Língua Portuguesa

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J. Bras. Nefrol. 1997; 19(4): 475-476
Língua Portuguesa
Shirley Gomes
A precisão da linguagem
Se há texto que obrigue à precisão da linguagem é o
texto científico. Embora freqüente, essa afirmação é
equivocada. Todo texto pede exatidão, não só quanto aos
termos usados, à regência verbal, à acentuação, à pontuação,
mas também quanto à exposição das idéias, ao encadeamento
lógico entre causa e efeito, à exposição da ordem dos fatores.
Aquela antiga lição, aprendida no primário, de que a ordem
dos fatores não altera o produto vale apenas para algumas
operações aritméticas. Não se aplica quando se deseja expor
os elementos de um fato ou o passo a passo de um
experimento. E é exatamente aí que surgem os problemas.
A língua portuguesa quase sempre foi ensinada, nos
currículos escolares, como uma disciplina pela qual os alunos
poderiam se interessar ou não, como a geografia, a física.
Conforme a área de estudo escolhida, uma ou outra disciplina
não faria falta. Ocorre, todavia, que físicos, químicos,
advogados, comerciantes, jornalistas, médicos, todos
dependemos da língua como ferramenta básica para nos
expressarmos.
Pode-se pensar que o dano causado por uma imprecisão
num texto seja, no entanto, mais grave no caso de um
advogado – uma vírgula mal colocada pode transformar um
inocente em culpado –, ou no caso de um médico – a troca
de um “uso externo” por um “uso interno” num receituário
pode ser fatal! Isso porque são erros que atingem outras
pessoas.
Mas não é possível descartar a gravidade de um erro em
um texto publicitário, que pode expor o comerciante que
anuncia a prejuízos imediatos, por força da Lei do
Consumidor. Ou ainda o sentido ambíguo em um contrato
de seguro, que expõe o cidadão a surpresas desagradáveis
na hora de usufruir o direito pelo qual pagou. Má fé? Às
vezes, sim; às vezes, não. Pode ser um caso de
desconhecimento de nossa própria língua.
Passado ou futuro?
Há tropeções em tempos verbais, por exemplo, que
acabam transportando para o futuro experiências passadas.
É só trocar a desinência da terceira pessoa do plural “am”
(pretérito perfeito) pela “ão” (futuro do presente). Se, ao
fim de um longo período de estudos e análises, o pesquisador
disser que os experimentos realizados provarão a hipótese,
estará dando como perdido todo o trabalho que teve, pois,
na realidade, o que está querendo expor é que os
experimentos já provaram a hipótese.
Noção de tempo
E por falar em verbos, aquele em que a maioria das pessoas
tropeça é, sem dúvida, o verbo “haver”. Ele gera tanta
insegurança que, muitas vezes, considera-se apenas o seu som
para colocá-lo na frase, e não o seu significado. Por exemplo,
quando se diz que “a três dias da internação, o paciente
procurou assistência”, isso significa que três dias antes de ser
internado, ele procurou ajuda. Agora, se estiver escrito “há
três dias da internação, o paciente procurou assistência”,
certamente se estará dando um nó na cabeça do leitor, pois
“há” indica passado e pode ser substituído por “faz”.
Voltemos à frase, com essa substituição. “Faz três dias
da internação, o paciente procurou assistência”. Fica claro
que a frase, assim escrita, gera outras questões: será que o
autor está querendo dizer que mesmo internado, três dias
depois, o paciente procurou ajuda? Portanto, aquilo que se
estava querendo expor, com clareza e precisão, sucumbiu
só porque no lugar da preposição a empregou-se há, do verbo
“haver”.
Outro tropeço freqüente é o emprego de há ... atrás
com referência a tempo. Por exemplo: Há três dias atrás, o
paciente procurou ajuda. Encontramos aqui uma redudância,
pois há já significa atrás, antes. Portanto, devemos escolher:
ou há ou atrás. Assim, temos: Há três dias, o paciente
procurou ajuda. Ou, então: Três dias atrás, o paciente
procurou ajuda.
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J. Bras. Nefrol. 1997; 19(4): 475-476
S. Gomes - Língua Portuguesa
A escolha do termo
Palavras com significados bem diferentes e escritas
também de maneira diferente, mas que possuem o mesmo
som, pegam com certeza as pessoas desatentas. Mas será
essa uma dificuldade apenas da língua portuguesa?
Certamente não. Mesmo as pessoas muito acostumadas à
terminologia científica do inglês sabem que correm o risco
de cometer erros semelhantes como os que aqui foram
exemplificados.
E, quando saímos das inúmeras leituras que fazemos
em inglês e começamos a redigir em português, às vezes
nem nos damos conta dos também inúmeros vocábulos
daquela língua que trazemos para a nossa, esquecendo-nos
de que para eles existem correspondentes em língua
portuguesa. É esse o caso, por exemplo, de overdose
(superdose), performance (desempenho), timing
(sincronização) e de tantas, tantas outras palavras. Mais
sério ainda é quando simplesmente ocorre o
aportuguesamento de palavras estrangeiras.
É necessário estar muito atento para não cometer deslizes
como esses. Com certeza, uma língua tão rica quanto a nossa
possui um vocábulo adequado e correspondente para a idéia
que se deseja expressar.
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