Portugal e o Concílio bispo do Porto

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Conferência do bispo do Porto nas Jornadas
Pastorais do Episcopado
Portugal e o Concílio
(Receção ou coincidência nas últimas seis décadas)
A especial “novidade” do Concílio Vaticano II terá sido tomar a sociedade como
objeto de referência, para nela fazer incidir a “luz de Cristo” que “resplandece
no rosto da Igreja” (cf. Lumen Gentium, 1).
Tal resultou da assunção por muitos crentes da consistência e evolução das
“realidades temporais” (cf. Gaudium et Spes, 36), bem como da compreensão
mais profunda da própria realidade humana. Realidade esta que, desde o
século XIX sobretudo, se foi apresentando mais circunstanciada e evolutiva,
entre uma objetividade complexa e uma subjetividade atendível,
necessariamente atendível.
O percurso pastoral do papa Roncalli foi, a este título, providencial. De Itália
para a Bulgária, da Bulgária para a Turquia, da Turquia para França e daqui
para Veneza e depois para o Pontificado, tocou diversas fronteiras sociais,
culturais e religiosas que lhe alargaram a compreensão e reforçaram as
convicções essenciais, ao longo de um meio século decisivo, antes, durante e
depois da 2ª guerra mundial. Com o Leste europeu e a ortodoxia; com o Islão;
com a França e a Itália dos anos 40-50, acompanhando movimentos e
tentativas de renovação da sociedade e da Igreja.
E tudo isto em contacto direto com “alegrias e esperanças, tristezas e
angústias” duma humanidade já nossa contemporânea, da qual os discípulos
de Cristo fazem parte integrante e irrenunciável, no seguimento do seu Mestre.
Disso deviam ganhar mais consciência, rumo a práticas consequentes. Em
João XXIII (1958-1963), sensibilidade, convicção e inspiração tornaram-se uma
coisa só, daí resultando o anúncio do Concílio, em janeiro de 1959.
Em Portugal, as últimas décadas do século passado, bem como os anos que o
atual já leva, apresentam condicionalismos próprios e profundas mudanças,
que podem ser interpretados à luz do Concílio. É o que se fará de seguida,
muito brevemente aliás, aproximando alguns trechos de historiografia recente e
outras tantas incidências conciliares a propósito.
Portugal mudou muito e estruturalmente muito na segunda metade do século
XX, num movimento anterior a abril de 1974, mas acentuado a partir daí.
Mudou na habilitação escolar, na ocupação laboral, na (des)localização e na
demografia, na vinculação social e assistencial, na mentalidade e na cultura.
Obviamente, tudo se refletiu nas crenças e convicções, assim como nas
práticas religiosas; em especial as católicas, muito institucionais e
comunitárias. Recenseamentos mais antigos e o recente inquérito às
identidades religiosas, todos denotam uma profunda alteração de sentimentos
e expressões particulares e de grupo.
Alargámos, por um lado, mas particularizámos, por outro, sendo assim
modernos na utilização dos media e na maior disponibilidade de consumos,
mas já pós ou hipermodernos, na sobrevalorização do indivíduo com as suas
escolhas, mesmo que desintegrado ou descomprometido a longo prazo. Não
faltam conexões, tecnologicamente potenciadas, mas menos obrigatórias e
duradouras. Quase tudo vale e também valem realidades positivas; mas nada
tanto como a liberdade individual, enquanto sentimento e critério.
Tendo presente a recente análise do Prof. Rui Ramos, incidente no Portugal
contemporâneo, formulo oito itens de mudança social e cultural - outros tantos
desafios à “nova evangelização" -, juntando-lhes algumas referências
conciliares correspondentes, a que o tempo não fez mais do que somar
atualidade e urgência. São eles: 1) a popularização cultural, 2) o alargamento
social do Estado, 3) as novas valorizações, 4) as variações demográficas, 5) a
sensibilidade política católica, 6) o regresso à Europa, 7) o distanciamento do
“além”, 8) o retraimento do matrimónio e da geração
1) Popularização cultural
Até meados do século passado, predominavam culturas territoriais ou de
grupo. Havia certamente um sentimento nacional e a referência básica a alguns
símbolos comuns; mas nada de semelhante ao que passou a acontecer, desde
que tecnicamente foi possível: “Entretanto, a rádio, a televisão, a escola
primária e o serviço militar começaram a forjar uma «cultura popular» interregional e interclassista, como não existia até então. Inaugurada em 7 de
março de 1957, a Radiotelevisão Portuguesa (RTP) triplicou o seu número de
horas de emissão entre 1960 e 1970 e conseguiu cobrir 95% do território
nacional em 1967” (RAMOS, Rui – In História de Portugal. Org. Rui Ramos.
Lisboa: A Esfera dos Livros, 2009, p. 692).
O Concílio esteve atento a tal mudança, advertindo também para os seus
possíveis equívocos: “Meios de comunicação social novos e continuamente
aperfeiçoados favorecem o conhecimento dos acontecimentos e a difusão
extremamente rápida e universal das ideias e dos sentimentos, suscitando
assim numerosas reações simultâneas. […] Assim se multiplicam sem cessar
as relações do homem com os seus semelhantes, enquanto que a própria
socialização [socializatio] cria novos laços, sem que promova sempre um
proporcional desenvolvimento da pessoa e relações verdadeiramente pessoais
(personalizationem)” (Gaudium et Spes, 6).
2) Alargamento social do Estado
A uma sociedade culturalmente mais unida correspondeu um Estado
socialmente mais ativo, absorvendo funções que até aí não lhe pertenciam
tanto, sobretudo no campo do ensino ou da assistência: “O Governo investiu no
5º e 6º anos de escolaridade: com 82 mil estudantes em 1960, vieram a incluir
153 mil em 1970 e 277 mil em 1974. Mas, acima de tudo, lançou o que Marcelo
Caetano chamava o «Estado social». A despesa anual da segurança social em
percentagem do PIB cresceu de 1,7% em 1960 para 3,8% em 1970 e 6,8% em
1974. […] Em 1960 havia 56 296 pensionistas em Portugal – em 1974, 701
561, recebendo pensões cujo valor duplicara. Foi a mais rápida expansão de
sempre do Estado social em Portugal” (RAMOS – História, p. 700).
O Concílio também esteve atento a tal mudança, não deixando de lembrar que
os benefícios da solidariedade se devem conjugar com os requisitos da
subsidiariedade: “… em nações economicamente muito desenvolvidas, um
conjunto de instituições sociais, de previdência e seguro, pode contribuir, por
seu lado, para a distribuição comum dos bens. Além disso, devem promover-se
os serviços familiares e sociais, sobretudo os que têm por fim a cultura e a
educação. Ao organizar todas estas instituições, deve procurar-se que os
cidadãos não sejam levados a uma certa passividade para com a sociedade,
nem recusem o peso do seu dever e repudiem o serviço” (Gaudium et Spes,
69).
3) Novas valorizações
Os reflexos mentais não tardaram, traduzindo-se em desvalorizações de alguns
pontos e valorização de outros, sobretudo no respeitante à liberdade individual
e pública: “… a classe média urbana, em expansão, atravessou uma
transformação radical de valores: «durante o meu Governo», lembrou Caetano
anos depois, «assisti ao espetáculo de uma burguesia a desmoronar-se a partir
das suas bases morais, com uma Igreja em crise, meios de comunicação cada
vez mais infiltrados por elementos esquerdistas e agitação académica para
cuja repressão o Governo nem sempre tinha o apoio das famílias dos
estudantes e dos professores»” (RAMOS – História, p. 703).
Nada que o Concílio não advertisse e até equacionasse positivamente: “A
transformação das mentalidades e das estruturas leva com frequência à
discussão dos valores recebidos particularmente entre os jovens que, mais de
uma vez, se mostram impacientes e até se tornam rebeldes em sua inquietude,
e conscientes da sua importância na vida social, desejam assumir nela quanto
antes as suas responsabilidades. Está aqui o motivo de, não raro, pais e
educadores experimentarem dificuldades sempre maiores no cumprimento das
suas tarefas. As instituições, as leis, os modos de pensar e de sentir, herdados
do passado, nem sempre parecem adaptar-se bem ao condicionalismo atual:
daqui uma grande perturbação no comportamento e até nas normas que o
regulam” (Gaudium et Spes, 7).
4) Variações demográficas
Ainda não foi suficientemente avaliado o impacto de meio milhão de
“retornados” na sociedade portuguesa de 1975 e seguintes. No entanto, foi um
facto decisivo e inédito, mesmo em termos europeus: “Um dos maiores efeitos
da descolonização acabou por ser o crescimento da população na Metrópole.
[…] Para retirar os colonos de Angola, no verão de 1975, montou-se a maior
operação de evacuação aérea da História, com a colaboração de vários países.
Seis anos depois, segundo o recenseamento de 1981, viviam em Portugal 505
078 portugueses que residiam em África em 1973, dos quais 309 058 de
Angola e 164 065 de Moçambique – o equivalente a 5,1 % da população.
Metade fixara-se na Grande Lisboa. Dos refugiados, 50 % tinham menos de 16
anos e 67% estiveram empregados no setor dos serviços. […] A sua integração
correu melhor do que o previsto, apesar de os «retornados» serem mais
numerosos em relação à população de Portugal do que os refugiados da
Argélia em França” (RAMOS – História, p. 720).
O Concílio aludiu aos deveres das Igrejas particulares no acolhimento de
emigrantes e refugiados: “Tenha-se uma preocupação especial pelos fiéis que,
devido às suas condições de vida, não podem usufruir suficientemente do
cuidado pastoral ordinário dos párocos, ou estão completamente privados dele,
como acontece a muitos emigrantes, exilados e refugiados…” (Christus
Dominus, 18). E pode dizer-se que tais deveres foram geralmente cumpridos
na altura. Aliás, muitas comunidades, da capital e não só, foram rejuvenescidas
e revigoradas com a participação de católicos provenientes do Ultramar.
5) Sensibilidade política católica
O sentido maioritário do “voto católico” tem bastante constância, década após
década. Numa instituição que valoriza a “memória” e a “tradição”, é natural a
reserva em relação a propostas de mudança mais bruscas e fraturantes: “O
sentido do voto nos vários distritos [nas eleições de 25 de Abril de 1975] foi
determinado pelas percentagens de proprietários rurais, católicos praticantes e
emigrantes: quanto mais altas, mais votos à direita. Houve assim uma clara
divisão entre o Norte (com as ilhas), à direita, e o Sul, à esquerda” (RAMOS –
História, p. 714).
Também o Concílio insistiu na participação política dos católicos, harmonizado
a liberdade de opção pessoal com a solidariedade geral a manter: “Tomem
todos os cristãos consciência da vocação particular e própria que têm na
comunidade política, […] de modo que demonstrem, também por factos, como
podem harmonizar-se a autoridade com a liberdade, a iniciativa pessoal com a
solidariedade e as exigências de todo o corpo social, a unidade oportuna com a
proveitosa diversidade. Acerca da organização da realidade temporal,
reconheçam as legítimas opiniões divergentes entre si e respeitem os cidadãos
que, mesmo associados, as defendem honestamente” (Gaudium et Spes, 75).
6) Regresso à Europa
Portugal teve de reencontrar-se num espaço de origem de que durante muitos
séculos extravasara, não só física como mentalmente. Problema que continua
em resolução, aliás: “As revisões constitucionais (1982 e 1989) e a adesão à
CEE (1986) e ao mercado e moeda únicos (1992-1999) podem servir de
referência à História de Portugal num tempo em que a sociedade portuguesa
mudou como nunca mudara antes. Pela primeira vez na Época
Contemporânea, Portugal não tinha um «Ultramar» noutro continente e,
também pela primeira vez, os imigrantes estrangeiros que entravam no país
eram muito mais numerosos do que os emigrantes nacionais que dele saíam.
Durante anos, o grande problema em Portugal tinha sido o de romper com o
passado; ao entrar num novo século, o problema parecia ser o de, tendo
rompido com o passado, encontrar uma forma viável e satisfatória de viver de
outra maneira” (RAMOS – História, p. 747).
O Concílio apreciou positivamente a internacionalização política e as
organizações que a promovam no sentido do desenvolvimento e da paz. Não é
por acaso que vários protagonistas dessa internacionalização solidária foram e
são católicos convictos e militantes, dos “pais fundadores” da União Europeia
às modernas agências e ONGS: “As instituições internacionais, mundiais ou
regionais já existentes, são beneméritas do género humano. Elas aparecem
como os primeiros esforços para lançar os fundamentos internacionais de toda
a comunidade humana para se resolverem as gravíssimas questões dos
nossos tempos e também para promover o progresso em toda a terra e para
prevenir as guerras sob todas as formas. Em todos estes setores, a Igreja
regozija-se com o espírito de autêntica fraternidade que está a desenvolver-se
entre cristãos e não cristãos e tende a fazer esforços sempre mais intensos,
para erradicar a miséria extrema” (Gaudium et Spes, 84),
7) Distanciamento do “além”:
Naturalmente, sociedades mais precárias manifestam maior religiosidade
espontânea, geralmente securitária. Facto também constatável entre nós:
“Segundo o Banco Mundial, em 2000, entre 207 países do mundo, Portugal era
o 49º país mais rico. […] Toda esta prosperidade, entre outros fatores, ajudou
ao aumento da esperança de vida à nascença – ao longo do século XX
duplicou, sendo estimada em 75 anos para os homens e 81 anos para as
mulheres no ano de 2007. A taxa de mortalidade infantil desceu
espetacularmente, […] para valores quase residuais de 3,3 por mil – dos mais
baixos do mundo. […] A morte, exceto por acidente, tornou-se o fim de vidas
longas e geralmente saudáveis. A preocupação com a morte e a salvação da
alma, gerida através da religião, transmutou-se numa preocupação com a
doença e o prolongamento da vida, por meio da medicina (a despesa total com
a saúde, a preços constantes, quase duplicou entre 1984 e 1994, sendo um
dos sinais da prosperidade dessa época)” (RAMOS – História, p. 765).
No entanto, permanecendo a morte como horizonte indesmentível, o Concílio
prefere tomá-la como interpelação positiva, abrindo a um humanismo menos
alienado ou distraído: “É em face da morte que o enigma da condição humana
atinge o seu auge. O homem não é só torturado pela dor e pela progressiva
dissolução do corpo, mas também e ainda mais, pelo temor da destruição
definitiva. Pensa pois retamente quando, guiado pelo impulso do seu coração,
afasta com horror e recusa a ruína total e o fracasso definitivo da sua pessoa.
O germe de eternidade que traz em si, porque irredutível à matéria pura,
insurge-se contra a morte. Todos os esforços da técnica, por mais úteis que
sejam, não conseguem acalmar a sua ansiedade: é que o prolongamento da
vida que a biologia procura, não pode satisfazer o desejo duma vida ulterior,
invencivelmente fixado no seu coração” (Gaudium et Spes, 18).
8) Retraimento do matrimónio e da geração
Profundas e problemáticas foram as mudanças respeitantes à geração de filhos
e ao casamento católico, tão ligadas à possibilidade técnica como à rarefação
institucional: “O acesso a instrumentos e programas de planeamento familiar
permitiu a vida sexual sem a probabilidade de procriação […]. Em média, a
idade das mães ao nascimento do primeiro filho passou dos 23,6 anos em
1981 para os 28,1 anos em 2006. O índice sintético de fecundidade desceu de
3 filhos por mulher em 1941-1962 para 1,36 em 2006, abaixo do nível de
substituição de gerações (2,1). […] Entre 1960 e 2008, os casamentos
católicos desceram de 90% para 55% do total. Cerca de 31% dos nascimentos
ocorriam agora fora do casamento, contra 7% na década de 1960” (RAMOS –
História, p. 765-766).
Por seu lado, o Concílio tanto reconheceu a responsabilidade dos esposos,
como lhes lembrou a vinculação social e eclesial: “No dever de transmitir e de
educar a vida humana –o que deve ser considerado como sua missão
específica – os esposos sabem que são os cooperadores do amor de Deus
Criador e como que os seus intérpretes. Por isso, cumprirão o seu dever com
responsabilidade humana e cristã, e com um dócil respeito para com Deus; de
comum acordo e empenho, formarão um juízo reto, tendo em conta, quer o
bem próprio, quer o dos filhos, tanto os já nascidos como os que prevejam
venham a nascer; discernindo as condições, tanto materiais como espirituais,
do tempo e da situação de vida; tendo por fim em conta o bem da comunidade
familiar, da sociedade temporal e da própria Igreja. Os próprios esposos devem
formar este juízo, em última instância, diante de Deus” (Gaudium et Spes, 50).
Perante o que vai dito, reconhecemos o que aconteceu entre nós, na direta
receção das diretrizes concilares: a liberdade de escolha cultural levou à maior
responsabilidade na opção católica, aumentando tudo o que respeita à
iniciação e formação, ao conhecimento da Palavra e à vivência litúrgica, bem
como às várias iniciativas no campo caritativo e solidário. Igualmente se
apuraram a definição cristológica e a exigência comunitária, talvez os pontos
mais requeridos da “nova evangelização” a fazer. Mas isto mesmo nos
consciencializa do muito que ainda falta, para assimilar as múltiplas indicações
do Concílio, bem como dum Magistério eclesial em franco desenvolvimento
desde então. Aceites os itens acima apontados, aceitaremos também a
responsabilidade de continuar a “receber” a proposta conciliar, dando-lhe o
seguimento pastoral que a sociedade portuguesa atualmente requer.
Jornadas Pastorais do Episcopado, Fátima, 19 de junho de 2012
D. Manuel Clemente, bispo do Porto
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