Hipnose e ciência: um diálogo necessário - BVS-Psi

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
CURSO DE PSICOLOGIA
Hipnose e ciência: um diálogo necessário
Túlio Melo Machado de Oliveira
Belo Horizonte
2006
2
Túlio Melo Machado de Oliveira
Hipnose e ciência: um diálogo necessário
Monografia apresentada ao curso de
Psicologia da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, na disciplina
Orientação de Monografia como requisito
parcial para obtenção do título de graduação
em Psicologia.
Orientador: Prof. João Leite
Belo Horizonte
2006
3
Dedico esse trabalho à minha família, quem me inspira e apóia.
4
RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo discutir alguns estudos sobre como a hipnose tem
sido compreendida e utilizada no âmbito científico, especialmente em psicologia
clínica, incentivando a discussão acadêmica a respeito do tema. Para estes fins, são
explorados alguns estudos que visam descrever como se deu a construção do
conhecimento sobre a hipnose, procurando compreendê-la dentro de um contexto
em que se considera a forma de se fazer ciência e a conjuntura social e política da
época em que ela foi estudada. Atualmente, como a hipnose tem sido mais estudada
pela ciência, conseqüentemente, novas compreensões e novas formas de utilização
prática estão se fazendo. Alguns estudos são apresentados no intuito de se ilustrar
esse contexto. Os procedimentos metodológicos utilizados para a construção do
trabalho foram pesquisas bibliográficas.
Palavras Chave: Hipnose, Psicologia e Ciência, Sugestão.
5
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO.................................................................................................06
2
CAPÍTULO I - A HIPNOSE COMO FENÔMENO LEGÍTIMO..........................08
3
CAPÍTULO II - FREUD E A HIPNOSE.............................................................17
4
CAPÌTULO III - CIÊNCIA E HIPNOSE.............................................................24
5
CONCLUSÃO...................................................................................................32
6
REFERÊNCIAS................................................................................................34
6
INTRODUÇÃO
É natural que, no mundo científico, trabalhos e teorias sejam aproveitadas a
fim de se constituírem novas compreensões e sejam utilizadas para o
desenvolvimento de novos trabalhos. Da mesma forma que outros objetos
estudados pela ciência, a hipnose passou por uma considerável trajetória de
avaliações e estudos. Evidentemente, as concepções e os conhecimentos sobre
esse tema foram-se alterando e, como conseqüência, também a sua prática se
estabeleceu de formas diferentes e atuante em diversas áreas. Frente aos novos
conhecimentos, o nível de sua utilização prática tornou-se mais especializado. A
comunidade científica atual vem cada vez mais inserindo a hipnose em suas
pesquisas e a utilizando de diferentes formas. A posição que a hipnose ocupa frente
a essa comunidade científica pode ser melhor entendida se atentarmos para o
contexto em que o fenômeno veio sendo estudado e para as influências de vários
determinantes que, de certa forma, influenciaram e até hoje influenciam o modo
como ela é estudada e compreendida tanto no âmbito científico quanto
popularmente. Não só no curso de Psicologia do São Gabriel, mas em várias outras
instituições do meio acadêmico, os fenômenos hipnóticos quase não fazem parte
das propostas de estudo e, quando mencionados, tem como base orientações
oriundas há cem anos, geralmente relativas aos estudos desenvolvidos por Freud.
Não que o tempo seja um critério que invalide esses estudos pois, de forma inversa,
ele pode proporcionar um aprimoramento no sentido de ser entendido e
desenvolvido de formas diferentes. No entanto, a falta de clareza a respeito deste
tema, a deturpação de seus fenômenos e a maneira como há vários anos ele foi
experienciado por alguns brilhantes teóricos, dão margem a concepções antigas e
eivadas de preconceitos, contribuindo para a construção de uma cultura onde seja
comum o
desinteresse pelo seu
estudo acadêmico. Esta pesquisa tem como
objetivo citar alguns estudos sobre como a hipnose tem sido compreendida e
utilizada no âmbito científico, especialmente em psicologia clínica, e também,
incentivar a discussão acadêmica a respeito do tema.
No primeiro capítulo, inicialmente apresento alguns estudos que descrevem
como a hipnose foi utilizada e vivenciada de diferentes formas na história da
humanidade. Em seguida, apresento alguns estudos que retratam a tentativa de se
7
compreender o fenômeno dentro de uma visão dita racional, ou seja, científica. Estes
estudos relatam sobre a evolução de conceitos, algumas controvérsias e a trajetória
que se deu até que o fenômeno fosse compreendido como algo real e digno de ser
objeto de pesquisa cientifica.
No capítulo seguinte, apresento a vivência que Freud teve com a hipnose e a
forma como ele a utilizou em sua clínica. Para isso, são explicitados alguns estudos
que mostram a utilização da hipnose como forma se compreender a estrutura dos
sintomas histéricos, e também, como recurso para se tratar a histeria. Mais adiante,
relato sobre os motivos e as circunstâncias em que Freud optou por abandonar o
uso da hipnose em sua clínica, correlacionando também com o desenvolvimento de
uma nova forma de terapia, ou seja, o surgimento da psicanálise.
No terceiro capítulo, cito algumas conseqüências para o estudo científico da
hipnose, tendo Freud não mais a utilizado em sua clínica. Procuro situar o lugar que
ela ocupou perante a sociedade e ao meio acadêmico, tendo em vista algumas
variáveis
importantes
a
serem
consideradas.
Discuto
uma
pesquisa
que
problematiza o atual interesse de se estudar o fenômeno. Encontra-se também
nesse capítulo alguns estudos hodiernos sobre a hipnose, novas formas de
compreensão e utilização em psicoterapia. Por fim, insere-se um estudo que procura
trabalhar a relação entre ciência e hipnose.
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CAPÍTULO I - A HIPNOSE COMO FENÔMENO LEGÍTIMO
Ao longo da história da humanidade, de uma forma ou de outra, a hipnose
tem sido utilizada e vivenciada mesmo antes de se ter consciência “científica” da
existência do fenômeno. “Sociedades primitivas já usavam o “tá-tá-tá” e o “tom-tom”
do ritmo dos tambores e as danças ritualisticas das tribos, para induzir um estado de
transe semelhante ao da hipnose.” (Erickson, Hershman e Secter, 1998, p.19).
Não só esses rituais, mas infindáveis situações e acontecimentos capazes de
induzir o transe hipnótico acompanharam o passar dos anos. Ao tratar sobre o
assunto Osmard Andrade, em seu Manual de Hipnose médica e odontológica, nos
relata que no séc. XVI:
Na Inglaterra, Eduardo, o Confessor, introduziu a prática do que costumava
chamar “o toque real”. Os sofredores eram trazidos à presença do rei em
audiências prefixadas quando este, tocando a fronte de seus súditos,
acreditava corta-lhes os males. Tal prática reconhecida mais tarde
oficialmente pela Igreja da Inglaterra passou a contar com a presença de um
sacerdote assistente real. Sempre que Eduardo tocava um doente aquele
citava passagens adequadas da Bíblia. (Faria, 1979, p.6)
Também acreditando ser possuidor de forças sobrenaturais, como relata Faria
(1979), em 1662 apareceu na Irlanda um curandeiro chamado Greatrakes. Como
enviado divino, julgava ter poderes de cura, exorcismo e sacerdócio. Foi responsável
por conseguir, através de seus poderes, milhares de curas. Após os pacientes
receberem uma série de “passes”, caíam numa espécie de torpor semelhante ao
sono.
Crenças sem fundamentos científicos davam margens a várias explicações e
conclusões acerca do que se constituía o fenômeno em tela. Mesmer, um jovem
médico da universidade de Medicina Vienense, buscou firmar uma explicação dita
racional e em 1766 concluiu seu doutorado. Segundo sua tese:
Atribuía aos corpos celestes a emissão de um misterioso “fluído” ligando os
corpos entre si e todos ao conjunto estelar. Tal “fluído” que titulou de
magnetismo animal teria ainda a particularidade de ser captado e reservado
por corpos metálicos especiais que se poderiam usar terapeuticamente sob
determinado controle. (Faria, 1979, p.7)
9
A aplicação do chamado mesmerismo criou corpo através das práticas de
Mesmer e seus adeptos. Foi tanto que em 12 de março de 1784, o rei Luís XVI
nomeou uma comissão de estudiosos da Faculdade de Paris e da Academia Real de
Ciências para prestar contas a respeito do magnetismo animal praticado pelo Sr.
Charles Deslon, amigo e discípulo de Mesmer (Chertok e Stengers, 1990). A citação
abaixo caracteriza o ambiente em que se dava a aplicação do mesmerismo.
Ao redor da cuba de Mesmer, as mulheres da melhor sociedade – inclusive
a própria rainha, alegavam os panfletários – perdiam o controle, desatavam
num riso “histérico”, desmaiavam e eram tomadas por convulsões. A cuba
de Mesmer efetuava a transmutação de um grupo policiado numa
aglomeração desenfreada, com os efeitos do fluido em cada um reforçando
a potência de seus efeitos nos demais, com a primeira gargalhada
desencadeando as outras em cascata, e com o primeiro espasmo
catalisando as crises através de uma irresistível reação em cadeia. (Chertok
e Stengers, 1990, p.24)
Segundo Chertok e Stengers (1990), como resultado das observações a
comissão concluiu que nenhum agente que pudesse ser objeto da ciência, nenhum
fluído, permitiria explicar a crise mesmeriana. Esta, não foi considerada como algo
que pudesse trazer para o conhecimento um objeto ou uma nova razão. O
mesmerismo não foi considerado objeto da ciência e sim uma ameaça aos costumes
e a moral da sociedade. O encargo da situação foi transferido àquele que é
responsável por essas questões, o governo, a fim de ser tratado pelos rigores da lei.
De acordo com a interpretação de Chertok e Stengers (1990), a razão
reivindicada pela comissão para julgar a prática do mesmerismo feita por Deslon não
era neutra tal qual a razão que define o que Kant chamava de revolução
copernicana. Seu método conduzia a uma purificação do cenário, que apresentavase excessivamente acumulado de elementos incontroláveis.
A razão, tal como reivindicada pela comissão confrontada com o fenômeno
mesmeriano, tinha por atribuição primordial, portanto, a caça aos parasitas,
a purificação do cenário, excessivamente acumulado de elementos
incontroláveis, oferecido pela cuba de Deslon. Os comissários não sabiam a
quais princípios poderia responder o “fluido” hipotético invocado por Mesmer
e Deslon para explicar as crises. Não tentaram descobri-los, mas
procuraram por à prova a relação entre o fluído hipotético e seus efeitos
observáveis. (Chertok e Stengers, 1990, p.30)
Segundo relatam Chertok e Stengers (1990), ao fazer a primeira tentativa
experimental de avaliar o trabalho que o Sr. Deslon estava desenvolvendo, a
10
comissão propôs um método de investigação: Pessoas consideradas de serem
honestas e terem boa fé serviram de testemunhas ao experimento empreendido.
Diferente dos efeitos múltiplos e da agitação que acontecia nos tratamentos
públicos, houve calma e silêncio na experimentação. O magnetismo parecia
despojado de qualquer ação sensível e, segundo esse ponto de vista, a comissão
teve uma prova negativa. Para Deslon, a experimentação foi feita em condições
desfavoráveis, pois as sessões foram breves, espaçadas e os participantes estavam
desatentos. Não só por esses motivos o magnetizador alegou a constatação
impertinente. Segundo ele, os efeitos são variados e dependem da sensibilidade de
cada indivíduo. Portanto, o fato das testemunhas não terem experimentado
nenhuma sensação não pode ser um indicativo de que o magnetismo não existe.
Ainda de acordo com Chertok e Stengers (1990), Jussie, um dos membros da
comissão, acreditava que o fato suscitava um problema e defendia que o exame
deveria ser feito nas condições em que se produzia e não da forma como estava
sendo feito.
Para uns, o fato era aquilo que resistia à purificação, ao isolamento, à
preparação experimental. Para outros, o fato era o que requeria elucidação,
uma elucidação crítica, certamente, mas sem que a crítica correspondesse,
no caso, a critérios gerais apriorísticos (se o fluido existia, tinha que agir de
maneira semelhante em todos os corpos vivos); ela era indissociável de
uma aprendizagem que permitisse distinguir, precisar, explicitar, em suma,
elaborar a linguagem conveniente ao fato. (Chertok e Stengers, 1990, p.36)
Como informam Chertok e Stengers (1990), a comissão foi em busca de
novas formas de experimentação para verificar a hipótese do fluído animal.
Suspeitaram que os efeitos do magnetismo eram determinados pela persuasão
antecipada e, ao entrevistar e fazer outros experimentos com alguns pacientes de
olhos vendados, obtiveram o fato que lhes proporcionaram um veredicto final. Por
estarem convencidos de que estavam sendo magnetizados, alguns dos pacientes
entraram em crise mesmo na ausência do magnetismo. A imaginação foi apontada
como a verdadeira causa dos efeitos atribuídos ao fluido.
Um relatório conclusivo, publicado em 11 de agosto de 1784, afirmava que o
chamado fluído não existia e os resultados obtidos por Mesmer se deviam
apenas à imaginação – S`il existe en nous ou autour de nous, c`est donc
dùne manière insensible1 (Ferreira, 2006, p.2)
1
“Se ele existe em nós ou em torno de nós é então de uma maneira insensível”
11
O enfoque na imaginação serviu para refutar a hipótese do magnetismo. No
entanto, a comissão não se preocupou em delimitar o que vinha a ser a imaginação,
de que forma se dava seu efeito curativo, as crises e as convulsões, como se na
época a imaginação não fosse passível de ser considerada objeto de estudo
científico.
Segundo Chertok e Stengers (1990), Deslon e Jussie apresentaram objeções
à conclusão das comissões e também novas hipóteses que não desconsideravam a
existência do magnetismo. De qualquer maneira, não foram ouvidos. Foram
publicados milhares de exemplares dos relatórios que, em seu conteúdo, negavam a
existência do magnetismo e condenavam a prática do mesmerismo. Exigiu-se que
os
médicos
iniciados
nessa
prática
assinassem
um
ato
de
abjuração,
comprometendo-se a renunciá-la, não só a prática mas também a crença na
efetividade do fenômeno.
As brutais conseqüências institucionais dos relatórios de ambas as
Comissões dão o que pensar. Esses relatórios negaram, em nome da
ciência, em nome da razão, a explicação fornecida para um fenômeno que,
em si, não correspondia às normas da racionalidade experimental, e essa
negação equivaleu a uma condenação. (Chertok e Stengers, 1990, p.46)
Por afirmar que a prática do mesmerismo era inconsistente, permitiu-se que o
tema fosse banido e não considerado como um objeto digno de investigações
científicas. A partir deste acontecido, pode-se deduzir o quanto as pesquisas sobre o
tema ficaram prejudicadas. Esta constatação acabou abrindo margens para o
surgimento de concepções deturpadas e para um desinteresse científico sobre o
assunto. De qualquer forma, alguns defensores do mesmerismo continuaram a
estudá-lo e, por darem ênfase em outros aspectos da variedade de seus fenômenos,
constituíram-se novas compreensões e conhecimentos.
Tendo sido orientado de início pelas teorias magnéticas, por volta de 1815,
Custódio Faria deu uma grande contribuição para a atual compreensão do
fenômeno:
Na opinião de Custódio de Faria era a vontade do paciente e o poder de
sugestão que conduziam ao que chamava de “sono lúcido”. Tal ponto de
vista foi expresso no seu livro “De la cause du sommeil lucide ou l’etude sur
la nature de l’homme” onde conceituava: “Não posso conceber como a
espécie humana foi procurar a causa desse fenômeno à tina de Mesmer, a
uma vontade externa ou a mil outras extravagâncias deste gênero.” (Faria,
1979, p.13)
12
De acordo com Ferreira (2006), médico neurologista e pesquisador de
Curitiba, em 1838, um professor de medicina da Universidade de Londres e
presidente da Royal Medical and Surgical Society chamado John Elliotson (17911868), estudou e começou a praticar o mesmerismo empreendendo aulas e
demonstrações sobre o que ainda era chamado de sono magnético. A opinião geral
de seus colegas logo se voltaram contra ele. Thomas Wakley, fundador da
conceituada revista The Lancet, advertiu-o com uma forte crítica: “O paciente, aliás,
a vítima, ou melhor o particips criminis é tão culpado quanto o operador. E até quem
ler o relato de tais atuações é um leproso”. (Van Pelt SJ. apud Ferreira, 2006, p.3)
A repercussão da iniciativa de Elliotson pode ser compreendida tendo em
vista as obscuridades do fenômeno, a condenação à qual o mesmerismo já havia
sofrido pela comunidade acadêmica e a forma como ele ainda vinha sendo
assimilado pela maior parte dessa comunidade. Refutado da
ciência , o
mesmerismo era considerado charlatanismo e não era tido como digno de ser objeto
de estudo científico.
Mesmo neste contexto, a caracterização e a indução do estado hipnótico foi
estudada e praticada de diferentes formas. Um exemplo, são os experimentos que
James Esdaile (1808-1859) desenvolveu na Índia em torno do ano de 1845 (Faria,
1979). Neles, beneficiavam-se pela analgesia conseguida no estado hipnótico para
facilitar a prática cirúrgica. “Muito cedo seus arquivos lhe permitiriam comunicar ao
Medical Board um total de setenta e cinco intervenções cirúrgicas feitas sob
hipnose.” (Faria,
1979, p.15). Segundo Erickson, Hershman e Secter, (1998),
quando Esdaile voltou à Inglaterra e expôs suas experiências, foi ridicularizado e
marginalizado por seus colegas. Enfatizou em seu livro que não apenas era difícil
convencer as pessoas sobre o valor de seu trabalho, mas também era difícil lutar
contra a opinião pública.
Um outro importante teórico a ser considerado é James Braid (1795-1860).
De acordo com Faria (1979), a ele se deve a primeira conceituação realmente
científica e fisiológica, despida de empirismo e idéias absurdas sobre a hipnose.
Apesar de Custódio Faria já ter se pronunciado, antes dos estudos de Braid, dizendo
que é a sugestão e a vontade do paciente que são responsáveis por ocasionar o
“sono lúcido”, ainda sim “o mesmerismo era aceito como resultante de forças
13
estranhas e sobrenaturais, derivada dos astros através de fluidos especiais de que
se empregnavam os metais e os animais”. (Faria, 1979, p.19).
Segundo Faria (1979), Braid era médico oculista e radicalmente contrário às
práticas mesmeristas. Por esse motivo, foi a uma das sessões que Charles
Lafontaine, discípulo de Mesmer, ocupava-se em fazer demonstrações de
magnetismo animal. Ao colocar uma jovem em estado de sono profundo, logo foi
cercado pelos curiosos. De forma discreta Braid tomou um alfinete e introduziu em
baixo da unha de um dos dedos da paciente. Não ocorreu a menor reação dolorosa,
nenhum gesto, nem a mais leve contração muscular. Para quem tinha a intenção de
desmascarar o magnetizador, tal situação serviu para criar um interesse sobre o
assunto. De acordo com Albuquerque (1959), uma das questões para qual Braid
atentou ao observar o experimento de Lafontaine, foi a impossibilidade que o
paciente apresentou de abrir os olhos quando em transe mesmérico. Albuquerque
(1959) informa que, em busca de conseguir alguns resultados pela fadiga da vista,
Braid desempenhou experimentos onde mandou que as pessoas fixassem o olhar
em um ponto que, pela convergência forçada dos olhos, trouxessem mais
rapidamente o cansaço. O resultado foi as evidencias de se ter induzido o transe
mesmérico. Posteriormente desenvolveu uma técnica de fixação do olhar e “logo
descobriu que poderia acelerar esse processo dizendo às pessoas: Agora você está
ficando com muito, muito sono” (Shrout, 1995, P.35). Com base no que ele
acreditava ser o fenômeno, propôs o uso de um outro termo para o que, até então,
era designado como magnetismo animal ou mesmerismo.
Inicialmente pensava que a hipnose era idêntica ao sono, então usou o
termo hypnos, uma palavra grega que significa “sono”. Mais tarde, depois de
reconhecer seu erro, tentou mudar o nome para monoideísmo, que significa
concentração sobre uma idéia. Entretanto, o termo “hipnose” persistiu
apesar dele ser tecnicamente errado. (Erickson, Hershman e Secter, 1998,
p.21)
Através de um rigoroso espírito científico Braid extraiu de suas observações
algumas conclusões que, em alguns aspectos, ainda hoje são consideradas atuais e
foram de fundamental importância para se alcançar novas compreensões. Como
relata Faria (1979), Braid não via fundamento no mecanismo mesmérico. Acreditava
que a causa do sono hipnótico estava dentro de nós mesmos e que não havia
nenhuma influência fluídica derivada dos astros, da atmosfera ou de outras pessoas.
14
Segundo Faria (1979), Braid concluiu que a indução hipnótica é obtida pela fadiga
excessiva dos órgãos dos sentidos, especialmente o da visão. Afirmou que sempre
que se obriga o paciente a receber estimulação continuada, monótona e persistente
durante um certo tempo, consegue-se tal fadiga. Relatou sobre a importância do
paciente concentrar toda sua atenção no objetivo em causa e que depois de
conseguida a hipnose, é possível introduzir idéias novas no cérebro do paciente.
Acreditava que a anestesia, a amnésia e os demais componentes do fenômeno
hipnótico eram devidos a uma inibição de parte do cérebro do paciente. Finalmente,
diferente do mesmerismo, julgava que a hipnose como recurso terapêutico não era
remédio universal.
Não foi de súbito que a comunidade científica passou a considerar digno de
ser objeto de estudo temas relacionados com a hipnose. Como relata Albuquerque
(1959), em uma reunião anual da British Association, Braid quis ler um trabalho
relatando suas experiências e recusaram-lhe este direito. O tempo que lhe tinha sido
destinado foi concedido a outra pessoa que fez uma comunicação sobre o meio de
distinguir as aranhas velhas das novas pelo exame dos respectivos palpos. De
acordo com Ferreira (2006), um médico cirurgião chamado Squire Ward em 1842
havia amputado um membro inferior na altura da coxa, sob condições mesméricas e
sem que o paciente sentisse dor. Ao comunicar tal fato à Royal Medical Surgical
Society, um de seus membros reagiu dizendo que o paciente havia sido treinado
para não sentir dor. Em 1851, em seu edital, a conceituada revista científica The
Lancet publica uma crítica ao mesmerismo dizendo:
O mesmerismo é uma farsa demasiada estúpida para merecer qualquer
atenção. Consideramos os seus sequazes como impostores e charlatões.
Deveriam ser expulsos sem piedade das agremiações profissionais.
Qualquer médico que envie um paciente seu para consultar com um
mesmerista deveria ser condenado a ficar sem clientes para o resto da vida.
(Faria apud Ferreira, 2006, p.4)
Albuquerque (1959) relata que, neste contexto, de diferentes formas e de
localidades variadas, trabalhadores independentes continuavam com seus estudos,
tentavam em vão provocar o exame sério da comunidade acadêmica que opunha
toda sorte de empecilhos.
No entanto, uma tendência à mudança começou a se firmar quando um
conceituado neurologista francês chamado Jean Martin Charcot (1825-1893) em
15
1878 se despendeu ao estudo do hipnotismo. Como informa Albuquerque (1959),
Charcot sentiu que para vencer a prevenção geral tornava-se necessário mais do
que a autoridade de seu nome, precisava apresentar fenômenos cuja realidade
fosse bastante clara e pudesse excluir toda a idéia de simulação. Por esse motivo
deu menos ênfase ao estudo de fenômenos psíquicos mais complexos e menos
suscetíveis
de
verificação,
dedicando-se
principalmente
aos
verificáveis
e
registráveis por instrumentos. Frente ao oficialismo acadêmico, “Charcot serviu-lhes
o hipnotismo, já preparado em um quadro rigoroso. Não era mais a selva inculta dos
fatos desconexos apresentados por Mesmer [...]”. (Albuquerque, 1959, p.40)
De acordo com Melvin A. Gravitz (2004), Charcot considerou o hipnotismo
como sendo uma modificação fisiológica do sistema nervoso, artificialmente induzida
e a qual só podia ser observada em pacientes histéricas. Assinalou três fases
características: a catalepsia, a letargia e o sonambulismo. Como relatam Chertok e
Stengers (1990), o interesse de Charcot pela hipnose era inseparável do método
anátomo-clinico e da identificação das alterações anatômicas passíveis de explicar
as doenças nervosas orgânicas. No entanto, tais estudos propiciaram que as
hipóteses de simulação, as quais se levantavam como suspeita de fraude ao se
analisar o fenômeno, fossem excluídas do julgamento e os incrédulos acabassem
precisando confessar a real evidencia do fenômeno.
Segundo Erickson, Hershman e Secter (1998), os experimentos de Charcot
eram conduzidos principalmente com três pacientes que eram histéricos. Ele
retomou a teoria de mesmer sobre o magnetismo animal e uma grande controvérsia
surgiu entre suas teorias e a escola teórica de Nancy.
Os postulados teóricos de Charcot tiveram uma repercussão muito importante
em relação aos da Escola de Nancy, pois uma dessas posições sendo considerada
correta, naturalmente implicava na invalidade da outra. A teoria de Charcot tinha
uma base somática para explicar o hipnotismo, enquanto a Escola de Nancy,
subsidiada por Ambroise Auguste Liébeault e Henri Bernheim, se baseava na
sugestão (Faria, 1979; Albuquerque, 1959). Como relata Faria (1979), Liébeault
reuniu informações desde Mesmer a Braid e permaneceu por mais de vinte anos
estudando e praticando seu trabalho hipnótico. Informa que Bernheim também se
voltou para tais estudos devido a um fato clínico que o deixou bastante interessado.
Um doente que sofria de ciática rebelde há seis anos foi procurá-lo e empreendeu-se
em um tratamento que se estendeu por seis meses e onde Bernheim já havia
16
esgotado todos seus recursos terapêuticos. Ainda em busca de melhora, o paciente
foi consultar com Liébeault. No dia seguinte, apresentou-se a Bernheim curado. Tal
acontecimento bastou para que Bernheim viesse a se interar dos métodos de
Liébeault e tornar-se seu discípulo e companheiro.
A escola de Nancy desenvolveu novas teorias a respeito da hipnose, tendo
como ponto de vista central a sugestão e seus efeitos na obtenção de resultados
terapêuticos.
Se para os experimentadores da Salpêtrière o hipnotismo era uma nevrose
peculiar aos histéricos e com três fases nítidas e características, para os de
Nancy nem o hipnotismo é uma nevrose, nem é peculiar aos histéricos, nem
apresenta as três fases tão miudamente descritas por Charcot. (Medeiros e
Albuquerque, 1959, p.51)
Segundo Faria (1979), os postulados de Nancy defendiam que em
determinados estados fisiológicos acontece uma absoluta inércia intelectual,
semelhante a um esvaziamento cerebral de idéias próprias. Acreditavam que nesta
situação, torna-se possível depositar em tais mentes uma idéia planejada que logo
ganha forças irresistíveis, agindo de maneira impetuosa. Este estado, provocado
artificialmente, constitui o hipnotismo que, no dizer dos estudiosos de Nancy,
aproxima-se mais do sono normal do que qualquer estado patológico. Entendiam
como sugestão o ato pelo qual se faz aceitar no cérebro de outrem uma idéia
qualquer (Faria, 1979).
17
CAPÍTULO II – FREUD E A HIPNOSE
Em seu estudo autobiográfico, Freud (1924) relata que em 1885 foi
condecorado com uma bolsa de estudos que o possibilitou empreender uma viajem
a Paris e tornar-se aluno na Salpêrtrière. Nesta ocasião, o que mais lhe
impressionou ao entrar em contato com os estudos de Charcot foram as últimas
investigações acerca da histeria.
Ele provara, por exemplo, a autenticidade das manifestações histéricas e de
sua obediência a leis, a ocorrência freqüente de histeria em homens, a
produção de paralisias e contraturas histéricas por sugestão hipnótica e o
fato de que tais produtos artificiais revelam, até em seus menores detalhes,
as mesmas características que os acessos espontâneos, que eram muitas
vezes provocados traumaticamente. (Freud, 1924, p.20)
De acordo com Chertok e Stengers (1990), foi com Charcot que Freud
aprendeu a distinguir os distúrbios orgânicos ligados a uma afecção nervosa dos
distúrbios histéricos. Esse ensinamento associou, de maneira imediata e operatória,
a hipnose e a histeria. Relatam que Charcot recorrera à hipnose para demonstrar
que as paralisias histéricas não eram determinadas por uma lesão orgânica e,
através de demonstrações experimentais, conseguiu provar que tais paralisias eram
o resultado de representações psicogênicas. No entanto, não contemplou a idéia de
utilizar a hipnose em um contexto terapêutico, desfazendo sintomas que não foram
primeiramente provocado de maneira artificial. Ainda de acordo com Chertok e
Stengers (1990), Charcot colocou Freud frente ao mesmo tipo de problema com que
se tinham tido que confrontar os membros da comissão que analisaram o trabalho
de Deslon no tocante à crise mesmeriana: efeitos inegáveis que não podiam ser
relacionados com nenhuma causa racionalmente legítima. Não havia nenhuma lesão
orgânica, da mesma forma que não existia um fluido magnético. No entanto, as
causas psicológicas não serviram para Freud como pretexto para afastar o
fenômeno de seu interesse. Muito pelo contrário, a noção de causa psicológica foi
redefinida e estudada de forma a romper com a causalidade anatômica.
Freud (1924) relata que, mesmo antes de se dirigir a Paris, Breuer já o havia
comunicado sobre um caso de histeria que, em torno de 1880 e 1882, o permitira
penetrar profundamente na acusação e no significado dos sintomas histéricos.
Informa que a paciente era uma jovem de educação e dons incomuns e adoecera
18
enquanto cuidava de seu estimado pai. Ela apresentou um quadro variado de
paralisias e contraturas, inibições e estados de confusão mental. Ainda de acordo
com as informações de Freud (1924), uma observação casual revelou a Breuer que
sua paciente poderia ser aliviada desses estados nebulosos de consciência se fosse
induzida a expressar em palavras a fantasia emotiva pela qual se achava no
momento dominada. Tendo em vista esta descoberta, ele chegou a um novo método
de tratamento. Levava a paciente a um estado de hipnose profunda e a pedia para
lhe dizer o que era que lhe oprimia a mente. Depois de os ataques de confusão
depressiva terem sido separados dessa maneira, utilizou-se do mesmo processo
para acabar com as inibições e distúrbios físicos. Relata que nos estados de vigília a
jovem apresentava-se incapaz de descrever mais do que outros pacientes como
seus sintomas haviam surgido, da mesma forma que não tinha como descobrir
ligação alguma entre eles e quaisquer experiências de sua vida. No entanto, sob
hipnose ela conseguia descobrir a ligação que faltava. Segundo Freud (1924), o fato
de os sintomas estarem voltados à situações comovedoras que experimentara
enquanto cuidava do pai, possibilitou verificar-se que esses sintomas tinham um
significado e eram resíduos ou reminiscências daquelas situações emocionais.
Observou-se que na maioria dos casos onde houve algum pensamento ou impulso
que ela suprimiu enquanto encontrava-se próxima ao enfermo, em seu lugar, como
substituto, posteriormente surgia o sintoma. Ele relata que quando sob hipnose e de
forma alucinatória a paciente recordava de uma situação desse tipo, levando até a
sua conclusão o ato mental que havia originalmente suprimido, o sintoma era
eliminado de forma permanente. Através desse processo Breuer conseguiu, após
longos e penosos esforços, aliviar a paciente de seus sintomas. Referiu-se ao
método como catártico e explicou que sua finalidade terapêutica era a de
proporcionar que a cota de afeto utilizada para manter o sintoma fosse dirigida para
uma trilha normal, ao longo da qual pudesse obter descarga. Tal fato deixou para
Freud uma noção implícita de uma atividade psíquica inconsciente que tinha uma
ligação estreita com a histeria. Mais tarde, depois de suas experiências na
Salpétriere e em Nancy, e de seus extensos estudos sobre a histeria, tal noção
pode ser melhor esquadrinhada.
Segundo Freud (1924), no intuito de aperfeiçoar sua técnica hipnótica, no
verão de 1889, empreendeu uma viagem a Nancy. Ao observar os experimentos de
Bernheim, teve a profunda impressão da possibilidade de haver poderosos
19
processos mentais que permaneciam escondidos da consciência dos homens. Ainda
de acordo com seu estudo autobiográfico, de volta a Viena e com uma grande
experiência na utilização da hipnose, ele pode lançar maior compreensão sobre a
origem dos sintomas histéricos. Relata ter dado maior ênfase à significação da vida
das emoções e à importância de estabelecer distinção entre os atos mentais
conscientes e os inconscientes. Com a hipótese de que um sintoma surge através
do represamento de um afeto e classificando o sintoma como o produto da
transformação de uma quantidade de energia que, de outra maneira, em uma
situação não patológica, teria sido empregada de forma diferente, introduziu uma
forma de compreensão considerando no funcionamento psíquico fatores dinâmicos e
econômicos.
Ao falar sobre a sintomatologia da histeria e suas formas de tratamento,
Freud (1888) aponta a utilização da hipnose como um recurso para tal fim. Relata
que “o tratamento direto consiste na remoção das fontes psíquicas que estimulam os
sintomas histéricos, e isto se torna compreensível se buscarmos as causas da
histeria na vida ideativa inconsciente.” (Freud, 1888, p.93). Este método se baseia
em dar ao paciente sob hipnose uma sugestão que contém a eliminação do distúrbio
em causa.
[...] curamos uma tussis nervosa hysterica fazendo pressão sobre a laringe
do paciente hipnotizado e assegurando-lhe que foi removido o estímulo que
o faz tossir, ou curamos uma paralisia histérica do braço compelindo o
paciente, sob hipnose, a mover o membro paralisado, parte por parte.
(Freud, 1888, p.93)
Acreditava que o efeito se tornaria maior se colocasse em prática o método
desenvolvido por Breuer, fazendo o paciente, sob hipnose, remontar à pré-história
psíquica da doença e compelindo-o a reconhecer a ocasião psíquica em que se
originou o distúrbio. Freud (1893) entendia como reação toda classe de reflexos
voluntários e involuntários, como por exemplo as lágrimas ou até atos de vingança
ou de fala, pelos quais os afetos são descarregados. Relata que quando essa
reação acontece em grau suficiente, como resultado, grande parte do afeto
desaparece. Porem, quando a reação é reprimida o afeto permanece vinculado à
lembrança, dando margens ao desenvolvimento de sintomas. Fazendo, sob hipnose,
o paciente a remontar à história psíquica que estava relacionada ao sintoma e que
estava inteiramente ausente de suas lembranças em estado psíquico normal, lhes
20
proporcionava, naquele momento, uma oportunidade de reação mais adequada e
suficiente para tal vivência. Julgava ser essa maneira a mais apropriada para tratar a
histeria justamente pelo fato de imitar o mecanismo de sua origem e possibilitar uma
retificação do referido distúrbio, a qual chamava de ab-reação. Um exemplo em que
Freud utilizou desse método de tratamento foi o caso da Sra. Emmy Von N. (18931895). Nele, através do processo de ab-reação e da sugestão direta, lutou contra as
representações patológicas da paciente, utilizando-se de proibições e apresentando
toda espécie de representações opostas. No entanto, não soube dizer o quanto do
êxito terapêutico deveu-se à transformação do afeto por ab-reação e à eliminação do
sintoma por sugestão direta. Constatou que, de modo geral, o sucesso terapêutico
era considerável, mas não duradouro. A tendência da paciente de adoecer de forma
semelhante sob o impacto de novos traumas não foi afastada.
O método em que Freud utilizava a hipnose apresentou-se limitado e, tendo
em vista as dificuldades que lhe foram apresentadas, procurou desenvolver novos
recursos para atingir melhores resultados terapêuticos e não ficar restrito ao
emprego do hipnotismo. “O procedimento catártico, como Breuer utilizava, exigia
previamente a hipnose profunda do doente, pois só no estado hipnótico é que se
tinha o conhecimento das ligações patogênicas que em condições normais lhe
escapavam” (Freud, 1910, p.38). No entanto, apesar dos esforços, não conseguia
hipnotizar todos os pacientes. Freud (1917) relata que para o médico, em longo
prazo, o método se tornava monótono. Em cada caso, procedia da mesma maneira,
com o mesmo ritual, proibindo aos mais variados sintomas existirem, não sendo
capaz de aprender nada de seu sentido e significado. Dizia ser um trabalho braçal e
não uma atividade científica; o procedimento não era confiável em nenhum aspecto
e não podia ser utilizado em todos os pacientes; conseguia-se bons resultados com
uns, bem pouco com outros e não se sabia por quê. Julgava ser a falta de
permanência dos êxitos algo marcante pois, passado pouco tempo após o
tratamento, recebia notícias de que a antiga enfermidade do paciente havia
retornado ou, em seu lugar, tinha-se instaurado uma nova doença.
[...] até mesmo os resultados mais brilhantes estavam sujeitos a ser de
súbito eliminados, se minha relação pessoal com o paciente viesse a ser
perturbada. Era verdade que seriam restabelecidos se uma reconciliação
pudesse ser efetuada, mas tal ocorrência demonstrou que a relação
emocional pessoal entre o médico e o paciente era, afinal de contas, mais
21
forte que todo o processo catártico, e foi precisamente esse fator que
escapava a todos os esforços de controle.(Freud, 1924, p.33)
Para aqueles casos em que se atingia um êxito completo e permanente da
terapia, as condições que determinavam tal situação permaneciam desconhecidas.
Também outros infortúnios contribuíram para que Freud abandonasse a hipnose.
Como relata em seu estudo autobiográfico (1924), vinha tendo bons resultados ao
utilizar o hipnotismo com uma de suas pacientes. Em certa ocasião, ao despertar,
ela lançou os braços em torno de seu pescoço. Ele não atribuiu este fato aos seus
próprios atrativos pessoais, e sim, supôs-se estar diante da natureza de um
misterioso elemento que se achava em ação por trás do hipnotismo. A partir daquela
ocasião entendeu-se que a única maneira que se tinha para excluir ou isolar esse
elemento, seria abandonar o hipnotismo.
Freud (1924) relata que deixou de utilizar a hipnose em seus atendimentos,
passando inicialmente a empregar uma técnica que, quando esteve presente em
Nancy observou Bernheim a utilizar. Informa que em seu procedimento usual, tanto
para efetuar as sugestões diretas quanto para que fosse possível o paciente ter
acesso aos motivos e conteúdos latentes de seus sintomas, era de praxe colocá-los
sobre condições hipnóticas. Como era do conhecimento de Freud, sem o uso da
hipnose, chegava a um ponto em que o paciente afirmava não saber mais nada
sobre seus sintomas. No entanto, ele assegurava ao mesmo que, “no fundo”, ele
sabia das origens da enfermidade e que só precisava dizer. Ao interrogar o paciente
auxiliava-o com um toque na testa e, desta forma pode, prescindindo do hipnotismo,
conseguir que os doentes revelassem tudo quanto fosse preciso para estabelecer as
ligações existentes entre as cenas patogênicas esquecidas e os seus sintomas
(Freud, 1924). Freud (1924) relata que desta maneira, confirmou que o material
esquecido não se havia perdido, e sim, ainda estava em poder do doente. Este fato
o levou a
concluir que alguma força os detinha, obrigando-os a permanecer
inconsciente. Essa descoberta acabou por originar a técnica de associação livre que,
posteriormente foi melhor desenvolvida.
O contexto em que Freud optou por abandonar o uso da hipnose foi marcado
por alguns acontecimentos que possibilitaram uma transformação na forma de
interpretar a patologia e o conjunto dos elementos que o haviam norteado até então.
De acordo com Chertok e Stengers (1990), com o abandono da “teoria da sedução”
entendeu-se que os traumas sexuais poderiam ser oriundos de fantasias que
22
permitiam às crianças se defenderem das ameaças suscitadas por suas próprias
pulsões. Se a origem da patologia não era mais centrada em um trauma, num
acontecimento real, então ela remetia-se não apenas aos acontecimentos, mas aos
traços intrínsecos de toda a história humana.
À ‘reminiscência’ de que sofriam unicamente os histéricos veio suceder-se,
a partir de então, um fenômeno a quem ninguém podia escapar: o “retorno
do recalcado”, sob a forma de sintomas, bem como de sonhos e atos falhos,
e do conjunto do material a ser suscitado pela técnica da associação livre,
desde então colocada no centro da análise. A verdade a ser buscada já não
era de ordem factual, mas antropológica. (Chertok e Stengers, 1990, p.61)
No entendimento de Chertok e Stengers (1990), duas importantes questões
condenaram a utilização da hipnose: A primeira, é o perigo que a transferência
descontrolada representava para a pessoa do analista, evidenciada na paciente que
acorda do transe abraçando Freud. A segunda, é que a análise já não podia ter
como finalidade reativar a lembrança de um acontecimento real, no intuito de
esvaziá-la de seu afeto, e sim levar a uma conscientização dos conflitos psíquicos
que explicavam, sobretudo, a possibilidade dessas lembranças. A lembrança era
apenas o caminho para uma verdade cuja somente a análise dos conflitos psíquicos
que investissem a cena analítica poderia fazer vir à tona. O tratamento não mais
consistia em fazer ressurgir uma verdade passada, mas em enfrentar um problema
que reaparecia na cena analítica como algo de real e atual.
Em torno de 1917, depois de Freud já ter melhor desenvolvido seu
entendimento
psicanalítico,
esboçou
nas
Conferências
Introdutórias
sobre
Psicanálise seu ponto de vista em relação à diferença entre o tratamento hipnótico e
o tratamento psicanalítico.
O tratamento hipnótico procura encobrir e dissimular algo existente na vida
mental; o tratamento analítico visa a expor e eliminar algo. O primeiro age
como cosmético, o segundo, como cirurgia. O primeiro utiliza-se da
sugestão, a fim de proibir os sintomas: fortalece as repressões, mas afora
isso deixa inalterados todos os processos que levaram à formação dos
sintomas. O tratamento analítico faz seu impacto mais retrospectivamente,
em direção às raízes, onde estão os conflitos que originaram os sintomas, e
utiliza a sugestão a fim de modificar o resultado desses conflitos. (Freud,
1917, p.451)
Freud (1917) relata que o tratamento hipnótico, utilizando-se de sugestões
diretas, não permitia que os pacientes re-significassem os conteúdos conflitantes
23
que eram as bases causadoras dos sintomas. Informa que quando se empregava
uma sugestão no intuito de proibir ou dissimular um sintoma, talvez até que a
enfermidade fosse suprimida momentaneamente, mas não existia nenhuma garantia
que ela não voltasse a se manifestar de outras formas. A grande diferença que o
tratamento analítico proporcionava era a superação das resistências que se
apresentavam ao decorrer da terapia, propiciando uma re-significação de conteúdos
psíquicos que estavam em conflito e que eram responsáveis pela estruturação dos
sintomas. Como reflexo, a possibilidade do paciente adoecer novamente pela
mesma causa já não era mais cogitada. (Freud, 1917)
De acordo com Edelwaiss (1994), para Freud, não havia uma clara distinção
entre sugestão e hipnose. Relata que levando-se em consideração a forma na qual
ele a praticava, baseado nos métodos de seus mestres franceses, foi um ganho tê-la
abandonado e dado lugar ao desenvolvimento da técnica de associação livre. Diz
ainda que, naquele tempo, Freud estava de mãos vazias perante a hipnose e,
atualmente, o próprio desenvolvimento da psicanálise fornece ao terapeuta mais
recursos para novos empreendimentos.
[...] para Freud, tratamento hipnótico significava o uso da hipnose com a
sugestão concomitante, obrigatória, de tentar fazer os sintomas
desaparecerem, ou seja, levar o cliente a não mais sentir o que, até a
pouco, indiscutivelmente sentia. Um dos grandes equívocos de Freud foi ter
visto na hipnose, pura e simplesmente, produto da sugestão, no sentido de
Liébault, que via, nesta, a própria causa dos fenômenos hipnóticos, pois
eram por ela induzidos, e eram empregados na concomitância da sugestão
proibitória como forma de eliminar os sintomas. (Edelweiss, 1994, p.91)
Segundo Edelweiss (1994), Freud abandonou a hipnose em sua clinica e
nunca mais voltou a utilizá-la, a não ser para alguns experimentos. Contudo, ele
abandonou a utilização da hipnose como forma de tratamento, segundo aos moldes
que ele conhecia e praticava. A hipnose da qual ele se defendeu e repudiou era
apenas um aspecto de um fenômeno complexo e ainda muito desconhecido,
entretanto, ele a pôs a baixo por inteira.
24
CAPÍTULO III – CIÊNCIA E HIPNOSE
De acordo com Edelweiss (1994), Freud ao excluir a hipnose de sua prática
possibilitou um certo desdém sobre as pesquisas nesse ramo, pois o peso de sua
autoridade, sendo o responsável pela a admirável arquitetura da psicanálise, ostenta
certa fidelidade a tal atitude. Para muitos pesquisadores e terapeutas, foi cômodo
apelar para o fato de Freud ter abandonado a prática hipnótica, julgando que as
possibilidades de trabalhar o tema estivessem veladas. A falta de informação sobre
os atuais entendimentos sobre o tema muitas vezes funciona como uma bola de
neve, pois ao se transmitir o conhecimento baseando-se em concepções antigas,
seja em um meio acadêmico ou em outras circunstancias, reforça-se cada vez mais
um caminho voltado para
a acomodação e estagnação do conhecimento, não
fazendo por onde estimular a busca das várias contribuições que já se fizeram
durante o século XX e que abriram grandes perspectivas de pesquisas. Em
acréscimo, um outro fator que contribuiu para a vulgarização e descrédito da hipnose
foram as demonstrações públicas de fins espetaculares que, de forma corriqueira,
colocavam os indivíduos em estado de transe a desempenhar atividades que por fim
os expunham ao ridículo. Essa prática possibilitou o surgimento de vários estigmas e
falsas idéias sobre a natureza do fenômeno hipnótico. (Edelweiss, 1994)
A hipnose adquiriu uma fama de estar supostamente superada e de se
constituir como um fenômeno pouco sério e banal, onde a insignificância do tema
não valia a perda de tempo para quem se enveredasse por estudá-la (Edelweiss,
1994). Vários fatores em consonância foram e ainda são responsáveis por
desestimular as pesquisas científicas que tenham a hipnose como objeto de estudo.
Idéias conturbadas e estigmatizadas sobre seus fenômenos são reflexos de uma
trajetória histórica, onde a falta de clareza sobre sua real natureza se constituiu
como uma ameaça para a ordem científica, política e moral da sociedade. Neste
ponto de vista é natural que o estudo sobre a hipnose tenha caído sob um
desprestígio e desinteresse comum.
Segundo Chertok e Stengers (1990), durante a Primeira Guerra Mundial a
hipnose foi utilizada no tratamento das neuroses de guerra. “[...] o ressurgimento do
interesse despertado por essa técnica levara Freud a admitir que talvez se pudesse
reserva-lhe um lugar no futuro.” (Chertok e Stengers, 1990, p.228). A mesma
25
tendência aconteceu nos Estados Unidos, depois da Segunda Guerra Mundial, onde
a utilização da hipnose por psicanalistas não se deparou com grandes obstáculos
institucionais.
Atualmente, seu estudo tem crescido de modo considerável e sua aplicação
clínica tomou grande impulso, principalmente, no campo das psicoterapias e no
terreno da psicossomática (Ferreira, 2006). Como relata Ferreira (2006), o University
College de Londres que havia banido a hipnose de suas dependências em 1838,
está oferecendo desde 1993 um curso extensivo de dois anos – Diploma ou MSc in
Clinical/applied hypnosis. O autor informa que um crescente aumento das teses de
doutoramento relacionadas à hipnose vem acontecendo de forma significativa em
vários países, sendo que nos Estados Unidos cresceu de três na década de 1920
para 298 na década de 1980 (tabela 1). Apresenta também a distribuição das teses
nas áreas mais freqüentes de estudo (tabela 2).
Tabela 1
Teses de Doutoramento sobre
Hipnose nos Estados Unidos
Período
1920 – 1929
1930 – 1939
1940 – 1949
1950 – 1959
1960 – 1969
1970 – 1979
1980 – 1989
Quantidade
3
6
2
16
75
190
298
Fonte: Ferreira (2006)
Tabela 2
Área das Teses - 1980 – 1989
Estados Unidos
Área
Quantidade
Aplicações clínicas
48,6% (145)
Natureza
da
Hipnose
Técnicas usadas
14,7% (44)
Ferramenta
pesquisa
Miscelânea
de
14,7% (44)
11,4% (34)
10,4% (31)
Fonte: Ferreira (2006)
Com esse crescente número de pesquisas sobre a hipnose é natural que hoje
exista uma grande distância das concepções e conhecimentos de outrora, relativas
ao início do século XX, quando havia pouco tempo que o fenômeno hipnótico tinha
sido considerado digno de ser objeto de pesquisa científica. Muitas das idéias que
davam margens a um pensamento estigmatizado e floreado de mitos, já não têm
espaço em meio à diversidade de estudos que, até então, foram e estão sendo hoje
desenvolvidos.
O uso da hipnose em procedimentos médicos para auxiliar a prática cirúrgica
através do fenômeno de analgesia é algo que já foi praticado por alguns
26
pesquisadores, como o já citado James Esdaile. No entanto, esses trabalhos não
tiveram muito crédito perante a comunidade cientifica justamente por faltarem
recursos comprobatórios. Com a capacitação da tecnologia, atualmente os
pesquisadores possuem recursos que proporcionam um estudo mais apurado
acerca do efeito da hipnose no corpo humano. Um recente artigo divulgado na
revista cientifica Seed (2006), informa que a hipnose está sendo atualmente objeto
de várias pesquisas experimentais que apontam, através de testes neurológicos, as
alterações cerebrais que ela causa. O autor, Emily Anthes (2006), cita um
experimento que demonstra que a sugestão hipnótica pode produzir mudanças no
centro de processamento de dor no cérebro. Relata que quando as pessoas estão
em estado hipnótico as áreas cerebrais que processam a dor ficam menos ativas,
fornecendo evidencias sobre as modificações provenientes do estado hipnótico.
Estudos eletroencefalográficos, testes de reflexos, pulso e pressão sanguínea
revelam que a hipnose não é um estado de sono, e sim, um estado alterado de
consciência (Erickson, Hershman e Secter, 1998).
O conceito que caracteriza a natureza da hipnose não é unânime, muito pelo
contrário, é algo difícil de se conceitualizar teoricamente, pois existem várias
concepções e muitas controvérsias. O artigo da revista Seed (2006) informa que,
apesar da exata definição do conceito de hipnose ainda estar em discussão, é de
consenso dos pesquisadores voltados para esse tema que a hipnose envolve
intensa concentração, relaxamento e sugestibilidade aumentada. Contudo, mais
importante do que julgar qual dos conceitos é o mais adequado para definir o
fenômeno hipnótico é perceber que, com os atuais esclarecimentos acerca de sua
natureza, o problema de comprovar a veracidade e a existência do fenômeno já não
é mais, como no final do século XIX, a questão principal a ser discutida. Mesmo
antes de se ter consciência ou comprovações cientificas da eficácia e da existência
de seus fenômenos, a hipnose vem sendo utilizada com fins terapêuticos de
diversas maneiras. Um exemplo, como já exposto no primeiro capítulo, são as
sessões de magnetismo de Mesmer ou também o curandeiro Greatrakes, que
julgava ter poderes divinos capazes de curar as pessoas. No entanto, no âmbito
científico, até quase o fim do século XIX o que se passou foi uma tentativa de se
reconhecer os fenômenos hipnóticos como um fenômeno real, constituinte de
particularidades próprias. Depois que sua existência foi reconhecida pela
comunidade acadêmica, devido a estudos que comprovaram seus efeitos psíquicos
27
e somáticos, o interesse científico ficou também voltado para seus possíveis usos
terapêuticos.
A hipnose tem sido utilizada em psicoterapias de forma bem diferente das que
eram utilizadas no início do século XX. Milton H. Erickson (1902-1980) foi um clínico
inovador no campo da hipnose e da psicoterapia, seu legado abriu grandes
perspectivas de estudo nessas áreas. A forma como ele utilizava a hipnose era
extremamente diferente da qual Bernheim, Charcot, Freud e outros estudiosos
utilizaram em suas clínicas. Segundo Bauer (1998) e Zeig (1985), Erickson não
usava os métodos formais de indução ao transe hipnótico e nem aplicava sugestões
diretas sob um paciente passivo, como se já soubesse o que é importante para
possibilitar a recuperação dessa pessoa . Seu trabalho consistia na busca de
proporcionar ao sujeito que, através de seus próprios recursos, alcançasse a melhor
maneira de resolver seus conflitos. Para isso, utilizava o estado de transe hipnótico
de uma maneira singular, almejando as particularidades que acreditava serem
características deste estado. Rosen (1994) relata que, de acordo com a concepção
de Erickson, o estado de transe possibilita maior probabilidade de se produzirem
aprendizagens e apresenta mais disponibilidade para a ocorrência de mudanças.
Nele, os pacientes ficam mais susceptíveis a compreender de maneira intuitiva o
significado dos sonhos, símbolos e outras manifestações inconscientes.
A indução e a manutenção do transe servem para promover um estado
psicológico especial, no qual os pacientes podem reassociar e reconhecer
suas complexidades interiores e utilizar suas próprias capacidades em
manejá-las de acordo com sua experiência de vida. (Milton H. Erickson,
apud Bauer, 1998, p.64)
De acordo com Haley (1991), a abordagem de Erickson foi diretamente
desenvolvida da orientação hipnótica. Ele utilizava a hipnose de maneira informal,
indireta e implícita nas comunicações exercidas com os clientes. Através da sua
experiência com o fenômeno, ele pode perceber o quão sutil e complexo é o ato de
se comunicar. A hipnose que é empregada em sua prática é entendida como um tipo
especial de comunicação. Ele considerou que a comunicação se estabelece em
vários níveis, tanto consciente quanto inconsciente (Bauer, 1998), e redefiniu o
28
transe hipnótico como um processo entre duas pessoas ou como uma maneira pela
qual as pessoas se comunicam umas com as outras (Haley, 1991).
Mesmo quando formalmente não utiliza a hipnose, seu estilo de terapia se
baseia tanto na orientação hipnótica que o que quer que faça parece ter
origem nessa arte. Levou para a terapia uma gama extraordinária de
técnicas hipnóticas e, para a hipnose, uma expansão de idéias que a
ampliaram para muito além de um ritual de um estilo especial de
comunicação.(Haley, 1991, p.21)
Erickson acreditava que o estado de transe é um estado psicobiológico do
homem e conceituava que situações onde a atenção e a percepção estão
focalizadas e concentradas em uma idéia, como em um momento de fantasia,
distração ou preocupação que absorva a atenção, são consideradas como um
estado hipnótico (Rosen, 1994). De acordo com Erickson, Hershman e Secter
(1998), a hipnose é uma manifestação comum que está presente diariamente em
nossa vidas, mesmo que não tenhamos consciência desse fato. Eles citam o
exemplo de indivíduos que ficam tão absorvidos ao escutar uma sinfonia que, por
determinado momento, entram em um estado hipnótico e se desligam para o que
está acontecendo ao seu redor. Explicam que quando uma pessoa permanece em
um estado focado de concentração, como no caso do indivíduo que está ouvindo a
sinfonia, pode-se dizer que ele está experienciando um estado de transe hipnótico.
Nesse momento ele pode não estar sentindo seus pés dentro do calçado, ou até
mesmo o apoio da cadeira em suas costas. No entanto, a capacidade de perceber
esses detalhes estava presente, apenas não estava consciente no momento
justamente por não atrair a sua atenção. Assim como em um estado normal de
consciência, em hipnose, pode-se manter um certo relacionamento com o exterior. O
indivíduo não precisa ficar inconsciente, ele continua tendo a capacidade de ouvir,
ver, pensar e compreender as coisas, porem sua atenção fica mais focada em
determinada idéia (Erickson, Hershman e Secter, 1998).
Que a hipnose hoje seja reconhecida cientificamente é algo que variados
estudos e pesquisas já se encarregaram de certificar. Através do legado de Erickson
puderam-se abrir novas perspectivas a respeito do uso da hipnose, tanto em
psicoterapias quanto na área médica. Conforme já explicitado, a hipnose é utilizada
por ele de forma muito diferente das que outros terapeutas utilizaram até então. Seja
através de diferentes formas de indução, seja na comunicação hipnótica, sua forma
de terapia baseia-se de tal forma na orientação hipnótica que algumas questões
29
fazem-se necessárias: como avaliar cientificamente a utilização ou o manejo da
hipnose em psicoterapias? A forma de se conceber e utilizar a hipnose tal qual foi
legada
por
Erickson
pode
ser
compreendida
separadamente
dos
outros
pressupostos e técnicas pertencentes à sua forma de psicoterapia? Se não, como
situar a obra de Erickson no âmbito científico?
Neubern (2002), doutorando em Psicologia pela Universidade de Brasília
(UnB), em seu artigo intitulado “Milton H. Erickson e o cavalo de tróia: a terapia não
convencional no cenário da crise dos paradigmas em psicologia clinica”, procura
situar a obra de Erickson frente ao paradigma científico dominante da psicologia
clínica. O autor aponta a importância dessa questão justamente por ela tocar em
pontos fundamentais sobre a própria construção do conhecimento.Segundo Neubern
(2002), a ciência se fundamenta a partir de alguns parâmetros que coordenam e
possibilitam a construção do conhecimento e recorre à utilização de métodos
justamente por visar o acesso à leis universais que regem os fenômenos. Na
tentativa de buscar maneiras precisas e confiáveis de se compreender o real,
diversas áreas das ciências tiveram como conseqüência uma estruturação teórica
tendente a conceber realidades únicas, exclusivas e universais. Neubern (2002)
relata que a Psicologia, constituindo-se como ciência, também se enveredou por
esse caminho ao desenvolver os seus sistemas teóricos.
[...] as categorias generalistas sobrepuseram-se quase que por completo
as noções singulares, dissolvendo os sujeitos cotidianos em estruturas
universais inconscientes, comportamentais ou sociais. As conseqüências
dessa primazia generalista vão desde o paradoxo do indivíduo universal
até a constituição da psicologia como uma ciência muito mais voltada para
o pólo da regulação do que da emancipação. (Neuber, 2002, p.365)
Em meio a esse contexto o autor explicita a situação que dá título a sua tese:
Tal como os gregos receberam o cavalo de Tróia sem saber sobre a surpresa que
continha em seu interior, a obra de Erickson é recebida pelos psicólogos em meio a
grande admiração, e isso acontece sem que eles percebam os perigos que ela
oferece às teorias alicerçadas aos moldes do paradigma científico dominante.
Segundo Neuber (2002), os pressupostos teóricos de Erickson comportam um
ataque contundente contra a base universal e generalista dessas abordagens, não
30
podendo ser enquadrada na ótica das perspectivas tradicionais justamente por
resgatar de forma radical a noção de singularidade.
Tal noção em termos epistemológicos, implica em considerar os indivíduos
como seres únicos e inéditos que, mesmo possuindo determinações gerais
(como da espécie, da família, da sociedade, dentre outras), constituem-se
em qualidades emergentes que não se esgotam nessas determinações nem
se repetem nas construções sociais. Suas qualidades ativa, consciente e
interativa permitem-lhes serem considerados na condição de sujeito que
retroage sobre as próprias determinações que o antecedem. (Neuber, 2002,
p.365)
O autor esclarece que frente a essa noção de singularidade, torna-se inviável
a construção de teorias com alicerce em conteúdos universais, fazendo-se
necessário que se constitua um pensamento teórico baseado em outros
pressupostos epistemológicos, em que a validade do pensamento teórico fique
submetida em função de momentos singulares. Diferente das tendências
deterministas, esse ponto de vista se caracteriza por conceber a realidade através
de sua complexidade constitucional, sendo sujeita a constantes transformações.
Tal como pode ser notado em diversos momentos do trabalho de Erickson a
geração de pensamento teórico adquire o caráter de construção, marcada
pela história, cultural e subjetivamente, ao invés de um corpo transcendente
e desvencilhado de seu sistema sócio-cultural; uma construção que não
permite uma relação de controle e manipulação deliberada dos objetos, mas
que considera, admira e contempla o entrelaçamento complexo de
dimensões próprio aos mesmos. (Neubern, 2002, p.366)
Neubern (2002) esclarece que essa abordagem de pensamento não vai de
encontro com concepções que caracterizam as teorias como corpos impessoais,
independente da relação com a subjetividade social e individual que as antecede e
as acompanha. No entanto, informa que essa divergência teórica não se obriga a
desconsiderar as abordagens de perspectivas comum e coletiva de pensamento, e
sim, aponta uma necessidade de que a generalização aprenda a conviver com a
singularidade, a diferença e a criação próprias dos sujeitos. O autor ainda alerta que,
ao se buscar explicar as contribuições do legado de Erickson com base nos
esquemas teóricos já consagrados, é o mesmo que esgotar todo o potencial criativo
de reflexão, submetendo-o a formas teóricas e metodológicas não adequadas para
lhe dar com a problemática. Ele afirma que tal atitude é “um erro epistemológico,
social e político muito comum nas comunidades científicas, particularmente da
31
psicologia: a de buscar travestir propostas novas com roupagens antigas” (Neubern,
2002, p.370)
Neubern (2002) questiona o modelo hegemônico de ciência pelo qual a
psicologia tem se orientado e frisa a incompatibilidade epistemológica dessa
orientação frente às características do legado de Erickson. Como saída para tal
dilema, propõe uma alternativa diferente para se acolher a obra de Erickson dentro
dos parâmetros da ciência: julga ser necessário permitir que modos singulares de
fazer científico compareçam ao campo científico. Contudo, essa alternativa não
significa por um ponto final na questão. “As possíveis conseqüências desse
processo para o conhecimento são ainda muito obscuras, pois em uma transição de
paradigmas existem poucos fundamentos firmes e seguros para concebê-las.”
(Neubern, 2002, p.371)
32
CONCLUSÃO
Até que a hipnose fosse concebida e compreendida à maneira como é
atualmente, muitos estudos e pesquisas se fizeram necessários. Entretanto, mesmo
com alguns esclarecimentos que a tecnologia e as pesquisas puderam contribuir é
evidente que muitas questões ainda permanecem no escuro. Compreender a
hipnose, tanto em seus efeitos somáticos quanto também sobre o psiquismo, é uma
tarefa muito complexa que ainda permanece como um grande desafio para a
ciência. Mas isso também não significa que perante a essas dificuldades exista uma
impossibilidade de se trabalhar com ela. Edelweiss (1994) cita o exemplo da água
que, mesmo antes de ser descrita com os termos científicos atuais, não deixou de
ter, universalmente, usos múltiplos corretos, que se enriqueceram com o
desenvolvimento dos conhecimentos posteriores.
De acordo com a ultima edição do Jornal de Psicologia do Conselho Regional
de Psicologia de São Paulo (2006), o uso da hipnose como recurso auxiliar dos
psicólogos, em sua aplicação prática e no valor científico, ganhou o reconhecimento
não só do Conselho Federal de Psicologia como também da comunidade científica
internacional. O jornal ainda informa que de acordo com a professora e
coordenadora do Curso de Extensão de Hipnose Clínica da PUC-SP Isabel Cristina
Labate, a hipnose tem sido usada para alívio da dor, com a produção de anestesia
ou analgesia; em cirurgias e em diferentes áreas da clínica, notadamente em
obstetrícia; como tranqüilização para o alívio dos estados de ansiedade e
apreensão; para o controle de alguns hábitos, como o tabagismo; em situações na
qual a psicoterapia possa ser útil e experimentalmente em qualquer pesquisa, no
campo psicológico ou neurofisiológico.
Freud utilizava a hipnose como uma forma de terapia, aplicando as sugestões
aos sintomas sem se preocupar com os conteúdos conflitantes que davam corpo aos
mesmos. Diferente do uso que ele e seus mestres de Nancy fizeram da hipnose,
atualmente ela não é utilizada como forma de terapia. Hoje ela é compreendida
como um meio de facilitação da psicoterapia, como uma técnica auxiliar que é
empregada eventualmente e através de procedimentos especializados. A gama de
recursos para se entender e trabalhar com a hipnose hoje é muito mais ampla do
que naquele tempo. Os recursos tecnológicos, os diversos estudos já desenvolvidos
33
sobre o tema e também o próprio desenvolvimento da psicanálise, que na época em
que Freud utilizava a hipnose ainda estava em seus primórdios, possibilitam um
rumo diferente para sua utilização em psicoterapia. O aspecto tradicional da hipnose
como técnica passiva centralizada no médico não é mais tido como válido e, em seu
lugar, ela se desenvolve em uma experiência interpessoal e dinâmica, onde o
paciente participa de maneira ativa.
É interessante atentar para o contraste que existe entre as discursões
acadêmicas e a prática clínica da Hipnose. Atualmente existem alguns profissionais
da área de saúde como médicos, dentistas e psicólogos que a utilizam como técnica
auxiliar no processo de tratamento. Entretanto, do lado acadêmico, ainda que muitas
contribuições já se fizeram desde que Freud parou de utilizar a hipnose em seu
consultório, pouca atenção tem-se destinado a tal fato. Como reflexo, a
disponibilidade de materiais no Brasil a respeito do tema é pouca em relação à
quantidade de estudos já desenvolvidos internacionalmente (Ferreira, 2006). Pelo
que pude perceber ao acompanhar o caminho que se fez na tentativa de se
compreender a hipnose, ficou evidente que alguns fatores ligados à forma de se
fazer ciência e também ao contexto social e político da época em que ela foi
estudada tiveram suas parcelas de responsabilidade para direcionar o rumo de sua
trajetória. Acredito que a posição marginal que ela ocupa hoje perante o meio
acadêmico não é mais que um reflexo resultante de como ela veio sendo abordada
pela comunidade científica e pela sociedade.
Diante da atual conjuntura torna-se evidente a necessidade de que se
desenvolvam diálogos entre a hipnose e a ciência. O estudo desse tema ainda pode
trazer grandes contribuições para a Psicologia e para a ciência como um todo.
34
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35
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