Políticas sociais e o Programa Bolsa-Família: uma abordagem teórica à luz da pobreza multidimensional. Samara Campos Ribeiro1 Resumo: o presente trabalho tem por objetivo fazer uma abordagem teórica sobre políticas sociais de combate à pobreza, de forma geral, e de maneira mais específica, a política mais emblemática e atualmente em vigência no Brasil, qual seja, o Programa Bolsa-Família (PBF). Políticas sociais são imprescindíveis para que os países alcancem estágios maiores de desenvolvimento e enfrentamento da pobreza. Na literatura é possível encontrar registro de práticas de assistência social desde o século XIV. Durante muito tempo esteve associada a uma relação entre assistência social e trabalho. Com o advento da industrialização, a assistência social sofreu forte influência da ideologia liberal, além de se adequar à nova dinâmica econômica e social, bem como as instabilidades surgidas no período. Já no Pós Guerra surge o Welfare State baseado no receituário keynesiano, no Relatório de Beveridge e na teoria da cidadania de T. H. Marshall. No Brasil, a assistência social surge no mesmo período do processo de industrialização do país, contudo, após a Constituição de 1988 que encontra maior amparo e se percebe maior atuação nesta área. O PBF se configura como uma das principais políticas de combate à pobreza desde o início dos anos 2000. Entretanto, o que se conclui é que alguns desafios ainda são impostos ao PBF à luz das abordagens mais modernas de pobreza multidimensional: erradicar a miséria e a pobreza; ampliar a concepção de pobreza no desenvolvimento de políticas sociais, levando em consideração a complexidade do fenômeno; a relevância da articulação entre as políticas econômica e social, bem como a necessidade de que estas sejam políticas efetivamente de Estado e não se limitem apenas a mandatos políticos; e, por fim, maior abrangência das linhas de indigência e pobreza. Palavras-chave: Política social; Pobreza; Bolsa Família; Desafios. Abstract: The present work aims to make a theoretical approach to social policies to combat poverty in general, and way more specific, the policy most iconic and currently in force in Brazil, namely, the Bolsa Família. Social policies are essential for countries to reach higher stages of development and fight poverty. In the literature one can find registration practices of social assistance since the fourteenth century. Long been associated with a relationship between welfare and work. With the advent of industrialization, social assistance was strongly influenced by liberal ideology, and adapt to the new economic and social dynamics and instabilities arising in the period. Now comes the Post War Welfare State based on the Keynesian prescription, in the Beveridge Report and citizenship theory T. H. Marshall. In Brazil, social assistance arises in the same period of the industrialization process of the country, however, after the 1988 Constitution, which is greater support and realize greater activity in this area. The PBF is configured as one of the main policies to combat poverty since the early 2000s. However, what is apparent is that taxes are still some challenges to the PBF in the light of more modern approaches to multidimensional poverty: eradicate extreme poverty and poverty, expanding the concept of poverty development of social policies, taking into account the complexity of the phenomenon, the importance of the relationship between economic and social policies, as well as the need for these policies are effectively state and not just confined to political mandates, and, finally, wider range of poverty lines and poverty. Keywords: Social Policy; Poverty; Bolsa Família; Challenges. 1 Introdução Muito se tem falado sobre a necessidade de erradicação da pobreza como uma condição necessária para o desenvolvimento. O atual estágio do modo de produção vigente protagonizado 1 pelas nações desenvolvidas impõe, também àquelas Graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. E-mail: [email protected] tidas como 2 subdesenvolvidas e emergentes, uma busca frenética por níveis cada vez maiores de crescimeno econômico. Chegou-se em um ponto em que a manutenção do crescimento econômico presupõe níveis cada vez maiores de desenvolvimento. Essa é a palavra de ordem. Contudo, ainda há muitos gargalos a serem superados, principalmente, pelos países menos desenvolvidos. A pobreza ainda é latente, sobretudo nesses países. Há um volume muito grande de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza e outro tanto que vive na mais absoluta miséria. É em um contexto de privação por parte de uma parcela significativa da população, desde muitos séculos, que vem a necessidadde de assistir e amparar os pobres. Surge então as chamadas políticas sociais. Elas buscam, de alguma forma, garantir o minímo básico necessário à subsistência da população carente. Essa prática acontece há vários séculos e sofre modificações conforme o cenário socioeconômico muda. No período atual, percebe-se maior direcionamento para a discussão sobre essa temática, tanto por parte da comunidade acadêmica, como também pelos governos e formuladores de políticas. Esse debate é percebido tanto em países desenvolvidos como nos subdesenvolvidos. De modo especial, espera-se que os países, cujo desenvolvimento se encontra muito aquém das grandes nações, estejam bastante empenhados em desenvolver políticas com vistas à redução deste hiato e, sobretudo, implementar cada vez mais melhoria na qualidade de vida da sua população. Este é o tom da discussão trazida neste trabalho. Ainda que de forma meramente teórica, busca-se instigar a reflexão acerca da política social no Brasil. Deste modo, o texto está dividido em quatro seções, além desta introdução. Inicialmente faz-se um breve histórico sobre as concepções de política social ao longo do tempo, onde as mesmas foram se adequando às formas como a pobreza era entendida. Em seguida, na terceira seção, é abordada a política social no Brasil, tendo como foco o Programa Bolsa-Família como o caso mais emblemático. Assim, será feita uma exposição teórica e mais geral do Programa. Já a seção quatro traz os conceitos de pobreza multidimensional. Por fim, faz-se as considerações finais do que foi discutido. 2 Da origem das políticas sociais até o período atual Institucionalmente, as políticas de assistência aos pobres remontam de meados do século XIV na Grã-Bretanha, no reinado de Eduardo III. Este é um período marcado por uma crônica escassez de mão-de-obra para trabalhar nas fazendas em virtude da Peste Negra que exterminou cerca de um terço da população. Além disso, a falta de trabalhadores na lavoura implicava no aumento dos salários. 3 É neste contexto que surge a assistência social. Isto é, da tentativa de controlar a elevação dos salários e de impedir a perambulância de pessoas entres as paróquias em busca de melhores trabalhos. Com estes objetivos, em 1351 foi instituído na Iglaterra o Statute of Labourers (Lei dos trabalhadores) e em 1388 a Poor Law Act (Lei dos Pobres). Nesta mesma época a França também instituiu a Lei Ordenança de conteúdo idêntico ao da lei inglesa. De acordo com Pereira (2009), esta Lei dos Pobres era muito mais punitiva do que protetora, além de pouco eficiente e eficaz no que tange ao alcance dos seus objetivos. Segundo a autora, “as temidas ‘vagabundagem’ e mendicância não foram debeladas por essa forma de controle social que incluía surras, mutilações, e queimaduras com ferro em brasa nos andarilhos, embora estes, àquela época, não fossem tão numerosos como se fazia crer” (PEREIRA, 2009, p. 62). A partir de 1530, no reinado de Henrique VIII, são designadas algumas áreas em que os pobres inválidos podem mendigar sem sofrer as duras sanções da lei. Além disso, as paróquias foram autorizadas a recolher contribuições a fim de conferir um mínimo de assistência a esses pobres. Por outro lado, os pobres considerados válidos (aptos ao trabalho) eram severamente punidos caso fossem pegos perambulando, chegando a ser submetidos ao regime de escravidão instituído, em 1547, pelo Parlamento inglês (PEREIRA, 2009). No último quartel do século XVI, surgiram as Poor-houses (Casa dos Pobres), transformando os velhos palácios britânicos nessas casas onde eram abrigados tanto os pobres capazes como aqueles tidos como incapazes. Para garantir a própria subsistência nessas casas, o pobre válido era induzido compulsoriamente à prestação de serviços. Pouco tempo depois, em 1601, foi instituída uma nova Poor Law Act, que foi considerada “um marco histórico e referência da Lei dos Pobres inglesa até 1834” (PEREIRA, 2009, p. 64). Esta lei expressou a intenção de desenvolver um modelo de gestão administrativa por meio do estabelecimento de uma tipologia de regulação a partir da diferenciação de categoria de pobres a serem atendidos. Além disso, esta legislação deu ênfase à administração local e à descentralização político-administrativa paroquial, através da criação da figura do inspetor que tinha a incumbência de cobrar tributos e dízimos para subsidiar a assistência pública. Havia também um Conselho Privado que se responsabilizava pela supervisão de todo o sistema local de controle social. Através do Settlement Act, de 1662, o auxílio aos pobres foi todo convergido para as workhouses. Pouco mais de um século depois, em 1782, a assistência nas workhouses 4 (assistência interna) foi abolida através da Lei Gilbert, que estimulava a assistência externa, ou seja, fora dos muros institucionais. Até o presente momento é possível perceber que a concepção tanto da pobreza quanto da assistência aos pobres se pauta numa estreita relação entre assistência social e trabalho. É basicamente esta ideia que norteia as políticas sociais do período pré-industrialização, onde a concepção da assistência social se apresenta de maneira diferente da observada em uma sociedade industrial. A dinâmica de uma sociedade que já experimentou um processo de industrialização demanda práticas diferentes de assistência social, uma vez que toda a estrutura da organização econômica, social, política e ideológica sofre alterações. É justamente esse o problema advindo da Revolução Industrial, no que tange às práticas de assistência social pública. Enquanto a Inglaterra se adequava ao processo de industrialização, paralelamente experimentava um cenário de muita instabilidade econômica e social. Além das flutuações econômicas, havia a escassez de alimentos em decorrência das baixas colheitas e dos conflitos bélicos, o que impulsionou para cima o preço dos alimentos de primeira necessidade. Diante disso, inclusive as pessoas que estavam empregadas passaram a demandar proteção social. Como não havia uma reação no âmbito nacional, as localidades introduziram subsídios para complementação de salários. A iniciativa mais famosa foi concebida em 1795 e ficou conhecida como Sistema Speenhamland onde o trabalhador passou a ter direito à proteção social. Conforme Pereira (2009), a alternativa que pareceu mais viável naquele período foi esta, uma vez que a Inglaterra se deparava com a crise das Poor Laws e com o medo de levantes sociais tais como aconteceram na França em 1789 que culminou na Revolução Francesa. Surgida como uma reforma à Speenhamland Law,a Poor Law Amendment Act — fortemente pressionada pela ideologia do liberalismo econômico —, significou o ponto de ruptura da emergente economia de mercado com o sistema protecionista estatal. Introduz-se, desta forma, uma concepção moralista da pobreza, onde o pobre era visto como indolente, extravagante e viciado. Sob esta perspectiva, a Lei dos Pobres era vista como um empecilho ao desenvolvimento econômico, uma vez que esta destruía o espírito de auto-ajuda, de empreendedorismo e da ambição, além de provocar uma sensação de segurança social que levava as pessoas ao comodismo. Friedlander (1973, apud PEREIRA, 2009) sintetiza as principais recomendações da Lei dos Pobres de 1834 em seis pontos, a saber: a) suspensão do abono salarial parcial previsto no Sistema Speenhamland; b) recuperação da workhouses e internação nestas casas 5 de todos os trabalhadores capazes de trabalhar que solicitassem assistência; c) prestação de assistência externa apenas aos incapacitados ao trabalho; d) centralização administrativa das atividades assistenciais das várias Paróquias; e) aplicação do princípio da menor elegibilidade, ou seja, tornar o benefício de assistência pública menos atraente que o trabalhador menor remunerado; f) estabelecimento de uma Comissão Central de controle da Lei dos Pobres, nomeada pelo rei. Entretanto, o tempo se encarregou de mostrar as fragilidades e a inoperância da Lei de 1834. Inúmeras transformações estavam acontecendo na época, decorrentes das mudanças na estrutura de produção em virtude da Revolução Industrial. Pereira (2009) chama a atenção para o fato de que essas mudanças — como a passagem de uma economia agrária para outra industrial, bem como o desemprego tecnológico que atingiu os artesãos, além das flutuações de salários — foram subestimadas. Ademais, havia um grande hiato entre o que o receituário liberal propunha com a Lei de 1834 e o que realmente ocorreu. Além disso, as condições nas workhouses se mostraram demasiadamente irrealistas, a ponto de muitas pessoas preferirem viver na total desproteção a ter que morar nessas casas. Tudo isso convergiu para uma mudança na concepção da proteção social praticada na época. Um importante avanço no que tange às políticas de enfrentamento da pobreza, diz respeito aos estudos de Booth (1899) e Rowtree (1901) que perceberam que a culpabilização dos pobres pela sua própria pobreza não era a única causa desta (ROCHA, 2006). Assim, eles acreditavam que havia uma íntima relação entre pobreza e fatores estruturais e procedimentais do sistema industrial. O fato histórico importante que contribuiu para o declínio do ideário liberal vigente foi a Grande Depressão de 1929. Este acontecimento provocou profundas mudanças de ordem econômica e social. Estava-se diante de um cenário de elevadíssimo desemprego, incontrolável inflação, além da expansão do socialismo e surgimento do fascismo. Neste contexto floresceu a ideia de uma economia mista em que mercado e Estado se articularam e se co-responsabilizaram pela execução de políticas geradoras de pleno emprego, além de promover um conjunto de benefícios e direitos que garantiam aceitáveis padrões de vida aos cidadãos sem, contudo, alterar a dominação burguesa e as relações de propriedade capitalistas. De acordo com Monnerat et al. (2007), uma nova forma de enxergar a pobreza, e por consequência os pobres, surgiu no pós-Guerra. A partir daí o Estado passa a ser o principal 6 regulador da vida social. É neste cenário que o Welfare State se institucionaliza a partir de 1945. Nas palavras dos autores, A partir desse momento, a perspectiva de responsabilidade individual em arcar com os custos da reprodução da própria vida cede lugar à noção de que todos devem participar na provisão de bem-estar de todos os cidadãos. O Estado adquire papel central na regulação da vida social e a constituição do Welfare State representou a institucionalização de um relativo consenso acerca da noção de pobreza como uma questão social, sendo dever do Estado equacioná-la (MONNERAT et al.,2007, p. 1454). De acordo com Pereira (2009), é possível enumerar três marcos orientadores do Welfare State, a saber: o receituário keynesiano, iniciado em 1930, de regulação econômica e social; as postulações do Relatório de Beveridge de Seguridade Social de 1942; e a formulação da teoria trifacetada da cidadania de Thomas Humphrey Marshall, em 1940. De autoria do economista britânico John Maynard Keynes, o receituário keynesiano defende que o equilíbrio econômico não depende apenas do mercado – e que este não era auto-regulável como acreditavam os economistas clássicos defensores da corrente liberal -, mas também da ação de um agente externo que regulasse variáveis chaves do processo econômico (propensão a consumir e incentivo ao investimento), sendo este agente o Estado. Essa ideia foi revolucionária nos anos 1930, época em que se vivenciava um momento crítico com a Crise de 1929. Keynes defendia, ainda, o pleno emprego mesmo que este fosse conseguido à custa de um orçamento deficitário. Na outra base do tripé, elaborado por um Comitê coordenado por William Beveridge, o Relatório Beveridge propunha uma revisão no sistema de proteção social existente na GrãBretanha. Ele inovou por seu caráter nacional e unificado e por conter um eixo distributivo e outro contributivo. Por meio deste Relatório muitas ações de política social foram instituídas como direito. Além de criar uma política de emprego e um Sistema Nacional de Saúde não contributivo e universal. Já a teoria da cidadania de Marshall compunha-se de três grupos de direitos: os direitos civis, necessários ao desenvolvimento das liberdades individuais como, por exemplo, liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, entre outros; os direitos políticos, que permitem ao cidadão participar da vida política da sociedade; e os direitos sociais que possibilitam ao indivíduo tomar parte na vida social e levar uma vida de acordo com os padrões desta sociedade. Esses direitos foram conquistados por meio de movimentos democráticos, encontrando posteriormente amparo em instituições públicas. Monnerat et al. (2007) corrobora dizendo que dentre os países europeus que desenvolveram o Welfare State, foi possível observar os avanços dos direitos de 7 cidadania que conformaram em generosos sistemas de proteção social e, consequentemente, desvincula a tradicional relação entre trabalho e assistência. Segundo os autores, é justamente isso que permite a concepção de sistemas abrangentes de proteção social sem a exigência de condicionalidades. Todavia, as últimas décadas do século XX foram marcadas pela retomada do pensamento liberal, agora denominado neoliberalismo. Contudo, desde o Welfare State a concepção de pobreza vem sendo incorporada através de novas abordagens que buscam captar com mais fidelidade as suas causas. Por fim, cabe chamar a atenção para a necessidade de que as políticas sociais levem em consideração o aspecto multidimensional da pobreza. A seção seguinte procura abordar as políticas sociais de combate à pobreza e de proteção social, e a política atualmente executada no Brasil, bem como analisar a eficiência e eficácia destas políticas no enfrentamento da pobreza no país. 3 As políticas sociais de combate à pobreza em vigência no Brasil Ainda no ensejo do resgate histórico da seção anterior, pode-se datar dos anos 1930 o início da proteção social no Brasil. O fato histórico que justifica as práticas de assistência social, também o é de natureza econômica, qual seja, o processo de industrialização que provocou profundas mudanças no âmbito da organização socioeconômica do país. A nova classe operária que surgia demandava certos bens sociais anteriormente não disponíveis para pessoas de estrato social mais baixo. Mas é a partir da década de 1970, durante o regime militar, que essas políticas se expandem. Silva (2007) acredita que, isto se deve ao fato de os programas e serviços sociais possuírem a capacidade de atenuar a forte repressão sobre as classes trabalhadoras e os setores mais populares. Sob este viés, a autora complementa dizendo que “a proteção social cumpre funções de reprodução da força de trabalho e legitimação do regime de exceção” (SILVA, 2007, p. 1430). Na década seguinte, o cenário de forte pressão do regime ditatorial se transforma em um terreno fértil para a expansão dos movimentos sociais que surgem nos porões das igrejas. Desta forma, esse período foi marcado por inúmeras manifestações em prol da democratização política e pela ampliação e universalização dos direitos sociais, culminando na Constituição de 1988 que representou uma ampliação significativa dos direitos sociais. Ainda neste veio de análise histórica, mais precisamente no período de redemocratização do 8 Brasil, Silva (2007) divide a história dos Programas de Transferência de Renda no Brasil em cinco momentos. O primeiro momento, em 1991, é marcado pelo início do debate sobre tais programas. O segundo momento, ainda em 1991, é pautado pela introdução da articulação do Programa de Garantia de Renda Mínima que visa amparar financeiramente os brasileiros, residentes no Brasil, de 25 anos de idade ou mais, com renda de 2,25 salários mínimos. Em 1995 tem início o terceiro momento, que se pauta pelas experiências de transferência de renda no âmbito municipal, nas cidades de Campinas, Ribeirão Preto, São Paulo e Brasília. Em 1996 o governo federal lança o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e o Benefício de Prestação Continuada (BPC). No quarto momento, em 2001, o governo federal expande seus programas e implementa outros. Além disso, inicia o debate nacional de defesa pela instituição do Renda Cidadania que se destina a atender todos os brasileiros, sem qualquer restrição. O quinto, e último, momento tem início em 2003 e é marcado pela ampliação dos programas federais, com significativa elevação dos recursos com este fim, além da proposta de unificação dos programas federais, estaduais e municipais. Um ponto de grande relevância quando se faz um debate sobre políticas sociais diz respeito à abrangência destas. Há na literatura, uma discussão sobre o raio de ação dessas políticas, se focalizadas ou universais. Sob esta perspectiva, Monnerat et al. (2007, p. 1459) fazem uma breve síntese histórica dizendo que: A adoção de medidas voltadas à estabilização monetária, eficiência macroeconômica e restrição de gastos públicos, sobretudo a partir da segunda metade dos anos 1990, constrangeu as possibilidades de construção de políticas sociais mais abrangentes e universais, dando espaço para a defesa e implantação de ações focalizadas nos grupos mais pobres. Dentro desse cenário, marcado pela grave crise econômica (expressa nas altas taxas de desemprego e no aumento da informalidade) e pela emergência de novos atores sociais na cena pública, o tema da pobreza e das desigualdades sociais ganha relevo na agenda pública, incitando o debate político e acadêmico em torno da questão e cobrando respostas dos governantes. Assim, de acordo com os autores, no contexto da década de 1990, as políticas focalizadas ganham espaço, devido aos acontecimentos desse período. Isto porque as políticas focalizadas tem caráter mais emergencial, e dado o agravamento da pobreza e a pressão para que fossem tomadas medidas em relação a isso, elas são preferidas às políticas universais. Além da necessidade de conferir à política social o lugar de destaque que lhe é devido, torna-se de grande relevância promover políticas compensatórias em sincronia com políticas estruturantes. Desta forma, os efeitos dessas políticas serão percebidos no curto e no longo prazo. Enquanto as políticas compensatórias de transferência de renda trazem resultados no curto prazo através da elevação da capacidade de consumo, as políticas estruturantes mostram 9 seus efeitos, sobretudo, no longo prazo onde é possível romper com o ciclo geracional da pobreza por meio de acesso à educação, serviços de saúde, entre outros. No curto prazo devese aliviar os problemas mais imediatos da pobreza, enquanto que no longo prazo os investimentos devem ser orientados na elevação do capital humano. Dentre os programas sociais em vigência no Brasil, o caso mais emblemático é o Programa Bolsa Família (PBF) do governo federal em vigor desde 2003. O PBF se configura como uma política compensatória de transferência de renda, além de apresentar um caráter de política estruturante ao instituir certas condicionalidades relacionadas à saúde, educação e assistência social aos seus beneficiários. Dedicar-se-á, doravante, o restante desta seção à exposição deste programa, bem como as discussões levantadas acerca deste programa. 3.1 O Programa Bolsa Família O Programa Bolsa Família se constitui como o principal programa da Estratégia Fome Zero, posteriormente substituída pelo Brasil Sem Miséria (BSM) do governo Federal. Os marcos jurídicos deste Programa iniciam-se com a criação da Medida Provisória (MP) nº 132 de 20 de outubro de 2003, em seguida transformada na Lei nº 10.836 de 9 de janeiro de 2004 e, posteriormente, regulamentado pelo Decreto nº 5.209 de 17 de setembro de 2004, alterado pelo Decreto nº 7.447 de 1º de março de 2011. O Programa objetiva combater a fome, a pobreza e as desigualdades existentes em nosso país, adotando a estratégia da transferência de renda, além de buscar garantir acesso aos serviços básicos de saúde, educação etc.; incluir socialmente as famílias que se encontram à margem do desenvolvimento social e impedir o seu retorno à marginalização, quebrando, desta forma, o ciclo geracional da pobreza. De acordo com o Ministério de Desenvolvimento Social e combate à Pobreza, o Bolsa Família atende mais de 13 milhões de famílias em todo o território nacional (MDS, 2012). O Bolsa Família é resultado da unificação dos programas Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Vale Gás e Cartão Alimentação, que anteriormente agiam de forma isolada. Posteriormente foi incorporado também o PETI. Esta unificação buscou resolver alguns problemas identificados com a existência concomitante desses programas, quais sejam: a existência de programas concorrentes e sobrepostos tanto no que tange aos objetivos, como também ao público; desperdício de recursos por falta de uma coordenação geral desses programas, além da alocação ineficiente destes; dispersão de gerenciamento dos programas em diversos ministérios; e o não alcance do público-alvo. Neste sentido, a unificação almeja otimizar e racionalizar o gasto social, melhorar a gestão do programa e facilitar a interlocução entre as três esferas de governo. Deste modo, 10 cabe ressaltar que a efetividade desta decisão está condicionada a responsabilidades delegadas à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos municípios e à sociedade. No âmbito federal, o PBF está sob a coordenação da Secretaria Nacional de Renda e Cidadania (SENARC) do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza. Mesmo sendo o PBF uma política descentralizada, para que o município participe do programa é necessário que este assine um termo de adesão conforme determinação da portaria GM/MDS nº 246/05. Além disso, deverá ser indicado um Gestor Municipal do programa e existir um comitê ou conselho local de controle social. Um estudo coordenado por Silva (2007) apresentou as seguintes situações do processo de unificação: a) O processo de unificação encontra-se restrito a cinco Programas de Transferência de Renda federais, sem alcançar, portanto, inúmeros programas criados e em implementação por estados e municípios; b) Não vem ocorrendo a unificação dos valores referentes às transferências monetárias consideradas para elegibilidade das famílias ao programa, mantendo-se duas categorias de famílias: as extremamente pobres e as pobres, além de se constituir um valor muito baixo, permitindo deixar de fora do atendimento um contingente de famílias significativo, mas que vive em situação de comprovada pobreza, além de a pobreza ser dimensionada somente pelo critério da renda declarada; c) Manutenção de valores monetários transferidos às famílias à título de benefícios diferenciados e muito baixos, mantendo pouco alterada a situação de pobreza da grande maioria das famílias; d) Articulação insatisfatória entre a transferência monetária às famílias e seu encaminhamento a serviços básicos e a programas estruturantes, como previsto no desenho do Bolsa Família, limitando as possibilidades de autonomização futura das famílias; e) Não ocorrência de melhoria significativa na qualidade do ensino e do atendimento à saúde, apesar de se registrar um avanço quantitativo da busca de serviços por parte das famílias beneficiadas do Bolsa Família, até porque são esses aspectos considerados condicionalidades para permanência das famílias no Programa (SILVA, 2007, p. 1435). Convém neste momento tratar sobre a questão da focalização do programa. Este ponto acaba dividindo os estudiosos de políticas sociais. À priori, cabe expor em que ela consiste dentro do desenho do Bolsa Família. Inicialmente, vale dizer que o programa tem como foco a família, sendo esta entendida como unidade nuclear, que pode ser formada por pessoas que possuam laços de parentesco ou afinidade entre si, formando um grupo doméstico vivendo sob o mesmo teto e mantendo-se pela contribuição de seus membros. A proposta do programa é identificar as famílias mais pobres através de uma linha corte. Amparado pelo Decreto nº 6.197 de 30 de julho de 2009, os valores limites para elegibilidade das famílias ao programa são R$ 140,00 per capita para famílias consideradas pobres que tenham crianças e adolescentes até 17 anos de idade, e R$ 70,00 per capita para 11 famílias em extrema pobreza, independentemente da composição familiar. O valor do benefício pago pelo PBF varia de R$ 32,00 a R$ 306,00, ficando condicionado à composição e à renda familiar. Além disso, o MDS trabalha com quatro tipos de benefícios. A discriminação desta tipologia encontra-se disposta no Quadro 1 a seguir: Quadro 1 – Tipologia dos benefícios do Programa Bolsa Família Tipo do Benefício Discriminação É concedido um valor de R$ 70,00 mensais a famílias com renda per capita de R$ 70,00, independente da Benefício Básico composição familiar. As famílias com renda per capita de até R$ 140,00 que tenham gestantes, nutrizes, crianças e adolescentes de até 15 anos de idade, recebem um benefício variável no Benefício Variável valor de R$ 32,00, podendo acumular até cinco benefícios variáveis. Benefício Variável Vinculado A família que possuir jovens com idade entre 16 e 17 anos frequentando a escola recebem R$ 38,00 por cada ao Jovem (BVJ) jovem, podendo receber até dois BVJ’s. Benefício Variável de Caráter Esse benefício é pago à família dos programas AuxílioGás, Bolsa Alimentação, Bolsa Escola e Cartão Extraordinário (BVCE) Alimentação, cuja migração para o PBF causou perdas financeiras. Fonte: Elaboração própria a partir de informações do Ministério do Desenvolvimento Social/Programa Bolsa Família (MDS, 2012). Cabe ainda ressaltar que esta focalização se restringe a apenas uma dimensão da pobreza, ou seja, a renda. Esta restrição à renda tem sido alvo de muitas críticas na literatura especializada. Conforme pode ser observado a seguir: Há que se considerar que a concepção de focalização no contexto das reformas dos programas sociais na América Latina tem sido orientada pelo ideário neoliberal, significando medidas meramente compensatórias aos efeitos do ajuste estrutural sobre as populações vulneráveis. Marcou, assim, a interrupção de uma luta em prol da construção da universalização de direitos sociais com ações universais (SILVA, 2007, p. 1435). Com efeito, quando orientadas por uma visão neoliberal, políticas sociais com um viés focalizado acabam se resumindo apenas como uma ação paliativa, até mesmo para amenizar a pressão por parte daqueles que cobram por uma ação do Estado diante da situação de pobreza que tende a aumentar em um contexto como este. Ademais, um agravante que incide sob esta questão é o fato de que a linha de pobreza que confere a elegibilidade das famílias é muito baixa. Deste modo, famílias com renda um pouco acima da linha de corte acabam não sendo contempladas com o benefício, mesmo se encontrando também em situação de pobreza. Neste sentido, Yasbek (2004) aponta para a 12 linha de corte do público beneficiário como um ponto de grande fragilidade do programa, uma vez que este focaliza nos mais pobres entre os pobres, fazendo com que o programa adquira um caráter discriminatório e fragmentado. De acordo com Senna et al.( 2007), programas focalizados como é o caso do PBF se deparam com a difícil tarefa de construir critérios e mecanismos de seleção dos grupos sociais que serão beneficiados. Não necessariamente esses critérios conseguirão abarcar toda a complexidade - ou pelo menos parte significativa dela - embutida nos problemas de ordem social. Ainda nesta discussão, Barros e Carvalho (2003) advogam em defesa da focalização das políticas de combate à pobreza. De acordo com os autores, a efetividade de uma política de enfrentamento da pobreza consiste em atingir aqueles que são verdadeiramente pobres. Um argumento, segundo eles, é que as políticas focalizadas permitem que os grupos sociais beneficiados tenham suas necessidades atendidas e desta forma sua capacidade produtiva seja expandida, ocasionando a melhoria da qualidade de vida dessas pessoas. Na contramão desta ideia, encontram-se argumentos desfavoráveis às políticas focalizadas, como pode ser observado a seguir: Políticas sociais focalizadas podem enfraquecer a disposição para pagar impostos que as financiem por meio do princípio da segregação que está inscrito nelas, segundo o qual ‘alguns pagam enquanto outros se beneficiam’. Se a política é percebida desse modo, tem que contar com um sentido de solidariedade muito forte (quase irracional), que ela mesma inviabiliza na medida em que reforça a segregação. Essa ideia não pressupõe que as pessoas sejam por natureza autointeressadas, mas que a solidariedade requeira pelo menos um sentido de identificação ou simpatia com os beneficiários, que é, no entanto, solapada pela segregação [...] Políticas redistributivas de renda tendem a redistribuir menos do que políticas de renda universais porque há uma tendência de haver menos a ser redistribuído (KERSTENETZKY, 2009, p. 66). Diante dos argumentos favoráveis e das objeções às políticas sociais focalizadas, cabe dizer que estas políticas são de grande valia como políticas de caráter emergencial, isto é, para minimizar o problema no curto prazo; contudo, políticas estruturais são mais que necessárias para reverter a situação de pobreza e impedir o retorno a ela. Feitas as devidas colocações sobre a focalização do programa, é de bom grado agora abordar outra questão do PBF, provavelmente, mais polêmica que a anterior e que tem sido alvo de muitas críticas na literatura especializada. Trata-se das condicionalidades que as famílias elegíveis precisam cumprir para se manterem no programa. Aos beneficiários do Bolsa Família cabe uma contrapartida que prevê a inclusão dessas pessoas em determinados serviços de saúde, educação e assistência social. No que 13 tange à saúde, as gestantes, nutrizes e crianças com idade entre 0 e 6 anos deverão manter suas vacinas em dia, além de receber acompanhamento nutricional. Além disso, as gestantes devem ter consultas de pré e pós-natal e, juntamente com as mães de crianças de 0 a 6 anos, devem participar de atividades educativas sobre saúde e nutrição. Em relação à educação, as crianças e adolescentes com idade entre 6 e 15 anos precisam ter uma frequência escolar mínima de 85%. Entre os jovens de 16 e 17 anos é requerida uma frequência mínima de 75%. Já no que se refere à assistência social, as crianças e adolescentes de 6 a 15 anos de idade acompanhadas pelo PETI devem participar do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) do PETI e obter frequência mínima mensal de 85%. A quinta reincidência de não cumprimento destas condicionalidades implica no desligamento das famílias beneficiárias do programa. Já aqui surge a primeira polêmica em torno desta questão. Os formuladores do programa argumentam que estas condicionalidades almejam ampliar o acesso das famílias pobres aos serviços sociais básicos, o que permite, sobretudo às gerações futuras, romper com o ciclo da pobreza, pois se trata da combinação de uma política compensatória de transferência de renda com uma política estruturante. Todavia, é bastante discutido se a cobrança dessa contrapartida é ou não válida, haja vista que se está diante de fatores que deveriam ser tratados como direitos incondicionais a qualquer cidadão. A questão levantada refere-se a como estabelecer condicionalidades a algo que é, por sua natureza, incondicional? Além disso, Monnerat et al. (2007) chama a atenção para a questão trazida com a exigência de cumprimento de condicionalidades, qual seja, o caráter punitivo às famílias que não as cumprir. A discussão provocada pelos autores pode ser observada na citação a seguir: O conteúdo punitivo desta legislação é bastante surpreendente porque, até então, o conjunto de dispositivos legais permitia imaginar que a concepção em torno das condicionalidades tinha caráter primordialmente estratégico, no sentido da ampliação do acesso dos beneficiários aos serviços sociais (MONNERAT et al., 2007 p. 1460). Sobre esse ponto, os autores explanam muito bem, haja vista que essas condicionalidades, pelo menos em princípio, visam atingir outros aspectos relevantes em relação à pobreza. E isso significa o reconhecimento de que outras dimensões precisam ser contempladas nas políticas de combate à pobreza. Além disso, chama-se a atenção para a fragilidade institucional de acompanhar o cumprimento destas condicionalidades, que fica a cargo dos municípios. Surge daí o questionamento sobre a capacidade dos municípios de realizar esta tarefa. Diante disso, e a fim de atestar a qualidade da gestão do programa em nível local, o governo federal criou o Índice de Gestão Descentralizada (IGD). No cômputo deste índice, 14 são consideradas quatro variáveis com peso de 0,25 cada uma e quanto mais próximo de 1, melhor será o indicador. São estas as variáveis: frequência escolar, acompanhamento dos beneficiários nos postos de saúde, cadastramento correto e atualização cadastral. Percebe-se que as duas primeiras se referem às condicionalidades do Programa. Os municípios que conseguem IGD acima de 0,4 recebem um incentivo financeiro para manterem o índice sempre num patamar igual ou superior ao estabelecido. Além dos questionamentos já levantados, outro surge a partir do ponto abordado no parágrafo anterior e que não pode ser negligenciado. Isto é, a qualidade da prestação dos serviços públicos de educação e saúde frente ao atendimento das condicionalidades do Programa. É importante também investigar se os sistemas de educação e, sobretudo, de saúde comportam o aumento da demanda que possivelmente provoca. Sob este ponto, reiteram Senna et al.(2007, p. 91): Reconhece-se que as desigualdades existentes no Brasil se refletem também em profundas diferenças nas condições financeiras, políticas e administrativas de estados e municípios, afetando a capacidade de resposta às necessidades da população e aos novos papéis que lhes são atribuídos. Os autores chamam a atenção para um problema maior embutido na situação exposta acima, qual seja, o de questionar as condições e capacidades dos municípios ofertarem o que há de mais básico entre os direitos sociais. De fato, a qualidade dos serviços públicos de saúde e educação é bastante questionável. E por tratarem de serviços básicos, além de assumirem um papel estratégico dentro do Programa, é preciso direcionar melhor atenção à oferta e à qualidade da prestação desses serviços. Ademais, cabe ressaltar que a existência de condicionalidades não significa que os beneficiários do programa terão acesso aos serviços de saúde e educação, haja vista que quando o serviço não é ofertado por falta de disponibilidade do município, a condicionalidade é simplesmente suspensa. Diante do exposto, é possível perceber que somente o beneficiário que não cumpre as condicionalidades - quando lhe é dada a condição para isso - sofre punições. Entretanto, a falta, por parte do governo, em não cumprir com o seu dever de oferecer serviços básicos à população fica impune. Lamenta-se esse fato quando se trata de uma política que procura resolver o problema da pobreza, tão latente em nosso país. Feitas as devidas exposições sobre o PBF, a seção seguinte se propõe a fazer uma avaliação deste programa, bem como das políticas sociais, de forma generalizada, sob o prisma da multidimensionalidade da pobreza. 4 As políticas sociais na perspectiva multidimensional da pobreza 15 4.1 Os conceitos de pobreza Erradicar a pobreza é o grande desafio do mundo contemporâneo. Sabe-se que se trata muito mais de um problema de distribuição de recursos do que de disponibilidade destes. Existe uma literatura ampla sobre esse tema, assim como também há várias definições para a pobreza. Esta questão, por sua vez, se apresenta de forma muito relevante, pois, o conceito de pobreza impactará na mensuração do número de pobres e, consequentemente, nas ações de combate ao fenômeno. Esses conceitos vão desde concepções mais simples de caráter unidimensional, até visões bem mais complexas e que concebem a pobreza como a privação de inúmeros fatores que englobam várias dimensões. Em uma abordagem unidimensional da pobreza, geralmente o caráter econômico é que é considerado como seu elemento principal. Antes do tratamento monetário dado à pobreza havia o enfoque biológico. Por meio deste, todo ser humano possui a necessidade de se manter nutrido para que continue perpetuando sua vida. Conforme Lacerda (2009), com o tempo essas necessidades alimentares foram convertidas no valor monetário necessário para a aquisição destes nutrientes. Surge, assim, a abordagem monetária da pobreza. Contudo, o seu foco ainda continua voltado para uma única dimensão. Diante disto, começou-se a pensar o agravamento da pobreza como um problema que possuía suas raízes sustentadas no critério da renda. Desta forma, a pobreza passou a ser entendida como a insuficiência de rendimentos para a satisfação das necessidades mais básicas ao ser humano. Sob a perspectiva da multidimensionalidade da pobreza, Sen (2010) afirma que a renda é apenas um meio, mas nunca um fim em si para a sua erradicação. Desta forma, pobreza hoje se relaciona muito mais com fatores, que na sua ausência ou oferta insuficiente, comprometem a qualidade de vida. E num mundo contemporâneo esse conceito de qualidade de vida também sofreu alterações, tornando-se mais “pretensioso”, dado os avanços tecnológicos que, mais do que qualquer outro intuito, devem proporcionar às pessoas uma vida mais confortável. Considerar a pobreza como um fenômeno que, naturalmente, possui múltiplas dimensões, significa admitir que a qualidade de vida das pessoas está condicionada a fatores de natureza tanto física como social. É importante ressaltar que, longe de excluir a abordagem monetária da pobreza, o enfoque multidimensional surge para complementá-la. Deste modo, o pensamento científico acerca da pobreza tem evoluído em direção a conceitos cada vez mais complexos e que agregam um número maior de variáveis inclusive algumas que se esbarram no problema da mensuração. 16 Um ponto de grande relevância ao se considerar a multidimensionalidade da pobreza é que o foco, antes totalmente direcionado ao aspecto econômico, passa a ser distribuído também entre dimensões de natureza social, política, como também ética. Disto se extrai a principal característica da abordagem multidimensional, a saber: a inter-relação entre os fatores associados à pobreza. Daí porque, no que tange à trajetória do pensamento científico sobre a pobreza, os conceitos que surgem ao longo do tempo devem ser considerados como complementares, pois estes conceitos surgiram de forma evolutiva. Sob esse aspecto, evidencia-se a relevância de que as políticas sociais de combate à pobreza passem a considerar a multidimensionalidade do fenômeno e sejam planejadas como tal. 4.2 Reflexões sobre as políticas sociais à luz da mutidimensionalidade da pobreza De acordo com Monnerat et al. (2007), a história brasileira de combate à pobreza é muito recente e, além disso, a política social nunca recebeu a atenção devida, geralmente sendo suplantada pelos objetivos econômicos, além de serem, na maioria das vezes, focalizadas e de caráter emergencial e, por vezes, oportunista. Um aspecto que merece ser destacado diz respeito ao tratamento focado unicamente numa visão unidimensional. Ora associada à condição mínima de subsistência, quando se estabelece linhas de pobreza baseadas em uma quantidade mínima de calorias necessárias para a perpetuação da vida, e ora relacionada à capacidade de consumo da pessoa através da renda disponível. Atualmente tem ganhado destaque as abordagens multidimensionais da pobreza, que trazem uma visão sobre o fenômeno muito mais abrangente que a concepção unidimensional. Entretanto, esta concepção da pobreza, enquanto um fenômeno complexo e multidimensional, ainda acontece de forma muito tímida nas políticas voltadas para o enfrentamento deste fenômeno. As políticas ainda se pautam muito pela ótica monetária e isso traz dois problemas à efetividade da política. O primeiro, diz respeito ao critério utilizado para estabelecer uma linha de pobreza baseada na renda. O valor estabelecido como linha de corte varia muito a depender da entidade. Disto, pode-se concluir que mesmo na literatura que defende a concepção monetária da pobreza não há um consenso sobre qual o valor mínimo necessário à pessoa para que esta esteja livre de uma vida de privações. Essa variação das linhas de pobreza pode sinalizar uma fragilidade da concepção monetária no sentido de que mesmo adotando uma abordagem relativamente simples, ela não combate efetivamente o fenômeno. 17 O segundo ponto a ser problematizado relaciona-se com o fato de que as abordagens multidimensionais possuem como principal característica a visão ampliada que ela dá à pobreza. Neste sentido, sendo a renda apenas uma das dimensões da pobreza, a abordagem monetária capta apenas uma parte desta, deixando de mensurar outras tantas dimensões. De fato, quando se compara os dados de uma abordagem monetária com uma abordagem multidimensional, percebe-se que o percentual de pobreza é bem mais significativo nesta última. Destarte, uma política que almeja combater a pobreza precisa levar em consideração este ponto. Deste modo, é preciso também ter cautela para que os programas não sejam apenas meros meios de manipulação política, onde se busca apenas resultados contábeis com fins eleitorais. De acordo, tanto com a abordagem das necessidades básicas como com a abordagem das capacitações, é necessário que haja a democratização dos serviços sociais básicos a fim de promover a emancipação da pessoa. O grande problema de muitos programas de transferência de renda é o de manutenção de uma prática assistencialista, de caráter paliativo e raramente emancipatório. Um programa efetivo de combate à pobreza precisa combinar uma política de transferência de renda, em caráter emergencial, e uma política estruturante capaz de permitir que a pessoa tenha condições de sair da pobreza e a ela não mais retornar. Políticas sociais voltadas para a transferência focalizada de renda podem apresentar um resultado satisfatório para um problema de conjuntura. Todavia, a pobreza é um problema de natureza estrutural e, portanto, requer medidas de reestruturação das bases econômicas e sociais. Nesse contexto, acredita-se que dois pontos precisam ser ressaltados para uma maior efetividade nos resultados de combate à pobreza em caráter estrutural. O primeiro ponto diz respeito à articulação entre política econômica e política social. Primeiramente é preciso ter em mente que estas não são mutuamente excludentes, mas pelo contrário, são complementares. Durante toda a história do capitalismo, a pauta econômica sempre ocupou o topo das prioridades. À política social sempre foi relegado um papel coadjuvante. Diante do atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, o desenvolvimento social se faz mais que necessário para que se amplie a capacidade de consumo, além de aumentar a oferta de capital humano. O segundo ponto está relacionado à relação política de governo versus política de estado. Muitas políticas de assistência social se reduzem a mandatos políticos, de forma que a mudança de governo representa uma interrupção dessa política. Isso pode ter um peso social bastante significativo quando a política se mostra eficaz no alcance de seus objetivos. Deste 18 modo, é importante formular políticas de Estado, haja vista que a execução de políticas desse tipo independe das alternâncias de governo. Somente com políticas que almejam, de fato, combater o cerne da pobreza que esta poderá ser erradicada. Para tanto precisam ser políticas voltadas para a democratização dos serviços sociais básicos, pautando-se não apenas pela quantidade, mas, principalmente, pela qualidade destes serviços. Além de criar políticas de emprego, de incentivo à capacidade empresarial e de formalização do setor informal da economia. Em suma, tudo isso se refere às mudanças estruturais necessárias à criação de portas de saída da pobreza, sustentadas em bases sólidas para evitar que as pessoas retornem à condição de penúria à qual se encontravam anteriormente. O que foi exposto até o momento nesta seção se aplica às políticas sociais de forma geral. Cabe, contudo, abordar de forma mais específica o Programa Bolsa Família no que concerne aos aspectos levantados na seção anterior. O primeiro aspecto a ser destacado se refere ao critério de elegibilidade das famílias beneficiárias. A linha de corte é muito baixa e o valor do benefício recebido é relativamente pequeno. De forma que nem mesmo as necessidades básicas de ordem econômica podem ser totalmente satisfeitas. Dito de outra forma, a renda transferida não se configura como um mecanismo capaz de permitir que as pessoas que a ele tenham acesso possam elevar a qualidade de vida que lhes possibilitem sair da linha de pobreza sem correr o risco de a ela retornarem quando da extinção do benefício. Percebeu-se um avanço no Bolsa Família e nos programas que lhe deram origem no sentido que estão buscando vincular a ajuda pecuniária com os serviços de educação, assistência social e saúde. Contudo, isso ainda ocorre de forma muito tímida e apresentam os problemas já mencionados, ou seja, a capacidade de oferta desses serviços e a qualidade da prestação dos mesmos. Isto já é um progresso, pois sinaliza que, inclusive, os formuladores de política e os governos estão percebendo a multidimensionalidade da pobreza. No que tange às condicionalidades do programa, cabe dizer que as abordagens multidimensionais da pobreza concebem os serviços sociais como direitos a todos os cidadãos, sendo estes necessários para elevar o bem-estar de cada um. E é este o tratamento que precisa de fato ter quando da formulação de uma política de combate à pobreza. Ainda assim é preciso ir mais além, pois o mero cumprimento das imposições não é em si indicador de aumento de capacitações. 5 Considerações finais 19 Há ainda um longo caminho pela frente, pois até o momento as respostas não rompem com a ótica seletiva e emergencial. As políticas precisam ser orientadas no sentido de possibilitarem a emancipação das pessoas, permitindo-lhes ter acesso aos serviços sociais básicos, a uma renda que lhes possibilitem ter o estilo de vida que valorizam, tomar parte na vida da comunidade; enfim, gozar dos seus direitos civis, políticos e sociais. Ainda sob a perspectiva da multidimensionalidade da pobreza, é preciso ampliar não somente o leque de oportunidade aos cidadãos, mas principalmente as suas capacitações. Cabe dizer que diante do cenário descrito neste trabalho, faz-se necessário direcionar a atenção para políticas voltadas para o efetivo combate à pobreza, levando em consideração as suas múltiplas dimensões e a complexidade que ela envolve. Diante do exposto, observou-se que o problema da pobreza não é devido a escassez de recursos, mas sim à má distribuição destes, além da subordinação das políticas sociais aos interesses econômicos dos grupos dominantes.As políticas públicas precisam chegar mais aos pobres, sobretudo àqueles que se encontram em situação de extrema pobreza. Além disso, é necessário que, concomitante a isso, haja políticas estruturantes para que se criem bases sólidas para o desenvolvimento social, pois a maior riqueza de uma nação é o seu povo. Referências BARROS, Ricardo Paes de; CARVALHO, Mirela de. Desafios da política social brasileira. Brasília, Ipea, 2003. (Texto para discussão, nº 985). Disponível em: <http://agencia.ipea.gov.br/pub/td/2003/td_0985.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2012. BRASIL. Medida Provisória nº 132 de 20 de outubro de 2003.Cria o programa bolsa família e dá outras providências. Brasília, DF, 2003Disponível em: <http://www81.dataprev.gov.br/sislex/paginas/45/2003/132.htm>. 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Dá nova redação ao art. 19 do decreto no 5.209, de 17 de setembro de 2004, que regulamenta a lei no 10.836, de 9 de janeiro de 2004, que cria o programa bolsa família. Brasília, Df, 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Decreto/D7447.htm>. Acesso em: 24 abr. 2012. KERSTENETZKY, Celia Lessa. Redistribuição e desenvolvimento? a economia política do programa bolsa família. Revista de CiênciasSociais. Rio de Janeiro, v. 52, n. 1, p.53-83. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/dados/v52n1/v52n1a02>. Acesso em: 23 abr. 2012. LACERDA, Fernanda Calasans Costa. A pobreza na Bahia sob o prisma multidimensional: uma análise baseada na análise das necessidades básicas e na abordagem das capacitações. Dissertação (Mestrado em Economia) - Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia, 2009. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME - MDS. Programa Bolsa Família. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/bolsafamilia>. 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