"Nós, brasileiros, somos um povo em ser, impedido de sê

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"Nós, brasileiros, somos um povo em ser, impedido de sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito,
já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos
fazendo. Essa massa de nativos viveu por séculos sem consciência de si... Assim foi até se definir
como uma nova identidade étnico-nacional, a de brasileiros..." Darcy Ribeiro, em O Povo Brasileiro
Brasileiros... Um povo novo? Que tipo de povo somos nós ? A verdade é que muito já se escreveu sobre isso.
E, no entanto, continuamos a fazer as mesmas perguntas... O Povo Brasileiro: vamos ver o que este livro
conta.
Meu livro mostra por que caminhos e como nós viemos, criando aquilo que eu chamo de Nova Roma. Roma
com boa justificação... Roma por quê? A grande presença no futuro da romanidade, dos neolatinos é a nossa
presença. Isso é o Brasil, uma Roma melhor porque mestiça, lavada em sangue negro, em sangue índio, sofrida
e tropical. Com as vantagens imensas de um mundo enorme que não tem inverno e onde tudo é verde e lindo, e a
vida é muito mais bela... E é uma gente que acompanha esse ambiente com uma alegria de viver que não se vê
em outra parte. Esse país tropical, mestiço, orgulhoso de sua mestiçagem... Isso é que me levou muito tempo.
Entender como isso se fez... Havia muita bibliografia sobre aspectos particulares, mas não uma visão de
conjunto. Deixa eu contar pra vocês como é que isso se fez?
"Os iberos se lançaram à aventura no além-mar... desembarcavam sempre desabusados, atentos aos mundos
novos, querendo fruí-los, recriá-los, convertê-los e mesclar-se racialmente com eles... "
O Povo Brasileiro
No Brasil a mestiçagem sempre se fez com muita alegria, e se fez desde o primeiro dia... Eu prometi contar
como. Imagine a seguinte situação: uns mil índios colocados na praia e chamando outros: "venham ver, venham
ver, tem um trem nunca visto"... E achavam que viam barcas de Deus, aqueles navios enormes com as velas
enfurnadas... "O que é aquilo que vem?" Eles olhavam, encantados com aqueles barcos de Deus, do Deus Maíra
chegando pelo mar grosso. Quando chegaram mais perto, se horrorizaram. Deus mandou pra cá seus demônios,
só pode ser. Que gente! Que coisa feia! Porque nunca tinham visto gente barbada � os portugueses todos
barbados, todos feridentos de escorbuto, fétidos, meses sem banho no mar... Mas os portugueses e outros
europeus feiosos assim traziam uma coisa encantadora: traziam faquinhas, facões, machados, espelhos,
miçangas, mas sobretudo ferramentas. Para o índio passou a ser indispensável ter uma ferramenta. Se uma
tribo tinha uma ferramenta, a tribo do lado fazia uma guerra pra tomá-la.
Crianças indígenas: junto à natureza
Ao longo da costa brasileira se defrontaram duas visões de mundo completamente
opostas: a selvageria e a civilização. Concepções diferentes de mundo, da vida, da
morte, do amor, se chocaram cruamente. Aos olhos dos europeus os indígenas
pareciam belos seres inocentes, que não tinham noção do "pecado". Mas com um
grande defeito: eram "vadios", não produziam nada que pudesse ter valor comercial.
Serviam apenas para ser vendidos como escravos. Com a descoberta de que as
matas estavam cheias de pau-brasil, o interesse mudou... Era preciso mão-de-obra
para retirar a madeira.
Onde tinha algum europeu instalado na costa em contato com as naus, e portanto capaz de fornecer
mercadoria, cada aldeia, e eram milhares de aldeias, levava uma moça pra casar com ele. Se ele transasse com
a moça, então ele se tornava cunhado. Ele passou a ter sogro, sogra, genros... ele passou a ser parente. Então o
sabido do português, do europeu, conseguia desse modo pôr milhares de índios a serviço dele, pra derrubar
pau-brasil...
A porta de entrada do branco na cultura indígena foi o "cunhadismo". Através desse costume foi possível a
formação do povo brasileiro. E da união das índias com os europeus nasceu uma gente mestiça que
efetivamente ocupou o Brasil.
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No ventre das mulheres indígenas começavam a surgir seres que não eram indígenas, meninas prenhadas pelos
homens brancos � e meninos que sabiam que não eram índios... que não eram europeus. O europeu não
aceitava como igual. O que era ? Era uma gente "ninguém ", era uma gente vazia. O que significavam eles do
ponto de vista étnico ? Eles seriam a matéria com a qual se faria no futuro os brasileiros...
Um dos primeiros núcleos povoadores surgiu em São Paulo, chefiado pelo
português João Ramalho. Há quem afirme que ele tenha chegado ao planalto
paulista antes mesmo da chegada de Cabral. Os poucos registros da época supõem
que ele teve mais de trinta mulheres índias e quase oitenta filhos mestiços. Um
escândalo comentado numa carta do padre Manoel da Nóbrega de 1553!
Edificação antiga em SP:
povoamento
"É principal estorvo para com a gentilidade que temos, por ser ele muito conhecido e aparentado com os
índios. Tem muitas mulheres. Ele e seus filhos andam com irmãs e têm filhos delas... suas festas são de
índios e assim vivem andando nus como os mesmos índios... "
Trecho da carta de Manoel da Nóbrega
O povoamento se fez a partir do litoral. Na Bahia, em Pernambuco, no Espírito Santo e no Rio de Janeiro, em
toda a costa os europeus geraram uma legião de mestiços. Homens e mulheres chamados de mamelucos
pelos jesuítas espanhóis, por acusa do aspecto rústico e da violência com que capturavam e escravizavam os
indígenas, de quem descendiam.
"A expansão do domínio português terra adentro, na constituição do Brasil, é obra dos mamelucos... O
mameluco abriu seu mundo vasto andando descalço, em fila, por trilhas e estreitos sendeiros, carregando
cargas no próprio ombro e no de índios e índias cativas..."
O Povo Brasileiro
Esses filhos das índias aprendem o nome das árvores, o nome dos bichos, dão nome a cada rio... Eles
aprenderam, dominaram parcialmente uma sabedoria copiosa, que os índios tinham composto em dez mil anos.
Em dez mil anos os índios aprenderam a viver na floresta tropical, identificaram 64 tipos de árvores frutíferas,
domesticaram muitas plantas, essas que a gente usa: mandioca, milho, amendoim.... quarenta e tantas que nós
demos ao mundo...
A mandioca faz parte do cardápio do brasileiro. Ela é cultivada e preparada em todo o país do mesmo modo
que os indígenas ensinaram no começo da colonização. É uma planta preciosa porque não precisa ser colhida
nem estocada. Mantém-se viva na terra por meses.
Nas comunidades caiçaras, isoladas dos centros urbanos, é possível reviver um
pouco da atmosfera do Brasil dos primeiros tempos. Os ancestrais dessa gente
provavelmente descendem dos primeiros mestiços que habitaram o litoral. A canoa,
feita a partir do tronco de árvore, se parece com as usadas pelos índios. Ela é o
único meio de transporte e garante a sobrevivência.
Herança indígena: canoa feita de
tronco
Em alguns lugares o recuo na história é ainda maior. Quinhentos anos após a
chegada dos portugueses, é possível encontrar indígenas vivendo no litoral, próximo
do Rio de Janeiro. São guaranis, um povo nômade, de origem tupi, que hoje habita a
Serra do Mar. Eles conseguiram resistir ao processo de extermínio de sua gente e à
ocupação de suas terras. Mesmo depois de séculos de contato eles conseguiram
preservar boa parte de sua cultura.
Índia guarani: resistência
"Antigamente a terra era do índio guarani... Guarani passava com fruta do mato. A mistura era palmito. Hoje
nós estamos que nem branco. Os brancos terminaram com a natureza. Nosso trabalho a maioria é de lavoura;
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comemos numa panela só. A gente sente o guarani como puro brasileiro, porque muitos brancos dizem:
�esses bugres aí, índio não vale nada�. Não é isso não. O puro guarani é o brasileiro puro... "
Depoimento de Cacique Miguel
Zeferino: "Importante é assumir"
"Meu nome é Olívio Zeferino. Não sou índio puro, sou mestiço guarani.... porque o
que causa essa questão de ser ou não ser é essa identidade em que você é metade.
Então, por exemplo, você é um mestiço. Tem uns que assumem a cultura indígena.
Tem uns que são mestiços e assumem a cultura do branco. Então uma pessoa que
nasceu com fisionomia de índio não adianta querer falar que é branca, porque todo
mundo vê. Agora, o importante é você assumir, porque mesmo sendo mestiço você
pode lutar pelo seu povo. "
Depoimento de Olívio Zeferino, estudante de Filosofia na USP
Há duas contribuições fundamentais nesse encontro: uma mestiçagem do corpo e uma mestiçagem da cultura.
Em nós vivem milhões de índios, índios que foram esmagados porque a brutalidade do branco com o índio foi
terrível. Esmagados porque o europeu tinha muita doença. Os índios não tinham cárie dentária, nem gripe, nem
tuberculose... Cada enfermidade dessas era uma espécie de guerra biológica, matou índios em quantidade...
Estima-se em cinco milhões o número de indígenas que habitavam as terras brasileiras na ocasião da
chegada dos portugueses. Dois séculos depois, eles não chegavam a dois milhões. Hoje, os sobreviventes
somam duzentos e setenta mil habitantes, menos de meio por cento da população brasileira. Em cinco séculos
desapareceram para sempre cerca de oitocentas etnias. Eram povos de diferentes culturas, que ocupavam
vastos territórios de características geográficas distintas.
Mas esses índios que morriam sobreviviam naqueles mestiços que nasciam. Somos nós que carregamos no
peito esses índios, os genes deles para reprodução e a sabedoria deles da mata. O Brasil só é explicável assim, é
uma coisa diferente do mundo...
A população paulista dos primeiros tempos vivia numa economia de subsistência. Não podia contar com a
riqueza gerada pela exportação de açúcar. O regime de trabalho, voltado para o sustento, e não para o
comércio, era quase o mesmo da aldeia tribal. A base da agricultura era indígena, enriquecida pela
contribuição dos europeus, que trouxeram os animais domésticos. As casas passaram a ser de taipa, cobertas
por telhas. E equipamentos como o monjolo vieram para ficar. Até hoje facilitam o trabalho de beneficiar o
milho. "A importância dele é que a gente, por exemplo, planta, depois colhe, depois leva para lá para ceifar
farinha pra gente gastar. A gente cria galinha pra gastar... Dá um pouco pra criação, pro gado, pro porco..."
Depoimento do Sr. Vicente
Era uma sociedade que, por ser mais pobre, era também mais igualitária. A
miscigenação era livre, porque quase não havia entre eles quem não fosse
mestiço. Até meados do século XVIII essa gente falava uma língua aprendida com
os índios, o " nheengatu " . Um jeito de falar tupi com boca de português,
inventado pelos padres jesuítas.
Na vida simples,
subsistência própria
Em suas andanças, os paulistas foram aumentando o tamanho do Brasil. Na esperança de encontrar minérios,
eles buscavam no fundo das matas a única mercadoria que estava ao seu alcance: os indígenas. As bandeiras
partiam de São Paulo levando mais de duas mil pessoas. Eram homens e mulheres, famílias inteiras de
mestiços que iam fazendo roça de milho e feijão pelo caminho, fundando vilarejos, caçando e pescando pra
comer. Eles ignoraram as fronteiras portuguesas para aprisionar os habitantes da terra e depois vendê-los
como escravos aos engenhos do nordeste. E não pouparam sequer os índios convertidos à fé católica que
habitavam as missões jesuíticas do sul do país e do Paraguai. O modelo jesuítico procurava assegurar a eles
uma existência própria dentro das Missões, ao contrário dos colonos, que tratavam o indígena como mão-deobra escrava.
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Desde o princípio houve um partido de jesuítas que tinha uma utopia para os índios. Era fazer dos
índios pios seráficos, religiosos, gente tão boa que era a melhor gente do mundo. Eles achavam que
era a maneira de fazer o Paraíso na Terra. A religião pegou mesmo foi com as filhas das índias e das
negras, as mestiças, que, não podendo satisfazer-se com a religião dos índios e dos negros,
aceitavam e gostavam das novenas, das ladainhas, das missas, das procissões... E assim surgiu
esse catolicismo santeiro e festeiro, que foi um belo catolicismo do Brasil até pouco tempo.
"Minas foi o nó que atou o Brasil e fez dele uma coisa só."
Trecho do livro O Povo Brasileiro
No final do século XVII, a descoberta de ouro pelos paulistas nas terras do interior mudou os rumos do Brasil
Colônia. Em menos de dez anos, chegaram à região das Minas mais de 30 mil pessoas, vindas de todo o país.
Eram paulistas, baianos, senhores de engenho falidos e, principalmente, escravos. No começo da exploração
muitos morriam de fome com o ouro nas mãos, já que não havia o que comer. Os tropeiros garantiam a
sobrevivência vendendo comida e panos de algodão. Atraídos pelo ouro, muitos deles acabaram se fixando no
cruzamento das rotas de comércio e estabeleceram as primeiras povoações. Desse modo abriram caminho
para a ocupação do interior do país.
"No princípio eram principalmente índios nativos e uns poucos brancarrões importados. Depois, principalmente
negros, vindos de longe, africanos. Mas logo, logo, veja só: eram multidões de mestiços, crioulos daqui
mesmo."
Trecho do livro O Povo Brasileiro
Setenta anos depois, a capitania de Minas Gerais já era a área mais populosa da América, com trezentos mil
habitantes. Eram pessoas que vinham fazer fortuna, como os garimpeiros que ainda hoje trabalham na região
das Minas.
Genesco: nos garimpos
de MG
"Aqui se trabalha de segunda a sábado, das oito da manhã às 3 tarde, e sábado
até 11 horas. Aqui mesmo em Antonio Pereira, Ouro Preto, garimpo de topázio
imperial. Tudo o que tenho em casa é tirado do garimpo. Não tem um alfinete, em
casa, que seja resultado de trabalho em firma, porque firma não dá nada, ganhar
cem contos não dá. Garimpo custa a dar dinheiro, mas quando dá, é muito. A gente
ganha bolada de dólar. Quando eu acho uma pedra grande eu falo assim: "Eu tirei
a vaca do atoleiro, tirei uma pedra boa e agora vou descansar, vou comprar o que
eu desejar na vida..." . Todo mundo fica alegre quando tira um topázio bom. Bebe
cachaça... atropela carro no asfalto... é isso aí, o garimpo é isso aí."
Depoimento de Genesco Aparecido de Souza, garimpeiro
A descoberta do ouro mudou totalmente a vida da colônia. A mineração desbancou a indústria açucareira, que
era então a principal atividade econômica. A sociedade estava estruturada nos moldes da fazenda � da casagrande e da senzala - vivendo ao redor do senhor de engenho. O país prosperava graças ao trabalho escravo
de três milhões de negros. O açúcar, no entanto, começava a sofrer concorrência das Antilhas.
A grande contribuição da cultura portuguesa aqui foi fazer o engenho de açúcar... movido por mãode-obra escrava. Por isso, começaram a trazer milhões de escravos da África. O negócio maior do
mercado mundial era a venda de açúcar para adoçar a boca do europeu e depois a remessa de ouro.
Mas a despesa maior era comprar escravos. Os europeus sacanas iam à África e faziam grandes
expedições de caça de negros que viviam ali uma vida como a dos índios aqui, com sua cultura, com
sua língua, com seu modo... Metade morria na travessia, na brutalidade da chegada, de tristeza, mas
milhões deles incorporaram-se ao Brasil.
O CUSTO DO TRÁFICO DE ESCRAVOS NOS 300 ANOS DE ESCRAVIDÃO FOI DE 160 MILHÕES DE
LIBRAS-OURO. CERCA DE 50% DO LUCRO OBTIDO COM A VENDA DO OURO E DO AÇÚCAR.
E esses negros não podiam falar um com o outro, veja esse desafio como é tremendo. Eles vinham
de povos diferentes. Então, o único modo de um negro falar com o outro era aprender a língua do
capataz, que nunca quis ensinar português. Milagrosamente, genialmente esses negros aprenderam
a falar português. Quem difundiu o português foi o negro, que se concentrou na área da costa de
produção do açúcar e na área do ouro... Mas preste atenção: com os negros escravos vinham as
molecas de 12 anos, bonitinhas. Uma moleca daquelas custava o preço de dois ou três escravos de
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trabalho. E os donos de escravos queriam muito comprar, e os capatazes também. Comprar uma
moleca pra sacanagem. Mas essas molecas pariam filhos, e quem era o filho? Era como o filho da
índia. Ele não era africano, visivelmente. Ele não era índio. Quem era ele ? Ele também era um "zé
ninguém" procurando saber o que era. Ele só encontraria uma identidade no dia em que se definisse
o que é o brasileiro.
Imagem de S. Jorge em
Ouro Preto:
obra de Aleijadinho
Nestas terras, ricas em ouro e diamante, muitos escravos conseguiram comprar a
liberdade e enriquecer. Assim surgiu uma classe intermediária formada de mulatos
e negros libertos, que conseguiram melhorar de vida e se dedicar às atividades de
ourives, carpinteiros, ferreiros e artistas. Ouro Preto viu florescer a mais alta
expressão da civilização brasileira. Na música, na poesia e na arquitetura o
mineiro deixou sua marca. Entre eles um brasileiro, mulato de grande talento, que
traduziu na pedra tosca a sofisticação do barroco europeu: Antonio Francisco
Lisboa, o Aleijadinho.
A riqueza com que as igrejas foram construídas no período do ouro deixa
transparecer a importância da religião católica na vida da colônia. Todos iam à
missa: brancos, negros libertos, mulatos e escravos. Mas cada um freqüentava
sua própria igreja, decorada a seu modo. Nos detalhes da Igreja de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos, o catolicismo é temperado com os símbolos
religiosos africanos.
No teto da igreja,
sincretismo religioso
A mineração de ouro e diamante alterou profundamente o aspecto rural e desarticulado do país. Até então, os
brasileiros viviam isolados uns dos outros devido às grandes distâncias. Mas a rede de intercâmbio comercial
que começava a se formar entre as capitanias daria uma bela base econômica à unidade nacional. O sertão
nordestino, que vivia da criação de gado, fornecia a carne e o couro. A sede do governo foi transferida de
Salvador para o Rio de Janeiro, devido à proximidade das Minas. E o Rio Grande do Sul acabou sendo
incorporado ao país através do comércio de mulas.
Esse país tomou conta de si pela primeira vez num movimento fantástico � a Inconfidência Mineira...
Estátua de Tiradentes:
idealismo
O movimento idealizado por uma elite intelectual previa uma nova organização da
sociedade. Entre os planos dos inconfidentes estavam a criação de universidades,
a instalação de indústrias e a libertação dos escravos. A inspiração maior vinha dos
ideais da Revolução Francesa e de um novo país da América do Norte, os Estados
Unidos. Uma denúncia acabou levando à forca um dos líderes do movimento: o
alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.
Tiradentes foi esse herói nacional fantástico, um homem sábio, engenheiro que fez o serviço de
águas do Rio de Janeiro, que fez o planejamento dos portos do Rio... e que conspirou na Europa, em
Portugal e conspirou com os norte-americanos também. Era um intelectual que lia, conhecia a
constituição americana e queria fazer uma república. Era respeitado pelos magistrados, pelos
coronéis militares, pelos poetas, por aquele grupo atípico de Minas que quis criar uma República
Brasileira, criar um Brasil e criar brasileiros, dando dignidade. Mas os portuguesas abafaram isto tão
bem que continuou soterrada a idéia de liberdade e de autonomia do Brasil...
Trinta anos depois da rebelião dos inconfidentes, o Brasil se tornava império autônomo. Mas levaria quase
cem anos para extinguir o trabalho escravo em seu território. Durante trezentos anos o país usou cerca de
doze milhões de negros como principal força de trabalho em seu processo de formação. Trazidos do Sudão,
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da Costa do Marfim, da Nigéria, de Angola e de Moçambique, essa gente marcaria com sua cor e com sua
força a fisionomia e a cultura brasileiras. E, ao final do período colonial, era uma das maiores populações do
mundo moderno.
"Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Como descendentes de
escravos e de senhores de escravos seremos sempre marcados pelo exercício da brutalidade sobre aqueles
homens, mulheres e crianças. Esta é a mais terrível de nossas heranças. Mas nossa crescente indignação
contra esta herança maldita nos dará forças para, amanhã, conter os possessos e criar aqui, neste país, uma
sociedade solidária ".
O Povo Brasileiro
São Paulo. A terceira cidade do mundo. Uma megalópole com doze milhões de habitantes. Esta cidade,
fundada em 1554 é hoje o espelho do Brasil. Olhando com atenção seus bairros e sua gente é possível
perceber todas as contradições do país. O Brasil rico, moderno, que chega às vésperas do século XXI como a
oitava economia do planeta. Mas também o Brasil que não acompanhou o progresso. O país que ainda luta
por melhores condições de vida.
Contraste em SP: centro desenvolvido...
... e favelas na periferia
As grandes capitais são o retrato do crescimento desordenado das cidades brasileiras no século XX. Para se
ter uma idéia, entre 1920 e 1960 a população urbana cresceu dez vezes. Hoje quase 70% dos brasileiros
moram em cidades. As maiores transformações foram sentidas nos centros urbanos, mas elas são reflexos do
que ocorreu no campo. Em toda a história brasileira, as mudanças de regime pouco afetaram a ordem social.
Durante o período colonial e depois no Império e na República, o poder na zona rural sempre foi baseado no
monopólio da terra e na monocultura. Aqui nenhuma terra foi reservada para o povo que ia formando o Brasil.
Nos Estados Unidos as pessoas iam para o Oeste (o que corresponderia no Brasil a Goiás, Mato Grosso). Elas
iam porque sabiam que se construíssem uma casa, fizessem uma roça ganhavam o direito de demarcar uma
fazenda de 30 hectares. Aqui isto nunca deu certo porque um pequeno grupo monopolizou a terra, obrigou o
povo a sair das fazendas. Eles não dividiam e sim expulsavam. Não é que eles usem a terra. Eles não usam dez
por cento da terra que existe, mas expulsaram. E essa gente que foi expulsa vem viver uma vida miserável na
cidade.
Em 1850 as regras de acesso à propriedade rural mudaram. A simples ocupação e cultivo já não bastavam
para garantir a posse. O registro obrigatório acaba expulsando da terra os menos favorecidos.
Na periferia de São Paulo vive gente entregue a uma pobreza total. É de se perguntar: como tão poucos
latifundiários fizeram a infelicidade de tantos brasileiros que estão em São Paulo, no Rio de Janeiro, no Recife,
na Bahia, por toda parte?
Centro de SP: retrato do êxodo
Nenhum município estava em condições de absorver o êxodo rural num ritmo tão
intenso, mas nem sempre foi assim. O país cresceu e se desenvolveu a partir de
uma economia de base agrícola, voltada para abastecer o mercado europeu. A
maioria da população concentrava-se na zona rural. As cidade e vilas funcionavam
como entrepostos comerciais, onde o povo vivia da prestação de serviços aos
fazendeiros. Somente nas regiões mineradoras é que se implantou uma rede urbana
independente da produção agrícola.
Recife enriqueceu com os holandeses e com o açúcar. Na Amazônia, Belém e Manaus se desenvolveriam
como portos de exportação dos recursos naturais extraídos da floresta. O Rio de Janeiro cresceu como porto
de escoamento do ouro. A partir de 1808 tornou-se o principal núcleo urbano do país, com o desembarque do
rei de Portugal D. João VI e de sua corte.
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Muito sabido esse D. João VI. Descrevem-no como um bestão que andava numa carroça, comendo frango com
as mãos e jogando os ossos para o lado... Ele é descrito popularmente como uma besta, mas não tem nada de
besta. Enquanto os reis de Espanha ficavam querendo pedir perdão a Napoleão para continuar mandando, ele
viu que o bom era o Brasil, não era Portugal. Ele largou aquela velharia e veio para cá, abriu os portos e
começou a organizar o país. Trouxe 18 mil pessoas. Essa trasladação trouxe pra cá toda uma classe dominante
já feita, muitos deles com cursos universitários em Coimbra. É essa gente que organiza o país.
"A luta mais árdua do negro africano e de seus descendentes brasileiros foi � e ainda é � a conquista de um
lugar e de um papel de participante legítimo na sociedade nacional."
O Povo Brasileiro
O Brasil só se tornou uma nação com a abolição da escravatura, que concedeu aos negros, ao menos no
papel, a igualdade civil. Emancipados mas sem a terra que cultivaram por quase quatro séculos, os exescravos abandonaram as fazendas e logo descobriram que não podiam ficar em nenhum lugar. A terra tinha
dono. Saindo de uma fazenda caíam em outra, de onde eram, também, fatalmente expulsos.
Campinho da Independência (RJ):
vida tranqüila
Houve quem tivesse melhor sorte. É o caso de uma comunidade negra situada no
litoral fluminense. Ali, todos descendem da mesma família. São netos, bisnetos,
trinetos e tataranetos de três mulheres escravas � como o Sr. Valentim. Ele nasceu
na comunidade e casou-se com D. Madalena, com quem teve nove filhos, que
também moram nas redondezas. Nos dias de festa todos aparecem para dar um
abraço no patriarca da família.
Hoje estas terras se valorizaram e a família, ameaçada de perder tudo, tenta provar que tem direito de
permanecer onde nasceu. "Eu sempre falo isso: que se desse um lote aqui, de graça, para uma pessoa que
morava na cidade, ela não aceitaria porque é um lugar difícil. Como é que o cara que nunca fez uma horta no
lugar, nunca plantou sequer um pé de flor vai colocar três juizes porque ele é dono daquela terra? A escritura é
muito fácil fazer... Essa terra é terra hereditária, terra que vem de lá de trás do tempo da escravidão."
Depoimento do Sr. Valentim
D. Madalena (RJ): "Tudo é de Deus"
"Eu vim pra cá com dezessete anos. O povo era muito bom. Um pessoal escuro,
mas eu senti em mim a mais negra, por causa da maneira que me acolheram. A
minha parte da família não queria mas a parte dele fazia muito gosto. Eu acabei
casando com ele e graças a Deus tenho fé em Deus de levar nossa vida pra frente.
Deus é que abraça o mundo, tudo é filho dele, não tem gordo, nem magro, não tem
cor, não tem raça. Tudo é dele, né?"
Depoimento de d. Madalena
A maior parte dos escravos concentrou-se na periferia das cidades, nos bairros africanos. Ali eles criaram uma
cultura própria, feita de retalhos do que o povo africano guardou nos longos anos da escravidão.
O negro guardou sobretudo sua espiritualidade, sua religiosidade, seu sentido musical. É nessas áreas que ele
dá grandes contribuições e ajuda o brasileiro a ser um povo singular. Quando chegam na cidade são capazes de
fazer coisas, por exemplo, a cultura do Rio de Janeiro, a beleza do Carnaval carioca, que é uma criação negra,
a maior festa da Terra! A beleza de Iemanjá, uma mãe de Deus que faz o amor. Você não vai lá pedir que o
marido não bata tanto, que não seja tão filho daquilo, vai pedir um amante gostoso. Isso é uma coisa fantástica!
Um povo que é capaz de inventar uma coisa destas! Nunca houve depois da Grécia! Isso são os nossos negros,
os nossos mulatos desse país.
"O jongo é tradição muito antiga, e naquele tempo, logo que a princesa Isabel libertou os escravos, o preto
fundou o jongo, né. Naquele tempo os brancos freqüentavam, mas os negros não gostavam muito. Gostavam
dos pretos, dos morenos, morenos bem pardos, bem tostados, né... Hoje é diferente. Hoje tudo dança, dança
preto, dança branco, dança moreno, dança qualquer um. Mas naquele tempo não era assim não, segundo a
escola que tive do meu pai, que foi da escravidão, né? Então, tem um ponto de jongo que eu canto pro
jongueiro e pergunto pra ele: o que é o jongo? E o jongueiro não sabe responder o que é jongo. Agora, pro
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jongueiro tirar mesmo o ponto, para dizer tirei o ponto, ele precisa responder pra mim, na cantoria, na hora do
jongo: " jongo pra quem sabe, é jongo, pra quem não sabe, não é nada ". É isso ..."
Depoimento do Sr. João
"Eu canto o canto porque eu sei cantar.
Não quero que a saudade venha me matar...
Enquanto a abóbora amadurece, eu como a
cambuquira... "
Trecho cantado do jongo
Jongo: do tempo dos escravos
No final do século XIX, a crise de desemprego que ocorreu na Europa trouxe para o Brasil sete milhões de
imigrantes. Eles vinham para trabalhar nas plantações de café, o principal produto de exportação da época.
Acabaram ocupando o lugar dos mestiços e escravos libertos, como mão-de-obra assalariada. Os europeus se
fixaram principalmente em São Paulo e no sul do país, onde renovaram a vida local e promoveram o primeiro
surto de industrialização do país.
Esse país já feito num certo momento recebe uma invasão branca... Veja a diferença. Os que foram para a
Argentina caíram em cima do povo argentino, paraguaio e uruguaio que haviam feito seus países, que eram
oitocentos mil, e disso saiu um povo europeizado. Aqui não, essa quantidade de gringos caiu em cima de
quatorze milhões de brasileiros. Então foram absorvidos por nós. Encontraram um país feito, com um século de
história, com cidades importantes. Deram, é claro, uma grande contribuição e continuam dando, mas muitos
deles não conhecem nada e acham que deram o automóvel. Essa influência das matrizes índias, negras e
européias foi descrita algumas vezes como uma democracia racial. Aqui não há nenhuma democracia racial.
Aqui é muito duro ser negro, O preconceito nosso é por natureza diferente do preconceito americano. Aqui há
um conceito curioso de branquização, o negro quando vai ficando claro, a mestiçagem facilita isso sobretudo
quando vai ficando rico, fica branco. Esse preconceito de branquização é um conceito bonito, não é democracia
racial. É branquização, é uma possibilidade até preconceituosa de que o negro é aceito como alguém que vai
deixar de ser negro, que vai transar com todas as brancas que vão clarear os filhos deles. É um preconceito, de
certa forma, melhor do que um apartheid, que quer que o negro fique longe, fique distante para respeitá-lo lá
longe, mas não quer proximidade com ele. Nós queremos é confluir, misturar. Isso é bom, mas não pode ser
chamado de democracia racial.
"A distância social mais espantosa do Brasil é a que separa e opõe os pobres aos ricos. A ela se soma a
discriminação que pesa sobre índios, mulatos e negros. "
O Povo Brasileiro
Nas praias, alguns descansam...
...enquanto outros trabalham
Nos anos 90, a separação entre classes ricas e pobres é quase tão grande quanto as que existem entre povos
diferentes. E o Brasil destaca-se no mundo por sua péssima distribuição de renda. Quando o indivíduo
consegue melhorar de vida, é possível perceber que seus descendentes em uma ou duas gerações cresceram
em estatura, se refinaram, se educaram. Muitos estrangeiros que chegaram aqui no começo do século XX
encontraram condições de ascensão social mais rápida do que muitos brasileiros gerados aqui. Para Darcy
Ribeiro, o país pouco mudou desde 1.500. E dos escravos aos assalariados de hoje, o Brasil se fez como um
moinho de gastar gente.
É muito duro para um negro fazer carreira no Brasil. Eles são a parcela maior da camada mais pobre que tá
lá, no fundo do fundo, e é a camada onde pesa mais o analfabetismo, a criminalidade, a enfermidade. E é claro
que precisam de uma compensação que nunca tiveram. Eles fizeram este país, construíram ele inteiro e sempre
foram tratados como se fossem o carvão que você joga na fornalha e quando você precisa mais compra outro. A
atitude para com o negro e o mulato e com o pobre é muito bruta. Sobretudo os branquinhos de merda, que tem
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uma atitude muito freqüentemente de profundo preconceito e nenhum respeito para com essa gente que fez o
Brasil.
Os brasileiros se sabem, se sentem e se comportam como uma só gente, pertencente a uma mesma etnia.
Essa unidade não significa porém nenhuma uniformidade. O homem se adaptou ao meio ambiente e criou
modos de vida diferentes. A urbanização contribuiu para uniformizar os brasileiros, sem eliminar suas
diferenças. Fala-se em todo o país uma mesma língua, só diferenciada por sotaques regionais. Mais do que
uma simples etnia, o Brasil é um povo nação, assentado num território próprio para nele viver seu destino.
COM A PALAVRA, O BRASILEIRO ...
José Silva
José Rafael
Francisca
Franscisco
Mara Anastácia
José Silva: "Ser brasileiro é ser artista." José Rafael: "Vamos aí, na batalha." Francisca: "Não dá nem
pra rir, né ?" Francisco: "Brasileiro gosta de ter fé." Mara Anastácia: "É um pouquinho de sonho, né
?"
Mas foi essa gente nossa, feita da carne de índios, alma de índios, de negros, de mulatos, que fundou esse país.
Esse "paisão" formidável. Invejável. A maior faixa de terra fértil do mundo, bombardeada pelo sol, pela energia
do sol. É uma área imensa, preparada para lavouras imensas, produtoras de tudo, principalmente de energia. A
Amazônia devia ser um país, porque é tão diferente. O nordeste, até a Bahia... outro país que é diferente. A
Paulistânia e as Minas Gerais juntas são outra gente... O sul, outra gente... Esse povão que está por aí pronto
pra se assumir como um povo em si e como um povo diferente, como um gênero humano novo dentro da Terra.
É claro que eu tinha de fazer um livro sobre o Brasil que refletisse de certa forma isso. E vivi fazendo pesquisa,
e vivi muito com negros, brasileiros, pioneiros de todo o lugar do Brasil. E li tudo que se falou do Brasil. Então
estava preparado pra fazer esse livro. E gosto dele. Tenho orgulho do fundo do peito de ter dado ao Brasil esse
livro. É o melhor que eu podia dar. Gosto muito disso.
Que bela história tem esse povo brasileiro...
Disponível em: < http://www.tvcultura.com.br/aloescola/estudosbrasileiros/povobrasileiro/index.htm>
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