PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS CURSO DE PSICOLOGIA Hipnose e ciência: um diálogo necessário Túlio Melo Machado de Oliveira Belo Horizonte 2006 2 Túlio Melo Machado de Oliveira Hipnose e ciência: um diálogo necessário Monografia apresentada ao curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, na disciplina Orientação de Monografia como requisito parcial para obtenção do título de graduação em Psicologia. Orientador: Prof. João Leite Belo Horizonte 2006 3 Dedico esse trabalho à minha família, quem me inspira e apóia. 4 RESUMO Esta pesquisa tem como objetivo discutir alguns estudos sobre como a hipnose tem sido compreendida e utilizada no âmbito científico, especialmente em psicologia clínica, incentivando a discussão acadêmica a respeito do tema. Para estes fins, são explorados alguns estudos que visam descrever como se deu a construção do conhecimento sobre a hipnose, procurando compreendê-la dentro de um contexto em que se considera a forma de se fazer ciência e a conjuntura social e política da época em que ela foi estudada. Atualmente, como a hipnose tem sido mais estudada pela ciência, conseqüentemente, novas compreensões e novas formas de utilização prática estão se fazendo. Alguns estudos são apresentados no intuito de se ilustrar esse contexto. Os procedimentos metodológicos utilizados para a construção do trabalho foram pesquisas bibliográficas. Palavras Chave: Hipnose, Psicologia e Ciência, Sugestão. 5 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO.................................................................................................06 2 CAPÍTULO I - A HIPNOSE COMO FENÔMENO LEGÍTIMO..........................08 3 CAPÍTULO II - FREUD E A HIPNOSE.............................................................17 4 CAPÌTULO III - CIÊNCIA E HIPNOSE.............................................................24 5 CONCLUSÃO...................................................................................................32 6 REFERÊNCIAS................................................................................................34 6 INTRODUÇÃO É natural que, no mundo científico, trabalhos e teorias sejam aproveitadas a fim de se constituírem novas compreensões e sejam utilizadas para o desenvolvimento de novos trabalhos. Da mesma forma que outros objetos estudados pela ciência, a hipnose passou por uma considerável trajetória de avaliações e estudos. Evidentemente, as concepções e os conhecimentos sobre esse tema foram-se alterando e, como conseqüência, também a sua prática se estabeleceu de formas diferentes e atuante em diversas áreas. Frente aos novos conhecimentos, o nível de sua utilização prática tornou-se mais especializado. A comunidade científica atual vem cada vez mais inserindo a hipnose em suas pesquisas e a utilizando de diferentes formas. A posição que a hipnose ocupa frente a essa comunidade científica pode ser melhor entendida se atentarmos para o contexto em que o fenômeno veio sendo estudado e para as influências de vários determinantes que, de certa forma, influenciaram e até hoje influenciam o modo como ela é estudada e compreendida tanto no âmbito científico quanto popularmente. Não só no curso de Psicologia do São Gabriel, mas em várias outras instituições do meio acadêmico, os fenômenos hipnóticos quase não fazem parte das propostas de estudo e, quando mencionados, tem como base orientações oriundas há cem anos, geralmente relativas aos estudos desenvolvidos por Freud. Não que o tempo seja um critério que invalide esses estudos pois, de forma inversa, ele pode proporcionar um aprimoramento no sentido de ser entendido e desenvolvido de formas diferentes. No entanto, a falta de clareza a respeito deste tema, a deturpação de seus fenômenos e a maneira como há vários anos ele foi experienciado por alguns brilhantes teóricos, dão margem a concepções antigas e eivadas de preconceitos, contribuindo para a construção de uma cultura onde seja comum o desinteresse pelo seu estudo acadêmico. Esta pesquisa tem como objetivo citar alguns estudos sobre como a hipnose tem sido compreendida e utilizada no âmbito científico, especialmente em psicologia clínica, e também, incentivar a discussão acadêmica a respeito do tema. No primeiro capítulo, inicialmente apresento alguns estudos que descrevem como a hipnose foi utilizada e vivenciada de diferentes formas na história da humanidade. Em seguida, apresento alguns estudos que retratam a tentativa de se 7 compreender o fenômeno dentro de uma visão dita racional, ou seja, científica. Estes estudos relatam sobre a evolução de conceitos, algumas controvérsias e a trajetória que se deu até que o fenômeno fosse compreendido como algo real e digno de ser objeto de pesquisa cientifica. No capítulo seguinte, apresento a vivência que Freud teve com a hipnose e a forma como ele a utilizou em sua clínica. Para isso, são explicitados alguns estudos que mostram a utilização da hipnose como forma se compreender a estrutura dos sintomas histéricos, e também, como recurso para se tratar a histeria. Mais adiante, relato sobre os motivos e as circunstâncias em que Freud optou por abandonar o uso da hipnose em sua clínica, correlacionando também com o desenvolvimento de uma nova forma de terapia, ou seja, o surgimento da psicanálise. No terceiro capítulo, cito algumas conseqüências para o estudo científico da hipnose, tendo Freud não mais a utilizado em sua clínica. Procuro situar o lugar que ela ocupou perante a sociedade e ao meio acadêmico, tendo em vista algumas variáveis importantes a serem consideradas. Discuto uma pesquisa que problematiza o atual interesse de se estudar o fenômeno. Encontra-se também nesse capítulo alguns estudos hodiernos sobre a hipnose, novas formas de compreensão e utilização em psicoterapia. Por fim, insere-se um estudo que procura trabalhar a relação entre ciência e hipnose. 8 CAPÍTULO I - A HIPNOSE COMO FENÔMENO LEGÍTIMO Ao longo da história da humanidade, de uma forma ou de outra, a hipnose tem sido utilizada e vivenciada mesmo antes de se ter consciência “científica” da existência do fenômeno. “Sociedades primitivas já usavam o “tá-tá-tá” e o “tom-tom” do ritmo dos tambores e as danças ritualisticas das tribos, para induzir um estado de transe semelhante ao da hipnose.” (Erickson, Hershman e Secter, 1998, p.19). Não só esses rituais, mas infindáveis situações e acontecimentos capazes de induzir o transe hipnótico acompanharam o passar dos anos. Ao tratar sobre o assunto Osmard Andrade, em seu Manual de Hipnose médica e odontológica, nos relata que no séc. XVI: Na Inglaterra, Eduardo, o Confessor, introduziu a prática do que costumava chamar “o toque real”. Os sofredores eram trazidos à presença do rei em audiências prefixadas quando este, tocando a fronte de seus súditos, acreditava corta-lhes os males. Tal prática reconhecida mais tarde oficialmente pela Igreja da Inglaterra passou a contar com a presença de um sacerdote assistente real. Sempre que Eduardo tocava um doente aquele citava passagens adequadas da Bíblia. (Faria, 1979, p.6) Também acreditando ser possuidor de forças sobrenaturais, como relata Faria (1979), em 1662 apareceu na Irlanda um curandeiro chamado Greatrakes. Como enviado divino, julgava ter poderes de cura, exorcismo e sacerdócio. Foi responsável por conseguir, através de seus poderes, milhares de curas. Após os pacientes receberem uma série de “passes”, caíam numa espécie de torpor semelhante ao sono. Crenças sem fundamentos científicos davam margens a várias explicações e conclusões acerca do que se constituía o fenômeno em tela. Mesmer, um jovem médico da universidade de Medicina Vienense, buscou firmar uma explicação dita racional e em 1766 concluiu seu doutorado. Segundo sua tese: Atribuía aos corpos celestes a emissão de um misterioso “fluído” ligando os corpos entre si e todos ao conjunto estelar. Tal “fluído” que titulou de magnetismo animal teria ainda a particularidade de ser captado e reservado por corpos metálicos especiais que se poderiam usar terapeuticamente sob determinado controle. (Faria, 1979, p.7) 9 A aplicação do chamado mesmerismo criou corpo através das práticas de Mesmer e seus adeptos. Foi tanto que em 12 de março de 1784, o rei Luís XVI nomeou uma comissão de estudiosos da Faculdade de Paris e da Academia Real de Ciências para prestar contas a respeito do magnetismo animal praticado pelo Sr. Charles Deslon, amigo e discípulo de Mesmer (Chertok e Stengers, 1990). A citação abaixo caracteriza o ambiente em que se dava a aplicação do mesmerismo. Ao redor da cuba de Mesmer, as mulheres da melhor sociedade – inclusive a própria rainha, alegavam os panfletários – perdiam o controle, desatavam num riso “histérico”, desmaiavam e eram tomadas por convulsões. A cuba de Mesmer efetuava a transmutação de um grupo policiado numa aglomeração desenfreada, com os efeitos do fluido em cada um reforçando a potência de seus efeitos nos demais, com a primeira gargalhada desencadeando as outras em cascata, e com o primeiro espasmo catalisando as crises através de uma irresistível reação em cadeia. (Chertok e Stengers, 1990, p.24) Segundo Chertok e Stengers (1990), como resultado das observações a comissão concluiu que nenhum agente que pudesse ser objeto da ciência, nenhum fluído, permitiria explicar a crise mesmeriana. Esta, não foi considerada como algo que pudesse trazer para o conhecimento um objeto ou uma nova razão. O mesmerismo não foi considerado objeto da ciência e sim uma ameaça aos costumes e a moral da sociedade. O encargo da situação foi transferido àquele que é responsável por essas questões, o governo, a fim de ser tratado pelos rigores da lei. De acordo com a interpretação de Chertok e Stengers (1990), a razão reivindicada pela comissão para julgar a prática do mesmerismo feita por Deslon não era neutra tal qual a razão que define o que Kant chamava de revolução copernicana. Seu método conduzia a uma purificação do cenário, que apresentavase excessivamente acumulado de elementos incontroláveis. A razão, tal como reivindicada pela comissão confrontada com o fenômeno mesmeriano, tinha por atribuição primordial, portanto, a caça aos parasitas, a purificação do cenário, excessivamente acumulado de elementos incontroláveis, oferecido pela cuba de Deslon. Os comissários não sabiam a quais princípios poderia responder o “fluido” hipotético invocado por Mesmer e Deslon para explicar as crises. Não tentaram descobri-los, mas procuraram por à prova a relação entre o fluído hipotético e seus efeitos observáveis. (Chertok e Stengers, 1990, p.30) Segundo relatam Chertok e Stengers (1990), ao fazer a primeira tentativa experimental de avaliar o trabalho que o Sr. Deslon estava desenvolvendo, a 10 comissão propôs um método de investigação: Pessoas consideradas de serem honestas e terem boa fé serviram de testemunhas ao experimento empreendido. Diferente dos efeitos múltiplos e da agitação que acontecia nos tratamentos públicos, houve calma e silêncio na experimentação. O magnetismo parecia despojado de qualquer ação sensível e, segundo esse ponto de vista, a comissão teve uma prova negativa. Para Deslon, a experimentação foi feita em condições desfavoráveis, pois as sessões foram breves, espaçadas e os participantes estavam desatentos. Não só por esses motivos o magnetizador alegou a constatação impertinente. Segundo ele, os efeitos são variados e dependem da sensibilidade de cada indivíduo. Portanto, o fato das testemunhas não terem experimentado nenhuma sensação não pode ser um indicativo de que o magnetismo não existe. Ainda de acordo com Chertok e Stengers (1990), Jussie, um dos membros da comissão, acreditava que o fato suscitava um problema e defendia que o exame deveria ser feito nas condições em que se produzia e não da forma como estava sendo feito. Para uns, o fato era aquilo que resistia à purificação, ao isolamento, à preparação experimental. Para outros, o fato era o que requeria elucidação, uma elucidação crítica, certamente, mas sem que a crítica correspondesse, no caso, a critérios gerais apriorísticos (se o fluido existia, tinha que agir de maneira semelhante em todos os corpos vivos); ela era indissociável de uma aprendizagem que permitisse distinguir, precisar, explicitar, em suma, elaborar a linguagem conveniente ao fato. (Chertok e Stengers, 1990, p.36) Como informam Chertok e Stengers (1990), a comissão foi em busca de novas formas de experimentação para verificar a hipótese do fluído animal. Suspeitaram que os efeitos do magnetismo eram determinados pela persuasão antecipada e, ao entrevistar e fazer outros experimentos com alguns pacientes de olhos vendados, obtiveram o fato que lhes proporcionaram um veredicto final. Por estarem convencidos de que estavam sendo magnetizados, alguns dos pacientes entraram em crise mesmo na ausência do magnetismo. A imaginação foi apontada como a verdadeira causa dos efeitos atribuídos ao fluido. Um relatório conclusivo, publicado em 11 de agosto de 1784, afirmava que o chamado fluído não existia e os resultados obtidos por Mesmer se deviam apenas à imaginação – S`il existe en nous ou autour de nous, c`est donc dùne manière insensible1 (Ferreira, 2006, p.2) 1 “Se ele existe em nós ou em torno de nós é então de uma maneira insensível” 11 O enfoque na imaginação serviu para refutar a hipótese do magnetismo. No entanto, a comissão não se preocupou em delimitar o que vinha a ser a imaginação, de que forma se dava seu efeito curativo, as crises e as convulsões, como se na época a imaginação não fosse passível de ser considerada objeto de estudo científico. Segundo Chertok e Stengers (1990), Deslon e Jussie apresentaram objeções à conclusão das comissões e também novas hipóteses que não desconsideravam a existência do magnetismo. De qualquer maneira, não foram ouvidos. Foram publicados milhares de exemplares dos relatórios que, em seu conteúdo, negavam a existência do magnetismo e condenavam a prática do mesmerismo. Exigiu-se que os médicos iniciados nessa prática assinassem um ato de abjuração, comprometendo-se a renunciá-la, não só a prática mas também a crença na efetividade do fenômeno. As brutais conseqüências institucionais dos relatórios de ambas as Comissões dão o que pensar. Esses relatórios negaram, em nome da ciência, em nome da razão, a explicação fornecida para um fenômeno que, em si, não correspondia às normas da racionalidade experimental, e essa negação equivaleu a uma condenação. (Chertok e Stengers, 1990, p.46) Por afirmar que a prática do mesmerismo era inconsistente, permitiu-se que o tema fosse banido e não considerado como um objeto digno de investigações científicas. A partir deste acontecido, pode-se deduzir o quanto as pesquisas sobre o tema ficaram prejudicadas. Esta constatação acabou abrindo margens para o surgimento de concepções deturpadas e para um desinteresse científico sobre o assunto. De qualquer forma, alguns defensores do mesmerismo continuaram a estudá-lo e, por darem ênfase em outros aspectos da variedade de seus fenômenos, constituíram-se novas compreensões e conhecimentos. Tendo sido orientado de início pelas teorias magnéticas, por volta de 1815, Custódio Faria deu uma grande contribuição para a atual compreensão do fenômeno: Na opinião de Custódio de Faria era a vontade do paciente e o poder de sugestão que conduziam ao que chamava de “sono lúcido”. Tal ponto de vista foi expresso no seu livro “De la cause du sommeil lucide ou l’etude sur la nature de l’homme” onde conceituava: “Não posso conceber como a espécie humana foi procurar a causa desse fenômeno à tina de Mesmer, a uma vontade externa ou a mil outras extravagâncias deste gênero.” (Faria, 1979, p.13) 12 De acordo com Ferreira (2006), médico neurologista e pesquisador de Curitiba, em 1838, um professor de medicina da Universidade de Londres e presidente da Royal Medical and Surgical Society chamado John Elliotson (17911868), estudou e começou a praticar o mesmerismo empreendendo aulas e demonstrações sobre o que ainda era chamado de sono magnético. A opinião geral de seus colegas logo se voltaram contra ele. Thomas Wakley, fundador da conceituada revista The Lancet, advertiu-o com uma forte crítica: “O paciente, aliás, a vítima, ou melhor o particips criminis é tão culpado quanto o operador. E até quem ler o relato de tais atuações é um leproso”. (Van Pelt SJ. apud Ferreira, 2006, p.3) A repercussão da iniciativa de Elliotson pode ser compreendida tendo em vista as obscuridades do fenômeno, a condenação à qual o mesmerismo já havia sofrido pela comunidade acadêmica e a forma como ele ainda vinha sendo assimilado pela maior parte dessa comunidade. Refutado da ciência , o mesmerismo era considerado charlatanismo e não era tido como digno de ser objeto de estudo científico. Mesmo neste contexto, a caracterização e a indução do estado hipnótico foi estudada e praticada de diferentes formas. Um exemplo, são os experimentos que James Esdaile (1808-1859) desenvolveu na Índia em torno do ano de 1845 (Faria, 1979). Neles, beneficiavam-se pela analgesia conseguida no estado hipnótico para facilitar a prática cirúrgica. “Muito cedo seus arquivos lhe permitiriam comunicar ao Medical Board um total de setenta e cinco intervenções cirúrgicas feitas sob hipnose.” (Faria, 1979, p.15). Segundo Erickson, Hershman e Secter, (1998), quando Esdaile voltou à Inglaterra e expôs suas experiências, foi ridicularizado e marginalizado por seus colegas. Enfatizou em seu livro que não apenas era difícil convencer as pessoas sobre o valor de seu trabalho, mas também era difícil lutar contra a opinião pública. Um outro importante teórico a ser considerado é James Braid (1795-1860). De acordo com Faria (1979), a ele se deve a primeira conceituação realmente científica e fisiológica, despida de empirismo e idéias absurdas sobre a hipnose. Apesar de Custódio Faria já ter se pronunciado, antes dos estudos de Braid, dizendo que é a sugestão e a vontade do paciente que são responsáveis por ocasionar o “sono lúcido”, ainda sim “o mesmerismo era aceito como resultante de forças 13 estranhas e sobrenaturais, derivada dos astros através de fluidos especiais de que se empregnavam os metais e os animais”. (Faria, 1979, p.19). Segundo Faria (1979), Braid era médico oculista e radicalmente contrário às práticas mesmeristas. Por esse motivo, foi a uma das sessões que Charles Lafontaine, discípulo de Mesmer, ocupava-se em fazer demonstrações de magnetismo animal. Ao colocar uma jovem em estado de sono profundo, logo foi cercado pelos curiosos. De forma discreta Braid tomou um alfinete e introduziu em baixo da unha de um dos dedos da paciente. Não ocorreu a menor reação dolorosa, nenhum gesto, nem a mais leve contração muscular. Para quem tinha a intenção de desmascarar o magnetizador, tal situação serviu para criar um interesse sobre o assunto. De acordo com Albuquerque (1959), uma das questões para qual Braid atentou ao observar o experimento de Lafontaine, foi a impossibilidade que o paciente apresentou de abrir os olhos quando em transe mesmérico. Albuquerque (1959) informa que, em busca de conseguir alguns resultados pela fadiga da vista, Braid desempenhou experimentos onde mandou que as pessoas fixassem o olhar em um ponto que, pela convergência forçada dos olhos, trouxessem mais rapidamente o cansaço. O resultado foi as evidencias de se ter induzido o transe mesmérico. Posteriormente desenvolveu uma técnica de fixação do olhar e “logo descobriu que poderia acelerar esse processo dizendo às pessoas: Agora você está ficando com muito, muito sono” (Shrout, 1995, P.35). Com base no que ele acreditava ser o fenômeno, propôs o uso de um outro termo para o que, até então, era designado como magnetismo animal ou mesmerismo. Inicialmente pensava que a hipnose era idêntica ao sono, então usou o termo hypnos, uma palavra grega que significa “sono”. Mais tarde, depois de reconhecer seu erro, tentou mudar o nome para monoideísmo, que significa concentração sobre uma idéia. Entretanto, o termo “hipnose” persistiu apesar dele ser tecnicamente errado. (Erickson, Hershman e Secter, 1998, p.21) Através de um rigoroso espírito científico Braid extraiu de suas observações algumas conclusões que, em alguns aspectos, ainda hoje são consideradas atuais e foram de fundamental importância para se alcançar novas compreensões. Como relata Faria (1979), Braid não via fundamento no mecanismo mesmérico. Acreditava que a causa do sono hipnótico estava dentro de nós mesmos e que não havia nenhuma influência fluídica derivada dos astros, da atmosfera ou de outras pessoas. 14 Segundo Faria (1979), Braid concluiu que a indução hipnótica é obtida pela fadiga excessiva dos órgãos dos sentidos, especialmente o da visão. Afirmou que sempre que se obriga o paciente a receber estimulação continuada, monótona e persistente durante um certo tempo, consegue-se tal fadiga. Relatou sobre a importância do paciente concentrar toda sua atenção no objetivo em causa e que depois de conseguida a hipnose, é possível introduzir idéias novas no cérebro do paciente. Acreditava que a anestesia, a amnésia e os demais componentes do fenômeno hipnótico eram devidos a uma inibição de parte do cérebro do paciente. Finalmente, diferente do mesmerismo, julgava que a hipnose como recurso terapêutico não era remédio universal. Não foi de súbito que a comunidade científica passou a considerar digno de ser objeto de estudo temas relacionados com a hipnose. Como relata Albuquerque (1959), em uma reunião anual da British Association, Braid quis ler um trabalho relatando suas experiências e recusaram-lhe este direito. O tempo que lhe tinha sido destinado foi concedido a outra pessoa que fez uma comunicação sobre o meio de distinguir as aranhas velhas das novas pelo exame dos respectivos palpos. De acordo com Ferreira (2006), um médico cirurgião chamado Squire Ward em 1842 havia amputado um membro inferior na altura da coxa, sob condições mesméricas e sem que o paciente sentisse dor. Ao comunicar tal fato à Royal Medical Surgical Society, um de seus membros reagiu dizendo que o paciente havia sido treinado para não sentir dor. Em 1851, em seu edital, a conceituada revista científica The Lancet publica uma crítica ao mesmerismo dizendo: O mesmerismo é uma farsa demasiada estúpida para merecer qualquer atenção. Consideramos os seus sequazes como impostores e charlatões. Deveriam ser expulsos sem piedade das agremiações profissionais. Qualquer médico que envie um paciente seu para consultar com um mesmerista deveria ser condenado a ficar sem clientes para o resto da vida. (Faria apud Ferreira, 2006, p.4) Albuquerque (1959) relata que, neste contexto, de diferentes formas e de localidades variadas, trabalhadores independentes continuavam com seus estudos, tentavam em vão provocar o exame sério da comunidade acadêmica que opunha toda sorte de empecilhos. No entanto, uma tendência à mudança começou a se firmar quando um conceituado neurologista francês chamado Jean Martin Charcot (1825-1893) em 15 1878 se despendeu ao estudo do hipnotismo. Como informa Albuquerque (1959), Charcot sentiu que para vencer a prevenção geral tornava-se necessário mais do que a autoridade de seu nome, precisava apresentar fenômenos cuja realidade fosse bastante clara e pudesse excluir toda a idéia de simulação. Por esse motivo deu menos ênfase ao estudo de fenômenos psíquicos mais complexos e menos suscetíveis de verificação, dedicando-se principalmente aos verificáveis e registráveis por instrumentos. Frente ao oficialismo acadêmico, “Charcot serviu-lhes o hipnotismo, já preparado em um quadro rigoroso. Não era mais a selva inculta dos fatos desconexos apresentados por Mesmer [...]”. (Albuquerque, 1959, p.40) De acordo com Melvin A. Gravitz (2004), Charcot considerou o hipnotismo como sendo uma modificação fisiológica do sistema nervoso, artificialmente induzida e a qual só podia ser observada em pacientes histéricas. Assinalou três fases características: a catalepsia, a letargia e o sonambulismo. Como relatam Chertok e Stengers (1990), o interesse de Charcot pela hipnose era inseparável do método anátomo-clinico e da identificação das alterações anatômicas passíveis de explicar as doenças nervosas orgânicas. No entanto, tais estudos propiciaram que as hipóteses de simulação, as quais se levantavam como suspeita de fraude ao se analisar o fenômeno, fossem excluídas do julgamento e os incrédulos acabassem precisando confessar a real evidencia do fenômeno. Segundo Erickson, Hershman e Secter (1998), os experimentos de Charcot eram conduzidos principalmente com três pacientes que eram histéricos. Ele retomou a teoria de mesmer sobre o magnetismo animal e uma grande controvérsia surgiu entre suas teorias e a escola teórica de Nancy. Os postulados teóricos de Charcot tiveram uma repercussão muito importante em relação aos da Escola de Nancy, pois uma dessas posições sendo considerada correta, naturalmente implicava na invalidade da outra. A teoria de Charcot tinha uma base somática para explicar o hipnotismo, enquanto a Escola de Nancy, subsidiada por Ambroise Auguste Liébeault e Henri Bernheim, se baseava na sugestão (Faria, 1979; Albuquerque, 1959). Como relata Faria (1979), Liébeault reuniu informações desde Mesmer a Braid e permaneceu por mais de vinte anos estudando e praticando seu trabalho hipnótico. Informa que Bernheim também se voltou para tais estudos devido a um fato clínico que o deixou bastante interessado. Um doente que sofria de ciática rebelde há seis anos foi procurá-lo e empreendeu-se em um tratamento que se estendeu por seis meses e onde Bernheim já havia 16 esgotado todos seus recursos terapêuticos. Ainda em busca de melhora, o paciente foi consultar com Liébeault. No dia seguinte, apresentou-se a Bernheim curado. Tal acontecimento bastou para que Bernheim viesse a se interar dos métodos de Liébeault e tornar-se seu discípulo e companheiro. A escola de Nancy desenvolveu novas teorias a respeito da hipnose, tendo como ponto de vista central a sugestão e seus efeitos na obtenção de resultados terapêuticos. Se para os experimentadores da Salpêtrière o hipnotismo era uma nevrose peculiar aos histéricos e com três fases nítidas e características, para os de Nancy nem o hipnotismo é uma nevrose, nem é peculiar aos histéricos, nem apresenta as três fases tão miudamente descritas por Charcot. (Medeiros e Albuquerque, 1959, p.51) Segundo Faria (1979), os postulados de Nancy defendiam que em determinados estados fisiológicos acontece uma absoluta inércia intelectual, semelhante a um esvaziamento cerebral de idéias próprias. Acreditavam que nesta situação, torna-se possível depositar em tais mentes uma idéia planejada que logo ganha forças irresistíveis, agindo de maneira impetuosa. Este estado, provocado artificialmente, constitui o hipnotismo que, no dizer dos estudiosos de Nancy, aproxima-se mais do sono normal do que qualquer estado patológico. Entendiam como sugestão o ato pelo qual se faz aceitar no cérebro de outrem uma idéia qualquer (Faria, 1979). 17 CAPÍTULO II – FREUD E A HIPNOSE Em seu estudo autobiográfico, Freud (1924) relata que em 1885 foi condecorado com uma bolsa de estudos que o possibilitou empreender uma viajem a Paris e tornar-se aluno na Salpêrtrière. Nesta ocasião, o que mais lhe impressionou ao entrar em contato com os estudos de Charcot foram as últimas investigações acerca da histeria. Ele provara, por exemplo, a autenticidade das manifestações histéricas e de sua obediência a leis, a ocorrência freqüente de histeria em homens, a produção de paralisias e contraturas histéricas por sugestão hipnótica e o fato de que tais produtos artificiais revelam, até em seus menores detalhes, as mesmas características que os acessos espontâneos, que eram muitas vezes provocados traumaticamente. (Freud, 1924, p.20) De acordo com Chertok e Stengers (1990), foi com Charcot que Freud aprendeu a distinguir os distúrbios orgânicos ligados a uma afecção nervosa dos distúrbios histéricos. Esse ensinamento associou, de maneira imediata e operatória, a hipnose e a histeria. Relatam que Charcot recorrera à hipnose para demonstrar que as paralisias histéricas não eram determinadas por uma lesão orgânica e, através de demonstrações experimentais, conseguiu provar que tais paralisias eram o resultado de representações psicogênicas. No entanto, não contemplou a idéia de utilizar a hipnose em um contexto terapêutico, desfazendo sintomas que não foram primeiramente provocado de maneira artificial. Ainda de acordo com Chertok e Stengers (1990), Charcot colocou Freud frente ao mesmo tipo de problema com que se tinham tido que confrontar os membros da comissão que analisaram o trabalho de Deslon no tocante à crise mesmeriana: efeitos inegáveis que não podiam ser relacionados com nenhuma causa racionalmente legítima. Não havia nenhuma lesão orgânica, da mesma forma que não existia um fluido magnético. No entanto, as causas psicológicas não serviram para Freud como pretexto para afastar o fenômeno de seu interesse. Muito pelo contrário, a noção de causa psicológica foi redefinida e estudada de forma a romper com a causalidade anatômica. Freud (1924) relata que, mesmo antes de se dirigir a Paris, Breuer já o havia comunicado sobre um caso de histeria que, em torno de 1880 e 1882, o permitira penetrar profundamente na acusação e no significado dos sintomas histéricos. Informa que a paciente era uma jovem de educação e dons incomuns e adoecera 18 enquanto cuidava de seu estimado pai. Ela apresentou um quadro variado de paralisias e contraturas, inibições e estados de confusão mental. Ainda de acordo com as informações de Freud (1924), uma observação casual revelou a Breuer que sua paciente poderia ser aliviada desses estados nebulosos de consciência se fosse induzida a expressar em palavras a fantasia emotiva pela qual se achava no momento dominada. Tendo em vista esta descoberta, ele chegou a um novo método de tratamento. Levava a paciente a um estado de hipnose profunda e a pedia para lhe dizer o que era que lhe oprimia a mente. Depois de os ataques de confusão depressiva terem sido separados dessa maneira, utilizou-se do mesmo processo para acabar com as inibições e distúrbios físicos. Relata que nos estados de vigília a jovem apresentava-se incapaz de descrever mais do que outros pacientes como seus sintomas haviam surgido, da mesma forma que não tinha como descobrir ligação alguma entre eles e quaisquer experiências de sua vida. No entanto, sob hipnose ela conseguia descobrir a ligação que faltava. Segundo Freud (1924), o fato de os sintomas estarem voltados à situações comovedoras que experimentara enquanto cuidava do pai, possibilitou verificar-se que esses sintomas tinham um significado e eram resíduos ou reminiscências daquelas situações emocionais. Observou-se que na maioria dos casos onde houve algum pensamento ou impulso que ela suprimiu enquanto encontrava-se próxima ao enfermo, em seu lugar, como substituto, posteriormente surgia o sintoma. Ele relata que quando sob hipnose e de forma alucinatória a paciente recordava de uma situação desse tipo, levando até a sua conclusão o ato mental que havia originalmente suprimido, o sintoma era eliminado de forma permanente. Através desse processo Breuer conseguiu, após longos e penosos esforços, aliviar a paciente de seus sintomas. Referiu-se ao método como catártico e explicou que sua finalidade terapêutica era a de proporcionar que a cota de afeto utilizada para manter o sintoma fosse dirigida para uma trilha normal, ao longo da qual pudesse obter descarga. Tal fato deixou para Freud uma noção implícita de uma atividade psíquica inconsciente que tinha uma ligação estreita com a histeria. Mais tarde, depois de suas experiências na Salpétriere e em Nancy, e de seus extensos estudos sobre a histeria, tal noção pode ser melhor esquadrinhada. Segundo Freud (1924), no intuito de aperfeiçoar sua técnica hipnótica, no verão de 1889, empreendeu uma viagem a Nancy. Ao observar os experimentos de Bernheim, teve a profunda impressão da possibilidade de haver poderosos 19 processos mentais que permaneciam escondidos da consciência dos homens. Ainda de acordo com seu estudo autobiográfico, de volta a Viena e com uma grande experiência na utilização da hipnose, ele pode lançar maior compreensão sobre a origem dos sintomas histéricos. Relata ter dado maior ênfase à significação da vida das emoções e à importância de estabelecer distinção entre os atos mentais conscientes e os inconscientes. Com a hipótese de que um sintoma surge através do represamento de um afeto e classificando o sintoma como o produto da transformação de uma quantidade de energia que, de outra maneira, em uma situação não patológica, teria sido empregada de forma diferente, introduziu uma forma de compreensão considerando no funcionamento psíquico fatores dinâmicos e econômicos. Ao falar sobre a sintomatologia da histeria e suas formas de tratamento, Freud (1888) aponta a utilização da hipnose como um recurso para tal fim. Relata que “o tratamento direto consiste na remoção das fontes psíquicas que estimulam os sintomas histéricos, e isto se torna compreensível se buscarmos as causas da histeria na vida ideativa inconsciente.” (Freud, 1888, p.93). Este método se baseia em dar ao paciente sob hipnose uma sugestão que contém a eliminação do distúrbio em causa. [...] curamos uma tussis nervosa hysterica fazendo pressão sobre a laringe do paciente hipnotizado e assegurando-lhe que foi removido o estímulo que o faz tossir, ou curamos uma paralisia histérica do braço compelindo o paciente, sob hipnose, a mover o membro paralisado, parte por parte. (Freud, 1888, p.93) Acreditava que o efeito se tornaria maior se colocasse em prática o método desenvolvido por Breuer, fazendo o paciente, sob hipnose, remontar à pré-história psíquica da doença e compelindo-o a reconhecer a ocasião psíquica em que se originou o distúrbio. Freud (1893) entendia como reação toda classe de reflexos voluntários e involuntários, como por exemplo as lágrimas ou até atos de vingança ou de fala, pelos quais os afetos são descarregados. Relata que quando essa reação acontece em grau suficiente, como resultado, grande parte do afeto desaparece. Porem, quando a reação é reprimida o afeto permanece vinculado à lembrança, dando margens ao desenvolvimento de sintomas. Fazendo, sob hipnose, o paciente a remontar à história psíquica que estava relacionada ao sintoma e que estava inteiramente ausente de suas lembranças em estado psíquico normal, lhes 20 proporcionava, naquele momento, uma oportunidade de reação mais adequada e suficiente para tal vivência. Julgava ser essa maneira a mais apropriada para tratar a histeria justamente pelo fato de imitar o mecanismo de sua origem e possibilitar uma retificação do referido distúrbio, a qual chamava de ab-reação. Um exemplo em que Freud utilizou desse método de tratamento foi o caso da Sra. Emmy Von N. (18931895). Nele, através do processo de ab-reação e da sugestão direta, lutou contra as representações patológicas da paciente, utilizando-se de proibições e apresentando toda espécie de representações opostas. No entanto, não soube dizer o quanto do êxito terapêutico deveu-se à transformação do afeto por ab-reação e à eliminação do sintoma por sugestão direta. Constatou que, de modo geral, o sucesso terapêutico era considerável, mas não duradouro. A tendência da paciente de adoecer de forma semelhante sob o impacto de novos traumas não foi afastada. O método em que Freud utilizava a hipnose apresentou-se limitado e, tendo em vista as dificuldades que lhe foram apresentadas, procurou desenvolver novos recursos para atingir melhores resultados terapêuticos e não ficar restrito ao emprego do hipnotismo. “O procedimento catártico, como Breuer utilizava, exigia previamente a hipnose profunda do doente, pois só no estado hipnótico é que se tinha o conhecimento das ligações patogênicas que em condições normais lhe escapavam” (Freud, 1910, p.38). No entanto, apesar dos esforços, não conseguia hipnotizar todos os pacientes. Freud (1917) relata que para o médico, em longo prazo, o método se tornava monótono. Em cada caso, procedia da mesma maneira, com o mesmo ritual, proibindo aos mais variados sintomas existirem, não sendo capaz de aprender nada de seu sentido e significado. Dizia ser um trabalho braçal e não uma atividade científica; o procedimento não era confiável em nenhum aspecto e não podia ser utilizado em todos os pacientes; conseguia-se bons resultados com uns, bem pouco com outros e não se sabia por quê. Julgava ser a falta de permanência dos êxitos algo marcante pois, passado pouco tempo após o tratamento, recebia notícias de que a antiga enfermidade do paciente havia retornado ou, em seu lugar, tinha-se instaurado uma nova doença. [...] até mesmo os resultados mais brilhantes estavam sujeitos a ser de súbito eliminados, se minha relação pessoal com o paciente viesse a ser perturbada. Era verdade que seriam restabelecidos se uma reconciliação pudesse ser efetuada, mas tal ocorrência demonstrou que a relação emocional pessoal entre o médico e o paciente era, afinal de contas, mais 21 forte que todo o processo catártico, e foi precisamente esse fator que escapava a todos os esforços de controle.(Freud, 1924, p.33) Para aqueles casos em que se atingia um êxito completo e permanente da terapia, as condições que determinavam tal situação permaneciam desconhecidas. Também outros infortúnios contribuíram para que Freud abandonasse a hipnose. Como relata em seu estudo autobiográfico (1924), vinha tendo bons resultados ao utilizar o hipnotismo com uma de suas pacientes. Em certa ocasião, ao despertar, ela lançou os braços em torno de seu pescoço. Ele não atribuiu este fato aos seus próprios atrativos pessoais, e sim, supôs-se estar diante da natureza de um misterioso elemento que se achava em ação por trás do hipnotismo. A partir daquela ocasião entendeu-se que a única maneira que se tinha para excluir ou isolar esse elemento, seria abandonar o hipnotismo. Freud (1924) relata que deixou de utilizar a hipnose em seus atendimentos, passando inicialmente a empregar uma técnica que, quando esteve presente em Nancy observou Bernheim a utilizar. Informa que em seu procedimento usual, tanto para efetuar as sugestões diretas quanto para que fosse possível o paciente ter acesso aos motivos e conteúdos latentes de seus sintomas, era de praxe colocá-los sobre condições hipnóticas. Como era do conhecimento de Freud, sem o uso da hipnose, chegava a um ponto em que o paciente afirmava não saber mais nada sobre seus sintomas. No entanto, ele assegurava ao mesmo que, “no fundo”, ele sabia das origens da enfermidade e que só precisava dizer. Ao interrogar o paciente auxiliava-o com um toque na testa e, desta forma pode, prescindindo do hipnotismo, conseguir que os doentes revelassem tudo quanto fosse preciso para estabelecer as ligações existentes entre as cenas patogênicas esquecidas e os seus sintomas (Freud, 1924). Freud (1924) relata que desta maneira, confirmou que o material esquecido não se havia perdido, e sim, ainda estava em poder do doente. Este fato o levou a concluir que alguma força os detinha, obrigando-os a permanecer inconsciente. Essa descoberta acabou por originar a técnica de associação livre que, posteriormente foi melhor desenvolvida. O contexto em que Freud optou por abandonar o uso da hipnose foi marcado por alguns acontecimentos que possibilitaram uma transformação na forma de interpretar a patologia e o conjunto dos elementos que o haviam norteado até então. De acordo com Chertok e Stengers (1990), com o abandono da “teoria da sedução” entendeu-se que os traumas sexuais poderiam ser oriundos de fantasias que 22 permitiam às crianças se defenderem das ameaças suscitadas por suas próprias pulsões. Se a origem da patologia não era mais centrada em um trauma, num acontecimento real, então ela remetia-se não apenas aos acontecimentos, mas aos traços intrínsecos de toda a história humana. À ‘reminiscência’ de que sofriam unicamente os histéricos veio suceder-se, a partir de então, um fenômeno a quem ninguém podia escapar: o “retorno do recalcado”, sob a forma de sintomas, bem como de sonhos e atos falhos, e do conjunto do material a ser suscitado pela técnica da associação livre, desde então colocada no centro da análise. A verdade a ser buscada já não era de ordem factual, mas antropológica. (Chertok e Stengers, 1990, p.61) No entendimento de Chertok e Stengers (1990), duas importantes questões condenaram a utilização da hipnose: A primeira, é o perigo que a transferência descontrolada representava para a pessoa do analista, evidenciada na paciente que acorda do transe abraçando Freud. A segunda, é que a análise já não podia ter como finalidade reativar a lembrança de um acontecimento real, no intuito de esvaziá-la de seu afeto, e sim levar a uma conscientização dos conflitos psíquicos que explicavam, sobretudo, a possibilidade dessas lembranças. A lembrança era apenas o caminho para uma verdade cuja somente a análise dos conflitos psíquicos que investissem a cena analítica poderia fazer vir à tona. O tratamento não mais consistia em fazer ressurgir uma verdade passada, mas em enfrentar um problema que reaparecia na cena analítica como algo de real e atual. Em torno de 1917, depois de Freud já ter melhor desenvolvido seu entendimento psicanalítico, esboçou nas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise seu ponto de vista em relação à diferença entre o tratamento hipnótico e o tratamento psicanalítico. O tratamento hipnótico procura encobrir e dissimular algo existente na vida mental; o tratamento analítico visa a expor e eliminar algo. O primeiro age como cosmético, o segundo, como cirurgia. O primeiro utiliza-se da sugestão, a fim de proibir os sintomas: fortalece as repressões, mas afora isso deixa inalterados todos os processos que levaram à formação dos sintomas. O tratamento analítico faz seu impacto mais retrospectivamente, em direção às raízes, onde estão os conflitos que originaram os sintomas, e utiliza a sugestão a fim de modificar o resultado desses conflitos. (Freud, 1917, p.451) Freud (1917) relata que o tratamento hipnótico, utilizando-se de sugestões diretas, não permitia que os pacientes re-significassem os conteúdos conflitantes 23 que eram as bases causadoras dos sintomas. Informa que quando se empregava uma sugestão no intuito de proibir ou dissimular um sintoma, talvez até que a enfermidade fosse suprimida momentaneamente, mas não existia nenhuma garantia que ela não voltasse a se manifestar de outras formas. A grande diferença que o tratamento analítico proporcionava era a superação das resistências que se apresentavam ao decorrer da terapia, propiciando uma re-significação de conteúdos psíquicos que estavam em conflito e que eram responsáveis pela estruturação dos sintomas. Como reflexo, a possibilidade do paciente adoecer novamente pela mesma causa já não era mais cogitada. (Freud, 1917) De acordo com Edelwaiss (1994), para Freud, não havia uma clara distinção entre sugestão e hipnose. Relata que levando-se em consideração a forma na qual ele a praticava, baseado nos métodos de seus mestres franceses, foi um ganho tê-la abandonado e dado lugar ao desenvolvimento da técnica de associação livre. Diz ainda que, naquele tempo, Freud estava de mãos vazias perante a hipnose e, atualmente, o próprio desenvolvimento da psicanálise fornece ao terapeuta mais recursos para novos empreendimentos. [...] para Freud, tratamento hipnótico significava o uso da hipnose com a sugestão concomitante, obrigatória, de tentar fazer os sintomas desaparecerem, ou seja, levar o cliente a não mais sentir o que, até a pouco, indiscutivelmente sentia. Um dos grandes equívocos de Freud foi ter visto na hipnose, pura e simplesmente, produto da sugestão, no sentido de Liébault, que via, nesta, a própria causa dos fenômenos hipnóticos, pois eram por ela induzidos, e eram empregados na concomitância da sugestão proibitória como forma de eliminar os sintomas. (Edelweiss, 1994, p.91) Segundo Edelweiss (1994), Freud abandonou a hipnose em sua clinica e nunca mais voltou a utilizá-la, a não ser para alguns experimentos. Contudo, ele abandonou a utilização da hipnose como forma de tratamento, segundo aos moldes que ele conhecia e praticava. A hipnose da qual ele se defendeu e repudiou era apenas um aspecto de um fenômeno complexo e ainda muito desconhecido, entretanto, ele a pôs a baixo por inteira. 24 CAPÍTULO III – CIÊNCIA E HIPNOSE De acordo com Edelweiss (1994), Freud ao excluir a hipnose de sua prática possibilitou um certo desdém sobre as pesquisas nesse ramo, pois o peso de sua autoridade, sendo o responsável pela a admirável arquitetura da psicanálise, ostenta certa fidelidade a tal atitude. Para muitos pesquisadores e terapeutas, foi cômodo apelar para o fato de Freud ter abandonado a prática hipnótica, julgando que as possibilidades de trabalhar o tema estivessem veladas. A falta de informação sobre os atuais entendimentos sobre o tema muitas vezes funciona como uma bola de neve, pois ao se transmitir o conhecimento baseando-se em concepções antigas, seja em um meio acadêmico ou em outras circunstancias, reforça-se cada vez mais um caminho voltado para a acomodação e estagnação do conhecimento, não fazendo por onde estimular a busca das várias contribuições que já se fizeram durante o século XX e que abriram grandes perspectivas de pesquisas. Em acréscimo, um outro fator que contribuiu para a vulgarização e descrédito da hipnose foram as demonstrações públicas de fins espetaculares que, de forma corriqueira, colocavam os indivíduos em estado de transe a desempenhar atividades que por fim os expunham ao ridículo. Essa prática possibilitou o surgimento de vários estigmas e falsas idéias sobre a natureza do fenômeno hipnótico. (Edelweiss, 1994) A hipnose adquiriu uma fama de estar supostamente superada e de se constituir como um fenômeno pouco sério e banal, onde a insignificância do tema não valia a perda de tempo para quem se enveredasse por estudá-la (Edelweiss, 1994). Vários fatores em consonância foram e ainda são responsáveis por desestimular as pesquisas científicas que tenham a hipnose como objeto de estudo. Idéias conturbadas e estigmatizadas sobre seus fenômenos são reflexos de uma trajetória histórica, onde a falta de clareza sobre sua real natureza se constituiu como uma ameaça para a ordem científica, política e moral da sociedade. Neste ponto de vista é natural que o estudo sobre a hipnose tenha caído sob um desprestígio e desinteresse comum. Segundo Chertok e Stengers (1990), durante a Primeira Guerra Mundial a hipnose foi utilizada no tratamento das neuroses de guerra. “[...] o ressurgimento do interesse despertado por essa técnica levara Freud a admitir que talvez se pudesse reserva-lhe um lugar no futuro.” (Chertok e Stengers, 1990, p.228). A mesma 25 tendência aconteceu nos Estados Unidos, depois da Segunda Guerra Mundial, onde a utilização da hipnose por psicanalistas não se deparou com grandes obstáculos institucionais. Atualmente, seu estudo tem crescido de modo considerável e sua aplicação clínica tomou grande impulso, principalmente, no campo das psicoterapias e no terreno da psicossomática (Ferreira, 2006). Como relata Ferreira (2006), o University College de Londres que havia banido a hipnose de suas dependências em 1838, está oferecendo desde 1993 um curso extensivo de dois anos – Diploma ou MSc in Clinical/applied hypnosis. O autor informa que um crescente aumento das teses de doutoramento relacionadas à hipnose vem acontecendo de forma significativa em vários países, sendo que nos Estados Unidos cresceu de três na década de 1920 para 298 na década de 1980 (tabela 1). Apresenta também a distribuição das teses nas áreas mais freqüentes de estudo (tabela 2). Tabela 1 Teses de Doutoramento sobre Hipnose nos Estados Unidos Período 1920 – 1929 1930 – 1939 1940 – 1949 1950 – 1959 1960 – 1969 1970 – 1979 1980 – 1989 Quantidade 3 6 2 16 75 190 298 Fonte: Ferreira (2006) Tabela 2 Área das Teses - 1980 – 1989 Estados Unidos Área Quantidade Aplicações clínicas 48,6% (145) Natureza da Hipnose Técnicas usadas 14,7% (44) Ferramenta pesquisa Miscelânea de 14,7% (44) 11,4% (34) 10,4% (31) Fonte: Ferreira (2006) Com esse crescente número de pesquisas sobre a hipnose é natural que hoje exista uma grande distância das concepções e conhecimentos de outrora, relativas ao início do século XX, quando havia pouco tempo que o fenômeno hipnótico tinha sido considerado digno de ser objeto de pesquisa científica. Muitas das idéias que davam margens a um pensamento estigmatizado e floreado de mitos, já não têm espaço em meio à diversidade de estudos que, até então, foram e estão sendo hoje desenvolvidos. O uso da hipnose em procedimentos médicos para auxiliar a prática cirúrgica através do fenômeno de analgesia é algo que já foi praticado por alguns 26 pesquisadores, como o já citado James Esdaile. No entanto, esses trabalhos não tiveram muito crédito perante a comunidade cientifica justamente por faltarem recursos comprobatórios. Com a capacitação da tecnologia, atualmente os pesquisadores possuem recursos que proporcionam um estudo mais apurado acerca do efeito da hipnose no corpo humano. Um recente artigo divulgado na revista cientifica Seed (2006), informa que a hipnose está sendo atualmente objeto de várias pesquisas experimentais que apontam, através de testes neurológicos, as alterações cerebrais que ela causa. O autor, Emily Anthes (2006), cita um experimento que demonstra que a sugestão hipnótica pode produzir mudanças no centro de processamento de dor no cérebro. Relata que quando as pessoas estão em estado hipnótico as áreas cerebrais que processam a dor ficam menos ativas, fornecendo evidencias sobre as modificações provenientes do estado hipnótico. Estudos eletroencefalográficos, testes de reflexos, pulso e pressão sanguínea revelam que a hipnose não é um estado de sono, e sim, um estado alterado de consciência (Erickson, Hershman e Secter, 1998). O conceito que caracteriza a natureza da hipnose não é unânime, muito pelo contrário, é algo difícil de se conceitualizar teoricamente, pois existem várias concepções e muitas controvérsias. O artigo da revista Seed (2006) informa que, apesar da exata definição do conceito de hipnose ainda estar em discussão, é de consenso dos pesquisadores voltados para esse tema que a hipnose envolve intensa concentração, relaxamento e sugestibilidade aumentada. Contudo, mais importante do que julgar qual dos conceitos é o mais adequado para definir o fenômeno hipnótico é perceber que, com os atuais esclarecimentos acerca de sua natureza, o problema de comprovar a veracidade e a existência do fenômeno já não é mais, como no final do século XIX, a questão principal a ser discutida. Mesmo antes de se ter consciência ou comprovações cientificas da eficácia e da existência de seus fenômenos, a hipnose vem sendo utilizada com fins terapêuticos de diversas maneiras. Um exemplo, como já exposto no primeiro capítulo, são as sessões de magnetismo de Mesmer ou também o curandeiro Greatrakes, que julgava ter poderes divinos capazes de curar as pessoas. No entanto, no âmbito científico, até quase o fim do século XIX o que se passou foi uma tentativa de se reconhecer os fenômenos hipnóticos como um fenômeno real, constituinte de particularidades próprias. Depois que sua existência foi reconhecida pela comunidade acadêmica, devido a estudos que comprovaram seus efeitos psíquicos 27 e somáticos, o interesse científico ficou também voltado para seus possíveis usos terapêuticos. A hipnose tem sido utilizada em psicoterapias de forma bem diferente das que eram utilizadas no início do século XX. Milton H. Erickson (1902-1980) foi um clínico inovador no campo da hipnose e da psicoterapia, seu legado abriu grandes perspectivas de estudo nessas áreas. A forma como ele utilizava a hipnose era extremamente diferente da qual Bernheim, Charcot, Freud e outros estudiosos utilizaram em suas clínicas. Segundo Bauer (1998) e Zeig (1985), Erickson não usava os métodos formais de indução ao transe hipnótico e nem aplicava sugestões diretas sob um paciente passivo, como se já soubesse o que é importante para possibilitar a recuperação dessa pessoa . Seu trabalho consistia na busca de proporcionar ao sujeito que, através de seus próprios recursos, alcançasse a melhor maneira de resolver seus conflitos. Para isso, utilizava o estado de transe hipnótico de uma maneira singular, almejando as particularidades que acreditava serem características deste estado. Rosen (1994) relata que, de acordo com a concepção de Erickson, o estado de transe possibilita maior probabilidade de se produzirem aprendizagens e apresenta mais disponibilidade para a ocorrência de mudanças. Nele, os pacientes ficam mais susceptíveis a compreender de maneira intuitiva o significado dos sonhos, símbolos e outras manifestações inconscientes. A indução e a manutenção do transe servem para promover um estado psicológico especial, no qual os pacientes podem reassociar e reconhecer suas complexidades interiores e utilizar suas próprias capacidades em manejá-las de acordo com sua experiência de vida. (Milton H. Erickson, apud Bauer, 1998, p.64) De acordo com Haley (1991), a abordagem de Erickson foi diretamente desenvolvida da orientação hipnótica. Ele utilizava a hipnose de maneira informal, indireta e implícita nas comunicações exercidas com os clientes. Através da sua experiência com o fenômeno, ele pode perceber o quão sutil e complexo é o ato de se comunicar. A hipnose que é empregada em sua prática é entendida como um tipo especial de comunicação. Ele considerou que a comunicação se estabelece em vários níveis, tanto consciente quanto inconsciente (Bauer, 1998), e redefiniu o 28 transe hipnótico como um processo entre duas pessoas ou como uma maneira pela qual as pessoas se comunicam umas com as outras (Haley, 1991). Mesmo quando formalmente não utiliza a hipnose, seu estilo de terapia se baseia tanto na orientação hipnótica que o que quer que faça parece ter origem nessa arte. Levou para a terapia uma gama extraordinária de técnicas hipnóticas e, para a hipnose, uma expansão de idéias que a ampliaram para muito além de um ritual de um estilo especial de comunicação.(Haley, 1991, p.21) Erickson acreditava que o estado de transe é um estado psicobiológico do homem e conceituava que situações onde a atenção e a percepção estão focalizadas e concentradas em uma idéia, como em um momento de fantasia, distração ou preocupação que absorva a atenção, são consideradas como um estado hipnótico (Rosen, 1994). De acordo com Erickson, Hershman e Secter (1998), a hipnose é uma manifestação comum que está presente diariamente em nossa vidas, mesmo que não tenhamos consciência desse fato. Eles citam o exemplo de indivíduos que ficam tão absorvidos ao escutar uma sinfonia que, por determinado momento, entram em um estado hipnótico e se desligam para o que está acontecendo ao seu redor. Explicam que quando uma pessoa permanece em um estado focado de concentração, como no caso do indivíduo que está ouvindo a sinfonia, pode-se dizer que ele está experienciando um estado de transe hipnótico. Nesse momento ele pode não estar sentindo seus pés dentro do calçado, ou até mesmo o apoio da cadeira em suas costas. No entanto, a capacidade de perceber esses detalhes estava presente, apenas não estava consciente no momento justamente por não atrair a sua atenção. Assim como em um estado normal de consciência, em hipnose, pode-se manter um certo relacionamento com o exterior. O indivíduo não precisa ficar inconsciente, ele continua tendo a capacidade de ouvir, ver, pensar e compreender as coisas, porem sua atenção fica mais focada em determinada idéia (Erickson, Hershman e Secter, 1998). Que a hipnose hoje seja reconhecida cientificamente é algo que variados estudos e pesquisas já se encarregaram de certificar. Através do legado de Erickson puderam-se abrir novas perspectivas a respeito do uso da hipnose, tanto em psicoterapias quanto na área médica. Conforme já explicitado, a hipnose é utilizada por ele de forma muito diferente das que outros terapeutas utilizaram até então. Seja através de diferentes formas de indução, seja na comunicação hipnótica, sua forma de terapia baseia-se de tal forma na orientação hipnótica que algumas questões 29 fazem-se necessárias: como avaliar cientificamente a utilização ou o manejo da hipnose em psicoterapias? A forma de se conceber e utilizar a hipnose tal qual foi legada por Erickson pode ser compreendida separadamente dos outros pressupostos e técnicas pertencentes à sua forma de psicoterapia? Se não, como situar a obra de Erickson no âmbito científico? Neubern (2002), doutorando em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB), em seu artigo intitulado “Milton H. Erickson e o cavalo de tróia: a terapia não convencional no cenário da crise dos paradigmas em psicologia clinica”, procura situar a obra de Erickson frente ao paradigma científico dominante da psicologia clínica. O autor aponta a importância dessa questão justamente por ela tocar em pontos fundamentais sobre a própria construção do conhecimento.Segundo Neubern (2002), a ciência se fundamenta a partir de alguns parâmetros que coordenam e possibilitam a construção do conhecimento e recorre à utilização de métodos justamente por visar o acesso à leis universais que regem os fenômenos. Na tentativa de buscar maneiras precisas e confiáveis de se compreender o real, diversas áreas das ciências tiveram como conseqüência uma estruturação teórica tendente a conceber realidades únicas, exclusivas e universais. Neubern (2002) relata que a Psicologia, constituindo-se como ciência, também se enveredou por esse caminho ao desenvolver os seus sistemas teóricos. [...] as categorias generalistas sobrepuseram-se quase que por completo as noções singulares, dissolvendo os sujeitos cotidianos em estruturas universais inconscientes, comportamentais ou sociais. As conseqüências dessa primazia generalista vão desde o paradoxo do indivíduo universal até a constituição da psicologia como uma ciência muito mais voltada para o pólo da regulação do que da emancipação. (Neuber, 2002, p.365) Em meio a esse contexto o autor explicita a situação que dá título a sua tese: Tal como os gregos receberam o cavalo de Tróia sem saber sobre a surpresa que continha em seu interior, a obra de Erickson é recebida pelos psicólogos em meio a grande admiração, e isso acontece sem que eles percebam os perigos que ela oferece às teorias alicerçadas aos moldes do paradigma científico dominante. Segundo Neuber (2002), os pressupostos teóricos de Erickson comportam um ataque contundente contra a base universal e generalista dessas abordagens, não 30 podendo ser enquadrada na ótica das perspectivas tradicionais justamente por resgatar de forma radical a noção de singularidade. Tal noção em termos epistemológicos, implica em considerar os indivíduos como seres únicos e inéditos que, mesmo possuindo determinações gerais (como da espécie, da família, da sociedade, dentre outras), constituem-se em qualidades emergentes que não se esgotam nessas determinações nem se repetem nas construções sociais. Suas qualidades ativa, consciente e interativa permitem-lhes serem considerados na condição de sujeito que retroage sobre as próprias determinações que o antecedem. (Neuber, 2002, p.365) O autor esclarece que frente a essa noção de singularidade, torna-se inviável a construção de teorias com alicerce em conteúdos universais, fazendo-se necessário que se constitua um pensamento teórico baseado em outros pressupostos epistemológicos, em que a validade do pensamento teórico fique submetida em função de momentos singulares. Diferente das tendências deterministas, esse ponto de vista se caracteriza por conceber a realidade através de sua complexidade constitucional, sendo sujeita a constantes transformações. Tal como pode ser notado em diversos momentos do trabalho de Erickson a geração de pensamento teórico adquire o caráter de construção, marcada pela história, cultural e subjetivamente, ao invés de um corpo transcendente e desvencilhado de seu sistema sócio-cultural; uma construção que não permite uma relação de controle e manipulação deliberada dos objetos, mas que considera, admira e contempla o entrelaçamento complexo de dimensões próprio aos mesmos. (Neubern, 2002, p.366) Neubern (2002) esclarece que essa abordagem de pensamento não vai de encontro com concepções que caracterizam as teorias como corpos impessoais, independente da relação com a subjetividade social e individual que as antecede e as acompanha. No entanto, informa que essa divergência teórica não se obriga a desconsiderar as abordagens de perspectivas comum e coletiva de pensamento, e sim, aponta uma necessidade de que a generalização aprenda a conviver com a singularidade, a diferença e a criação próprias dos sujeitos. O autor ainda alerta que, ao se buscar explicar as contribuições do legado de Erickson com base nos esquemas teóricos já consagrados, é o mesmo que esgotar todo o potencial criativo de reflexão, submetendo-o a formas teóricas e metodológicas não adequadas para lhe dar com a problemática. Ele afirma que tal atitude é “um erro epistemológico, social e político muito comum nas comunidades científicas, particularmente da 31 psicologia: a de buscar travestir propostas novas com roupagens antigas” (Neubern, 2002, p.370) Neubern (2002) questiona o modelo hegemônico de ciência pelo qual a psicologia tem se orientado e frisa a incompatibilidade epistemológica dessa orientação frente às características do legado de Erickson. Como saída para tal dilema, propõe uma alternativa diferente para se acolher a obra de Erickson dentro dos parâmetros da ciência: julga ser necessário permitir que modos singulares de fazer científico compareçam ao campo científico. Contudo, essa alternativa não significa por um ponto final na questão. “As possíveis conseqüências desse processo para o conhecimento são ainda muito obscuras, pois em uma transição de paradigmas existem poucos fundamentos firmes e seguros para concebê-las.” (Neubern, 2002, p.371) 32 CONCLUSÃO Até que a hipnose fosse concebida e compreendida à maneira como é atualmente, muitos estudos e pesquisas se fizeram necessários. Entretanto, mesmo com alguns esclarecimentos que a tecnologia e as pesquisas puderam contribuir é evidente que muitas questões ainda permanecem no escuro. Compreender a hipnose, tanto em seus efeitos somáticos quanto também sobre o psiquismo, é uma tarefa muito complexa que ainda permanece como um grande desafio para a ciência. Mas isso também não significa que perante a essas dificuldades exista uma impossibilidade de se trabalhar com ela. Edelweiss (1994) cita o exemplo da água que, mesmo antes de ser descrita com os termos científicos atuais, não deixou de ter, universalmente, usos múltiplos corretos, que se enriqueceram com o desenvolvimento dos conhecimentos posteriores. De acordo com a ultima edição do Jornal de Psicologia do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (2006), o uso da hipnose como recurso auxiliar dos psicólogos, em sua aplicação prática e no valor científico, ganhou o reconhecimento não só do Conselho Federal de Psicologia como também da comunidade científica internacional. O jornal ainda informa que de acordo com a professora e coordenadora do Curso de Extensão de Hipnose Clínica da PUC-SP Isabel Cristina Labate, a hipnose tem sido usada para alívio da dor, com a produção de anestesia ou analgesia; em cirurgias e em diferentes áreas da clínica, notadamente em obstetrícia; como tranqüilização para o alívio dos estados de ansiedade e apreensão; para o controle de alguns hábitos, como o tabagismo; em situações na qual a psicoterapia possa ser útil e experimentalmente em qualquer pesquisa, no campo psicológico ou neurofisiológico. Freud utilizava a hipnose como uma forma de terapia, aplicando as sugestões aos sintomas sem se preocupar com os conteúdos conflitantes que davam corpo aos mesmos. Diferente do uso que ele e seus mestres de Nancy fizeram da hipnose, atualmente ela não é utilizada como forma de terapia. Hoje ela é compreendida como um meio de facilitação da psicoterapia, como uma técnica auxiliar que é empregada eventualmente e através de procedimentos especializados. A gama de recursos para se entender e trabalhar com a hipnose hoje é muito mais ampla do que naquele tempo. Os recursos tecnológicos, os diversos estudos já desenvolvidos 33 sobre o tema e também o próprio desenvolvimento da psicanálise, que na época em que Freud utilizava a hipnose ainda estava em seus primórdios, possibilitam um rumo diferente para sua utilização em psicoterapia. O aspecto tradicional da hipnose como técnica passiva centralizada no médico não é mais tido como válido e, em seu lugar, ela se desenvolve em uma experiência interpessoal e dinâmica, onde o paciente participa de maneira ativa. É interessante atentar para o contraste que existe entre as discursões acadêmicas e a prática clínica da Hipnose. Atualmente existem alguns profissionais da área de saúde como médicos, dentistas e psicólogos que a utilizam como técnica auxiliar no processo de tratamento. Entretanto, do lado acadêmico, ainda que muitas contribuições já se fizeram desde que Freud parou de utilizar a hipnose em seu consultório, pouca atenção tem-se destinado a tal fato. Como reflexo, a disponibilidade de materiais no Brasil a respeito do tema é pouca em relação à quantidade de estudos já desenvolvidos internacionalmente (Ferreira, 2006). Pelo que pude perceber ao acompanhar o caminho que se fez na tentativa de se compreender a hipnose, ficou evidente que alguns fatores ligados à forma de se fazer ciência e também ao contexto social e político da época em que ela foi estudada tiveram suas parcelas de responsabilidade para direcionar o rumo de sua trajetória. Acredito que a posição marginal que ela ocupa hoje perante o meio acadêmico não é mais que um reflexo resultante de como ela veio sendo abordada pela comunidade científica e pela sociedade. Diante da atual conjuntura torna-se evidente a necessidade de que se desenvolvam diálogos entre a hipnose e a ciência. O estudo desse tema ainda pode trazer grandes contribuições para a Psicologia e para a ciência como um todo. 34 REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, Medeiros. Hipnotismo. Rio de Janeiro: Conquista, 1959. 318 p. ANDRADE, Osmard. Manual de Hipnose Médica e Odontológica. Rio de Janeiro: Livraria Atheneu, 1979. 357 p. ANTHES, Emily. Science Finally Tackles Hypnosis. Seed Magazine, New York, 20 out. 2006. Disponível em: <http://www.seedmagazine.com/news/2006/10/science_ finally_tackles_hypnos.php> Acesso em: 22 nov. 2006. BAUER, Sofia M. F.. Hipnoterapia ericksoniana passo a passo. Campinas: Editorial Psy, 1998. 317 p. CHERTOK, Leon; STENGERS, Isabelle. 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