EDUCAÇÃO DO CAMPO NAS BASES DA TRANSFORMAÇÃO SOCIAL E HUMANA Rosa Maria de Jesus Brito RESUMO: A intenção deste artigo é apresentar como a concepção de Educação do Campo surge no contexto social e histórico da educação brasileira, tendo como base as reflexões do pensamento de autores que contribuíram com a pedagogia crítica, ao relacionarem a educação a um papel imprescindível para a transformação social e humana. O texto estrutura-se em três partes: uma primeira que mostra os caminhos e descaminhos do processo histórico da educação que ora se apresenta como tradicional liberal, ora como crítica libertadora. Uma segunda que trata da necessidade de uma educação para a transformação social e humana numa sociedade de classes, partindo do pressuposto que educação na sociedade capitalista ‘serve de instrumento para adequar as pessoas ao mercado’, e que por isso se torna urgente romper com o ideal do capital no sentido de criar uma alternativa educacional significativamente diferente. A terceira parte pretende abordar a concepção de Educação do Campo e o seu surgimento como novo paradigma de educação proposto pelos movimentos sociais do campo atribuindo a esta um papel fundamental na construção de um projeto de sociedade que seja justo e democrático. Palavras-chave: educação brasileira; transformação social; educação básica do campo. RÉSUMÉ: L'intention de cet article est présenter comme la conception d'Éducation du Champ apparaît dans le contexte social et historique de l'éducation brésilienne, en ayant je mange fondement les réflexions de la pensée d'auteurs qui ont contribué avec la pédagogie critique, au rapport l'éducation à un papier indispendable à la transformation sociale et humaine. Le texte structure en trois parties: un première qu'il montre aux chemins et les détournements du processus historique de l'éducation qui néanmoins se présente comme traditionnel libéral, néanmoins je mange critique libératrice. Un seconde que il traite de la nécessité d'une éducation pour la transformation sociale et humaine dans une société de classes, en partant du présupposition que éducation dans la société capitaliste ‘sert d'instrument pour ajuster les personnes à la mercado’, et que donc il se rend urgent rompre avec l'idéal du capital dans le but de créer une alternative scolaire significativement différente. Troisième partie prétend aborder la conception d'Éducation du Champ et son bourgeonnement comme nouveau paradigme d'éducation proposée par les mouvements sociaux du champ en attribuant à cet un papier fondamental dans la construction d'un projet de société qui est juste et démocratique. Mots clé: éducation brésilienne; transformation sociale; éducation basique du champ. 1. O conceito de Educação do Campo no contexto social e histórico da educação no Brasil Na sociedade brasileira a educação tem se instituído como um instrumento bastante relevante na construção do processo histórico do país. A historicidade da educação favorece à compreensão do processo educacional: “ o exercício da tarefa educativa conduz à sua própria modificação, ao desenvolvimento de abertura para o futuro, ao adiantamento do processo como um todo”. (PINTO, 2005, p. 34). Tais mudanças refletidas na área educacional se dão pelas complexas transformações que passa a sociedade, seja na estrutura demográfica, seja no âmbito cultural ou nos hábitos e valores da população, seja no processo de desenvolvimento social, econômico e político. “Na tentativa de preservar velhas formas e produzir algo novo, trava-se uma grande tensão entre a tendência para, de um lado criar laços fixos e estáveis de vida e, de outro, quebrar os rígidos esquemas”. (TEVES, 1992, p. 101). Definida por suas concepções de acordo com os processos de desenvolvimento do país, a educação tem se conduzido por caminhos de natureza ‘cartesiana’, ‘pragmática’, ‘reprodutivista’, ‘crítica-reprodutivista’, ou simplesmente ‘crítica’, ‘libertadora’, ‘liberal’, ‘neoliberal’, ‘pós-moderna’, enfim, uma educação que se desenvolveu acompanhando a trajetória histórica e trouxe avanços à sociedade brasileira principalmente na área da pesquisa, responsável pela inovação tecnológica também para a zona rural. Em relação à educação para o meio rural, se faz necessário destacar que esta concepção de educação que vem sendo aplicada pela cultura hegemônica, dominante e elitista, não tem correspondido às exigências e as necessidades da população brasileira no combate ao analfabetismo, na elevação da escolaridade dos sujeitos, na sua cultura e seu padrão de vida. Seja tanto pelas condições históricas em que o país se submeteu ao longo de sua trajetória política, social e econômica seja pela ausência de políticas públicas efetivas de atendimento educativo as essas populações. Além disso, ainda se faz presente o descontentamento, acarretado pelo acesso tardio a escola que na maioria das vezes, nas regiões mais pobres do Brasil, são oferecidas sem condições de oportunizar saberes para a criança, o adolescente, os jovens e adultos devido à precariedade de investimentos dessa política pública. Isso representa, sem dúvida, uma das maiores dívidas históricas para com as populações do campo. Fica claro assim, que a educação sempre foi tratada como um instrumento de dominação por parte das elites. Dominação essa que se deu tanto na cidade como no campo, no entanto, neste último o domínio foi bem maior, pois a cultura do campo estava atrelada à concepção que o homem trabalhador rural não precisa de estudo para desenvolver trabalhos na roça. Este pensamento nos reporta ao processo de desigualdades históricas sofridas pelos povos do campo. Desigualdades econômicas, sociais que acarretam desigualdades educativas, escolares e, portanto, uma divida histórica com a população do meio rural. As desigualdades sociais remetem a uma situação que parte de uma ordem social e submete o mundo ao poderio do capital. Concepção que Marx traz em sua visão crítica de sociedade ao afirmar que as relações de produção do sistema capitalista é quem determinam as relações sociais e suas condições de desigualdades. “As desigualdades são a base da formação das classes sociais” (COSTA, 1997, p. 85). A divisão da sociedade em classes é determinada pelo poder que a burguesia detém e que promove a condição tão imprescindível para o acúmulo de capital ao submeter o homem ao trabalho assalariado, gerando uma base de competitividade e desigualdade entre os trabalhadores. Essa realidade reflete índices de pobreza altíssimos e remete a idéia de alienação do trabalho humano. “O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria”. (MARX, 2004, p. 80). Esse modelo de produção capitalista consente maiores processos de exploração, ocasiona a marginalização do trabalhador do campo e, a mão de obra humana na fábrica ou no latifúndio, transforma-se numa mercadoria a serviço da burguesia, do capitalismo que também se articula pelo processo educativo. Deste modo, salienta Nascimento: Com o avanço do capitalismo no campo, subordinadas a lógica do capital, criou-se três problemas para os camponeses: um desenvolvimento desigual, um processo excludente que veio se caracterizar no êxodo rural e um modelo de agricultura que produz relações sociais ora atrasadas ora modernas. Este capitalismo voraz e selvagem gerou a concentração da propriedade e da renda, a concentração urbana, o desemprego e a intensificação da violência, além de demarcar o urbano como superior ao rural. Preocupado com os caminhos e os descaminhos da educação e da situação educacional e social do país, Paulo Freire (2007) pensando nesta situação de exploração do trabalhador e nas condições que oportunizam uma educação conscientizadora, nos possibilita observar o sistema educacional da sociedade brasileira, dentro do processo de mudança, quando identifica a educação como elemento fundamental para o sujeito do campo ou da cidade. E considera como necessidade primordial dessa mudança, a leitura de mundo com o sujeito que aprende, mas que também ensina. Ele desenvolveu na década de 1950 uma metodologia de ensino para a alfabetização e conscientização do trabalhador do campo que partia dessa leitura de mundo. Freire fazia uma crítica ao modelo de educação da cultura dominante ao revelar que a concepção dessa educação se faz de forma bancária, ao passo que se preocupa apenas no ato de depositar, transferir e de transmitir valores e conhecimentos. Nela, o educador aparece como seu indiscutível agente, como o seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é “encher” os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos que são ‘retalhos da realidade’ desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação. Nesta visão “bancária” da educação, os homens são vistos como seres da adaptação, do ajustamento. “Quanto mais se exercitem os educandos no arquivamento dos depósitos que lhes são feitos, tanto menos desenvolverão em si a consciência crítica de que resultaria a sua inserção no mundo, como transformadores dele, como sujeitos”. (FREIRE, 1977, p. 68). Nesta perspectiva de educação apontada por Freire, Benjamim coloca que esse modelo de educação dominante não oferece uma escola que privilegie as populações do meio rural que, em seu conjunto, defendem um novo modelo de educação que atua na inserção crítica do ser humano na sociedade dinâmica em que vive, onde as condições materiais e relações sociais determinadas atuam nos processos de humanização e desumanização dos sujeitos. As escolas tradicionais não têm lugar para sujeitos como os sem-terra, assim como não costumam ter lugar para outros sujeitos do campo, ou porque sua estrutura formal não permite o seu ingresso, ou porque sua pedagogia desrespeita ou desconhece sua realidade, seus saberes, sua forma de aprender e ensinar (BENJAMIM, 2000, p.29). Para ele, é a escola que deve ajustar-se, em sua forma e conteúdo, aos sujeitos que dela necessitam, é ela que deve ir ao encontro dos educandos, e não o contrário. Nesse sentido, falar em educação para os sujeitos do campo é tratar de um fenômeno emergente de uma nova concepção de educação que tende unir o conhecimento cientifico com a valorização da identidade cultural própria de milhões de brasileiras e brasileiros, da infância até a terceira idade, que vivem e trabalham no campo. Tal concepção está vinculada aos processos de humanização mais plena além do compromisso de constituir uma escola política e pedagogicamente vinculada à história, à cultura e às causas sociais e humanas dos sujeitos, considerando que o povo que vive no campo tem que (deve) ser o sujeito de sua própria formação. Por isso, a escola do campo traz em sua identidade o objetivo de formar aquele que faz parte de seu contexto, se preocupando com o conhecimento formal que precisa está associado à vivência do homem que vive no campo, que em sua realidade não atende as especificidades destes que vivem e convivem com esta realidade. 2. A necessidade de uma educação para a transformação social e humana numa sociedade de classes As condições sociais de um país refletem nas mudanças e no trato como as relações humanas se concretizam, dentro de um processo dinâmico de uma sociedade cheia de contradições e transformações. Numa sociedade divida em classes onde os bens, antes coletivos, se tornam uma propriedade privada, surge de um lado, a classe dos proprietários dos meios de produção e, de outro, a classe dos não proprietários. A divisão da sociedade em classes introduz uma ‘divisão na educação’ na qual uns se privilegiam dos processos formais educativos dentro de uma instituição de ensino, ou seja, a escola, enquanto para outros a educação não se desvinculam ‘do próprio processo de trabalho, fora da escola’. “Com a chegada da sociedade moderna capitalista, burguesa, a educação escolar, antes restrita a poucos, tende a se generalizar” embora se transformando na forma principal e dominante de educação. (SAVIANI, 2005, p. 248). O mercado como potencializador das bases econômicas, o qual fortalece o modelo de exploração capitalista, apresenta uma educação que serve de “instrumento para adequar as pessoas ao mercado, a partir do próprio desenvolvimento deste mercado subordinado e hierarquizado aos países centrais” (JESUS, 2004, p. 114). Que coloca as populações do campo numa ótica de atrasada e a uma idéia de instrução do trabalhador que nos remete a uma ideologia de que o sujeito da roça não precisa estudar, pois, trabalhar com a enxada, por exemplo, requer apenas esforço físico, não precisaria raciocinar refletir, questionar e sim, somente manusear os instrumentos e saber utilizar a terra adequadamente. Esta lógica implica numa preocupação pelo agravante fator regulador da qualidade de educação vista a partir de uma ótica determinista... um determinismo geográfico que legitima a existência de uma concepção de que a escola urbana é melhor, superior do que a escola rural. De fato, a classe dominante não tem interesse na transformação histórica da escola. Ao contrário, estando ela empenhada na preservação de seu domínio, apenas acionará mecanismos de adaptação que evitem transformações, segue-se, pois, que numa teoria crítica, não reprodutivista, só poderá ser formada do ponto de vista dos interesses da classe fundamental dominada que, no caso da sociedade capitalista, é constituída pelo proletariado (SAVIANI, 2005, p. 223). Desta maneira, entendemos que nas bases estruturais do capitalismo é difícil haver mudanças pela sua própria lógica. No que diz respeito à educação, esta se coloca no papel de “estimular a formação por competências e habilidades para que os sujeitos possam se inserir socialmente, independente do contexto em que vivem” (JESUS, 2005, p. 116), uma vez que no modelo capitalista o contexto é forjado pelas relações econômicas globalizadas. A educação torna-se um dos pilares basilares dessa realidade de opressão, minando a capacidade crítica dos educandos e os acomodando em uma postura de submissão aos poderes instituídos e às classes dominantes. Para tanto, (MÉSZÁROS, apud SAVIANI, 2005), considera que a necessidade de romper com o ideal do capital se torna urgente se almejamos a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente. É preciso então modificar tal lógica, através de uma práxis da transformação social, entendendo por práxis a união necessária entre teoria e prática: pois não basta o conhecimento para que possamos transformar as relações humanas; assim como qualquer prática sem teoria, que lhe dê suporte, acaba por se tornar agitação e “movimentismo”. É necessária uma ação política vinculada à crítica da sociedade. Essa crítica radical só se efetiva na práxis, que é a ação política consciente e transformadora. “o homem só pode recuperar sua condição humana pela crítica radical ao sistema econômico, à política e à filosofia que o excluíram da participação efetiva na vida social” (COSTA, 1997, p. 85). Por um lado, a opressão contida na sociedade se apresentada como problema crônico social, visto que as camadas menos favorecidas são oprimidas e terminam por aceitar o que lhes é imposto, devido à falta de conscientização, sem buscar realmente a chamada Pedagogia da Libertação. Por outro lado, Marx, segundo Costa (2005, p. 91) diz que as condições de trabalho geradas pela industrialização, tende a promover uma tomada de consciência da classe trabalhadora e conseqüentemente, tendem a impulsionar a sua organização política para a ação: A classe trabalhadora, portanto, vivendo uma mesma situação de classe e sofrendo progressivo empobrecimento em razão das formas cada vez mais eficientes de exploração do trabalhador, acaba por se organizar politicamente. Essa organização é que permite a tomada de consciência da classe operária e sua mobilização par a ação política. Essa ação política levaria à superação da opressão, e esta só seria possível segundo Freire, através de um processo de libertação. A libertação é um “parto” conforme afirma o autor, pois a superação da opressão exige o abandono da condição “servil”, que faz com que muitas pessoas simples apenas obedeçam a ordens, sem, contudo questionar ou lutar pela transformação da realidade, fato motivado especialmente pelo medo. A dicotomia encontrada neste universo vai justamente no despertar da conscientização, onde as realidades são, em sua essência, domesticadoras, ou seja, é cômodo para o opressor que o oprimido continue em sua condição de aceitação. As discussões trazidas por Paulo Freire, em sua obra Pedagogia do Oprimido, tratam exatamente dessa necessidade de uma práxis transformadora, por intermédio do processo pedagógico, de forma a conscientizar os educandos da realidade opressora que os cerca, aliando tal compreensão à prática de questionamento, intervenção e auto-organização popular. Nesta ótica é que Freire faz uso do pensamento de Marx quando se refere à relação dialética subjetividade-objetividade, o que implica a transformação no sentido amplo – teoria e prática, conscientizar para transformar, pois a opressão é uma forma sinistra de violência. Assim a Pedagogia do Oprimido busca a restauração, animando-se da generosidade autêntica, humanista e não “humanitarista”, pois se propõe à construção de sujeitos críticos, comprometidos com sua ação no mundo. Freire apresenta nesta sua obra uma educação caracterizada como libertadora, emancipadora, a qual busca desenvolver a autonomia das classes populares e por isso foi adotada desde cedo pelos movimentos sociais. Colocada como uma nova alternativa de educação a ser trabalhada como prática de liberdade, ao contrário da forma “bancária” que é prática de dominação e produz o falso saber, ou seja, aquele incompleto ou sem senso crítico, ela é apontada como uma educação problematizadora, onde a realidade é inserida no contexto educativo, sendo valorizado o diálogo, a reflexão e a criatividade, de modo a construir a libertação. Essa educação, ainda, busca construir uma contra-hegemonia, na formação de sujeitos conscientes das relações de opressão e na perspectiva de contribuir na construção de um projeto alternativo de sociabilidade aliado à educação. Essa visão se ajusta com as idéias dos movimentos sociais que lutam por um projeto de educação do campo. Com efeito, a pedagogia proposta por Freire encontrou ressonância nos movimentos sociais, pois, como afirma Paludo (2001, p. 91), "É nos anos de 1960, com Paulo Freire, que no Brasil se tem, pela primeira vez, de forma consistente, uma pedagogia anunciada das classes populares". Proposta que adentra o campo popular porque contempla esses grupos sociais, partindo do vivido para propor uma transformação. A possibilidade de pensar a educação a partir das classes trabalhadoras, sob o princípio de uma educação que liberta e concebe a vida humana para além das desigualdades, por meio de um processo dialógico, tornou-se uma referência para pensar a educação popular. A década de 1980 no Brasil, nos remete ao surgimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), como sendo o mais combativo e forte movimento social do campo. Um dos seus eixos de proposição e ação é o da educação, que se constituiu como uma necessidade no processo de construção e reconstrução do Movimento. Os princípios educacionais do MST são baseados sobremaneira nos escritos de Paulo Freire. Eles são fundamentados em uma concepção de educação voltada para a transformação social, para o trabalho e a cooperação, para as diversas dimensões humanas e para o mundo, aberta ao novo, e como processo permanente de construção humana, segundo o Caderno intitulado Princípios de Educação do MST – publicação do próprio movimento. 3. Educação do Campo: o surgimento de um paradigma como expressão dos movimentos sociais do campo Os anos de 1990 responsáveis por algumas reformas educacionais, ao trazer para o cenário político a oferta de educação ‘para todos’, dão subsídio aos movimentos sociais do campo, em especial o MST, para a liderança de um movimento nacional de luta Por uma Educação do Campo. Com seus parceiros e aliados deram início a uma ação organizativa, propondo e reivindicando do poder público uma política de educação para a população que vive no e do campo, na perspectiva de superar as concepções anteriores, que concebam a educação para o meio rural vinculada ao modelo de desenvolvimento urbano-industrial capitalista e a uma estrutura agrária que usa a terra apenas como instrumento de exploração, subordinado ao modelo de acumulação do capital. Desde então, esses movimentos vêm buscando definir princípios que denotam um diferencial da Educação do Campo como expressão dos povos que nele vivem respeitando a diversidade que lhes caracterizam. Defendem que a educação esteja comprometida com a emancipação, que fortaleça a cultura e os valores das comunidades campesinas e que esteja vinculada ao projeto de desenvolvimento auto-sustentável. Propõem ainda um outro olhar sobre o papel do campo na economia e na sociabilidade, concebendo a terra como instrumento de democratização da sociedade brasileira. Defendem que os sujeitos do campo sejam reconhecidos como sujeitos de história e de direitos e que necessitam ter suas especificidades respeitadas e tratadas numa perspectiva de inclusão e alteridade. Nesse sentido, os movimentos sociais reivindicam que a Educação do Campo apresente identidade própria, comprometida com os desafios, a história e a cultura dos povos que vivem nesse espaço. Exigem o desenvolvimento de projetos político-pedagógicos que permitam construir a identidade da escola do campo. “A Educação do Campo pensa o campo com sua gente, seu modo de vida, de organização do trabalho e do espaço geográfico, de sua organização política e de suas identidades culturais, suas festas e seus conflitos” (MOLINA e FERNANDES, 2004, p. 64). Os movimentos propõem, portanto, que a Educação do Campo seja desenvolvida de acordo com os interesses dos/as trabalhadores/as do campo, que permita uma ampla discussão acerca da realidade política, social e cultural deste grupo social, valorizando suas especificidades, suas condições de existência e o contexto sócio-histórico em que vivem sem se desvincular da conjuntura nacional. Eles exigem que a educação promova uma aprendizagem significativa e real, a qual enfatize a proposta de aprender não somente a ler as palavras, mas também, a interpretar a estrutura social na qual estão inseridos através de um processo pedagógico dialógico onde seja debatida e discutida a realidade da escola e da comunidade. Além disso, a Educação do Campo deve estar preocupada com a formação humana construída com a mobilização, a participação efetiva dos sujeitos do campo em favor de um novo modelo de desenvolvimento social e econômico sustentável e solidário. Fundamentada nos princípios teóricos de Freire, Jesus (2004) diz que é através da educação que o ser humano procura sua completude. A formação humana é essa busca e os aprendizados que faz em todos os momentos da vida e se encontra estritamente ligada ao trabalho. O trabalho forma/ produz o ser humano: a Educação do Campo precisa recuperar toda uma tradição pedagógica de valorização do trabalho como princípio educativo, de compreensão do vínculo entre educação e produção, e de discussão sobre as diferentes dimensões e métodos de formação do trabalhador, de educação profissional, cotejando todo este acúmulo de teorias e de práticas com a experiência específica de trabalho e de educação dos camponeses.(CALDART, 2004, p.32) Foram essas idéias aliadas a tantas outras trazidas e socializadas pelo conjunto dos movimentos sociais articulados por uma Educação do Campo que fundamentaram esse novo paradigma contra-hegemônico de Educação do Campo. Segundo Fernandes (2004), a idéia de Educação do Campo nasceu em julho de 1997, quando houve a realização do I Encontro Nacional de Educadores e Educadoras da Reforma agrária (I ENERA), no campus da Universidade de Brasília, promovido pelo MST, em parceria com a própria UnB, o UNICEF, a UNESCO e a CNBB. O conceito de Educação do Campo é novo. Tem menos de dez anos. Surgiu como denúncia e como mobilização organizada contra a situação atual do meio rural: situação de miséria crescente, de exclusão/ expulsão das pessoas do campo; situação de desigualdades econômicas, sociais, que também são desigualdades educacionais, escolares (...). Uma das mais marcantes características da Educação do Campo é sua indissociabilidade do debate sobre os modelos de desenvolvimento em disputa na sociedade brasileira, e o papel do campo nos diferentes modelos. A especificidade mais forte da Educação do Campo, em relação a outros diálogos sobre educação, deve-se ao fato de sua permanente associação com as questões do desenvolvimento e do território no qual ele se enraíza. A afirmação de que só há sentido o debate sobre Educação do Campo como parte de uma reflexão maior sobre a construção de um Projeto de Nação é consenso entre os que se reúnem em torno desta luta (JESUS, 2007, p. 15). O paradigma da educação do campo foi gestado no seio dos conflitos e lutas dos movimentos sociais pela terra e pela Reforma Agrária. Este toma como ponto de partida a realidade e a luta camponesa por reforma agrária; valoriza o fazer pedagógico em educação e a produção de cultura e, ao mesmo tempo, busca delinear qual o melhor caminho teóricometodológico que a educação deva seguir. Daí a noção de paradigma como uma ponte ente a teoria e a realidade concreta, usadas para fomentar políticas, projetos, visões de sociedade, de educação, de campo. Por sua vez, Fernandes e Molina (2004) ao considerarem as múltiplas faces do desenvolvimento capitalista, apontam diferentes paradigmas para o trato da questão do campo. Coexistem no Brasil, paradigmas apoiados na visão tradicional do espaço rural como sinônimo de atraso, de imobilismo, desconsiderando a força de trabalho e a riqueza produzida por uma maioria para usufruto de uma minoria latifundiária. “Na relação homemterra esse paradigma se fortalece pelo princípio da exclusão de tudo que não o comporta”. Deste modo, o paradigma rural tradicional elege, seleciona o que lhe interessa como modelo econômico e cultural. Ao privilegiar operações lógicas para produzir uma realidade, valida suas próprias escolhas e as tornam universais (FERNANDES; MOLINA, 2004, p. 57). Os camponeses só poderiam se contrapor ao paradigma dominante tomando para si a autoria de sua própria história, qual seja: criar um paradigma necessário a construir a educação do e no campo, identificado pelos seus sujeitos e pelo território em que se encontram as diferentes identidades camponesas. Caldart (2004, p.28) afirma, que esta trata-se de uma educação ‘dos’ e não ‘para’ os sujeitos do campo. Feita sim através de políticas públicas, mas construídas com os próprios sujeitos dos direitos que as exigem. A afirmação deste traço que vem desenhando nossa identidade é especialmente importante se levamos em conta que na história do Brasil, toda vez que houve alguma sinalização de política educacional ou de projeto pedagógico específico isto foi feito para o meio rural e muito poucas vezes com os ou ainda menos pelos sujeitos do campo. As diretrizes operacionais destacam em seu artigo 2º, que a escola do campo precisa estar inserida na realidade do meio rural, nos saberes da comunidade e nos movimentos sociais. E define nos artigos 4º e 5º que em sua organização curricular os temas a serem trabalhados devem ser ligados ao mundo do trabalho e ao desenvolvimento do campo. A metodologia também deve ser adequada à realidade do campo, resgatando os materiais disponíveis no meio ambiente. Essa metodologia resgata a riqueza das experiências, os diferentes procedimentos de ensino, os vários recursos didáticos e os diversos espaços de aprendizagem. As Referências para uma Política Nacional de Educação do Campo definem os princípios nos quais a Educação do Campo esteja relacionada a qualidade e ao direito dos povos do campo, que encontre-se vinculada ao respeito e as organizações sociais e ao conhecimento por elas produzido; que se seja do e no campo; ligada à produção de cultura, e à formação dos sujeitos; que respeite as características do Campo e seja entendida como formação humana para o Desenvolvimento Sustentável. Enfim, a Educação do Campo nas palavras de Jesus (2004, p. 113) ‘é um conceito que não se fecha em si mesmo, pois incorpora a própria dinâmica dos movimentos sociais do campo e intelectuais que se dedicam a questão agrária brasileira’, e Fernandes e Molina (2004, p.86) desfecham: O paradigma da educação do campo tem cor, cheiro e saber, tem o seu território. Uma definição consistente de educação do campo não será encontrada numa palavra que designa outra. Conceitos construídos fora do âmbito deste paradigma não podem ser importados automaticamente. É à Educação do Campo que compromete elaborar os seus próprios conceitos. 4. Considerações Na história da educação brasileira as mudanças perpassam por caminhos que traduzem uma dialeticidade na forma como elas se dão. Tendo Marx como referência dessa tese, podemos entender este fenômeno emergente da realidade na educação brasileira, a partir da compreensão de que o mundo e a vida se apresentam como um todo estruturado e interrelacionado, em que fenômenos sociais estão em desenvolvimento e transformação constante. A dialética não se conforma com a aparência, ela busca a essência da realidade. Frigotto (1987, p. 84) aponta que [...] “a dialética materialista se apresenta ao mesmo tempo como uma postura, um método de investigação e uma práxis, um movimento de superação e de transformação”. É neste pensamento que Freire toma a dialética marxista como base para explicação da realidade como um todo, faz uma denúncia das práticas educativas atribuindo à concepção ‘bancária’ como forma de opressão, visto que esta nega aos homens suas formas de pensar sem estabelecer o exercício do diálogo para a compreensão crítica de uma realidade, e, por conseguinte, sua transformação. E anuncia uma proposta vai além das críticas das práticas educativas, pois ele define em uma pedagogia da consciência: consciência crítica enquanto conhecimento da práxis de classe. Nesse viés, é que os movimentos sociais ao tomarem a Pedagogia do Oprimido como fundamentos teóricos para suas práticas sócias e pedagógicas, como o caso dos movimentos sociais do campo, travaram uma luta incessante e conquistam espaços importantes na agenda política e na política educacional brasileira. Com a aprovação em 2002, das Diretrizes Operacionais da Educação do Campo se consolida um importante marco para a história da educação no Brasil e em especial para a educação do campo. Todavia, a lentidão faz com que as políticas de direito não alcance proporções significativas e se efetivem concretamente na escola do campo de toda sociedade brasileira. Assim, pode-se dizer que a educação, enquanto direito fundamental, foi ao longo dos anos, negligenciada às classes mais pobres da população brasileira. E em decorrência disso, realizaram-se lutas, organizadas em todo país, para que se efetivassem direitos constitucionais que garantisse uma educação que atendesse os excluídos. É óbvio que transformar anseios, historicamente negados em legislação, representa, sem sombra de dúvidas, um avanço, uma conquista relevante, mas, enquanto isso não se materializar em políticas de ações concretas desenvolvidas nos municípios de todo país, tais medidas não passarão de palavras bem escritas, presente na Constituição de 1988 e na legislação da educação brasileira. 5. Referências ANDRADE, Márcia Regina; DI PIERRO, Maria Clara; MOLINA, Mônica Castagna; Jesus, Sônia Meire Santos Azevedo de. A Educação na Reforma Agrária em Perspectiva: São Paulo: Ação Educativa; PRONERA, 2004. BENJAMIM, César; CALDART, Roseli Salete. Projeto Popular e Escolas do Campo. Brasília: Articulação Nacional Por uma Educação Básica do Campo, 2000 (Coleção Por uma Educação Básica do Campo, v.3). COSTA, Cristina. Sociologia: Introdução à ciência as sociedade. 2ª ed. – São Paulo: Moderna, 1997. FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. 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