Enfarte agudo do miocárdio com cinecoronariografia normal. Relato

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ARTIGOS ORIGINAIS
ENFARTE AGUDO DO MIOCÁRDIO
M. Batlouni *
G. S. Chiossi **
R. Duprat **
D. Armaganijan **
J. E. M. R. Souza ***
N. Ghorayeb **
V. F. Fontes ****
ENFARTE AGUDO DO MIOCÁRDIO COM
CINECORONARIOGRAFIA NORMAL.
RELATO DE SETE CASOS
Relatam os autores a ocorrência de infarto transmural agudo do miocárdio, comprovado pela evolução clínica, eletrocardiográfica e laboratorial, em 7 pacientes, 4 homens e 3 mulheres, com 28 a 53 anos de idade, nos quais o estudo cinecoronariográfico, realizado num período de 4 a 24 meses após o episódio agudo, mostrou artérias coronárias pérvias, isentas de processo aterosclerótico significativo. A ventriculografia esquerda
evidenciou zona hipo ou acinética correspondente a área de necrose eletrocardiográfica. Discutem-se hipóteses etiopatogênicas.
Tanto os estudos anatomopatológicos 1-5 como
cinecoronariográficos 6-9 demonstram que, com
raras exceções, os infartos transmurais do
miocárdio associam-se a oclusões das artérias
coronárias principais ou de seus grandes ramos.
Na ausência de oclusão completa, encontra-se
habitualmente um estreitamento severo dos vasos
que suprem a área infartada. Embora desde 1962
Likoff 10 tenha assinalado a ocorrência de padrões
eletrocardiográficos de infarto do miocárdio com
cinecoronariografia normal, são raros os casos
bem documentados descritos na literatura 11-16.
Neste trabalho relatamos 7 casos de pacientes
que apresentaram quadro clinico, evolução
eletrocardiográfica e enzimática típicos de infarto
agudo do miocárdio, nos quais o estudo
cinecoronariográfico, posteriormente realizado,
mostrou artérias coronárias pérvias e a
ventriculografia esquerda zona acinética
correspondente à área eletricamente inativa.
RELATO DOS CASOS
Caso 1 - A.S., 53 anos, masculino, branco,
corretor, matriculado no I.C.S.S.E.S.P. desde abril
de 1959, com queixas de dor precordial atípica,
sem relação com esforços físicos, não aliviada por
nitrito sublingual e eletrocardiogramas sempre
normais. Em 6 de abril de 1972, apresentou,
subitamente, dor retrosternal e precordial
Trabalho realizado no Instituto de Cardiologia da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo.
* Chefe do Setor de Aterosclerose.
** Médico do Setor de Aterosclerose.
*** Chefe do Setor de Hemodinâmica.
**** Chefe do Setor de Congênitos.
5
Arq. Bras. Cardiol. 28/1 5-15 - Fevereiro 1975
ARQUIVOS BRASILEIROS DE CARDIOLOGIA
constritiva, intensa, irradiada para ambos os
membros superiores, com duração de 6 horas, até
ser internado em U.T.I., onde foram diagnosticados
infarto do miocárdio e insuficiência cardíaca. O
E.C.G. mostrava infarto extenso em parede
anterior (fig. 1). Hemossedimentação: 54 mm, na
1.ª hora e 90 mm na 2.ª hora. TGO: 280 u. CPK:
56 u. Ficou internado durante 8 dias e permaneceu
em repouso na residência por mais 30 dias.
Em 12/6/72 veio à consulta com queixas de
dispnéia aos maiores esforços. Nos antecedentes
familiares, mãe hipertensa e um tio com infarto.
Fumava 20 cigarros por dia desde os 18 anos de
idade e não apresentava outros fatores de risco
coronariano. Ao exame físico: P.A. = 120/80
mmHg e sinais de insuficiência cardíaca grau II.
ECG: infarto do miocárdio em região anterior, com
reaparecimento de R em V5 e V6 em confronto
com traçados prévios. RX: aumento moderado da
área cardíaca às custas de ventrículo esquerdo
(+/++). Perfil lipídico (curva glicêmica, colesterol,
triglicérides, lipidograma, ácido úrico), estudo da
coagulação (tempo de recalcificação do plasma,
tempo de protrombina, tempo de protrombina
sensibilizado, dosagem de fibrinogênio, tempo de
lise da euglobulina), reações sorológicas para lues,
reação de Machado-Guerreiro e exames
hematológicos normais. Cinecoronariografia (17/
10/72) mostrava irregularidades mínimas das
coronárias direita e esquerda. Circulação colateral
ausente. Ventriculograma E: hipocontratilidade
difusa e severa com grande resíduo sistólico (fig.
1). Permaneceu na evolução com sinais de
insuficiência cardíaca, tendo apresentado dois
quadros de edema agudo dos pulmões, apesar da
terapêutica digitálica e diurética.
Caso 2 - L.B., 50 anos, branco, masculino,
industriário. Assintomático até 16/4/73. Nesse dia,
enquanto dirigia automóvel, apresentou dor
epigástrica constritiva, irradiada para todo o tórax,
de forte intensidade, acompanhada de sudorese
abundante, escotomas e tonturas, durante vários
minutos. Atendido em Pronto Socorro,
6
permaneceu internado por 25 dias.
Eletrocardiogramas seriados mostravam
característica de infarto em parede diafragmática.
TGO: 94 u. em 17/4/73 e 171 u. em 19/4/73; DHL:
340 u. em 17/4/73 e 52 u em 19/4/73.
Matriculou-se no I.C.E.S.P. em 15/6/73 (RG:
128.306) sendo assintomático na ocasião. Mãe
falecida aos 67 anos de enfarte do miocárdio; pai
vivo, com enfarte aos 65 anos. Fumava 50 a 60
cigarros por dia, desde os 20 anos de idade.
Atividade física moderada, com prática ocasional
de esportes. Referia nível elevado de
colesterolemia em dosagem realizada em 1970.
Exame
físico
sem
anormalidades.
Eletrocardiograma: extra-sístoles ventriculares
isoladas e infarto diafragmático antigo. RX: área
cardíaca normal. Exames de laboratório: colesterol:
267 mg%, triglicérides: 200 mg%. Demais exames
normais. Cinecoronariografia: coronárias isentas
de processo ateroselerótico. Ausência de
circulação intercoronariana. Ventrículo esquerdo
com discreta zona de acinesia em parede
diafragmática, pequeno aumento do volume
diastólico e do resíduo sistólico (fig. 2).
Caso 3 – O. M. S., 34 anos, feminina, branca,
prendas domésticas. Assintomática até janeiro de
1970, quando, 15 dias após parto cesáreo,
apresentou forte dor no hemitórax anterior
esquerdo, irradiada para o membro superior do
mesmo lado, acompanhada de sudorese intensa e
perda de consciência. Internada em Hospital da
Previdência Social, com o diagnóstico clínico,
eletrocardiográfico e enzimático de infarto do
miocárdio, teve evolução satisfatória.
Em novembro de 1970 procurou o I.C.E.S.P.
(RG: 59.842) relatando o quadro acima descrito e
queixando-se de crises freqüentes de dor
retrosternal, constritiva, irradiada para o membro
superior esquerdo, estreitamente relacionada aos
esforços, cessando em alguns minutos com o
repouso e com o uso de nitrito sublingual.
Antecedentes familiares e pessoais e hábitos de
vida sem interesse. Apresentava ciclos menstruais
regulares e referia nunca ter feito uso de anticoncepcionais. O exame físico era normal, ex-
ENFARTE AGUDO DO MIOCÁRDIO
Fig. 1 - Caso I. Eletrocardiograma registrado no dia do quadro clínico agudo (6/4/1972) mostra sinais de enfarte miocárdico anterior extenso,
que persistem em 12/6/1972. O vetocardiograma confirma a zona eletricamente inativa. Cinecoronariografia (17/10/1972) mostra artéria
coronária direita (1 e 2) normal e artéria coronária esquerda (3 e 4) com mínimas irregularidades. Ventriculograma esquerdo em diástole (5) e
sístole (6) evidencia zona acinética anterior.
7
ARQUIVOS BRASILEIROS DE CARDIOLOGIA
Fig. 2 - Caso 2. Sinais eletrocardiográficos de infarto miocárdico de parede diafragmática. Cinecoronariografia (16/4/1973) mostra artérias
coronárias direita (1 e 2) e esquerda (3 e 4) isentasd de processo aterosclerótico. Ventriculograma esquerdo em diástole (5) e sístole (6)
evidenciando zona acinética diafragmática.
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ENFARTE AGUDO DO MIOCÁRDIO
ceto quanto à obesidade. E.C.G. mostrava ritmo
sinusal com extra-sístoles ventriculares isoladas
e infarto ântero-lateral e lateral alto, com persistência de desnivelamento supra, convexo, do segmento ST de V3 a V6. RX: aumento do ventrículo
esquerdo (++), aorta moderadamente dilatada para
a idade. Exceção de uma velocidade de
hemossedimentação elevada (41 min na 1.ª/hora),
os demais exames laboratoriais eram normais, inclusive com valores baixos de lípides plasmáticos.
Cinecoronariografia (3/10/72): Artérias coronárias
normais. Ausência de circulação intercoronariana.
Ventrículo esquerdo com zona acinética em parede anterior e septal.
Continuou apresentando dor anginosa típica, rebelde a vários tratamentos. Em 7/6/73, deu entrada na U.T.I. do I.C.E.S P. com dor retrosternal. e
precordial, de grande intensidade, não aliviada por
nitrito S.L., acompanhada de sudorese fria, palidez e obnubilação. Dada a persistência da dor,
com enzimas normais e acentuação da isquemia
no E.C.G., em confronto com traçados anteriores, decidiu-se pela realização de nova
cinecoronariografia (12/6/73), que resultou semelhante à primeira, mostrando porém, ao
ventriculograma, aneurisma ântero-apical de V.E.
Teve alta em 22/6/73. Posteriormente a esse episódio agudo continuou apresentando angor típico,
de menor intensidade.
Caso 4 - D.E.P., 28 anos, masculino, branco,
bancário. Assintomático até 20 de dezembro de
1969, quando apresentou, após jogo de futebol,
dor retrosternal constritiva, localizada, suportável,
com duração de 2 horas e que cedeu sem medicação. Um mês após, novamente durante jogo de
futebol, dor precordial e retrosternal constritiva
irradiada para membro superior esquerdo, de forte intensidade, acompanhada de sudorese fria e
vômitos, com duração de 4 horas, e que cedeu
somente após opiáceos. Internado em hospital
durante 20 dias. Eletrocardiogramas seriados
mostravam evolução de infarto extenso do
miocárdio
anterior.
TGO:
220
u.
Hemossedimentação: 46 mm. Leucócitos: 12.000.
Durante a internação apresentou insuficiência
ventricular esquerda e hipotensão arterial.
Em 7/4/70, matriculou-se no I.C.E.S.P. (RG:
102.808). Nos antecedentes familiares, um irmão
falecido subitamente aos 28 anos, de causa ignorada. Fumava desde os 14 anos de idade, nos últimos anos até 40 cigarros por dia. Praticou esportes freqüentemente até 19 anos e posteriormente com menor regularidade. Era obeso. O
exame físico mostrava freqüência cardíaca de 108
bpm., presença de 3.ª bulha, P.A. 110/70 mmHg,
fígado a dois dedos do rebordo costal direito e
discreta estase pulmonar. F.O.: AoHo. E.C.G.: sobrecarga auricular esquerda, sinais de infarto anterior extenso antigo, com r embrionário de V3 a
V6. RX: aumento global (+) da área cardíaca (VE)
e estase pulmonar. Exames laboratoriais, inclusive perfil lipídico, eram normais.
Cinecoronariografia (15/4/70): artérias coronárias
isentas de lesões parietais, sem obstáculo ao fluxo coronariano; ausência de circulação colateral.
Ventriculograma esquerdo: hipocinesia difusa com
grande resíduo sistólico. Embora adequadamente
medicado, apresentou sempre, em evoluções posteriores, sinais de insuficiência cardíaca.
Caso 5 - M.S.H., 45 anos, feminina, branca,
prendas domésticas. Assintomática até 7/6/1972,
quando apresentou, subitamente, dor constritiva
fortíssima, na região epigástrica, acompanhada de
sudorese e dispnéia. Eletrocardiogramas da ocasião mostravam infarto miocárdico ântero-septal
recente e isquemia diafragmática. CPK: 36 u.,
TGO: 165 u. Permaneceu internada durante 25
dias. Evolução sem complicações.
Em 20/9/1972 foi admitida no I.C.S.S.E.S.P.
(RG: 122.265). Antecedentes familiares sem interesse. Fumava de 20 a 40 cigarros por dia, desde os 18 anos de idade. Ciclos menstruais regulares. Não fazia uso de anticoncepcionais. PA: 100/
70 mmHg. Exame físico sem anormalidades. ECG
e VCG: enfarte ântero-septal antigo. RX: área
cardíaca normal. Exames laboratoriais normais.
Cinecoronariografia (2/4/1973): Artérias
coronárias normais. Circulação colateral ausen9
ARQUIVOS BRASILEIROS DE CARDIOLOGIA
te. Ventriculograma esquerdo: moderado deficit
de contratilidade da parede ântero-apical. Evolução sem anormalidades.
Caso 6 - N.R.S., 38 anos, branco, masculino,
metalúrgico. Referia, desde 1957, dores
precordiais em pontada, fugazes, relacionadas aos
grandes esforços, sem recorrer a atendimento
médico. Em 22 de abril de 1969, aos 36 anos de
idade, apresentou dois episódios de dor precordial,
o primeiro durante jogo de futebol, o segundo al-
gumas horas depois, mais intenso e acompanhado de sudorese fria e perda de consciência. Foi
atendido por Pronto-Socorro. O eletrocardiograma
da ocasião mostrava sinais de enfarte miocárdico
anterior extenso recente. CPK: 48 u. e TGO: 184
u. Evolução sem complicação, até janeiro de 1971,
quando apresentou nova perda de consciência,
sem precordialgia e sem alterações dos padrões
eletrocardiográficos prévios, seguida de
hemiparesia direita e afasia, com liquor normal.
Recuperou-se satisfatoriamente.
Em 10/5/1971, procurou o ICESP (RG: 111.269)
com queixas de dor precordial atípica. Antecedentes familiares sem interesse. Até o início da
D.A. fumava 15 cigarros por dia e ingeria bebidas alcoólicas moderadamente. Praticava esportes com regularidade. À exceção da presença de
3.ª bulha na ponta, o exame físico era normal.
ECG: zona eletricamente inativa em parede ânterolateral e provavelmente dorsodiafragmática, confirmada pelo VCG. RX: área cardíaca normal,
com aorta discretamente alongada. Todos os exames de laboratório estavam normais. Teste
ergométrico negativo. Cinecoronariografia (18/4/
1971): ausência de processo aterosclerótico significativo das artérias coronárias. Presença de
espasmo no terço proximal e na junção do terço
proximal com o terço médio da coronária direita,
e no terço médio da descendente anterior, que
cederam cerca de 3 minutos após o uso de dinitrato
de isosorbitol sublingual. A descendente anterior
exibia também fluxo lento moderado. Ausência
de circulação colateral. Ventrículo esquerdo: zona
acinética moderada em parede ântero-apical. Até
10
a última consulta persistia com queixas de dores
precordiais atípicas.
Caso 7 – D.S.M., 49 anos, branca, feminina,
prendas domésticas. Em 6 de junho de 1969, apresentou subitamente dor precordial constrictiva,
sem irradiação, de média intensidade, acompanhada de vômitos, e que durou várias horas, até procurar socorro médico. Eletrocardiogramas seriados, da ocasião, mostravam infarto do miocárdio
anterior extenso em evolução e isquemia
diafragmática. Permaneceu em repouso durante
45 dias.
Procurou o I.C.E.S.P. em 2/12/71 (RG:
115.852). Referia que os pais eram hipertensos e
ela própria apresentava hipertensão arterial desde os 30 anos de idade. Fumava 5 cigarros por
dia. Submeteu-se à histerectomia aos 43 anos.
F.C.: 80 bpm. P.A.: 160/ 120 mmHg.
Eletrocardiograma: sinais de enfarte antigo em
parede ântero-septal. RX: área cardíaca normal.
Exames de laboratório: normais. Fundo de olho:
Teste
ergométrico
negativo.
A 0H 1.
Cinecoronariografia (3/9/73): artérias coronárias
normais, exceto mínimas irregularidades na descendente anterior. Ventrículo esquerdo com ligeira hipertrofia e pequeno aneurisma ântero-apical.
Em evoluções posteriores, queixava-se habitualmente de dores precordiais atípicas.
DISCUSSÃO
A base fisiopatológica do infarto do miocárdio
é uma desproporção aguda e persistente entre a
oferta de oxigênio e as necessidades metabólicas
do músculo cardíaco. Resulta de isquemia
miocárdica severa e persistente. Estudos
anátomo-patológicos 1-5 e correlações clínicocinecoronariográficas6-9 mostraram que, na maioria dos casos, é devido a lesões ateromatosas
obstrutivas com oclusão total ou subtotal das artérias coronárias principais ou de um de seus grandes ramos.
Além da aterosclerose coronária, outras
afecções podem ocasionar obstrução ou redução importante do calibre das artérias
coronárias, suficiente para levar ao infarto 17:
oclusão luética do óstio coronário, aneurisma
dissecante de aorta complicado com aneu-
ENFARTE AGUDO DO MIOCÁRDIO
risma de artéria coronária, poliarterite nodosa,
tromboangeíte obliterante e arterite reumática.
Outras causas que não a obstrução mecânica
das coronárias podem também influir desfavoravelmente no fluxo coronariano, de forma isolada
ou conjuntamente com fatores que aumentem o
consumo de oxigênio, e causar infarto: estenose
aórtica severa, estenose subaórtica hipertrófica
idiopática e insuficiência aórtica severa 17.
Nas miocardiopatias podemos encontrar áreas
de necrose, maiores ou menores, porém nessa
condição não se aplica o termo infarto, de vez
que a necrose miocárdica não é devida a um “déficit” primário de perfusão e sim a um defeito metabólico que impede a utilização normal do
oxigênio pela célula. Além disso, não se observam a sintomatologia clínica e as alterações
eletrocardiográficas e enzimáticas características
da fase aguda do enfarte do miocárdio.
Após o advento da cinecoronariografia, alguns
casos paradoxais de infarto foram descritos em
pacientes sem evidência de coronariopatia
obstrutiva ou de qualquer outra patologia
cardiovascular 10-16. Entretanto, a incidência desses casos é excepcionalmente baixa. Neste trabalho relatamos a ocorrência de infarto transmural
agudo do miocárdio não associado a doença
coronariana detectável pela cinecoronariografia,
em 7 pacientes com manifestações clínicas,
eletrocardiográficas e enzimáticas inequívocas.
Eram 4 homens e 3 mulheres, todos de raça branca, com idades variando de 28 a 53 anos, média
de 42,3. Os antecedentes familiares eram
significantes em 2 casos (A.S., L.B.). Cinco pacientes fumavam 20 ou mais cigarros por dia; em
dois deles (D.E.P., L.B.) a quantidade diária era
de 40 a 60 cigarros. Dois doentes (D.E.P., N.R.S.)
jogavam futebol regularmente e tinham atividade
física intensa, 4 moderada e 1 sedentária. Um
(D.S.M.) era hipertenso moderado. Nenhum apresentava dislipemia significativa nem diabetes, e
não havia evidência de outra moléstia
cardiovascular. Em duas mulheres (O.M.S.,
M.S.H.) os ciclos menstruais eram regulares; a outra (D.S.M.) submetera-se
a histerectomia 7 anos antes. Nenhuma
fizera uso de anticoncepcionais orais. Um paciente (D.E.P.) apresentou, 30 dias antes do quadro agudo dor precordial intensa, após esforço
violento (jogo de futebol), que não foi devidamente valorizado. Os demais não tiveram
sintomatologia sugestiva de insuficiência
coronariana antes da ocorrência do enfarte. Ao
eletrocardiograma, as zonas inativas localizavamse em: parede diafragmática - 1 caso; ânteroseptal - 1 caso; ântero-lateral - 1 caso; ânterolateral e dorsal - 1 caso; anterior extenso em 3
casos. Os sinais eletrocardiográficos de necrose
permaneciam até a data deste trabalho.
Os estudos cinecoronariográficos, realizados
dentro de um período de 3 a 24 meses após o
episódio agudo, mostraram em todos os casos artérias coronárias pérvias, livres de processo
ateromatoso significativo. O ventriculograma evidenciou área hipo ou acinética correlacionada com
a zona de necrose eletrocardiográfica.
Na evolução pós enfarte (1 a 4 anos), 2 pacientes (A.S. e D.E.P.), com infarto anterior extenso, apresentaram quadro de insuficiência cardíaca congestiva e outro (O.M.S.) permaneceu com
dor anginosa típica, que motivou a realização de
nova cinecoronariografia, com resultado semelhante à primeira.
A patogênese do infarto do miocárdio nesses
casos permanece obscura. Várias possibilidades
têm sido aventadas: limitação do estudo
cinecoronariográfico, embolia coronariana seguida de lise do coágulo, espasmo de artéria
coronária, fluxo lento, doença da microcirculação,
anomalias da dissociação oxigênio-hemoglobina,
defeitos metabólicos na utilização do oxigênio pela
célula miocárdica.
Antes de discuti-las, julgamos oportuno salientar os seguintes aspectos: a idade média em nossos casos, bem como dos encontrados na literatura, é mais baixa do que nos infartos com
aterosclerose coronária; a incidência relativamente
alta de pacientes do sexo feminino; em 5 dos 7
casos; a ocorrência do episódio agudo durante
esforço físico violento (jogo de futebol) em 2 doentes
11
ARQUIVOS BRASILEIROS DE CARDIOLOGIA
e no puerpério em outro; a ocorrência de angina
típica e severa, após o infarto, em 1 paciente e a
ausência de circulação intercoronariana em todos os casos.
1. Limitação do estudo cinecoronariográfico - Sabe-se que a avaliação da rede
coronariana pelo estudo cinecoronariográfico pode
se acompanhar de falhas ou limitações 18, isto é, a
doença vascular estaria presente, porém não seria visualizada. Acreditamos ter evitado as mesmas tanto quanto possível. Em todos os casos os
filmes foram de boa qualidade, realizados em várias projeções e as artérias coronárias devidamente
identificadas, inclusive aquelas presumivelmente
responsáveis pela irrigação da área infartada.
Ademais, a oclusão de uma artéria secundária,
que pudesse passar desapercebida, não
corresponderia a uma área tão extensa de necrose
eletrocardiográfica e de comprometimento da
contratilidade ventricular.
2. Embolia coronária - lise do coágulo Considerando que apenas um de nossos pacientes apresentou sintomatologia prévia de insuficiência coronária e que a área de infarto
correspondia ao território irrigado por uma artéria
de grande calibre, uma hipótese etiológica atrativa
seria a oclusão súbita de artéria coronária essencialmente normal, por embolia, ou trombo “in situ”,
seguida de lise espontânea do coágulo. Em outras
palavras, haveria recanalização arterial, sem cicatriz residual, no intervalo entre a ocorrência do
quadro agudo e a realização da cinecoronariografia.
Esse mecanismo tem sido admitido como
causa de infarto em pacientes jovens, sem fatores de risco coronariano significativos 19 e
em mulheres sob uso prolongado de estrógenos
em altas doses ou de anticoncepcionais orais
14, 15, 20
. Uma das pacientes de Glancy 14 tomava anticoncepcionais e a outra encontravase no 11.º dia do pós-parto. As 3 pacientes
deste trabalho não faziam uso de anticoncepcionais, porém em uma (O.M.S.) o quadro
agudo ocorreu no 15.º dia do pós-parto.
R o b e r t s e B u j a 21 e s t u d a n d o 1 0 7 p a cientes que morreram de insuficiência
12
coronária aguda, encontraram embolia de artéria
coronária em 3 casos (2,8%), nos quais havia evidente condição embolizante. Em nenhum de nossos pacientes havia fonte de embolismo em outros órgãos, nem doenças que predispusessem à
embolia sistêmica, tais como arritmias, valvulopatia
com fibrilação atrial, endocardite bacteriana,
próteses valvares, trombose intramural, etc. Ademais, mesmo ocorrendo recanalização de um coágulo, provavelmente não se restauraria integralmente a luz arterial, persistindo irregularidades e
graus variáveis de estreitamento.
Experimentos em animais 22, 23 demonstraram
que agregações plaquetárias múltiplas, em grandes ou pequenos vasos, induzidas por estímulos
os mais variados, podem interferir abruptamente
com o fluxo coronário e ocasionar infarto do
miocárdio antes de desagregarem.
3. Espasmo coronário - Espasmos coronários
intensos, em artérias lesadas ou normais, têm sido
encontradas com relativa frequência durante a
realização de cinecoronariografia 9, 24, 26. Os espasmos ocorrem ao nível das extremidades do
cateter ou alguns centímetros distal aos mesmos,
são mais freqüentes em mulheres, no 1/3 proximal
da coronária direita, e o quadro angiográfico é bem
definido porque o lúmen arterial pode ser quase
ou completamente ocluído.
A natureza funcional do espasmo e a sua
vinculação à irritação mecânica do procedimento, são confirmadas pelo pronto desaparecimento
após a administração de um potente vasodilatador
coronário, nitroglicerina ou dinitrato de isosorbitol,
ou retirada do cateter. Entretanto, a ocorrência
do espasmo durante o cateterismo poderia indicar a existência de uma atividade vasomotora
coronária exacerbada, responsável por fenômenos isquêmicos precipitados por outros fatores que
não o próprio cateterismo. Geralmente os pacientes permanecem assintomáticos durante o período de espasmo, porém em alguns casos dor
anginosa e alterações de ST-T sugestivas de
isquemia miocárdica podem ocorrer 24,26.
Não é geralmente aceito que esse fenômeno conduza a infarto do miocár-
ENFARTE AGUDO DO MIOCÁRDIO
dio. Entretanto, a persistência de um espasmo coronário severo, por tempo suficientemente
prolongado, poderia desencadear processo
isquêmico que progredisse até a necrose
miocárdica Recentemente, Cheng e cols. 16, relataram um caso de infarto agudo de parede
diafragmática, resultante de severo espasmo da
artéria circunflexa durante cinecoronariografia, e
que, em exame posterior, mostrava artérias
coronárias normais.
Um dos nossos pacientes, N.R.S., apresentou, ao
estudo cinecoronariográfico, espasmos localizados no terço proximal da coronária direita e no
terço médio da descendente anterior, as quais
cederam após 3 minutos de nitrito sublingual. O
infarto, nesse doente, poderia ter sido ocasionado
por espasmo coronário prolongado. Ademais, ele
apresentou quadro de acidente cerebral isquêmico,
com recuperação integral, o qual eventualmente
estaria relacionado à constricção funcional de
vasos cerebrais.
4. Doença da microcirculação - Trabalhos de
James 22 deram recentemente grande ênfase às
doenças que podem afetar as artérias coronárias
cujo diâmetro varia entre 0,1 e 1 mm. Essas artérias suprem o nó sinusal, o nó A-V, o feixe de His,
os músculos papilares, os vasa-vasorum das grandes artérias; estão também em todas as camadas
do miocárdio atrial e ventricular e incluem a maioria das anastomoses interarteriais, e provavelmente as mais importantes do ponto de vista funcional. Essas pequenas artérias podem ser comprometidas, e seu lúmen estreitado ou ocluído, isoladamente ou em associação a doenças dos grandes vasos, numa variedade de afecções, catalogadas por James 22 em 3 categorias: a)
embólicas: agregações plaquetárias múltiplas,
síndrome de baixo débito, pós-operatório de cirurgia cardíaca, múltiplas e pequenas embolias
coronárias, etc.; b) inflamatórias: arterites
sistêmicas, poliarterite nodosa, lupus eritematoso,
febre reumática, artrite reumatóide e outras; e)
não inflamatórias: diabetes, amiloidose, vários distúrbios hematológicos, síndromes
musculoesqueléticos e neuromusculares, como
a ataxia de Friederich, a distrofia muscular progressiva, a síndrome de Marfan, a cardiomiopatia
familiar e outras.
É compreensível que as doenças dos pequenos
vasos coronários possam conduzir a uma grande
variedade de distúrbios circulatórios. Entretanto,
é necessária extrema cautela para atribuir casos
de angina ou enfarte à doença da microcirculação.
Esses pacientes apresentam habitualmente alterações difusas da repolarização ventricular, complexos QRS conservados, arritmias, distúrbios de
condução e episódios sincopais associados a
cardiomegalia mais ou menos acentuada. Na
maioria dos casos são jovens, com doença hereditária neuromuscular ou musculoesquelética associada. Outrossim, embora possam apresentar
manifestações isquêmicas clínicas e
eletrocardiográficas semelhantes às da insuficiência coronariana, evoluem em geral para focos
de necrose subendocárdica e quase para um
infarto transmural do miocárdio, pois a obstrução
dos pequenos vasos lesados se faz numa distribuição ao acaso. Somente quando ocorresse confluência de tais obstruções é que se observaria
necrose progressiva sem, contudo, evidência de
quadro agudo e sem correspondência à distribuição de uma grande artéria coronária. Os nossos
pacientes, além de terem apresentado quadro de
infarto transmural agudo do miocárdio, não se
enquadravam entre as moléstias acima referidas.
5. Dissociação oxigênio-hemoglobina - A
oferta de oxigênio às células miocárdicas depende essencialmente da capacidade da rede
coronária em prover um fluxo sangüíneo adequado, mas também de outros fatores. Recentemente, anomalias da dissociação oxigênio-hemoglobina,
com deficiente liberação do oxigênio às células,
têm sido mencionadas como um dos prováveis
mecanismos etiopatogênicos, para alguns casos
de isquemia miocárdica em presença de artérias
coronárias patentes.
Em 1966, Eliot e Mizukami 28 descreveram uma
alteração físico-química da hemoglobina, que resulta
em afinidade oxigênio-hemoglobina anormal e conseqüente desvio da curva de dissociação, em pacientes com enfarte do miocárdio e em fumantes.
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ARQUIVOS BRASILEIROS DE CARDIOLOGIA
Em estudo duplamente cego, Eliot e Bratt 29
encontraram dissociação oxigênio-hemoglobina
anormal em 14 de 15 mulheres pré-menopáusicas,
abaixo dos 40 anos de idade, com evidência de
isquemia ou necrose miocárdica, nas quais a
cinecoronariografia era normal. Três dessas mulheres faleceram e o estudo necrópsico revelou
enfarte subendocárdico simples ou múltiplo, na ausência de doenças dos grandes ou pequenos vasos coronários. Fatores de risco coronário estavam ausentes nesse grupo de doentes, exceto que
8 eram fumantes. Em 3 que interromperam o hábito de fumar, a curva de dissociação voltou ao
normal dentro de um mês. No grupo-controle,
constituído de 15 mulheres com idades comparáveis, apenas uma, fumante de longa data, apresentava dissociação oxigênio-hemoglobina anormal. Por outro lado, Vokonas e cols. 30, não encontraram anomalias da dissociação oxigêniohemoglobina em uma série de 19 pacientes com
as mesmas características.
É possível que uma liberação deficiente ou lenta do oxigênio pela hemoglobina possa conduzir à
isquemia ou necrose miocárdica, especialmente
da região subendocárdica, mais sensível à hipóxia.
Entretanto, pacientes com hipoxemia generalizada severa, como a que ocorre no envenenamento
pelo monóxido de carbono, ou no choque
hemorrágico, nem sempre exibem angina do peito, embora devamos admitir que apresentem graus
de hipóxia miocárdica tão severas quanto aquelas
que presumivelmente ocorreriam em presença de
hemoglobina anormal. Da mesma forma, pacientes com anemia crônica acentuada e artérias
coronárias patentes, raramente apresentam angina do peito. Parece, pois, pouco provável que anomalias da dissociação oxigênio-hemoglobina sejam uma explicação plausível para esses casos.
Em conclusão, apesar das várias e atrativas hipóteses aventadas, às quais talvez se deva acrescentar um possível defeito do metabolismo
miocárdico, ainda não identificado, para explicar
a patogênese dos raros casos de infarto transmural
agudo do miocárdio, em presença de artérias
14
coronárias normais, nenhuma delas satisfaz plenamente e a causa primária permanece obscura.
Esse problema, inexistente antes da era da
cinecoronariografia, indubitavelmente tornou-se
mais freqüente à medida que o método foi mais
largamente utilizado. E reforça a necessidade de
pesquisas adicionais relacionadas à patogenia da
cardiopatia isquêmica.
SUMMARY
The authors report seven cases of acute myocardial
infarction diagnosed by the clinical courses and
electrocardiographic and laboratory alterations.
Coronary arteriography performed in a period ranging
from 3-24 months after the acute episode did not show
obstructive atherosclerotic lesions. Left
ventriculograms showed hypokinetic zones
corresponding to the area of electrocardiographic
necrosis. The etiopathogenic possibilities are
discussed.
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