A POLÍTICA SOCIAL NO GOVERNO LULA1 MARIA HERMÍNIA TAVARES DE ALMEIDA RESUMO O artigo enfoca as iniciativas do governo Lula na área social. Inicialmente descreve-se o processo de reforma social implementado ao longo dos governos que se sucederam à redemocratização do país. Em seguida são examinados alguns indicadores da evolução das condições sociais relacionados às políticas na área social no período democrático. Por fim, analisam-se as visões predominantes no governo petista sobre a questão social e as políticas mais apropriadas para enfrentá-la, discutindo as suas propostas e ações nesse âmbito. PALAVRAS-CHAVE: política social;governo Lula;Partido dos Trabalhadores. SUMMARY The article focuses Lula da Silva's government initiatives in the social sphere. First, it describes the process of social reform implemented throughout the governments that took place after re-democratization. Second, it examines some indicators on the evolution of social conditions related to social policies in the democratic period. Finally, it analyzes the current government's dominant points of view on social issues and the best policies to face them, discussing its proposals and actions in this field. KEYWORDS: social policy; Lula da Silva's government; Partido dos Trabalhadores. [1] Artigo publicado simultaneamente na revista El Debate Político (Buenos Aires). A autora agradece a André Urani e ao Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade as informações das tabelas aqui apresentadas. Em 1º de janeiro de 2003, Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência do Brasil. Sua ascensão significou a primeira grande mudança de elites governantes no país desde o final do regime militar, em 1985. Até então o PT fora o único dos sete maiores partidos brasileiros que sempre estivera na oposição no âmbito federal. Ainda que o novo governo se sustente numa coalizão que inclui partidos que já compartilharam o poder nos últimos dezenove anos, a mudança nos quadros dirigentes federais por ele promovida foi bastante profunda. Sendo o PT uma organização comprometida com a reforma social, a sua vitória e a substituição de elites que promoveu teriam alterado significativamente o rumo das políticas sociais? Embora ainda seja cedo para dar resposta definitiva à questão, este artigo começa a enfrentá-la, tomando como indícios as iniciativas da nova administração no plano social. Aqui se sustenta que, para além da retórica governamental acerca do caráter fundador da política social do governo do PT, suas propostas que lograram sair do papel constituem um misto de continuidade e mudança de ênfases e formas de gestão. A prioridade para as políticas de transferência de renda aos mais pobres parece ser, até o momento, o traço mais marcante da política social do governo petista, que a diferencia do que se vinha fazendo na área social no âmbito federal. Contudo, elas apontam para uma concepção de proteção social e um estilo de fazer política social que se afastam das expectativas difusas sobre a atuação reformadora do PT. Para entender o quanto inovam e o quanto prosseguem as ações desenvolvidas por governos anteriores, e ainda o quanto se apartam das concepções tradicionalmente associadas ao reformismo de esquerda, é preciso situá-las em relação à agenda de reforma social que definiu a atuação dos sucessivos governos desde a redemocratização. Assim, a primeira parte do artigo trata da agenda de reforma social construída pelas forças políticas que se opuseram ao regime militar e da sua implementação pelos governos civis até 2002. Na segunda parte apresentamse alguns indicadores da evolução das condições sociais mais diretamente relacionados às iniciativas na área social no período democrático. A terceira parte trata do que parecem ser as visões predominantes no governo petista sobre a questão social e as políticas mais indicadas para enfrentá-la, discutindo suas propostas e iniciativas na área social. A AGENDA DA REFORMA SOCIAL APÓS A REDEMOCRATIZAÇÃO A oposição ao regime autoritário se fez em nome do restabelecimento das liberdades civis e das instituições democráticas, da reestruturação das relações federativas mediante descentralização e do resgate da dívida social, acumulada por um padrão de crescimento que reproduzia a pobreza e multiplicava desigualdades. No plano da política social, a análise da ação dos governos militares identificou características perversas do sistema de proteção social gerado sob a ditadura: excessiva centralização de recursos e de capacidade decisória no governo federal, fragmentação e superposição de políticas e programas, ineficiência do gasto social, clientelismo, regressão na distribuição de benefícios e serviços sociais. O sistema de proteção social que amadureceu durante o regime militar constituiu uma variedade do modelo conservador, na definição de Esping-Andersen, ou meritocrático-particularista, como preferem Draibe e Aureliano2. A crítica a esse sistema conservador definiu uma agenda de reforma social. Ela deveria caminhar na direção da descentralização, da participação dos beneficiários nas decisões, do combate ao uso clientelista das iniciativas na área social, da racionalização e aumento da eficiência do gasto, da universalização e da busca de maior eqüidade na prestação de benefícios e serviços sociais. Também for- [2] Esping-Andersen, Gosta. The three worlds of the welfare capitalism. Princeton: Princeton University Press, 1990; Aureliano, Liana e Draibe, Sônia. "A especificidade do Welfare State brasileiro". In: MPAS/ Cepal. A política social em tempo de crise: articulação institucional e descentralização, vol. 3. Brasília, 1989. Em oposição a essas autoras, Werneck Vianna inclui o sistema de proteção social brasileiro no modelo "residual" ou "liberal", uma vez que atenderia especialmente os pobres, enquanto as necessidades de proter ção dos setores médios seriam providas pelo mercado (Werneck Vianna, Maria Lúcia. A americanização (perversa) da seguridade social no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1998). Penso no entanto que essa tese é de difícil sustentação quando levamos em conta as características do sistema previdenciário — em especial aquele que atende o setor público — e do sistema de educação fundamental, no qual a oferta pública de vagas atende cerca de 90% da demanda. [3] Cf. Heclo, Hugh. Modern social policy in Britain and Sweden: from relief to income maintenance. New Haven: Yale University Press, 1974; Rimlinger, Gaston. Welfare policy and industrialization in Europe, America, and Rússia. Nova York: Wiley & Sons, 1982; Weir, Margaret, Orloff, Ann S. e Skocpol, Theda (orgs.). The politics of social policy in the United States. Princeton: Princeton University Press, 1988; Esping-Andersen, op. cit. [4] As discussões e primeiras iniciativas de reforma do sistema de saúde tiveram início na gestão Sarney. O governo federal montou ainda programas emergenciais destinados aos mais pobres, entre os quais se destacou o de distribuição de leite. Também são desse período as primeiras experiências de reforma descentralizadora da educação, feitas por governos estaduais. As mudanças introduzidas pela Constituição são assim resumidas por Sonia Draibe (Brasil, anos 90: as políticas sociais no marco das reformas estruturais. Campinas, 1999, mimeo, p. 10): "a) ampliação e extensão de direitos sociais, b) concepção de seguridade social como forma mais abrangente de proteção, c) um certo afrouxamento do vínculo contributivo como princípio estruturante do sistema, d) universalização do acesso e expansão da cobertura, e) recuperação e redefinição dos patamares mínimos dos valores dos benefícios sociais, f) maior comprometimento do Estado com o sistema, projetando um maior grau de provisão estatal pública de bens e serviços sociais". [5] Em 2001, 90% dos 5.531 municípios brasileiros já haviam assumido a gestão plena da rede de atenção básica à saúde. mou-se consenso em torno da necessidade de promover políticas emergenciais destinadas a atender as populações mais carentes, enquanto não se fizessem sentir os presumíveis efeitos combinados do crescimento econômico sustentado e de um sistema de proteção social mais equânime e eficiente. Como em todas as experiências de reforma social3, pesquisadores de universidades, de órgãos de pesquisa do governo — como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) — e de organismos internacionais — como a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e o Instituto Latinoamericano de Planificación Económica y Social (Ilpes/Cepal) — foram decisivos na elaboração de diagnósticos e para dar forma a proposições de reformas. As mudanças no modelo de proteção começaram com o estabelecimento do primeiro governo civil e foram inscritas na Constituição de 19884, tendo como horizonte a universalização do acesso à seguridade, à saúde e à educação básica. No plano da distribuição das responsabilidades pelo provimento de bens e serviços sociais entre níveis de governo, concebeu-se um modelo de federalismo cooperativo descentralizado, com significativa ampliação das atribuições dos municípios. A essas mudanças no desenho e escopo das políticas e nas competências federativas correspondeu uma nova estrutura de financiamento dos gastos sociais, caracterizada por acentuada descentralização fiscal. Ao longo dos anos 1990 foram tomando corpo as diretrizes de reforma definidas na nova Constituição, com a lenta descentralização de responsabilidades e recursos e a extensão da prestação de benefícios e serviços sociais, sobretudo nas áreas de saúde, educação básica e assistência social. Dois fatores foram decisivos nesse processo. O primeiro foi a estabilidade monetária resultante do Plano Real, que tornou mais previsíveis os fluxos de recursos na área social. O segundo foi um longo aprendizado institucional que possibilitou a criação de incentivos à descentralização de responsabilidades e à cooperação entre os níveis de governo para o provimento de bens e serviços sociais. Assim, na segunda metade da década completou-se a municipalização da assistência social e da rede básica de saúde5 e avançou-se significativamente na transferência aos municípios da responsabilidade pelos quatro primeiros anos do ensino fundamental. De outra parte, o acesso ao ensino fundamental e ao sistema público de saúde tornaram-se quase universais, enquanto a assistência social foi significativamente ampliada com os programas de garantia de renda para os idosos e portadores de deficiência física ou mental. No primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso começou-se a corrigir as distorções do sistema previdenciário, caracterizado pela regressão na distribuição dos benefícios. Por meio de mudança constitucional, fez-se uma reforma moderada no sistema previdenciário do setor privado, que alterou a idade mínima e o tempo de contribuição requeridos para o acesso à aposentadoria. O sistema previdenciário dos servidores públicos, que acumulava as maiores distorções, permaneceu no entanto intocado6. Por fim, no campo das políticas sociais focalizadas nos segmentos mais pobres e vulneráveis ocorreram inovações significativas e em muitas direções. Ainda durante a administração Cardoso foram criados programas concebidos como componentes de uma rede de proteção social que incluiria também a previdência rural e os programas não-contributivos da assistência social: Bolsa-Escola, Erradicação do Trabalho Infantil, Bolsa-Alimentação, Auxílio-Gás, Agente Jovem, Programa de Saúde da Família, Programa de Apoio à Agricultura Familiar, além do Projeto Alvorada, para os 2.361 municípios brasileiros com maior proporção de habitantes situados abaixo da linha da pobreza. Em todos esses programas a opção foi a transferência direta de renda monetária aos beneficiários, com gestão centralizada no governo federal7. Foram assim eliminados os programas de distribuição de cesta básica de alimentos, que com freqüência se prestavam à manipulação clientelista. Os programas de transferência direta de renda impunham contrapartidas aos beneficiários, tais como freqüência escolar das crianças e ida da família a postos de saúde, na suposição de que assim se criariam condições para a sua futura independência econômica. Na prática, porém, o controle das contrapartidas foi de difícil execução. Por outro lado, o estabelecimento de mecanismos automáticos de transferência de recursos para educação, saúde e assistência social reduziu os espaços da barganha política e do clientelismo, embora não os tenha eliminado. Finalmente, o programa Comunidade Solidária, criado e comandado por Ruth Cardoso, experimentou novas formas de articulação entre ministérios e organizações da sociedade civil, buscando estender as fronteiras da esfera pública para além do território estatal. Algumas áreas ficaram fora do processo de reformas: jamais se chegou a consensos mínimos sobre as políticas de habitação e saneamento, e tampouco surgiram iniciativas inovadoras para as grandes cidades e metrópoles. Apesar da importância adquirida pelos programas da rede de proteção social no segundo mandato de Cardoso, a ênfase da atuação do governo federal continuou a recair sobre as políticas universais — especialmente educação fundamental e atendimento básico de saúde. Sob esse aspecto, mantiveram-se as concepções de reforma do sistema de proteção social definidas na década anterior, orientadas pela busca de maior eqüidade e universalização do acesso8. O LENTO (E LIMITADO) RESGATE DA DÍVIDA SOCIAL As mudanças no sistema de proteção social, decorrentes de esforços realizados nos três níveis de governo, e a estabilização da moeda trouxeram resultados inegavelmente positivos, embora modestos. [6] Para uma análise da reforma da previdência, cf. Melo, Marcus. Reformas constitucionais no Brasil: instituições políticas e processo decisório. Rio de Janeiro: Revan, 2002. [7] As prefeituras cadastravam os beneficiários — por meio da Caixa Econômica Federal —, mas depois perdiam o controle sobre a distribuição dos benefícios. [8] Para um exemplo dessas concepções, ver o documento oficial do governo brasileiro para a conferência "Copenhague + 5", das Nações Unidas: Brasil, Ministério das Relações Exteriores Brasil — relatório nacional, Copenhague +5. Brasília, 2000. A Tabela 1 apresenta algumas indicações disso para o período 19922002: o analfabetismo foi reduzido; melhoraram o acesso e os níveis de educação; a mortalidade infantil baixou; diminuiu também a proporção de pobres e indigentes. Esses resultados tornam-se ainda mais significativos quando levamos em conta que a inflação só foi controlada na metade da década de 1990, que o crescimento econômico foi baixo e descontínuo e que o desemprego cresceu. TABELA I Indicadores sociais selecionados Brasil 1992-2002 Indicadores Anos 1992 2002 11.9 3.8 Crianças (7-14 anos) na escola (%) Defasagem média de anos de estudo (10-14 anos) 17.2 12,4 81,9 2,1 94.5 1,1 Crianças (10-14 anos) na escola com mais de dois anos de atraso escolar (%) Taxa de analfabetismo (15 anos ou mais) Taxa de analfabetismo infantil 37.3 16,1 Média de anos de estudo (25 anos ou mais) Pessoas com oito anos de estudo ou mais (%) 4.9 28,6 39.5 Mortalidade infantil (em mil) 45.2 27,8 6,6 9.2 40,8 32,9 13.4 Taxa de desemprego (15 anos ou mais) Proporção de pobres1 (%) Proporção de indigentes2 (%) 19.3 6,1 Fonte: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD); elaboração: Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade. [1] Pessoas com rendimento abaixo da linha da pobreza (R$ 125, em reais de setembro de 2002). [2] Pessoas com rendimento abaixo da linha da indigência (R$ 62, em reais de setembro de 2002). A melhora na educação e na saúde e nos indicadores de pobreza e indigência contrasta no entanto com a persistência das desigualdades, medidas de diferentes formas. Verificam-se no mesmo período desigualdades flagrantes entre ricos e pobres, entre brancos e nãobrancos e entre regiões do país, como apontam os indicadores da Tabela 2. Em resumo, quando as eleições nacionais entregaram o governo federal ao PT e seus aliados o país já implementara parte importante da agenda de reformas do sistema de proteção social herdado do regime autoritário, lograra êxitos limitados contra a pobreza, melhorara as condições da educação e da saúde e fracassara na redução das desigualdades. Não era esse porém o diagnóstico do PT. TABELA 2 Indicadores de desigualdade selecionados Brasil 1992-2002 Indicadores índice de Gini Razão de renda apropriada pelos 20% mais ricos e 20% mais pobres Anos 1992 2002 0,58 0,59 26,8 25,6 10,6 7,7 18,2 Taxa de analfabetismo (15 anos ou mais) Brancos Pretos e pardos Média de anos de estudos 25,8 Brancos Pretos e pardos Taxa de desemprego 5.9 3,6 Brancos Pretos e pardos 6,0 8,2 7.4 10,4 5.5 8,2 7,4 11,7 Taxa de desemprego Homens Mulheres 7,0 4,9 Proporção de pobres1 (%) Norte Nordeste Centro-Oeste Sudeste Sul 52,8 45.2 65,7 33,8 56,5 27,5 23.5 21,0 21,8 32,3 Fonte: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD); elaboração: Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade. [1] Pessoas com rendimento abaixo da linha da pobreza (R$ 125, em reais de setembro de 2002). A POLÍTICA SOCIAL NAS ELEIÇÕES E DEPOIS Lula e seus aliados tinham um discurso eleitoral forte e eficaz, que consistia em enfatizar a magnitude da pobreza e das desigualdades existentes no país e em apresentar a oposição como a mais capaz de vencê-las. Sua retórica ignorava os avanços de uma década e meia de democracia em conseqüência da ação de governos, elites técnicas e movimentos sociais — muitos dos quais, por sinal, ligados ao próprio PT. Ao contrário, ressaltava a natureza secular dos problemas sociais brasileiros, condicionando a mudança à vitória de Lula. A mudança anunciada, mais pela força da imagem do candidato e de seu partido do que pela definição das propostas, adquiria um conteúdo social preciso: a redução substancial da pobreza e das desigualdades, a inclusão plena dos milhões de pobres pelo Brasil afora. No plano da política social, a eleição de Lula seria um momento fundador. A única promessa concreta da campanha foi a criação de empregos, com a alteração da política econômica de forma a promover a retomada [9] O Fome Zero contemplaria três grandes conjuntos de iniciativas. O primeiro incluiria políticas estruturais: geração de emprego e renda, previdência social universal, incentivo à agricultura familiar, intensificação da reforma agrária, bolsa-escola e renda mínima. O segundo contemplaria políticas específicas: programa de cupom-alimentação (depois substituído por uma transferência direta de R$ 50 a cada beneficiário por meio do cartão-alimentação), doações de cestas básicas emergenciais, manutenção de estoques de segurança, quantidade e qualidade de alimentos, ampliação do Programa de Alimentação do Trabalhador, combate à desnutrição infantil e materna, ampliação da merenda escolar, educação para o consumo e educação alimentar. Por fim, haveria políticas para áreas rurais, pequenas e médias cidades e metrópoles, com uma série de medidas que incluiriam, nos dois últimos casos, bancos de alimentos formados por doações (cf. Instituto Cidadania. Projeto Fome Zero - uma proposta de política de segurança alimentar para o Brasil. São Paulo, 2001). [10] Diz o documento: "A pouca capacidade dos gastos sociais da União em reduzir a desigualdade de renda decorre do fato de que boa parte dos recursos é destinada aos não-pobres, assim como da gestão ineficiente dos recursos destinados aos programas sociais. A falta de avaliação específica dos impactos desses recursos sobre a população beneficiada contribui de forma decisiva para esse problema. [...] Além disso, é necessário reformular o desenho das políticas de arrecadação e transferência do Estado de modo a reduzir a desigualdade da renda. [...] O desenho dessas políticas poderá ser bastante efetivo em redistribuir renda, conforme verificado em outros países" (Brasil, Ministério da Fazenda. Política econômica e reformas estruturais. Brasília, 2003, p. 15). [11] Coordenado pelo economista Alexandre Scheinkman, o texto fora apresentado como contribuição ao debate durante a campanha eleitoral de 2002. [12] Supunha que o principal problema dos pobres brasileiros é a falta de comida, quando se sabe que a desnutrição e a fome crônica atingem apenas uma parcela reduzida dos mi- do crescimento sustentado. No terreno das políticas sociais propriamente ditas, pouco se disse durante a disputa eleitoral, como de resto ocorre em tais circunstâncias. Dois foram os documentos sobre políticas sociais dados a público antes e imediatamente depois das eleições: "Projeto Fome Zero: uma proposta de política de segurança alimentar para o Brasil", de 2001, e "Política econômica e reformas estruturais", produzido entre a eleição e a posse do novo governo. O primeiro, produzido por 45 pesquisadores do think tank petista Instituto Cidadania, sob a orientação de José Graziano da Silva, consistia numa combinação de políticas assistenciais com ações mais abrangentes de incentivo à agricultura familiar9. O segundo documento, preparado pela equipe do ministro da Fazenda, composta por economistas de orientação liberal não pertencentes ao PT, era uma exposição mais extensa sobre os rumos do governo Lula. Focalizado na política econômica, incluía um capítulo de propostas de política social, no qual a reforma da previdência social aparecia em lugar destacado, no capítulo dedicado ao tema do equilíbrio fiscal de longo prazo. Os objetivos declarados eram os seguintes: recompor o equilíbrio da previdência pública, garantindo sua solvência no longo prazo; diminuir a pressão sobre os recursos, permitindo o resgate da capacidade de gasto público; e aumentar a eqüidade, reduzindo as distorções nas transferências de renda realizadas pelo Estado. O tema das políticas sociais era tratado do ângulo da redução de seus efeitos regressivos mediante o aumento da eficácia do gasto social e da efetividade dos programas e ações, a ser obtida com maior focalização nos grupos de menor renda10. Pouco se falava de outras políticas universais além da previdência, e conferia-se uma clara primazia às políticas destinadas aos mais pobres, percebidas como o núcleo duro da política social. O documento do Ministério da Fazenda — que se inspirava num texto preparado por um grupo de economistas de orientação liberal da Universidade de Princeton, intitulado "A agenda perdida"11 — retomava temas da agenda prévia da reforma social, dando-lhes um tratamento muito próximo daquele endossado pelo Banco Mundial e pelo ideário neoliberal. Refletia mais as opiniões da equipe do ministro, integrada por um dos autores da "Agenda perdida", do que da maioria dos quadros e intelectuais petistas. Assim, Lula começou a governar tendo em mãos duas propostas para a área social, ambas situando os mais pobres no centro da política social do novo governo. A primeira, vinda do partido, era excessivamente complexa — requeria a articulação entre vários ministérios e níveis de governo — e alicerçava-se num diagnóstico equivocado12. A segunda, por não ser do partido, sofreu veementes críticas de parte de seus quadros intelectuais. Na verdade, para além das mensagens de campanha o PT não havia formulado durante seus anos na oposição um diagnóstico mais denso dos desafios na área social, capaz de obter consenso partidário e de fundamentar prioridades de ação claras. Em conseqüência, os primeiros passos do novo governo na área social foram na direção de iniciativas de forte impacto simbólico em âmbito nacional e internacional. Nos primeiros dias da nova administração foi lançado o programa Fome Zero e simultaneamente divulgou-se uma proposta de reforma da previdência social. Primeira iniciativa legislativa do governo, essa proposta foi aprovada pelo Congresso após meses de discussão, no final de 2003. Partia do ponto em que a deixara o governo Cardoso: a mudança do sistema previdenciário dos servidores públicos. Assim, investia contra o sistema de privilégios vigente, estabelecendo o mesmo teto para as aposentadorias dos empregados dos setores público e privado, e criava a previdência complementar, a ser definida em legislação específica. A proposta de reforma da previdência social buscava inequivocamente corrigir as distorções de um sistema de benefícios iníquo e regressivo. Nesse sentido, dava continuidade à agenda de reformas da redemocratização — mais especificamente a do governo anterior. Entretanto, também era uma proposta inegavelmente bem recebida pelas agências internacionais, investidores externos e o establishment conservador nacional, todos esperando do novo governo sinais de moderação política e de disposição a manter-se dentro dos parâmetros de austeridade fiscal. Da mesma forma, o Fome Zero tinha o dom de despertar simpatia universal, obtendo aprovação tanto de agências internacionais e governos estrangeiros de várias orientações quanto de organizações e personalidades ligadas às lutas contra a globalização. Além disso, proporcionava ao governo um succès d'estime nos fóruns internacionais. Internamente, servia à mobilização da sociedade civil e reforçava a imagem de um presidente identificado, por sua biografia e trajetória política, com os socialmente excluídos. Entretanto, ao contrário da proposta de reforma previdenciária, o Fome Zero carecia de substância e objetivos claramente definidos, parecendo desconhecer o elenco de programas da rede de proteção social instituídos no governo anterior. Compunha-se de uma multiplicidade de ações, entre as quais transferência de renda monetária (Cartão-Alimentação), distribuição de cestas básicas, criação de restaurantes populares e bancos de alimentos, compra de alimentos de agricultores familiares, educação alimentar, construção de poços artesianos e habitação popular, distribuição de leite, alfabetização. Requeria que as ações de vários ministérios, sempre de difícil realização, fossem coordenadas pelo recém-criado Ministério Especial de Segurança Alimentar. Assentava-se sobre um diagnóstico discutível das carências sociais no país, ao supor que a fome é o principal problema dos pobres brasileiros. Finalmente, sua precária implementação revelou um estilo centraliza- lhões de pobres brasileiros. Estes, mais do que de comida, precisam de serviços públicos — saúde, educação, saneamento — com um mínimo de qualidade, moradia decente e renda suplementar para suprir outras necessidades. Para uma crítica do diagnóstico do Fome Zero, cf. Monteiro, Carlos Augusto. "A dimensão da pobreza, da desnutrição e da fome no Brasil: implicações para as políticas públicas". Estudos e Pesquisas. Brasília: Inae, nº 53, 2003. [13] O Bolsa-Família prevê uma parcela de renda transferida sem contrapartidas, criando um piso minimo de renda familiar no país, e a possibilidade de uma segunda parcela condicionada à freqüência das crianças na escola. Na prática, o controle do cumprimento dessa condição continua tão difícil quanto no caso do Bolsa-Escola e do BolsaAlimentação. [14] No início do governo, o combate ao analfabetismo, que está longe de ser o principal problema educacional brasileiro, pareceu ocupar o centro da política educacional. [15] Destaque-se a mudança do sistema de avaliação do ensino superior, com a substituição do "Provão" pelo Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes) e o controvertido estabelecimento de cotas para pobres, negros e indígenas nas universidades públicas e nos estabelecimentos privados que se beneficiam de isenções fiscais. Uma proposta abrangente para o terceiro grau foi apresentada a debate por ocupantes dos principais cargos do Ministério da Educação (Haddad, Fernando e outros. "A reforma da educação superior". Teoria & Debate, vol. 17, nº 59, 2004, pp. 18-21), mas não é aqui discutida por exceder ao escopo da discussão sobre políticas sociais. [16] Caso não haja recursos adicionais é possível que a pressão sobre os municípios, para ampliar o acesso à pré-escola, e sobre os governos estaduais, para expandir o ensino médio, retire recursos da educação fundamental, na qual os problemas não são mais de universalização do acesso, mas de melhoria da qualidade. Nesse caso, o Fundeb tenderia a ser um retrocesso. dor, expresso na atuação direta do governo federal nos municípios, passando ao largo de governos estaduais e instituições participativas criadas nos períodos anteriores. A fragilidade do programa foi ficando patente, até que, no final de 2003, o Ministério de Segurança Alimentar foi fundido com o Ministério da Assistência Social, o ministro transformado em assessor especial da Presidência e o Cartão-Alimentação incorporado a um novo programa de transferência direta de renda, o Bolsa-Família, unificando-se três dos programas criados na administração Cardoso: o BolsaEscola, o Bolsa-Alimentação e o Auxílio-Gás. Buscou-se ainda, por meio de convênios, unificar a ação dos governos federal, estaduais e municipais em um único programa de transferência direta da renda. O Bolsa-Família, ainda em fase de implantação, é hoje anunciado como o carro-chefe da política social do governo Lula¹3. A comparação entre as execuções física e orçamentária dos programas de transferência de renda no último ano da administração Cardoso e no primeiro do governo Lula, apresentada no Quadro 1, mostra a dimensão modesta do Cartão-Alimentação em cotejo com os programas já existentes. Indica também a continuidade de esforços entre os dois governos, no que respeita às políticas de renda focalizadas nos mais pobres. Até o momento, a reforma da previdência, o Fome Zero e o BolsaFamília (implantando no início de 2004) constituíram as principais iniciativas do governo Lula na área social. O programa Primeiro Emprego, destinado a incentivar o emprego de jovens pobres e lançado pelo Ministério do Trabalho em 2003, não conseguiu sair do papel, enquanto as políticas de saúde foram marcadas por forte continuidade em relação ao governo anterior. A área de educação caracterizou-se, no primeiro ano, por uma disposição de rever o curso até então seguido, sem que se estabelecessem com clareza objetivos e prioridades. A gestão do ministro Cristóvam Buarque foi marcada pelo recorrente anúncio de iniciativas que não chegavam a se materializar'4. Depois de sua substituição, no começo de 2004, o ensino superior parece ter se tornado a prioridade da ação governamental na área de educação15. Quanto ao ensino básico, a principal proposta apresentada é a transformação do Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) em Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica), o que possibilitaria a inclusão do ensino médio no sistema de incentivos idealizado pelo governo anterior. Sua implementação poderá constituir um importante aprofundamento da política de estímulos à melhoria educacional, desde que sejam injetados recursos adicionais, permitindo assim a manutenção dos montantes já destinados ao ensino fundamental16. QUADRO I Programas de transferência de renda (sem contribuição prévia) do governo federal Brasil 2002-03 2002 Execução fisica Programas Metade beneficiários Dotação final (R$ milhões) 1.657,6 5,5 milhões de famílias e 10,2 milhões de alunos 1.708,8 Bolsa-Escola 5,1 milhões de famílias e 8,7 milhões de alunos Erradicação do 809,2 mil crianças/adolescentes (7-14 anos) Trabalho Infantil Bolsa-Alimentação 1,3 milhão de crianças 2003 Execução orçamentária (R$ milhões) 511,7 841,4 mil 481,3 crianças/adolescentes 2,0 milhões Execução orçamentária (R$ milhões) 5,1 milhões de famílias e 5,4 milhões de alunos 1.658,2 810,8 mil 475,1 crianças/adolescentes (7-14 anos) 152,0 Execução fisica (7-14 anos) 360,0 de crianças, gestantes 2,9 milhões 355,1 de crianças e nutrizes Auxílio-Gás — Brasil Jovem 55,5 mil jovens (15-17 anos) Aposentadoria 6,9 milhões rural de pessoas Renda mensal 673,8 mil vitalícia pessoas Benefício de 1,5 milhão prestação de pessoas — 55,8 16.510,7 7,9 milhões de famílias 51,9 mil jovens (15-17 anos) 6,5 milhões 839,0 Não disponível 809,0 56,2 55,5 mil jovens (15-17 anos) 55,9 17.548,5 de pessoas 1.711,5 641,6 mil 1,5 milhão 20.139,3 1.968,8 615,9 mil pessoas 1.968,8 3.819,0 1,6 milhão 4.505,7 pessoas 3.539,6 6,7 milhões de pessoas de pessoas de pessoas continuada Seguro-Safra — — 476,7 mil 82,3 212,0 mil agricultores 36,6 1.034,4 1,9 milhão de famílias 633,0 agricultores Cartão-Alimentação — Total — 2,5 milhões de famílias 24.138,9 27.898,4 Fonte: ministérios setoriais e Secretaria de Orçamento Federal; elaboração: Ana Lobato. CONCLUSÃO Em que pese a forte associação simbólica entre o presidente Lula e seu partido, de um lado, e a reforma social, de outro, o novo governo não mostrou ter uma concepção clara e realista de proteção social, capaz de guiar a sua ação pública. A julgar pelo que foi realizado até agora, a política de Lula segue as das administrações anteriores, especialmente as de Cardoso. Ao mesmo tempo, a ênfase da atividade governamental parece ter se deslocado das políticas universalizantes e habilitadoras, como educação e saúde, para os programas assistenciais 30.636,7 destinados aos mais pobres, como o Bolsa-Família. Nesse sentido, a atual política social em parte se distingue e se afasta do curso seguido desde meados dos anos 1980, aproximando-se das concepções mais limitadas de proteção social. MARIA HERMÍNIA TAVARES DE ALMEIDA é professora titular do Departamento de Ciência Política da USP.