Anais do V Congresso da ANPTECRE “Religião, Direitos Humanos e Laicidade” ISSN:2175-9685 Licenciado sob uma Licença Creative Commons UMA ALTERNATIVA HERMENÊUTICA AO CONFLITO DAS INTERPRETAÇÕES Arlene Fernandes Aluna de mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, graduada em Ciência da Religião e em Ciências Humanas pela mesma instituição Universidade Federal de Juiz de Fora [email protected] Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico GT 02 – RELIGIÃO COMO TEXTO: LINGUAGENS E PRODUÇÕES DE SENTIDO Resumo: Na análise que Paul Ricoeur desenvolveu acerca dos símbolos do Sagrado, sua hermenêutica, que valoriza o diálogo interdisciplinar, apresenta-se enquanto um postulado alternativo contra qualquer interpretação que se mostre reducionista. Ricoeur, como o presente estudo buscará mostrar, dialoga com diversas referências e tece suas considerações de forma independente e apontando para novas possibilidades que ampliem os horizontes de interpretações. É tal abordagem, que visou tecer novas considerações a respeito dos símbolos do Sagrado a partir de um conflito de interpretações, e que é exemplo da fidelidade do autor a tal premissa, que tomou-se aqui como referência. Afinal, Paul Ricoeur recorreu a hermenêuticas que exercem interpretações opostas no interior de uma filosofia da reflexão. Foi no conflito entre psicanálise e fenomenologia, induzido pelo autor, que sua hermenêutica foi apresentada como alternativa. É, portanto, diante da procura pela atribuição de sentido, presente em ambas as interpretações, que se mediou uma reinterpretação do símbolo, da qual trataremos. Assim, a partir desta interpretação induzida por Paul Ricoeur, o estudo pretende expor que a linguagem simbólica está para além do apreensível pela razão e por qualquer tentativa de interpretação que tente abarcá-la em sua plenitude. A pertinência desta proposta se faz ver ao passo que se considera, concordando com o autor, que toda interpretação sofre limitações e, por isto, deve ser feita uma aposta na complementaridade das contribuições. Neste sentido, ao contrastar elementos que visam explicar ou compreender a religião, Paul Ricoeur abre um caminho que torna possível repensar a própria definição do conceito, ainda que não se detenha nesta última elaboração conceitual a fim de não reduzir a dimensão do problema. Afinal, como se considerou na análise ricoeuriana, as questões existenciais humanas não cabem nas palavras de que o homem dispõe para se expressar. Palavras-chave: Ricoeur; Sagrado; Hermenêutica; Fenomenologia; Psicanálise. Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. GT0204 Uma alternativa hermenêutica ao conflito das interpretações No âmbito da religião, o simbolismo é extremamente relevante como manifestação da experiência do indivíduo, é a mediação do humano para expressão da crença na divindade, posto que a experiência do Sagrado não é objetivável. A partir desta premissa, Paul Ricoeur pensa a relação do símbolo com a condição existencial de “ser no mundo”. O símbolo contém a analogia das dimensões literal e existencial, e é também refém da contingência cultural, bem como dependente de uma interpretação problemática. Assim, segundo Paul Ricoeur, ele requer hermenêuticas que exerçam interpretações opostas no interior de uma filosofia da reflexão. Diante dessa necessidade do símbolo, que entusiasma o próprio Ricoeur, aponta-se como possibilidade uma interpretação a partir da fenomenologia da religião e uma interpretação psicanalítica da religião. A fenomenologia, frequente nos escritos de Paul Ricoeur, busca desconsiderar do objeto Sagrado sua função e origem. Assim, na busca pela compreensão, tal abordagem relaciona o fenômeno religioso com o símbolo em sua expressão no ambiente da religião. Isto se dá porque a verdade do símbolo é considerada a partir do momento em que se percebe o sentido por traz do conceito. Tal alusão do pleno à compreensão ontológica culmina em considerar o símbolo, como apresentado por Heidegger, como a linguagem mais íntima do ser, aquela que não pode ser exposta senão por meio do simbolismo. Em oposição à interpretação fenomenológica, a hermenêutica freudiana investiga o fenômeno religioso pela função que exerce e não pelo sentido para o qual aponta. Ora, se em O futuro de uma ilusão, Freud chama ilusão o que a fenomenologia considera a verdade do símbolo, ele não se detém na psicanálise, mas ultrapassa seus limites a fim de interpretar a civilização por intermédio de uma hermenêutica geral da cultura. Nesta tarefa, Freud apreende o fenômeno da civilização como constituído por sujeitos que buscam diminuir os sacrifícios institucionais impostos a eles, na procura Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. GT0204 por recompensas satisfatórias para o sacrifício de suas renúncias.1 Ricoeur concorda que estas pretensões são a constituição própria da sociedade e não apenas induções que Freud faz a respeito do sujeito. É nesta “economia” social que a religião surge como sublimação da carga neurótica do indivíduo, pois o ato religioso, através do sacrifício substituído, alivia a culpa. Por outro lado, a religião funciona como consolação à medida que fornece alegrias que substituem os prazeres sublimados da esfera pulsional. Elucidada a ideia de religião como ilusão, na sua conhecida interpretação funcional, Ricoeur opõe tal teoria à concepção fenomenológica de verdade. Na proposta de oposição, o que importa é, primordialmente, compreender a interpretação “econômica” da ilusão como representação religiosa da renúncia e da satisfação por compensação que faz com que o ser humano suporte a vida. É neste ponto da teoria freudiana, em seu embate com a fenomenologia, que Paul Ricoeur encontra a maior discordância entre ambas acerca do simbolismo do Sagrado. Há que ressaltar que, na psicanálise, o símbolo surge como renovação da reminiscência segundo a concepção de religião como ilusão que parte do fantasma dos símbolos. Fantasmas que representam e exprimem os conflitos mais íntimos do homem. Então, finalmente, aponta-se como conclusão que a religião não tem a verdade que a fenomenologia se dispõe a considerar como possibilidade, mas é pura ilusão. Portanto, a religião apenas poderia ser considerada a partir de sua origem e função. Ou seja, a religião é a ressurgência sob a forma do fantasma do símbolo que representa as imagens esquecidas do passado do indivíduo e da humanidade. Em outras palavras, o fantasma do símbolo religioso é equivalente ao recalque na neurose obsessiva. Diante da sua defesa da hermenêutica, Ricoeur não visa apaziguar o conflito entre fenomenologia e psicanálise. Ao contrário, o autor eleva ao extremo ambos os sistemas de interpretação e, para tanto, não hesita em adotar a mais abrupta crítica da religião a partir da psicanálise, a de Freud. Para Paul Ricoeur, o limite da interpretação psicanalítica não se encontra no símbolo de sua análise, mas no conceito de pulsão, 1 A civilização, em Freud, não se resume em impor ao homem a sublimação dos instintos, mas, também, serve para defendê-lo da superioridade da natureza. Quando o homem não consegue lutar com sua própria força contra a “crueldade” da natureza, inventa deuses para exorcizar o medo e seguir o destino junto à crueldade e junto à perturbação do instinto de morte (RICOEUR, 2010, p.132-139). Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. GT0204 pois esse reduz o simbolismo do objeto estudado ao puro ato de renúncia ou satisfação do homem. Se Ricoeur considera ambas as teorias como legítimas, como serão possíveis, enquanto opostas, para a discussão sobre o símbolo? O autor ousa na função de apresentá-las como complementares. Para tanto, faz uso da relação entre consciência e inconsciência, pois é no conceito que envolve a concepção de consciência que é possível inferir uma conexão com o que se entende por manifestação do Sagrado. Mas, por que seria este conceito o cenário de manifestação da experiência religiosa? Para Ricoeur, é diante da tentativa de compreendê-lo como ilusão que a experiência religiosa pode ser apresentada como manifestação autêntica diante da perspectiva da psicanálise. Este novo sentido atribuído ao conceito de consciência implica em negar o que se entendia antes, logo, se agora consciência é ilusão, não é mais sabido o que significa. Assim, considerado isto, consciência existe como possibilidade de inconsciência e “É esta relação dialética entre inconsciente e consciente que comanda a articulação [...] das duas hermenêuticas [psicanalítica e fenomenológica]” (Ricoeur, 1989, p. 318). Na interpretação de Paul Ricoeur, o significado da consciência não mais pode ser reduzido a um conceito descritivo da psicanálise, pois, como reconhecido, se essa é apresentada como possibilidade de ser uma ilusão, então, já não pode mais ser reduzida à concepção de instrumento que inventa outras ilusões para que o humano suporte a vida. Afinal, na própria concepção do conceito pode residir uma ilusão. É a partir disto que é possível colocar que a psicanálise é um movimento em direção ao inconsciente, enquanto a fenomenologia é um movimento em direção ao espírito, apesar de ambas as interpretações partirem da dimensão simbólica. Para os interesses da análise do simbolismo, Ricoeur retoma a questão de por que a reflexão deve buscar a linguagem simbólica e se apresentar como interpretação. E, então, afirma que a reflexão recorre às obras que testemunham o desejo humano, ou seja, aos símbolos. Isto se dá devido ao fato de que não é ela um ato intuitivo, pois refletir é desenvolver o esforço e o desejo de existir.2 É neste sentido que a reflexão 2 Ainda sobre isso, Paul Ricoeur acrescenta que “É neste sentido que os símbolos estão ligados no interior do universo sagrado: os símbolos só vêm à linguagem na medida em que os próprios elementos do mundo se tornam transparentes” (RICOEUR, 1976, p. 73). Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. GT0204 recorre à interpretação, pois não há outra forma, senão a interpretativa, de apreender o ato de existir. A hermenêutica, aqui, se apresenta como articulação das interpretações psicanalítica e fenomenológica. Ambas “humilham a consciência”, logo, se essa é vista como falsa, a reflexão deve descentrar-se. Nas palavras do autor, “perder-se em vista de se encontrar”. Em relação aos símbolos do Sagrado, Ricoeur aponta para a necessidade de tomar conhecimento de que não é possível pretender o saber absoluto. É diante desta afirmação que se pode compreender a sua defesa de que o problema hermenêutico apenas seria superado se houvesse a possibilidade de apreender o inconsciente e o Sagrado. E isto não é possível. O importante é, finalmente, considerar que esta articulação simbólica da linguagem religiosa, desenvolvida na obra de Paul Ricoeur, apresenta o símbolo enquanto sentido a ser reapropriado por quem interpreta. Esta é a chave hermenêutica de sua teoria. Tal afirmação implica em reconhecer que, na dinâmica que Ricoeur desenvolve do leitor diante do texto,3 se encontra uma semelhante relação de alteridade e de co-participação que se percebe na relação entre o intérprete e o símbolo. Na obra do autor, é isto o que permite considerar que há elementos de realidade última que apenas conseguem ser expressos através do símbolo. É neste sentido que foi possível afirmar que a linguagem simbólica está para além do apreensível pela razão e por qualquer tentativa de interpretação que tente abarcá-la em sua plenitude. Foi, então, após contrastar abordagens que visam compreender ou explicar a religião, que Paul Ricoeur apostou na complementaridade de contribuições. Para o autor, “Explicar mais é compreender melhor”. Em outras palavras, “se a compreensão precede, acompanha e envolve a explicação, esta em troca desenvolve analiticamente a compreensão” (RICOEUR, 2011, p. 26). Afinal, é porque não se consegue apreender o símbolo em sua plenitude que a continua reflexão filosófica é possível. 3 A abordagem do simbolismo na obra de Paul Ricoeur se faz a partir do símbolo literário, o qual o autor define: “Um símbolo literário é essencialmente uma ‘estrutura verbal hipotética’, isto é, uma suposição e não uma asserção, na qual a orientação ‘para dentro’ predomina sobre a orientação ‘para fora’, que é a dos símbolos de vocação extrovertida e realista” (RICOEUR, 1995, p. 30). Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. GT0204 Referenciais AMHERDT, François-Xavier. Introdução. In: RICOEUR, Paul. A hermenêutica bíblica. Tradução: Paulo Meneses. São Paulo: Loyola: 2006. RICOEUR, Paul. A hermenêutica bíblica. Tradução: Paulo Meneses. São Paulo: Loyola: 2006. ______. A metáfora viva. Tradução: Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 2000. ______. A simbólica do mal. Tradução: Hugo Barros e Gonçalo Marcelo. Lisboa: Edições 70, 2013. ______. Do texto à acção. Porto: Rés-Editora, [1991]. ______. Escritos e conferências: em torno da psicanálise. Tradução: Edson Bini. São Paulo: Loyola, 2010. ______. Escritos e conferências: hermenêutica. Tradução: Lúcia Pereira de Souza. São Paulo: Loyola, 2011. ______. O conflito das interpretações. Porto: Rés-Editora, [1998]. ______. Tempo e Narrativa: Tomo II. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Papirus, 1995. ______. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Tradução: Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1976. SPERBER, Suzi Frankl; PAULA, Adna Candido de. (orgs). Teoria literária e hermenêutica ricoeuriana: um diálogo possível. Dourados: UFDG, 2011. Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. GT0204