo o que queremos estudar? Ou seria melhor pensar no que temos estudado?
Num breve recorte dos trabalhos publicados pela Revista Oikos e analisando apenas os
títulos dos artigos, identifiquei uma diversidade de trabalhos de difícil classificação: seriam
trabalhos sobre qualidade de vida? Sobre cotidiano? Sobre gênero? Sobre educação infantil?
Sobre tecnologia de alimentos? (e estes eram a imensa maioria!) Sobre trabalho doméstico?
Sobre família? (e estes não eram maioria!) Sobre Economia Domestica? (se tomarmos apenas
o título dos trabalhos, estes eram muito poucos!).
Para tentarmos avançar um pouco mais no desafio que se nos apresenta, precisamos
compreender que o conjunto de teorias que herdamos (de outras ciências) não é só apoio e
orientador da rota a ser trilhada, mas, também e cada vez mais, limite ao que precisa ser
tecido. E se for necessário, “virar de ponta-cabeça”. Estamos dispostos (as) a fazer isto?
Só para pontuar a complexidade com que nos deparamos, vou colocar mais algumas
questões: a economia doméstica é um ramo da economia? Se não é, por que então trazemos
economia no nosso nome? E/ou deveríamos olhar para o doméstico como adjetivo tentando
substantivar esse doméstico? O doméstico tem uma grande dimensão (no domestico tem, o
econômico, o social, o político e o cultural todos implicados). Neste caso, deixaríamos de ser
economia?
Quando se toma a família, pode-se observar que não é somente isso; está aí a
dimensão do político, da relação de gênero, a relação de poder, a dimensão de cultura, dos
valores e do universo simbólico, quando se pensa no doméstico como um substantivo. A
família está no universo do doméstico, mas a família extrapola o doméstico se pensarmos na
família como uma organização social que congrega um número de pessoas.
Afinal, que conhecimento nós queremos construir? É uma pergunta que serve como
questionamento para mover o curso, para mover os profissionais a construírem essa nova
postura. Essa é um tipo de pergunta que não tem resposta. E sim mundo de conhecimentos.
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Entendemos que o histórico “fazer” da Economia Doméstica, precisa se articular com um
“saber” a ser buscado no que já fizemos (nós temos uma prática excepcional que não pode se
perder!) ou a ser construído a partir de nossas ações presentes, mas que seja nosso, para que
possamos dizer com propriedade que somos especialistas (ou) em qualidade de vida (ou) que
somos a ciência do cotidiano (embora este cotidiano deva ser limitado ao que podemos dar
conta).
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