FORMAÇÃO PSICOLÓGICA DO SER-PROFESSOR Edson Luís dos Santos Cardoso1, Noemi Boer2, Rosane Teresinha Fontana3 1,2,3 Programa de Pós-Graduação em Ensino Científico e Tecnológico (PPGEnCT) . Mestrado em Ensino Científico e Tecnológico. Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, campus Santo Ângelo/RS [email protected] RESUMO Atualmente existem grandes discussões e dúvidas em relação ao papel do professor como educador. Nas escolas e universidades, debate-se se o professor não deveria preocupar-se mais com a função de ensinar e menos com a de educar. Este artigo trata da visão do educador, utilizando-se constructos de Nóvoa e da psicanálise, através de alguns de seus autores, em relação às causas emocionais prováveis desse desconforto do professor no seu papel de educador e da idéia de uma formação psicológica para o ser-professor sentir-se mais preparado e confortável, a fim de, com convicção, voltar a apropriar-se dessa função. No atual contexto da docência, o professor precisa dar conta de uma demanda cotidiana que pode ser fator gerador de estresse. Precisa, além de ser professor, assumir funções de pai, mãe, psicólogo, pedagogo, além de promover a educação inclusiva. Uma proposta de grupo operativo pode ser um mecanismo de prevenção de agravos. Palavras-Chave: Docentes; Psicoterapia; Psicoterapia de grupo 1 INTRODUÇÃO Historicamente, o professor, além da função de ensinar, sempre exerceu, com propriedade, a função de educar, entendendo-a como algo inerente a sua profissão, porém observa-se, já há alguns anos, uma crescente irresolução, em relação a isso. Vive-se tempos de grandes incertezas, de dúvidas, de hesitações. Tem-se uma consciência forte da necessidade de mudança; frequentemente não se sabe qual o rumo a seguir, como menciona, em relação aos professores, Nóvoa (2004). Ao longo de sua obra, esse autor, aponta as características do ser-professor e mostra o ensino como profissão do humano e do relacional. Afirma que sem essa visão esta profissão irá permanecer “fragmentada”; sem uma maior consciência do trabalho como educador e que para entender o sentido da profissão e exercê-la, de uma maneira integral, o profissional deve buscar o autoconhecimento. No entanto, Nóvoa deixa uma lacuna quando apenas descreve as características do ser-professor, sem explicar como essas podem ser desenvolvidas no docente. A motivação para esse estudo advém da experiência profissional do autor, que, em seu consultório psiquiátrico, atende profissionais da área da educação em sofrimento psíquico, decorrente de suas atividades. O professor precisa dar conta de tudo o que envolve sua prática cotidiana, exercendo não só sua função, mas também de assistente social, psicólogo, pai e mãe, além de ser um ser humano. Neste contexto corre o sério risco de não conseguir realizar o que é específico do seu trabalho: o ensino. “Dentre todas as especificidades que a escola é capaz de assumir hoje, uma é urgente e insubstituível: a aprendizagem e as suas verdadeiras condições de eficiência” (CARDOSO et al, 2014, p.5). Além disso, professores devem ter formação para trabalhar com a diversidade, proporcionando aos alunos um ensino de qualidade que respeite suas necessidades e diferenças. A formação de professores deve envolver a problematização, ao rever as ações que contribuem para uma pedagogia inclusiva, pois, para se aprovisionar uma educação que atenda a todos os alunos sem classificações, é necessária a solidificação de uma pedagogia capaz de suprir as necessidades das crianças, considerando suas especificidades. Para tanto, é fundamental a revisão do currículo de formação de professores e licenciaturas para contemplar a heterogeneidade escolar (BEYER, 2006 apud MACHADO e COSTAS, 2013), porém, além disso, é necessário investir na saúde mental desse sujeito serprofessor, considerando que a diversidade desse aluno exige atuações diferenciadas, situação que pode constituir-se num conflito e prejudicar sua saúde. Esse aluno exige atenção, ações e práticas distintas que, muitas vezes são geradoras de estresse. Como se percebe, o professor está exposto a situações e riscos ocupacionais que podem agravar sua saúde. Um estudo que teve como objetivo identificar riscos ocupacionais na atividade do professor apontou que a maioria dos depoentes (67,6%) apresentava queixas de estresse (23%) e irritabilidade (14,2%) foram citadas como agravos decorrentes da ocupação. Dos que informaram sofrimento psíquico, prevaleceu a ansiedade (63,6%) e a depressão (18,1%), atribuídas à sobrecarga de trabalho, aos múltiplos compromissos acadêmicos, à carga horária, à pressão dos gestores e ao estresse (FONTANA e PINHEIRO, 2010). Portanto, ao considerar-se a ocupação do professor, enquanto ser, deve-se refletir acerca das várias dimensões que a educação exige desse sujeito. Emerge, neste contexto, a busca por estratégias e mecanismos que favoreçam a conquista da saúde física e mental do trabalhador da docência. Sendo assim, a proposta deste artigo é discorrer sobre o ser-professor, trazendo conhecimentos da psicanálise para entender alguns aspectos importantes da psique que se encontram por detrás do desconforto apresentado por profissionais da área de educação. Busca-se também apresentar uma proposta técnica de como dirimir essa problemática. O artigo está organizado em três partes, sendo que na primeira, o serprofessor é apresentado, sob o ponto de vista do educador, através da obra de Nóvoa; na segunda parte, o tema ser-professor recebe o olhar de alguns autores da psicanálise e, na seção final, apresenta-se uma alternativa de auxílio na busca do autoconhecimento pelo professor (lacuna deixada por Nóvoa). 2 METODOLOGIA Optou-se por realizar uma breve reflexão acerca da importância da formação psicológica do ser-professor, no intuito de despertar para a importância de investimentos na saúde deste profissional, como constituinte de uma educação de excelência. Trata-se de uma revisão narrativa, apropriada para descrever e discutir o desenvolvimento de um determinado assunto, sob ponto de vista teórico ou contextual, sem a necessidade da sistematização sobre as fontes de informação e a metodologia usadas para busca das referências, nem os critérios empregados na avaliação e seleção dos trabalhos. Constituem-se de uma análise da literatura divulgada em livros, artigos publicados em periódicos e na interpretação e análise crítica pessoal do autor (NOBRE, BERNARDO e JATENE, 2004, apud ROTHER, 2007). 3 DISCUSSÃO A visão do ser-professor por Nóvoa Ao considerar a escola da atualidade, Nóvoa (2004) refere que temos alunos de todas as origens que querem estar na escola, mas sem qualquer intenção de estudar ou de aprender e que para essa situação nenhum professor estava verdadeiramente preparado. E que, frente a essa situação, os educadores reagiram de duas formas antagônicas e ambas caricaturais: alguns olharam para os afetos e problemas das crianças procurando cuidar delas, outros, ao contrário, recusaram-se a olhar para as individualidades dessas e refugiaram-se na distribuição dos saberes, sem questionar se, realmente, estavam sendo compreendidos. Refere, ainda, que uma das causas desse panorama pode ser a proposta educacional que exige do educador uma compreensão, cada vez maior, da individualidade do discente, porém sem uma formação eficiente acerca desta dimensão implicada no processo que envolve o ensino, a aprendizagem e a educação; e que falta uma teoria que ajude o professor nessa compreensão da singularidade e diversidade do aluno e que contribua, também, para reforçar a sua própria inteireza, como pessoa e profissional. Em se tratando, especificamente, da formação de professores, o autor menciona que um dos problemas centrais é a impossibilidade de separar as dimensões pessoais e profissionais do professor e é por isso que se discute uma forma de preparar um trabalho de autoanálise e autorreflexão do professor sobre si mesmo, pois esse ensina aquilo que é, e naquilo que ele é, se encontra aquilo que ele ensina. Desse modo, considera que a constituição do professor está associada às experiências de toda sua trajetória de vida e, portanto, é mister um olhar sobre as condições pessoais, profissionais, sociais, históricas, formativas e econômicas nas quais ele se insere. Ressalta que o modo como o professor atua depende do que ele é como pessoa, assim como o que o professor é, como pessoa, está relacionado ao que ele é como profissional; faces que se completam e se constituem reciprocamente. [...]o professor constitui-se professor, não por vocação ou por herança, mas nas relações que estabelece na dinâmica do seu meio social, em toda a sua história pessoal, como, por exemplo, a sua vivência social geral e no seio familiar, no ambiente escolar ou no exercício profissional (NÓVOA, 2004, p.45). Em seu ensaio de 2009, o autor ressalta que, há muito tempo, já se procuravam os atributos ou as características que definiam o “bom professor” e que esta abordagem conduzira, na segunda metade do século XX, à consolidação de uma trilogia que teve grande sucesso: saber (conhecimentos), saber-fazer (capacidades), saber-ser (atitudes). A partir disso, entende que os professores necessitam serem pessoas inteiras e que a tecnicidade e cientificidade do trabalho docente não esgotam todo o ser-professor. E que é fundamental reforçar a pessoa-professor e o professor-pessoa. Propõe que seja construída uma teoria da pessoalidade no interior da profissionalidade, devendo essa ser instituída a partir dos primeiros anos de formação de professores, em práticas de autoformação, momentos em que seriam construídas narrativas de histórias próprias de vida pessoal e profissional. Finaliza referindo que está tocando em algo indefinido, mas que se encontra no cerne da identidade profissional docente. Ser-Professor na visão Psicanalítica Cada professor, antes de ser um educador, foi, desde a sua concepção, educado. Sua personalidade e, consequentemente, seu comportamento foi formado, principalmente, em sua primeira infância. O ser - humano aprende, desde bebê por imitação, em casa, olhando e se relacionando, principalmente, com sua mãe, mas também com o pai e as outras pessoas que exercem sobre ela as funções maternas e paternas. Naturalmente, à medida que a criança se desenvolve e os processos de amadurecimento se tornam mais apurados, e as identificações se multiplicam, a criança se torna cada vez menos dependente de obter de volta o eu (self) dos rostos da mãe e do pai, e dos rostos de outras pessoas com quem se encontra em relacionamento fraterno ou parental (WINNICOTT, 1975, p. 161). Até os três anos de idade praticamente toda a personalidade de uma pessoa foi formada e, durante esse período, observando e imitando aprendeu a falar, a andar, a lidar com alegrias, tristezas, perdas, frustrações, ansiedades, medos, etc. O psicanalista Winnicott (1983) diz que uma mãe não precisa ser perfeita, mas tem que ser suficientemente boa para formar um filho emocionalmente saudável. Ao analisar a obra de Kohut, Bleichmar (1992) alude que, no momento em que a mãe vê, pela primeira vez, seu filho e, também, entra em contato com ele (por intermédio de canais táteis, olfativos e proprioceptivos, enquanto o alimenta, o segura no colo e o banho), virtualmente se inicia um processo que estabelece o self (si-próprio) da pessoa, o que continua por toda a infância e, em menor grau, na vida adulta. Mas, além da mãe, o pai é, também, importante na relação com a criança, pois essa chega ao mundo com um self rudimentar, que vai se desenvolvendo ao longo da vida, através da interação repetitiva com seus pais. E, se esses investem em uma relação de empatia com o filho, de uma maneira suficientemente estável e causando frustrações toleráveis nesse, resultará um sujeito com um self autônomo, mais propenso a gerar uma personalidade mais branda, flexível, equilibrada, segura, justa, pacienciosa e de bom senso. De outra maneira, quando a criança é gerada e se desenvolve em um lar instável, permeado de frustrações intoleráveis e/ou pouco empático, ela futuramente estará mais propensa a dificuldades em seus relacionamentos interpessoais. Quando tratou dessa questão, Freud (1923) comparou a criança a uma calçada de cimento fresco que ao ser pisada fica com marcas profundas, as quais chamou de traumas. Estes quando não resolvidos, mantém-se ao longo da vida, fazendo com que o ser cresça fisicamente, mas emocionalmente, fique preso a esses conflitos não resolvidos. Na prática, por exemplo, se uma pessoa sofreu com agressões verbais de seus genitores, provavelmente, terá dificuldade em lidar com relações interpessoais ou situações do cotidiano onde precise contrariar ou frustrar alguém, ou, ao contrário, onde ela própria sinta-se contrariada ou frustrada, poderá não tolerar e reagir da mesma forma agressiva, ou adotar uma forma submissa devido ao medo infantil da agressão. Pode, ainda, adotar posturas defensivas, em relação a conflitos dessa ordem, como por exemplo: evitar contrariar ou ser contrariado, não ser aberta ao diálogo, rigidez ao estabelecer limites, ou o oposto disso, que seria a permissividade. Essas atitudes defensivas, além de dificultar as ações e condutas da pessoa, não a isentam de certo nível de sofrimento psicológico que com o passar do tempo pode desencadear doenças mentais e até físicas. Segundo Sadock (2007), de modo geral, existe a convicção de que os fatores psicológicos são importantes no desenvolvimento de todas as doenças. Psicoterapia como prevenção do sofrimento psíquico no contexto educacional A partir do exposto acima, o desconforto em assumir a educação do discente na escola pode estar relacionado às dificuldades psicológicas do professor em lidar com situações que geram conflito/problema. A fim de encaminhar uma alternativa para o preenchimento da lacuna deixada por Nóvoa, utiliza-se o conceito de contratransferência, sendo esse de suma importância na psicanálise e estudá-lo, nesse momento, auxiliará na melhor compreensão do quanto o emocional de uma pessoa interfere em suas relações. Freud (1910) usou esse termo para referir-se à resistência inconsciente do analista como sendo um obstáculo que o impedia de ajudar o paciente a enfrentar áreas da psicopatologia que ele próprio não conseguia enfrentar. Ele visava, com essa obra, auxiliar médicos não-analisados e não analistas a reduzirem o risco do emocional do profissional interferir negativamente em seu paciente. Sob este aspecto trabalhar a contratransferência, vem para auxiliar os professores a lidarem melhor com suas resistências inconscientes diminuindo o sofrimento psíquico emocional e as ações educativas inadequadas frente ao discente. A partir de então, propõe-se, que faça parte, desde os anos iniciais, da formação de professores o trabalho na modalidade de grupos operativos. Para Pichón Rivière (1998), o grupo operativo é um instrumento de trabalho, um método de investigação e cumpre, também, uma função terapêutica. Nesse método, segundo Fiscmann, o grupo exerce uma tarefa de forma operativa, esclarece suas dificuldades individuais, rompe com os esteriótipos e possibilita a identificação dos obstáculos que impedem o desenvolvimento do indivíduo e ainda o auxilia a encontrar suas próprias condições de resolver ou resolver a si próprio. [...] um conjunto restrito de pessoas, que, ligadas por constantes de tempo e de espaço e articuladas por sua mútua representação interna, propõe-se, de forma explícita ou implícita, a uma tarefa que constitui sua finalidade, interatuando através de complexos mecanismos de assunção e adjudicação de papéis (PICHON-RIVIÈRE, 2005, p. 175). Sete indicadores alicerçam o processo de operatividade. São eles: Afiliação, Pertença, Cooperação, Pertinência, Comunicação, Aprendizagem e Tele, ocorrendo de forma natural e não raramente inconsciente aos olhos da maioria dos membros. A afiliação envolve o movimento progressivo de identificação do integrante com o grupo e com a tarefa, que evolui ou não para a pertença, ou seja, quando esse passa de ator a protagonista da tarefa. A cooperação se mostra pelo interjogo grupal de rotatividade dos papéis, um movimento de complementação mútua, e a pertinência diz respeito ao centramento na tarefa, dela não se esquivando. A comunicação indica o grau de interação grupal por diferentes vias – verbal, não verbal, gestual, atitudes comportamentais, afetivas e emocionais; enquanto a aprendizagem é traduzida nas informações que possibilitarão a adaptação à realidade necessária ao trabalho, e a tele diz respeito ao clima, positivo ou negativo, que se estabelece no grupo frente à tarefa grupal e entre os integrantes (PICHON-RIVIÈRE, 2005 apud LEÃO e JOSÉ, 2014, p. 93). 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante disso, pode-se afirmar que grupo é uma unidade que se admite como um todo, a serviço de seus membros e pode ser uma grande estratégia para o enfrentamento das adversidades ocupacionais e, consequentemente, de melhor formação profissional. O grupo, neste contexto, não se restringe a apenas um somatório de pessoas, mas conforma-se como um espaço de interação e dispõe de ‘leis’ e mecanismos próprios. Se conforma como peças separadas de um quebracabeças, que, embora existam individualmente, em determinado momento, participam de um todo, no qual são preservadas as características individuais de cada participante, mesmo com a inerente existência de uma interação afetiva entre seus membros, geralmente de natureza múltipla e variada (ZIMERMAN, 2000) 5 REFERÊNCIAS BLEICHMAR N.M.; BLEICHMAR C.L. A Psicanálise depois de Freud: teoria e clínica. Porto Alegre, RS: Artmed, 1992. CARDOSO, E.A. et al. As vivencias profissionais e as práticas docentes, 2014. Disponível em: http://coral.ufsm.br/gpforma/2senafe/PDF/043e5.pdf. Acesso em 9 abr 2015. FISCMANN J.B. Como Agem os Grupos Opertivos. In: ZIMERMAN D.E., OSÓRIO L.C.; et.al. Como trabalhamos com grupos, Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. FREUD, S. O Ego e o ID e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1923. FREUD, S. As Perspectivas Futuras da Terapia Psicanalítica. Rio de Janeiro: Imago, 1910. FONTANA, R.T; PINHEIRO, D.A. 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