Políticas sociais e o Programa Bolsa-Família: uma

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Políticas sociais e o Programa Bolsa-Família: uma abordagem teórica à luz da pobreza
multidimensional.
Samara Campos Ribeiro1
Resumo: o presente trabalho tem por objetivo fazer uma abordagem teórica sobre políticas sociais de
combate à pobreza, de forma geral, e de maneira mais específica, a política mais emblemática e
atualmente em vigência no Brasil, qual seja, o Programa Bolsa-Família (PBF). Políticas sociais são
imprescindíveis para que os países alcancem estágios maiores de desenvolvimento e enfrentamento da
pobreza. Na literatura é possível encontrar registro de práticas de assistência social desde o século
XIV. Durante muito tempo esteve associada a uma relação entre assistência social e trabalho. Com o
advento da industrialização, a assistência social sofreu forte influência da ideologia liberal, além de se
adequar à nova dinâmica econômica e social, bem como as instabilidades surgidas no período. Já no
Pós Guerra surge o Welfare State baseado no receituário keynesiano, no Relatório de Beveridge e na
teoria da cidadania de T. H. Marshall. No Brasil, a assistência social surge no mesmo período do
processo de industrialização do país, contudo, após a Constituição de 1988 que encontra maior amparo
e se percebe maior atuação nesta área. O PBF se configura como uma das principais políticas de
combate à pobreza desde o início dos anos 2000. Entretanto, o que se conclui é que alguns desafios
ainda são impostos ao PBF à luz das abordagens mais modernas de pobreza multidimensional:
erradicar a miséria e a pobreza; ampliar a concepção de pobreza no desenvolvimento de políticas
sociais, levando em consideração a complexidade do fenômeno; a relevância da articulação entre as
políticas econômica e social, bem como a necessidade de que estas sejam políticas efetivamente de
Estado e não se limitem apenas a mandatos políticos; e, por fim, maior abrangência das linhas de
indigência e pobreza.
Palavras-chave: Política social; Pobreza; Bolsa Família; Desafios.
Abstract: The present work aims to make a theoretical approach to social policies to combat poverty
in general, and way more specific, the policy most iconic and currently in force in Brazil, namely, the
Bolsa Família. Social policies are essential for countries to reach higher stages of development and
fight poverty. In the literature one can find registration practices of social assistance since the
fourteenth century. Long been associated with a relationship between welfare and work. With the
advent of industrialization, social assistance was strongly influenced by liberal ideology, and adapt to
the new economic and social dynamics and instabilities arising in the period. Now comes the Post War
Welfare State based on the Keynesian prescription, in the Beveridge Report and citizenship theory T.
H. Marshall. In Brazil, social assistance arises in the same period of the industrialization process of the
country, however, after the 1988 Constitution, which is greater support and realize greater activity in
this area. The PBF is configured as one of the main policies to combat poverty since the early 2000s.
However, what is apparent is that taxes are still some challenges to the PBF in the light of more
modern approaches to multidimensional poverty: eradicate extreme poverty and poverty, expanding
the concept of poverty development of social policies, taking into account the complexity of the
phenomenon, the importance of the relationship between economic and social policies, as well as the
need for these policies are effectively state and not just confined to political mandates, and, finally,
wider range of poverty lines and poverty.
Keywords: Social Policy; Poverty; Bolsa Família; Challenges.
1 Introdução
Muito se tem falado sobre a necessidade de erradicação da pobreza como uma
condição necessária para o desenvolvimento. O atual estágio do modo de produção vigente
protagonizado
1
pelas
nações
desenvolvidas
impõe,
também
àquelas
Graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB.
E-mail: [email protected]
tidas
como
2
subdesenvolvidas e emergentes, uma busca frenética por níveis cada vez maiores de
crescimeno econômico. Chegou-se em um ponto em que a manutenção do crescimento
econômico presupõe níveis cada vez maiores de desenvolvimento. Essa é a palavra de ordem.
Contudo, ainda há muitos gargalos a serem superados, principalmente, pelos países menos
desenvolvidos. A pobreza ainda é latente, sobretudo nesses países. Há um volume muito
grande de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza e outro tanto que vive na mais absoluta
miséria.
É em um contexto de privação por parte de uma parcela significativa da população,
desde muitos séculos, que vem a necessidadde de assistir e amparar os pobres. Surge então as
chamadas políticas sociais. Elas buscam, de alguma forma, garantir o minímo básico
necessário à subsistência da população carente. Essa prática acontece há vários séculos e sofre
modificações conforme o cenário socioeconômico muda. No período atual, percebe-se maior
direcionamento para a discussão sobre essa temática, tanto por parte da comunidade
acadêmica, como também pelos governos e formuladores de políticas. Esse debate é
percebido tanto em países desenvolvidos como nos subdesenvolvidos.
De modo especial, espera-se que os países, cujo desenvolvimento se encontra muito
aquém das grandes nações, estejam bastante empenhados em desenvolver políticas com vistas
à redução deste hiato e, sobretudo, implementar cada vez mais melhoria na qualidade de vida
da sua população. Este é o tom da discussão trazida neste trabalho. Ainda que de forma
meramente teórica, busca-se instigar a reflexão acerca da política social no Brasil.
Deste modo, o texto está dividido em quatro seções, além desta introdução.
Inicialmente faz-se um breve histórico sobre as concepções de política social ao longo do
tempo, onde as mesmas foram se adequando às formas como a pobreza era entendida. Em
seguida, na terceira seção, é abordada a política social no Brasil, tendo como foco o Programa
Bolsa-Família como o caso mais emblemático. Assim, será feita uma exposição teórica e mais
geral do Programa. Já a seção quatro traz os conceitos de pobreza multidimensional. Por fim,
faz-se as considerações finais do que foi discutido.
2 Da origem das políticas sociais até o período atual
Institucionalmente, as políticas de assistência aos pobres remontam de meados do
século XIV na Grã-Bretanha, no reinado de Eduardo III. Este é um período marcado por uma
crônica escassez de mão-de-obra para trabalhar nas fazendas em virtude da Peste Negra que
exterminou cerca de um terço da população. Além disso, a falta de trabalhadores na lavoura
implicava no aumento dos salários.
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É neste contexto que surge a assistência social. Isto é, da tentativa de controlar a
elevação dos salários e de impedir a perambulância de pessoas entres as paróquias em busca
de melhores trabalhos. Com estes objetivos, em 1351 foi instituído na Iglaterra o Statute of
Labourers (Lei dos trabalhadores) e em 1388 a Poor Law Act (Lei dos Pobres). Nesta mesma
época a França também instituiu a Lei Ordenança de conteúdo idêntico ao da lei inglesa.
De acordo com Pereira (2009), esta Lei dos Pobres era muito mais punitiva do que
protetora, além de pouco eficiente e eficaz no que tange ao alcance dos seus objetivos.
Segundo a autora, “as temidas ‘vagabundagem’ e mendicância não foram debeladas por essa
forma de controle social que incluía surras, mutilações, e queimaduras com ferro em brasa nos
andarilhos, embora estes, àquela época, não fossem tão numerosos como se fazia crer”
(PEREIRA, 2009, p. 62).
A partir de 1530, no reinado de Henrique VIII, são designadas algumas áreas em que
os pobres inválidos podem mendigar sem sofrer as duras sanções da lei. Além disso, as
paróquias foram autorizadas a recolher contribuições a fim de conferir um mínimo de
assistência a esses pobres. Por outro lado, os pobres considerados válidos (aptos ao trabalho)
eram severamente punidos caso fossem pegos perambulando, chegando a ser submetidos ao
regime de escravidão instituído, em 1547, pelo Parlamento inglês (PEREIRA, 2009).
No último quartel do século XVI, surgiram as Poor-houses (Casa dos Pobres),
transformando os velhos palácios britânicos nessas casas onde eram abrigados tanto os pobres
capazes como aqueles tidos como incapazes. Para garantir a própria subsistência nessas casas,
o pobre válido era induzido compulsoriamente à prestação de serviços.
Pouco tempo depois, em 1601, foi instituída uma nova Poor Law Act, que foi
considerada “um marco histórico e referência da Lei dos Pobres inglesa até 1834” (PEREIRA,
2009, p. 64). Esta lei expressou a intenção de desenvolver um modelo de gestão
administrativa por meio do estabelecimento de uma tipologia de regulação a partir da
diferenciação de categoria de pobres a serem atendidos.
Além disso, esta legislação deu ênfase à administração local e à descentralização
político-administrativa paroquial, através da criação da figura do inspetor que tinha a
incumbência de cobrar tributos e dízimos para subsidiar a assistência pública. Havia também
um Conselho Privado que se responsabilizava pela supervisão de todo o sistema local de
controle social.
Através do Settlement Act, de 1662, o auxílio aos pobres foi todo convergido para as
workhouses. Pouco mais de um século depois, em 1782, a assistência nas workhouses
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(assistência interna) foi abolida através da Lei Gilbert, que estimulava a assistência externa,
ou seja, fora dos muros institucionais.
Até o presente momento é possível perceber que a concepção tanto da pobreza quanto
da assistência aos pobres se pauta numa estreita relação entre assistência social e trabalho. É
basicamente esta ideia que norteia as políticas sociais do período pré-industrialização, onde a
concepção da assistência social se apresenta de maneira diferente da observada em uma
sociedade industrial. A dinâmica de uma sociedade que já experimentou um processo de
industrialização demanda práticas diferentes de assistência social, uma vez que toda a
estrutura da organização econômica, social, política e ideológica sofre alterações.
É justamente esse o problema advindo da Revolução Industrial, no que tange às
práticas de assistência social pública. Enquanto a Inglaterra se adequava ao processo de
industrialização, paralelamente experimentava um cenário de muita instabilidade econômica e
social. Além das flutuações econômicas, havia a escassez de alimentos em decorrência das
baixas colheitas e dos conflitos bélicos, o que impulsionou para cima o preço dos alimentos
de primeira necessidade. Diante disso, inclusive as pessoas que estavam empregadas passaram
a demandar proteção social.
Como não havia uma reação no âmbito nacional, as localidades introduziram subsídios
para complementação de salários. A iniciativa mais famosa foi concebida em 1795 e ficou
conhecida como Sistema Speenhamland onde o trabalhador passou a ter direito à proteção
social. Conforme Pereira (2009), a alternativa que pareceu mais viável naquele período foi
esta, uma vez que a Inglaterra se deparava com a crise das Poor Laws e com o medo de
levantes sociais tais como aconteceram na França em 1789 que culminou na Revolução
Francesa.
Surgida como uma reforma à Speenhamland Law,a Poor Law Amendment Act —
fortemente pressionada pela ideologia do liberalismo econômico —, significou o ponto de
ruptura da emergente economia de mercado com o sistema protecionista estatal. Introduz-se,
desta forma, uma concepção moralista da pobreza, onde o pobre era visto como indolente,
extravagante e viciado. Sob esta perspectiva, a Lei dos Pobres era vista como um empecilho
ao desenvolvimento econômico, uma vez que esta destruía o espírito de auto-ajuda, de
empreendedorismo e da ambição, além de provocar uma sensação de segurança social que
levava as pessoas ao comodismo.
Friedlander (1973, apud PEREIRA, 2009) sintetiza as principais recomendações da
Lei dos Pobres de 1834 em seis pontos, a saber: a) suspensão do abono salarial parcial
previsto no Sistema Speenhamland; b) recuperação da workhouses e internação nestas casas
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de todos os trabalhadores capazes de trabalhar que solicitassem assistência; c) prestação de
assistência externa apenas aos incapacitados ao trabalho; d) centralização administrativa das
atividades assistenciais das várias Paróquias; e) aplicação do princípio da menor elegibilidade,
ou seja, tornar o benefício de assistência pública menos atraente que o trabalhador menor
remunerado; f) estabelecimento de uma Comissão Central de controle da Lei dos Pobres,
nomeada pelo rei.
Entretanto, o tempo se encarregou de mostrar as fragilidades e a inoperância da Lei de
1834. Inúmeras transformações estavam acontecendo na época, decorrentes das mudanças na
estrutura de produção em virtude da Revolução Industrial. Pereira (2009) chama a atenção
para o fato de que essas mudanças — como a passagem de uma economia agrária para outra
industrial, bem como o desemprego tecnológico que atingiu os artesãos, além das flutuações
de salários — foram subestimadas.
Ademais, havia um grande hiato entre o que o receituário liberal propunha com a Lei
de 1834 e o que realmente ocorreu. Além disso, as condições nas workhouses se mostraram
demasiadamente irrealistas, a ponto de muitas pessoas preferirem viver na total desproteção a
ter que morar nessas casas. Tudo isso convergiu para uma mudança na concepção da proteção
social praticada na época.
Um importante avanço no que tange às políticas de enfrentamento da pobreza, diz
respeito aos estudos de Booth (1899) e Rowtree (1901) que perceberam que a culpabilização
dos pobres pela sua própria pobreza não era a única causa desta (ROCHA, 2006). Assim, eles
acreditavam que havia uma íntima relação entre pobreza e fatores estruturais e procedimentais
do sistema industrial.
O fato histórico importante que contribuiu para o declínio do ideário liberal vigente foi
a Grande Depressão de 1929. Este acontecimento provocou profundas mudanças de ordem
econômica e social. Estava-se diante de um cenário de elevadíssimo desemprego,
incontrolável inflação, além da expansão do socialismo e surgimento do fascismo.
Neste contexto floresceu a ideia de uma economia mista em que mercado e Estado se
articularam e se co-responsabilizaram pela execução de políticas geradoras de pleno emprego,
além de promover um conjunto de benefícios e direitos que garantiam aceitáveis padrões de
vida aos cidadãos sem, contudo, alterar a dominação burguesa e as relações de propriedade
capitalistas.
De acordo com Monnerat et al. (2007), uma nova forma de enxergar a pobreza, e por
consequência os pobres, surgiu no pós-Guerra. A partir daí o Estado passa a ser o principal
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regulador da vida social. É neste cenário que o Welfare State se institucionaliza a partir de
1945. Nas palavras dos autores,
A partir desse momento, a perspectiva de responsabilidade individual em
arcar com os custos da reprodução da própria vida cede lugar à noção de que
todos devem participar na provisão de bem-estar de todos os cidadãos. O
Estado adquire papel central na regulação da vida social e a constituição do
Welfare State representou a institucionalização de um relativo consenso
acerca da noção de pobreza como uma questão social, sendo dever do Estado
equacioná-la (MONNERAT et al.,2007, p. 1454).
De acordo com Pereira (2009), é possível enumerar três marcos orientadores do
Welfare State, a saber: o receituário keynesiano, iniciado em 1930, de regulação econômica e
social; as postulações do Relatório de Beveridge de Seguridade Social de 1942; e a
formulação da teoria trifacetada da cidadania de Thomas Humphrey Marshall, em 1940.
De autoria do economista britânico John Maynard Keynes, o receituário keynesiano
defende que o equilíbrio econômico não depende apenas do mercado – e que este não era
auto-regulável como acreditavam os economistas clássicos defensores da corrente liberal -,
mas também da ação de um agente externo que regulasse variáveis chaves do processo
econômico (propensão a consumir e incentivo ao investimento), sendo este agente o Estado.
Essa ideia foi revolucionária nos anos 1930, época em que se vivenciava um momento crítico
com a Crise de 1929. Keynes defendia, ainda, o pleno emprego mesmo que este fosse
conseguido à custa de um orçamento deficitário.
Na outra base do tripé, elaborado por um Comitê coordenado por William Beveridge,
o Relatório Beveridge propunha uma revisão no sistema de proteção social existente na GrãBretanha. Ele inovou por seu caráter nacional e unificado e por conter um eixo distributivo e
outro contributivo. Por meio deste Relatório muitas ações de política social foram instituídas
como direito. Além de criar uma política de emprego e um Sistema Nacional de Saúde não
contributivo e universal.
Já a teoria da cidadania de Marshall compunha-se de três grupos de direitos: os
direitos civis, necessários ao desenvolvimento das liberdades individuais como, por exemplo,
liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, entre outros; os direitos políticos, que permitem
ao cidadão participar da vida política da sociedade; e os direitos sociais que possibilitam ao
indivíduo tomar parte na vida social e levar uma vida de acordo com os padrões desta
sociedade. Esses direitos foram conquistados por meio de movimentos democráticos,
encontrando posteriormente amparo em instituições públicas.
Monnerat et al. (2007) corrobora dizendo que dentre os países europeus que
desenvolveram o Welfare State, foi possível observar os avanços dos direitos de
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cidadania que conformaram em generosos sistemas de proteção social e,
consequentemente, desvincula a tradicional relação entre trabalho e assistência.
Segundo os autores, é justamente isso que permite a concepção de sistemas
abrangentes de proteção social sem a exigência de condicionalidades.
Todavia, as últimas décadas do século XX foram marcadas pela retomada do
pensamento liberal, agora denominado neoliberalismo. Contudo, desde o Welfare State a
concepção de pobreza vem sendo incorporada através de novas abordagens que buscam captar
com mais fidelidade as suas causas.
Por fim, cabe chamar a atenção para a necessidade de que as políticas sociais levem
em consideração o aspecto multidimensional da pobreza. A seção seguinte procura abordar as
políticas sociais de combate à pobreza e de proteção social, e a política atualmente executada
no Brasil, bem como analisar a eficiência e eficácia destas políticas no enfrentamento da
pobreza no país.
3 As políticas sociais de combate à pobreza em vigência no Brasil
Ainda no ensejo do resgate histórico da seção anterior, pode-se datar dos anos 1930 o
início da proteção social no Brasil. O fato histórico que justifica as práticas de assistência
social, também o é de natureza econômica, qual seja, o processo de industrialização que
provocou profundas mudanças no âmbito da organização socioeconômica do país. A nova
classe operária que surgia demandava certos bens sociais anteriormente não disponíveis para
pessoas de estrato social mais baixo.
Mas é a partir da década de 1970, durante o regime militar, que essas políticas se
expandem. Silva (2007) acredita que, isto se deve ao fato de os programas e serviços sociais
possuírem a capacidade de atenuar a forte repressão sobre as classes trabalhadoras e os setores
mais populares. Sob este viés, a autora complementa dizendo que “a proteção social cumpre
funções de reprodução da força de trabalho e legitimação do regime de exceção” (SILVA,
2007, p. 1430).
Na década seguinte, o cenário de forte pressão do regime ditatorial se transforma em
um terreno fértil para a expansão dos movimentos sociais que surgem nos porões das igrejas.
Desta forma, esse período foi marcado por inúmeras manifestações em prol da
democratização política e pela ampliação e universalização dos direitos sociais, culminando
na Constituição de 1988 que representou uma ampliação significativa dos direitos sociais.
Ainda neste veio de análise histórica, mais precisamente no período de redemocratização do
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Brasil, Silva (2007) divide a história dos Programas de Transferência de Renda no Brasil em
cinco momentos.
O primeiro momento, em 1991, é marcado pelo início do debate sobre tais programas.
O segundo momento, ainda em 1991, é pautado pela introdução da articulação do Programa
de Garantia de Renda Mínima que visa amparar financeiramente os brasileiros, residentes no
Brasil, de 25 anos de idade ou mais, com renda de 2,25 salários mínimos. Em 1995 tem início
o terceiro momento, que se pauta pelas experiências de transferência de renda no âmbito
municipal, nas cidades de Campinas, Ribeirão Preto, São Paulo e Brasília. Em 1996 o
governo federal lança o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e o Benefício
de Prestação Continuada (BPC). No quarto momento, em 2001, o governo federal expande
seus programas e implementa outros. Além disso, inicia o debate nacional de defesa pela
instituição do Renda Cidadania que se destina a atender todos os brasileiros, sem qualquer
restrição. O quinto, e último, momento tem início em 2003 e é marcado pela ampliação dos
programas federais, com significativa elevação dos recursos com este fim, além da proposta
de unificação dos programas federais, estaduais e municipais.
Um ponto de grande relevância quando se faz um debate sobre políticas sociais diz
respeito à abrangência destas. Há na literatura, uma discussão sobre o raio de ação dessas
políticas, se focalizadas ou universais. Sob esta perspectiva, Monnerat et al. (2007, p. 1459)
fazem uma breve síntese histórica dizendo que:
A adoção de medidas voltadas à estabilização monetária, eficiência
macroeconômica e restrição de gastos públicos, sobretudo a partir da
segunda metade dos anos 1990, constrangeu as possibilidades de construção
de políticas sociais mais abrangentes e universais, dando espaço para a
defesa e implantação de ações focalizadas nos grupos mais pobres. Dentro
desse cenário, marcado pela grave crise econômica (expressa nas altas taxas
de desemprego e no aumento da informalidade) e pela emergência de novos
atores sociais na cena pública, o tema da pobreza e das desigualdades sociais
ganha relevo na agenda pública, incitando o debate político e acadêmico em
torno da questão e cobrando respostas dos governantes.
Assim, de acordo com os autores, no contexto da década de 1990, as políticas
focalizadas ganham espaço, devido aos acontecimentos desse período. Isto porque as políticas
focalizadas tem caráter mais emergencial, e dado o agravamento da pobreza e a pressão para
que fossem tomadas medidas em relação a isso, elas são preferidas às políticas universais.
Além da necessidade de conferir à política social o lugar de destaque que lhe é devido,
torna-se de grande relevância promover políticas compensatórias em sincronia com políticas
estruturantes. Desta forma, os efeitos dessas políticas serão percebidos no curto e no longo
prazo. Enquanto as políticas compensatórias de transferência de renda trazem resultados no
curto prazo através da elevação da capacidade de consumo, as políticas estruturantes mostram
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seus efeitos, sobretudo, no longo prazo onde é possível romper com o ciclo geracional da
pobreza por meio de acesso à educação, serviços de saúde, entre outros. No curto prazo devese aliviar os problemas mais imediatos da pobreza, enquanto que no longo prazo os
investimentos devem ser orientados na elevação do capital humano.
Dentre os programas sociais em vigência no Brasil, o caso mais emblemático é o
Programa Bolsa Família (PBF) do governo federal em vigor desde 2003. O PBF se configura
como uma política compensatória de transferência de renda, além de apresentar um caráter de
política estruturante ao instituir certas condicionalidades relacionadas à saúde, educação e
assistência social aos seus beneficiários. Dedicar-se-á, doravante, o restante desta seção à
exposição deste programa, bem como as discussões levantadas acerca deste programa.
3.1 O Programa Bolsa Família
O Programa Bolsa Família se constitui como o principal programa da Estratégia Fome
Zero, posteriormente substituída pelo Brasil Sem Miséria (BSM) do governo Federal. Os
marcos jurídicos deste Programa iniciam-se com a criação da Medida Provisória (MP) nº 132
de 20 de outubro de 2003, em seguida transformada na Lei nº 10.836 de 9 de janeiro de 2004
e, posteriormente, regulamentado pelo Decreto nº 5.209 de 17 de setembro de 2004, alterado
pelo Decreto nº 7.447 de 1º de março de 2011.
O Programa objetiva combater a fome, a pobreza e as desigualdades existentes em
nosso país, adotando a estratégia da transferência de renda, além de buscar garantir acesso aos
serviços básicos de saúde, educação etc.; incluir socialmente as famílias que se encontram à
margem do desenvolvimento social e impedir o seu retorno à marginalização, quebrando,
desta forma, o ciclo geracional da pobreza. De acordo com o Ministério de Desenvolvimento
Social e combate à Pobreza, o Bolsa Família atende mais de 13 milhões de famílias em todo o
território nacional (MDS, 2012).
O Bolsa Família é resultado da unificação dos programas Bolsa Escola, Bolsa
Alimentação, Vale Gás e Cartão Alimentação, que anteriormente agiam de forma isolada.
Posteriormente foi incorporado também o PETI. Esta unificação buscou resolver alguns
problemas identificados com a existência concomitante desses programas, quais sejam: a
existência de programas concorrentes e sobrepostos tanto no que tange aos objetivos, como
também ao público; desperdício de recursos por falta de uma coordenação geral desses
programas, além da alocação ineficiente destes; dispersão de gerenciamento dos programas
em diversos ministérios; e o não alcance do público-alvo.
Neste sentido, a unificação almeja otimizar e racionalizar o gasto social, melhorar a
gestão do programa e facilitar a interlocução entre as três esferas de governo. Deste modo,
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cabe ressaltar que a efetividade desta decisão está condicionada a responsabilidades delegadas
à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos municípios e à sociedade. No âmbito federal, o
PBF está sob a coordenação da Secretaria Nacional de Renda e Cidadania (SENARC) do
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza. Mesmo sendo o PBF uma
política descentralizada, para que o município participe do programa é necessário que este
assine um termo de adesão conforme determinação da portaria GM/MDS nº 246/05. Além
disso, deverá ser indicado um Gestor Municipal do programa e existir um comitê ou conselho
local de controle social.
Um estudo coordenado por Silva (2007) apresentou as seguintes situações do processo
de unificação:
a) O processo de unificação encontra-se restrito a cinco Programas de
Transferência de Renda federais, sem alcançar, portanto, inúmeros
programas criados e em implementação por estados e municípios;
b) Não vem ocorrendo a unificação dos valores referentes às transferências
monetárias consideradas para elegibilidade das famílias ao programa,
mantendo-se duas categorias de famílias: as extremamente pobres e as
pobres, além de se constituir um valor muito baixo, permitindo deixar de
fora do atendimento um contingente de famílias significativo, mas que
vive em situação de comprovada pobreza, além de a pobreza ser
dimensionada somente pelo critério da renda declarada;
c) Manutenção de valores monetários transferidos às famílias à título de
benefícios diferenciados e muito baixos, mantendo pouco alterada a
situação de pobreza da grande maioria das famílias;
d) Articulação insatisfatória entre a transferência monetária às famílias e
seu encaminhamento a serviços básicos e a programas estruturantes,
como previsto no desenho do Bolsa Família, limitando as possibilidades
de autonomização futura das famílias;
e) Não ocorrência de melhoria significativa na qualidade do ensino e do
atendimento à saúde, apesar de se registrar um avanço quantitativo da
busca de serviços por parte das famílias beneficiadas do Bolsa Família,
até porque são esses aspectos considerados condicionalidades para
permanência das famílias no Programa (SILVA, 2007, p. 1435).
Convém neste momento tratar sobre a questão da focalização do programa. Este ponto
acaba dividindo os estudiosos de políticas sociais. À priori, cabe expor em que ela consiste
dentro do desenho do Bolsa Família. Inicialmente, vale dizer que o programa tem como foco a
família, sendo esta entendida como unidade nuclear, que pode ser formada por pessoas que
possuam laços de parentesco ou afinidade entre si, formando um grupo doméstico vivendo
sob o mesmo teto e mantendo-se pela contribuição de seus membros.
A proposta do programa é identificar as famílias mais pobres através de uma linha
corte. Amparado pelo Decreto nº 6.197 de 30 de julho de 2009, os valores limites para
elegibilidade das famílias ao programa são R$ 140,00 per capita para famílias consideradas
pobres que tenham crianças e adolescentes até 17 anos de idade, e R$ 70,00 per capita para
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famílias em extrema pobreza, independentemente da composição familiar. O valor do
benefício pago pelo PBF varia de R$ 32,00 a R$ 306,00, ficando condicionado à composição
e à renda familiar. Além disso, o MDS trabalha com quatro tipos de benefícios. A
discriminação desta tipologia encontra-se disposta no Quadro 1 a seguir:
Quadro 1 – Tipologia dos benefícios do Programa Bolsa Família
Tipo do Benefício
Discriminação
É concedido um valor de R$ 70,00 mensais a famílias
com renda per capita de R$ 70,00, independente da
Benefício Básico
composição familiar.
As famílias com renda per capita de até R$ 140,00 que
tenham gestantes, nutrizes, crianças e adolescentes de
até 15 anos de idade, recebem um benefício variável no
Benefício Variável
valor de R$ 32,00, podendo acumular até cinco
benefícios variáveis.
Benefício Variável Vinculado A família que possuir jovens com idade entre 16 e 17
anos frequentando a escola recebem R$ 38,00 por cada
ao Jovem (BVJ)
jovem, podendo receber até dois BVJ’s.
Benefício Variável de Caráter Esse benefício é pago à família dos programas AuxílioGás, Bolsa Alimentação, Bolsa Escola e Cartão
Extraordinário (BVCE)
Alimentação, cuja migração para o PBF causou perdas
financeiras.
Fonte: Elaboração própria a partir de informações do Ministério do Desenvolvimento Social/Programa Bolsa
Família (MDS, 2012).
Cabe ainda ressaltar que esta focalização se restringe a apenas uma dimensão da
pobreza, ou seja, a renda. Esta restrição à renda tem sido alvo de muitas críticas na literatura
especializada. Conforme pode ser observado a seguir:
Há que se considerar que a concepção de focalização no contexto das
reformas dos programas sociais na América Latina tem sido orientada pelo
ideário neoliberal, significando medidas meramente compensatórias aos
efeitos do ajuste estrutural sobre as populações vulneráveis. Marcou, assim,
a interrupção de uma luta em prol da construção da universalização de
direitos sociais com ações universais (SILVA, 2007, p. 1435).
Com efeito, quando orientadas por uma visão neoliberal, políticas sociais com um viés
focalizado acabam se resumindo apenas como uma ação paliativa, até mesmo para amenizar a
pressão por parte daqueles que cobram por uma ação do Estado diante da situação de pobreza
que tende a aumentar em um contexto como este.
Ademais, um agravante que incide sob esta questão é o fato de que a linha de pobreza
que confere a elegibilidade das famílias é muito baixa. Deste modo, famílias com renda um
pouco acima da linha de corte acabam não sendo contempladas com o benefício, mesmo se
encontrando também em situação de pobreza. Neste sentido, Yasbek (2004) aponta para a
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linha de corte do público beneficiário como um ponto de grande fragilidade do programa, uma
vez que este focaliza nos mais pobres entre os pobres, fazendo com que o programa adquira
um caráter discriminatório e fragmentado.
De acordo com Senna et al.( 2007), programas focalizados como é o caso do PBF se
deparam com a difícil tarefa de construir critérios e mecanismos de seleção dos grupos sociais
que serão beneficiados. Não necessariamente esses critérios conseguirão abarcar toda a
complexidade - ou pelo menos parte significativa dela - embutida nos problemas de ordem
social.
Ainda nesta discussão, Barros e Carvalho (2003) advogam em defesa da focalização
das políticas de combate à pobreza. De acordo com os autores, a efetividade de uma política
de enfrentamento da pobreza consiste em atingir aqueles que são verdadeiramente pobres. Um
argumento, segundo eles, é que as políticas focalizadas permitem que os grupos sociais
beneficiados tenham suas necessidades atendidas e desta forma sua capacidade produtiva seja
expandida, ocasionando a melhoria da qualidade de vida dessas pessoas.
Na contramão desta ideia, encontram-se argumentos desfavoráveis às políticas
focalizadas, como pode ser observado a seguir:
Políticas sociais focalizadas podem enfraquecer a disposição para pagar
impostos que as financiem por meio do princípio da segregação que está
inscrito nelas, segundo o qual ‘alguns pagam enquanto outros se
beneficiam’. Se a política é percebida desse modo, tem que contar com um
sentido de solidariedade muito forte (quase irracional), que ela mesma
inviabiliza na medida em que reforça a segregação. Essa ideia não pressupõe
que as pessoas sejam por natureza autointeressadas, mas que a solidariedade
requeira pelo menos um sentido de identificação ou simpatia com os
beneficiários, que é, no entanto, solapada pela segregação [...] Políticas
redistributivas de renda tendem a redistribuir menos do que políticas de
renda universais porque há uma tendência de haver menos a ser redistribuído
(KERSTENETZKY, 2009, p. 66).
Diante dos argumentos favoráveis e das objeções às políticas sociais focalizadas, cabe
dizer que estas políticas são de grande valia como políticas de caráter emergencial, isto é, para
minimizar o problema no curto prazo; contudo, políticas estruturais são mais que necessárias
para reverter a situação de pobreza e impedir o retorno a ela.
Feitas as devidas colocações sobre a focalização do programa, é de bom grado agora
abordar outra questão do PBF, provavelmente, mais polêmica que a anterior e que tem sido
alvo de muitas críticas na literatura especializada. Trata-se das condicionalidades que as
famílias elegíveis precisam cumprir para se manterem no programa.
Aos beneficiários do Bolsa Família cabe uma contrapartida que prevê a inclusão
dessas pessoas em determinados serviços de saúde, educação e assistência social. No que
13
tange à saúde, as gestantes, nutrizes e crianças com idade entre 0 e 6 anos deverão manter
suas vacinas em dia, além de receber acompanhamento nutricional. Além disso, as gestantes
devem ter consultas de pré e pós-natal e, juntamente com as mães de crianças de 0 a 6 anos,
devem participar de atividades educativas sobre saúde e nutrição. Em relação à educação, as
crianças e adolescentes com idade entre 6 e 15 anos precisam ter uma frequência escolar
mínima de 85%. Entre os jovens de 16 e 17 anos é requerida uma frequência mínima de 75%.
Já no que se refere à assistência social, as crianças e adolescentes de 6 a 15 anos de idade
acompanhadas pelo PETI devem participar do Serviço de Convivência e Fortalecimento de
Vínculos (SCFV) do PETI e obter frequência mínima mensal de 85%.
A quinta reincidência de não cumprimento destas condicionalidades implica no
desligamento das famílias beneficiárias do programa. Já aqui surge a primeira polêmica em
torno desta questão. Os formuladores do programa argumentam que estas condicionalidades
almejam ampliar o acesso das famílias pobres aos serviços sociais básicos, o que permite,
sobretudo às gerações futuras, romper com o ciclo da pobreza, pois se trata da combinação de
uma política compensatória de transferência de renda com uma política estruturante.
Todavia, é bastante discutido se a cobrança dessa contrapartida é ou não válida, haja
vista que se está diante de fatores que deveriam ser tratados como direitos incondicionais a
qualquer cidadão. A questão levantada refere-se a como estabelecer condicionalidades a algo
que é, por sua natureza, incondicional? Além disso, Monnerat et al. (2007) chama a atenção
para a questão trazida com a exigência de cumprimento de condicionalidades, qual seja, o
caráter punitivo às famílias que não as cumprir. A discussão provocada pelos autores pode ser
observada na citação a seguir:
O conteúdo punitivo desta legislação é bastante surpreendente porque, até
então, o conjunto de dispositivos legais permitia imaginar que a concepção
em torno das condicionalidades tinha caráter primordialmente estratégico, no
sentido da ampliação do acesso dos beneficiários aos serviços sociais
(MONNERAT et al., 2007 p. 1460).
Sobre esse ponto, os autores explanam muito bem, haja vista que essas
condicionalidades, pelo menos em princípio, visam atingir outros aspectos relevantes em
relação à pobreza. E isso significa o reconhecimento de que outras dimensões precisam ser
contempladas nas políticas de combate à pobreza. Além disso, chama-se a atenção para a
fragilidade institucional de acompanhar o cumprimento destas condicionalidades, que fica a
cargo dos municípios. Surge daí o questionamento sobre a capacidade dos municípios de
realizar esta tarefa.
Diante disso, e a fim de atestar a qualidade da gestão do programa em nível local, o
governo federal criou o Índice de Gestão Descentralizada (IGD). No cômputo deste índice,
14
são consideradas quatro variáveis com peso de 0,25 cada uma e quanto mais próximo de 1,
melhor será o indicador. São estas as variáveis: frequência escolar, acompanhamento dos
beneficiários nos postos de saúde, cadastramento correto e atualização cadastral. Percebe-se
que as duas primeiras se referem às condicionalidades do Programa. Os municípios que
conseguem IGD acima de 0,4 recebem um incentivo financeiro para manterem o índice
sempre num patamar igual ou superior ao estabelecido.
Além dos questionamentos já levantados, outro surge a partir do ponto abordado no
parágrafo anterior e que não pode ser negligenciado. Isto é, a qualidade da prestação dos
serviços públicos de educação e saúde frente ao atendimento das condicionalidades do
Programa. É importante também investigar se os sistemas de educação e, sobretudo, de saúde
comportam o aumento da demanda que possivelmente provoca. Sob este ponto, reiteram
Senna et al.(2007, p. 91):
Reconhece-se que as desigualdades existentes no Brasil se refletem também
em profundas diferenças nas condições financeiras, políticas e
administrativas de estados e municípios, afetando a capacidade de resposta
às necessidades da população e aos novos papéis que lhes são atribuídos.
Os autores chamam a atenção para um problema maior embutido na situação exposta
acima, qual seja, o de questionar as condições e capacidades dos municípios ofertarem o que
há de mais básico entre os direitos sociais. De fato, a qualidade dos serviços públicos de saúde
e educação é bastante questionável. E por tratarem de serviços básicos, além de assumirem
um papel estratégico dentro do Programa, é preciso direcionar melhor atenção à oferta e à
qualidade da prestação desses serviços.
Ademais, cabe ressaltar que a existência de condicionalidades não significa que os
beneficiários do programa terão acesso aos serviços de saúde e educação, haja vista que
quando o serviço não é ofertado por falta de disponibilidade do município, a condicionalidade
é simplesmente suspensa. Diante do exposto, é possível perceber que somente o beneficiário
que não cumpre as condicionalidades - quando lhe é dada a condição para isso - sofre
punições. Entretanto, a falta, por parte do governo, em não cumprir com o seu dever de
oferecer serviços básicos à população fica impune. Lamenta-se esse fato quando se trata de
uma política que procura resolver o problema da pobreza, tão latente em nosso país.
Feitas as devidas exposições sobre o PBF, a seção seguinte se propõe a fazer uma
avaliação deste programa, bem como das políticas sociais, de forma generalizada, sob o
prisma da multidimensionalidade da pobreza.
4 As políticas sociais na perspectiva multidimensional da pobreza
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4.1 Os conceitos de pobreza
Erradicar a pobreza é o grande desafio do mundo contemporâneo. Sabe-se que se trata
muito mais de um problema de distribuição de recursos do que de disponibilidade destes.
Existe uma literatura ampla sobre esse tema, assim como também há várias definições para a
pobreza. Esta questão, por sua vez, se apresenta de forma muito relevante, pois, o conceito de
pobreza impactará na mensuração do número de pobres e, consequentemente, nas ações de
combate ao fenômeno. Esses conceitos vão desde concepções mais simples de caráter
unidimensional, até visões bem mais complexas e que concebem a pobreza como a privação
de inúmeros fatores que englobam várias dimensões.
Em uma abordagem unidimensional da pobreza, geralmente o caráter econômico é que
é considerado como seu elemento principal. Antes do tratamento monetário dado à pobreza
havia o enfoque biológico. Por meio deste, todo ser humano possui a necessidade de se
manter nutrido para que continue perpetuando sua vida. Conforme Lacerda (2009), com o
tempo essas necessidades alimentares foram convertidas no valor monetário necessário para a
aquisição destes nutrientes. Surge, assim, a abordagem monetária da pobreza. Contudo, o seu
foco ainda continua voltado para uma única dimensão.
Diante disto, começou-se a pensar o agravamento da pobreza como um problema que
possuía suas raízes sustentadas no critério da renda. Desta forma, a pobreza passou a ser
entendida como a insuficiência de rendimentos para a satisfação das necessidades mais
básicas ao ser humano.
Sob a perspectiva da multidimensionalidade da pobreza, Sen (2010) afirma que a
renda é apenas um meio, mas nunca um fim em si para a sua erradicação. Desta forma,
pobreza hoje se relaciona muito mais com fatores, que na sua ausência ou oferta insuficiente,
comprometem a qualidade de vida. E num mundo contemporâneo esse conceito de qualidade
de vida também sofreu alterações, tornando-se mais “pretensioso”, dado os avanços
tecnológicos que, mais do que qualquer outro intuito, devem proporcionar às pessoas uma
vida mais confortável.
Considerar a pobreza como um fenômeno que, naturalmente, possui múltiplas
dimensões, significa admitir que a qualidade de vida das pessoas está condicionada a fatores
de natureza tanto física como social. É importante ressaltar que, longe de excluir a abordagem
monetária da pobreza, o enfoque multidimensional surge para complementá-la. Deste modo, o
pensamento científico acerca da pobreza tem evoluído em direção a conceitos cada vez mais
complexos e que agregam um número maior de variáveis inclusive algumas que se esbarram
no problema da mensuração.
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Um ponto de grande relevância ao se considerar a multidimensionalidade da pobreza é
que o foco, antes totalmente direcionado ao aspecto econômico, passa a ser distribuído
também entre dimensões de natureza social, política, como também ética. Disto se extrai a
principal característica da abordagem multidimensional, a saber: a inter-relação entre os
fatores associados à pobreza. Daí porque, no que tange à trajetória do pensamento científico
sobre a pobreza, os conceitos que surgem ao longo do tempo devem ser considerados como
complementares, pois estes conceitos surgiram de forma evolutiva. Sob esse aspecto,
evidencia-se a relevância de que as políticas sociais de combate à pobreza passem a
considerar a multidimensionalidade do fenômeno e sejam planejadas como tal.
4.2 Reflexões sobre as políticas sociais à luz da mutidimensionalidade da pobreza
De acordo com Monnerat et al. (2007), a história brasileira de combate à pobreza é
muito recente e, além disso, a política social nunca recebeu a atenção devida, geralmente
sendo suplantada pelos objetivos econômicos, além de serem, na maioria das vezes,
focalizadas e de caráter emergencial e, por vezes, oportunista.
Um aspecto que merece ser destacado diz respeito ao tratamento focado unicamente
numa visão unidimensional. Ora associada à condição mínima de subsistência, quando se
estabelece linhas de pobreza baseadas em uma quantidade mínima de calorias necessárias
para a perpetuação da vida, e ora relacionada à capacidade de consumo da pessoa através da
renda disponível. Atualmente tem ganhado destaque as abordagens multidimensionais da
pobreza, que trazem uma visão sobre o fenômeno muito mais abrangente que a concepção
unidimensional.
Entretanto, esta concepção da pobreza, enquanto um fenômeno complexo e
multidimensional, ainda acontece de forma muito tímida nas políticas voltadas para o
enfrentamento deste fenômeno. As políticas ainda se pautam muito pela ótica monetária e isso
traz dois problemas à efetividade da política.
O primeiro, diz respeito ao critério utilizado para estabelecer uma linha de pobreza
baseada na renda. O valor estabelecido como linha de corte varia muito a depender da
entidade. Disto, pode-se concluir que mesmo na literatura que defende a concepção monetária
da pobreza não há um consenso sobre qual o valor mínimo necessário à pessoa para que esta
esteja livre de uma vida de privações. Essa variação das linhas de pobreza pode sinalizar uma
fragilidade da concepção monetária no sentido de que mesmo adotando uma abordagem
relativamente simples, ela não combate efetivamente o fenômeno.
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O segundo ponto a ser problematizado relaciona-se com o fato de que as abordagens
multidimensionais possuem como principal característica a visão ampliada que ela dá à
pobreza. Neste sentido, sendo a renda apenas uma das dimensões da pobreza, a abordagem
monetária capta apenas uma parte desta, deixando de mensurar outras tantas dimensões. De
fato, quando se compara os dados de uma abordagem monetária com uma abordagem
multidimensional, percebe-se que o percentual de pobreza é bem mais significativo nesta
última. Destarte, uma política que almeja combater a pobreza precisa levar em consideração
este ponto. Deste modo, é preciso também ter cautela para que os programas não sejam
apenas meros meios de manipulação política, onde se busca apenas resultados contábeis com
fins eleitorais.
De acordo, tanto com a abordagem das necessidades básicas como com a abordagem
das capacitações, é necessário que haja a democratização dos serviços sociais básicos a fim de
promover a emancipação da pessoa. O grande problema de muitos programas de transferência
de renda é o de manutenção de uma prática assistencialista, de caráter paliativo e raramente
emancipatório.
Um programa efetivo de combate à pobreza precisa combinar uma política de
transferência de renda, em caráter emergencial, e uma política estruturante capaz de permitir
que a pessoa tenha condições de sair da pobreza e a ela não mais retornar. Políticas sociais
voltadas para a transferência focalizada de renda podem apresentar um resultado satisfatório
para um problema de conjuntura. Todavia, a pobreza é um problema de natureza estrutural e,
portanto, requer medidas de reestruturação das bases econômicas e sociais.
Nesse contexto, acredita-se que dois pontos precisam ser ressaltados para uma maior
efetividade nos resultados de combate à pobreza em caráter estrutural. O primeiro ponto diz
respeito à articulação entre política econômica e política social. Primeiramente é preciso ter
em mente que estas não são mutuamente excludentes, mas pelo contrário, são
complementares. Durante toda a história do capitalismo, a pauta econômica sempre ocupou o
topo das prioridades. À política social sempre foi relegado um papel coadjuvante. Diante do
atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, o desenvolvimento social se faz mais que
necessário para que se amplie a capacidade de consumo, além de aumentar a oferta de capital
humano.
O segundo ponto está relacionado à relação política de governo versus política de
estado. Muitas políticas de assistência social se reduzem a mandatos políticos, de forma que a
mudança de governo representa uma interrupção dessa política. Isso pode ter um peso social
bastante significativo quando a política se mostra eficaz no alcance de seus objetivos. Deste
18
modo, é importante formular políticas de Estado, haja vista que a execução de políticas desse
tipo independe das alternâncias de governo.
Somente com políticas que almejam, de fato, combater o cerne da pobreza que esta
poderá ser erradicada. Para tanto precisam ser políticas voltadas para a democratização dos
serviços sociais básicos, pautando-se não apenas pela quantidade, mas, principalmente, pela
qualidade destes serviços. Além de criar políticas de emprego, de incentivo à capacidade
empresarial e de formalização do setor informal da economia. Em suma, tudo isso se refere às
mudanças estruturais necessárias à criação de portas de saída da pobreza, sustentadas em
bases sólidas para evitar que as pessoas retornem à condição de penúria à qual se encontravam
anteriormente.
O que foi exposto até o momento nesta seção se aplica às políticas sociais de forma
geral. Cabe, contudo, abordar de forma mais específica o Programa Bolsa Família no que
concerne aos aspectos levantados na seção anterior.
O primeiro aspecto a ser destacado se refere ao critério de elegibilidade das famílias
beneficiárias. A linha de corte é muito baixa e o valor do benefício recebido é relativamente
pequeno. De forma que nem mesmo as necessidades básicas de ordem econômica podem ser
totalmente satisfeitas. Dito de outra forma, a renda transferida não se configura como um
mecanismo capaz de permitir que as pessoas que a ele tenham acesso possam elevar a
qualidade de vida que lhes possibilitem sair da linha de pobreza sem correr o risco de a ela
retornarem quando da extinção do benefício.
Percebeu-se um avanço no Bolsa Família e nos programas que lhe deram origem no
sentido que estão buscando vincular a ajuda pecuniária com os serviços de educação,
assistência social e saúde. Contudo, isso ainda ocorre de forma muito tímida e apresentam os
problemas já mencionados, ou seja, a capacidade de oferta desses serviços e a qualidade da
prestação dos mesmos. Isto já é um progresso, pois sinaliza que, inclusive, os formuladores de
política e os governos estão percebendo a multidimensionalidade da pobreza.
No que tange às condicionalidades do programa, cabe dizer que as abordagens
multidimensionais da pobreza concebem os serviços sociais como direitos a todos os
cidadãos, sendo estes necessários para elevar o bem-estar de cada um. E é este o tratamento
que precisa de fato ter quando da formulação de uma política de combate à pobreza. Ainda
assim é preciso ir mais além, pois o mero cumprimento das imposições não é em si indicador
de aumento de capacitações.
5 Considerações finais
19
Há ainda um longo caminho pela frente, pois até o momento as respostas não rompem
com a ótica seletiva e emergencial. As políticas precisam ser orientadas no sentido de
possibilitarem a emancipação das pessoas, permitindo-lhes ter acesso aos serviços sociais
básicos, a uma renda que lhes possibilitem ter o estilo de vida que valorizam, tomar parte na
vida da comunidade; enfim, gozar dos seus direitos civis, políticos e sociais. Ainda sob a
perspectiva da multidimensionalidade da pobreza, é preciso ampliar não somente o leque de
oportunidade aos cidadãos, mas principalmente as suas capacitações.
Cabe dizer que diante do cenário descrito neste trabalho, faz-se necessário direcionar a
atenção para políticas voltadas para o efetivo combate à pobreza, levando em consideração as
suas múltiplas dimensões e a complexidade que ela envolve. Diante do exposto, observou-se
que o problema da pobreza não é devido a escassez de recursos, mas sim à má distribuição
destes, além da subordinação das políticas sociais aos interesses econômicos dos grupos
dominantes.As políticas públicas precisam chegar mais aos pobres, sobretudo àqueles que se
encontram em situação de extrema pobreza. Além disso, é necessário que, concomitante a
isso, haja políticas estruturantes para que se criem bases sólidas para o desenvolvimento
social, pois a maior riqueza de uma nação é o seu povo.
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