PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS CURSO DE DIREITO A ORIGEM DO CRIME E REFLEXÕES A RESPEITO DA LEGITIMIDADE DO DIREITO DE PUNIR DO ESTADO Orientador: PROF. ª MS. ELIANE RODRIGUES NUNES Orientando: BRUNO AURÉLIO RODRIGUES DA SILVA PENA Goiânia 2010 BRUNO AURÉLIO RODRIGUES DA SILVA PENA A ORIGEM DO CRIME E REFLEXÕES A RESPEITO DA LEGITIMIDADE DO DIREITO DE PUNIR DO ESTADO BRUNO AURÉLIO RODRIGUES DA SILVA PENA Monografia Jurídica apresentada para conclusão do curso de graduação em Direito, no Departamento de Ciências Jurídicas, da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, sob orientação da Prof.ª Ms. Eliane Rodrigues Nunes. Goiânia 2010 Folha de Aprovação Banca Examinadora Jurídica Nota para a Monografia ________________________________________________________________ Professor-orientador ________________________________________________________________ Professor-membro Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violenta às margens que o oprimem. Bertolt Brecht. Dedicatória Ao meu pai, Eliseu Pena Braga (post mortem), que com seu exemplo de vida e a rigidez de seus princípios, mesmo em tão pouco tempo ao meu lado, fez de mim o homem que sou hoje, tão radical em defesa dos menos favorecidos. Ao amigo Euler Ivo Vieira, que assumiu em grande parte a lacuna deixada pela morte de meu pai e que, assim como é temperado o aço, muito contribuiu para a têmpera do meu caráter. À professora e amiga Rosângela Magalhães de Almeida, que me apresentou ao Tribunal do Júri e muito tem me ensinado sobre o que é ser um advogado comprometido com a verdade, a justiça e a serviço do povo. Ao Dr. Antônio Fernandes de Oliveira, grande magistrado goiano, que com sua irreparável conduta, digna de um sacerdócio, me faz continuar acreditando no comprometimento de alguns operadores do Direito com a Justiça, mesmo em um sistema judiciário tão precário. E por fim, dedico o presente trabalho a todos aqueles que resistem dia-a-dia às agruras da miséria e da injustiça que pesa sobre os ombros dos menos favorecidos deste, ainda tão desigual, país. Agradecimentos Agradeço à minha orientadora, mestre e amiga, Prof.ª Ms. Eliane Rodrigues Nunes, que com a paciência de uma mãe, teve a devida complacência com a minha falta de disciplina e organização e muito contribuiu, compartilhando parte de sua vasta cultura e conhecimentos jurídicos, indispensáveis à realização deste trabalho. Agradeço à Adriana Maria da Silva, que ao longo de sete anos, foi uma companheira leal e ajudou a formar um pouco de quem eu sou, além de ter gestado nosso querido filho. Agradeço ao meu filho Eliseu Pena Braga Neto, por compreender a minha ausência e falta de humor. Agradeço à minha irmã Tatianne Pena Braga e minha mãe Maria de Fátima Rodrigues da Silva, por me apoiarem e contribuírem para a realização deste trabalho, mesmo minha mãe não concordando com todo o seu conteúdo. Agradeço aos amigos Lucas Ribeiro Marques e Regiane Faustina Cesar de Oliveira, ambos estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás; ao amigo Paulo Victor Gomes Coelho, estudante de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de Goiás e à amiga e jornalista Dayane Ferreira de Araújo, que muito contribuíram para a realização deste trabalho, seja nas inúmeras pesquisas e diligências realizadas, seja na revisão final do texto, ou nas constantes discussões nas mesas de bar. SUMÁRIO INTRODUÇÃO..................................................................................................... 08 CAPÍTULO I - O CRIME..................................................................................... 11 1.1 SUA ORIGEM E CONCEITO................................................................... 11 CAPÍTULO II - CAUSAS E MOTIVOS DO CRIME......................................... 18 2.1 CONSIDERAÇÕES GERAIS.................................................................... 18 2.2 MOTIVOS BIOLÓGICOS......................................................................... 20 2.3 MOTIVOS PSICOLÓGICOS..................................................................... 29 2.3.1 PSICANÁLISE (FREUD).......................................................................... 30 2.3.2 PSICOLOGIA INDIVIDUAL (ADLER)................................................... 34 2.3.3 PSICOLOGIA ANALÍTICA (JUNG)........................................................ 34 2.3.4 TRANSTORNOS DE PERSONALIDADE............................................... 35 2.3.5 PERSONALIDADE PSICOPÁTICA......................................................... 38 2.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................... 39 CAPÍTULO III - O CRIMINOSO......................................................................... 41 3.1 DA ORIGEM DO CRIMINOSO................................................................ 41 CAPÍTULO IV - REFLEXÕES A RESPEITO DO DIREITO DE PUNIR DO ESTADO............................................................................................................... 58 4.1 DA FORMAÇÃO DO ESTADO................................................................ 58 4.2 O CONTRATUALISMO............................................................................ 59 4.3 O CONSTITUCIONALISMO....................................................................70 4.4 A RESPEITO DA LEGITIMIDADE DO DIREITO DE PUNIR DO ESTADO............................................................................................................... 73 4.5 DA ILEGITIMIDADE DO DIREITO DE PUNIR DO ESTADO............. 84 CONCLUSÃO....................................................................................................... 90 BIBLIOGRAFIA................................................................................................... 94 INTRODUÇÃO O presente trabalho trata da origem do crime enquanto fato social e sobre a legitimidade do direito de punir do Estado. Demonstrará que não há crime sem o agente que o pratique, seja por ação ou omissão. O método a ser utilizado neste trabalho é o materialismo histórico dialético. Materialismo, por considerar em nossa pesquisa que as causas do crime são predominantemente de natureza econômica. Histórico por retirar conclusões dos avanços alcançados até hoje pelo tempo. E dialético por considerar a contradição, o ataque e o confronto como a forma mais fidedigna de perseguição da verdade e por assim o ser, todas as teses aqui levantadas serão contraditadas por antíteses, para concluirmos em uma síntese, digna de credibilidade científica. A bibliografia existente será utilizada como alicerce da teoria aqui aventada, embasado na literatura filosófica, sociológica e doutrinária, bem como exemplificações na Lei, na jurisprudência e em casos concretos. Perseguirá as causas e motivos que levam a pessoa a se tornar um criminoso e conseqüentemente praticar o crime. Demonstrará ainda a responsabilidade do Estado nas causas que transmutam o cidadão ao criminoso e concluir-se-á pelo questionamento da legitimidade do chamado “Direito de Punir do Estado” ou “Jus Puniendi”. Além de trazer sua contribuição no estudo das diversas causas do crime, para que o mesmo possa ser evitado. O objetivo da lei ou o “espírito da Lei” como chamou Montesquieu, de certa forma, é assegurar através de certas normas o convívio em sociedade, já que se cada um desse livre expansão aos seus desejos estaria a Humanidade fadada ao caos e à destruição. Nesse sentido, o sistema penal brasileiro possui normas que visam à proteção de determinados bens, assim eleitos por representarem grande importância para a sociedade em geral, tais como a vida, a incolumidade física, a liberdade sexual, a honra, o patrimônio, etc. Tais normas, em regra, descrevem a conduta a ser evitada e uma sanção, a qual deverá ser aplicada caso tal conduta seja realizada, lesando assim o bem ungido pela proteção legal. Porém, a norma penal, excetuando os crimes de perigo ou as situações onde a tentativa é punida, age quando o bem já foi efetivamente lesado. Alguns crimes depois de praticados, não há nada mais que se possa ser feito pela vítima. Por mais que o agente seja vilipendiado, seviciado, torturado, não há nada que possa ser feito no sentido de reparar o dano causado pela prática de um determinado fato criminoso e tampouco restituirá o que se perdeu ou restabelecerá seu status quo. Faz-se necessário entender que o crime não é um fenômeno da natureza, tal como um raio, ou a chuva, mas sim um fenômeno social, praticado por pessoas que convivem em sociedade. Estudar a conseqüência ignorando à sua causa é apegar-se à aparência em detrimento da essência. É como enxugar diuturnamente a poça de água que se forma com a goteira do telhado, ao invés de trocar as telhas danificadas. É óbvio que é muito mais simples e fácil colocar uma bacia embaixo da goteira do que ter que comprar uma nova telha, subir no telhado e substituir a danificada, tal como é mais simples e fácil construir novos presídios e armar as polícias, do que investigar o que tem levado as pessoas a delinqüir e tentar eliminar suas causas. Para que se cumpra o objetivo principal, do Direito Penal, que é a proteção dos valores mais importantes ao convívio social e a garantia da dignidade humana, é necessário, primeiramente, compreender que só há crime, se houver o criminoso, e por isso, devemos estudar o que leva uma pessoa a se degenerar ao crime. Para assim buscar soluções eficazes para evitar que aquela pessoa seja compelida ao crime e conseqüentemente outras pessoas sejam prejudicadas. E demonstrada a parcela de culpa que possui o Estado na formação do criminoso, questionado será sua legitimidade em exercer o seu direito de punir. Se o Estado não cumpre suas obrigações no sentido de garantir a formação do caráter cidadão e da garantia da dignidade humana, deixando que pessoas tornem-se bandidos. Como pode o Estado, querer invocar o seu suposto direito exclusivo de punir aqueles que cometeram um crime, se boa parte desses “criminosos” vieram a delinqüir por omissão do próprio Estado? Punir aquele que teve sonegada toda e qualquer oportunidade de levar uma vida digna e ou de arcar com sua própria subsistência, em uma sociedade capitalista de gritantes desigualdades sociais, não é justiça, é vingança! Por fim, o presente trabalho se propõe a acordar a sociedade para novas formas de prevenção do crime, através da valorização do ser humano, pois toda forma de repressão e combate ao crime será sempre insuficiente e ineficaz. Alguns podem se chocar com o presente o trabalho e julgá-lo precipitadamente como uma ode à impunidade ou com algum tipo de apologia ao crime e à anarquia. Muito pelo contrário o objetivo principal do presente trabalho é deslegitimar o Estado em seu direito de punir, somente enquanto o mesmo não cumprir sua responsabilidade constitucional de garantir a dignidade humana e sanar a principal causa de delinqüência. CAPÍTULO I O CRIME 1.1 SUA ORIGEM E CONCEITO: O crime é um fenômeno social. Logo, o crime tem sua origem na ação ou omissão humana, podendo ter maior ou menor influência externa. Assim, não há crime sem determinação legal e mais do que isso, sem um agente que o pratique, seja por ação ou omissão. Até então, o crime tem sido estudado em suma, pelo Direito Penal, e levado em conta na construção de políticas públicas de segurança, enquanto fenômeno em si, sem que seja levado em consideração às suas causas, ou melhor, a sua origem. Até então tem sido ignorado o processo social que levou um determinado cidadão ou pessoa a se enveredar pelo crime, ou ainda, porque nele se manteve, ignorando em quais condições sociais se deu essa “degeneração” e as formas para evitá-las. As políticas de segurança pública têm, até então, de forma equivocada, insensata e ineficaz se concentrado no combate ao crime e ao criminoso, de forma dispendiosa e cara para o Estado, enxergando o criminoso como um verdadeiro “inimigo” do Estado. Pensam que acabando com o criminoso acabarão com o crime. Ledo engano! Suponhamos que fosse possível em uma ação policial eliminar todos os criminosos de alguma capital do país, ou de todo um Estado ou até mesmo do país inteiro, não tardaria, em surgir uma multidão de pessoas sem qualquer perspectiva de vida ou de futuro, para ocupar os postos deixados pelos criminosos de outrora. A severidade da pena e tampouco a certeza de sua aplicação, intimida o criminoso e, portanto, não previne o crime, pois grande parte destes criminosos seguem a lógica de que nada pode ser tirado de quem não tem nada a perder. Pouco resolve eliminar o criminoso ou segregá-lo em penitenciárias, uma vez que a sociedade capitalista não cessa a “produção” de novos criminosos, dia após dia. Mas para melhor compreender o raciocínio do presente estudo, é necessário, que esteja claro o que é exatamente o conceito de crime, à luz do Direito Penal, primeiramente. O crime é toda ação ou omissão do Homem, consciente e voluntária, que esteja tipificado como tal e que seja ainda ilícito. Ou seja, de acordo com a nossa legislação penal, uma determinada conduta será crime se estiver definido previamente em lei como tal e ainda se não estiver amparada por nenhuma exceção de ilicitude. Ainda que a lei penal não tenha definido um conceito específico do que seja crime, específica em algumas partes, situações em que não há crime e a partir destes pressupostos torna-se possível deduzir o conceito legal de crime. Nesse sentido nos assevera a Constituição da República de 1988: Art.5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXIX - Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal; XL - A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu; 1 E nesse sentido, continua a previsão legal do conceito de crime, no DecretoLei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940, conhecido como Código Penal Brasileiro: Art. 1º - Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal (...) Art.23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: I - Em estado de necessidade; II - Em legítima defesa; III - Em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito. Parágrafo Único: O agente em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo. 2 Assim, podemos perceber que a lei penal, diz que determinada conduta se não tiver lei anterior que o defina como tal, não terá crime. Logo para que haja crime é necessário haver tipicidade. E a lei penal também assevera que não haverá crime se o agente pratica o fato amparado em alguma das exceções de ilicitudes previstas no art.23 do Código Penal, e portanto é necessário haver, também, ilicitude para que determinada conduta seja tida como crime. Existe uma divergência teórica se a culpa comporia a estrutura do crime ou não. Alguns autores consideravam o dolo e a culpa como componente da culpabilidade, dentro desta perspectiva, o crime seria fato típico, ilícito e culpável. Contudo, todavia, parece mais sensato e lógico, que tanto o dolo, quanto a culpa, sejam elementos do tipo e não da culpabilidade. Pois a ação ou omissão do agente deve ser caracterizada pela exteriorização de sua vontade, pois se o mesmo age 1 Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Vade Mecum Acadêmico de Direito / Anne Joyce Angher, organização. - 8. Ed. - São Paulo: Rideel, 2009. - (Coleção de Leis Rideel) 2 Brasil. Código Penal. Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Vade Mecum Acadêmico de Direito / Anne Joyce Angher, organização. - 8. Ed. - São Paulo: Rideel, 2009. - (Coleção de Leis Rideel) sem culpa ou dolo, não há fato típico e, portanto, tampouco crime. Assim o sendo, faz-se mais correto, o conceito geral de crime, como sendo a ação ou omissão do Homem, tipificada como tal e ilícita. Neste sentido, reforça a tese de que a lei penal brasileira adota como elementos do conceito de crime apenas a tipicidade e a ilicitude, o fato de que enquanto os artigos 1º e 23 do Código Penal asseveram não haver crime nas situações previstas em seu texto. Agora, quando a culpabilidade é excluída, nosso Código do art.26 ao 28, define como isento de pena, o que leva a crer que ainda que tenha havido um crime a pena cominada a este não é aplicável. Vejamos os art.s 26, 27 e 28 do Código Penal pátrio: (...) Art.26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (...) Art.27 - Os de dezoito anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial. Art.28 - (...) (...) § 1º - É isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. 3 (...) Esgotada a divergência doutrinária existente, partindo destes pressupostos, indo do geral para o particular, a tipicidade, um dos elementos do conceito de crime, determinada expressamente pela legislação brasileira, citada no parágrafo anterior, possui limites esculpidos na Carta Magna Brasileira. 3 Brasil. Código Penal. Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Vade Mecum Acadêmico de Direito / Anne Joyce Angher, organização. - 8. Ed. - São Paulo: Rideel, 2009. - (Coleção de Leis Rideel) A ação do Homem, antes de tipificada, há de ser valorada e toda ação humana está sujeita a dois aspectos valorativos diferentes, podendo esta ser apreciada em face da lesividade do resultado que provocou (desvalor do resultado) e de acordo com a reprovabilidade da ação em si mesma (desvalor da ação). O tipo penal pressupõe uma atividade seletiva de comportamento, escolhendo somente aqueles que sejam contrários e nocivos ao interesse público, para serem erigidos à categoria de infrações penais. Sendo determinada ação humana valorada negativamente, a mesma, caso represente dano grave à sociedade, será tipificada para composição de crime. Contudo, existem alguns princípios a serem seguidos no momento desta tipificação. Tais princípios e garantias individuais do cidadão restam consagrados na Carta Magna da República. Assim o sendo, para uma ação humana ser ungida de tipicidade penal, é preciso que seja levado em consideração tais princípios. Dentre vários, os mais relevantes, a saber, são: o da insignificância ou bagatela, uma vez que a tipicidade penal exige um mínimo de lesividade ao bem jurídico protegido, pois é inconcebível que o legislador tenha pleiteado inserir a um tipo penal, condutas totalmente inofensivas ou incapazes de lesar o interesse protegido; o princípio da alteridade ou transcendentalidade, que proíbe a incriminação de atitude meramente interna, subjetiva do agente, uma vez que o fato típico pressupõe um comportamento que transcenda a esfera individual do autor e seja capaz de atingir interesse alheio; o da intervenção mínima do Estado, que possui respaldo legal no art.8º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, em que assevera que a lei deverá prever apenas as penas estritamente necessárias; o da proporcionalidade, que define como inconstitucional, o tipo penal que trouxer mais ônus à sociedade que benefícios, o Direito Penal, em um Estado Democrático de Direito, não pode conceber uma tipificação penal que traga mais temor, mais ônus, maior limitação social, que benefício à coletividade; o da humanidade, que representa a vedação constitucional da tortura e de tratamento desumano e degradante à qualquer pessoa, bem como de penas cruéis, tais quais a pena de morte, perpétua, de trabalhos forçados ou de banimento; e por fim o da necessidade e idoneidade, onde a tipificação só poderá ocorrer quando a mesma mostrar-se necessária, idônea e adequada ao fim a que se destina, ou seja, à concreta e real proteção do bem jurídico. Dada a tipificação, para que se complete a estrutura conceitual do crime, é necessário que haja ainda algumas considerações a respeito da ilicitude da conduta. A ilicitude é o choque entre a conduta e ordenamento jurídico, entendida não só como uma ordem normativa, mas como uma ordem normativa e de preceitos permissivos. Esta surge não só do Direito Penal, mas de toda a ordem jurídica, porque a ilicitude pode ser cancelada por um permissivo legal ou excludente de ilicitude, que pode vir de qualquer parte do Direito. Eugenio Raúl Zaffaroni, cita um exemplo que demonstra com clareza tal colocação: (...) assim, o hoteleiro que vende a bagagem de um freguês, havendo perigo na demora em acudir a justiça, realiza uma conduta que é típica do art.168 do CP, mas que não é ilícita, porque está amparada por um preceito permissivo que não provém do direito penal, e sim do direito privado (art.1.470 do CC/2002).4 Sabemos se determinada conduta típica é ilícita, se a mesma não estiver amparada por nenhuma causa de justificação, excludente de ilicitude, em qualquer parte da ordem jurídica, pois se estiver não há no que se falar de crime. Logo, matar alguém é uma conduta perfeitamente tipificada no art.121 do Código Penal Brasileiro (CP), contudo somente configurará crime, se não for em legítima defesa ou em estado de necessidade. 4 ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro - Parte Geral 5ª Edição revista e atualizada, p.540. Existem dentro do âmbito do Direito Penal, quatro excludentes de ilicitude, que é a legítima defesa, o estado de necessidade, o exercício regular de direito e o estrito cumprimento do dever legal. Portanto, toda e qualquer conduta que se encontre respaldada pelo manto de qualquer destas causas permissivas penais, nunca configurará crime. Assim, ante todo o exposto, mostrou-se o que a legislação brasileira tem como crime, além de demonstrar que este fenômeno crime só existe em razão de uma determinação normativa e a conduta humana. Logo, se não há crime sem um agente que o pratique. É senão o Homem a origem do crime. Portanto o fato de o crime ser considerado apenas na perspectiva acima elencada, a partir da ação do agente e não de todo o processo de sua gestação, é inaceitável. É claro que para o Direito Penal, em termos, o que leva o Homem a delinqüir seja até desimportante, todavia para fins de elaboração de política criminal e de segurança pública é absolutamente inaceitável que seja ignorado as causas do crime e a origem do delinqüente. Por essas e outras que objetivo do presente trabalho é ir além e demonstrado o que é o crime em si, aos olhos do Estado, e sua origem, resta agora investigar e argumentar a respeito da origem do delinqüente. Cabe, portanto investigar as causas que levam uma pessoa degenerar-se para o crime. CAPÍTULO II CAUSAS E MOTIVOS DO CRIME 2.1 CONSIDERAÇÕES GERAIS: Sendo o Homem a origem do crime, este ponto do presente trabalho cuidará da análise dos motivos que determinam no interior subjetivo do agente o aparecimento do impulso delituoso, fazendo com que o mesmo atue no mundo externo atentando contra o um direito da coletividade ou de terceiro. O que leva uma pessoa que convive com seus semelhantes de forma pacífica a praticar em determinado momento, diante de uma situação específica, um determinado crime. Antes de tudo é preciso estabelecer a diferença que há entre a pessoa que comete um crime ocasional e a pessoa que faz do crime o seu meio de subsistência ou então uma constante em seu quotidiano. Aquele que comete um crime ocasional não pode ser considerado um criminoso, uma vez que cometeu um determinado delito em face de algum motivo determinado e nunca mais veio a cometer qualquer outro delito. Não porque foi “recuperado” pelo sistema ou por temor à aplicação penal, mas sim por causa de já ter cessado o motivo que o levou a cometer a ação delituosa. Já as pessoas que tomam a pratica delituosa como parte de seu quotidiano, chamadas neste trabalho de criminosos ou delinquentes, estes, seus motivo e causas serão tratadas com maior profundidade no próximo capítulo. Existe uma diferença entre os motivos e as causas do crime. Os primeiros são de ordem especificamente subjetiva do agente, é o seu animus, o que o levou a cometer determinada conduta tida por nossa legislação como delituosa, em suma, são os fatores que, agindo na esfera íntima da vontade do indivíduo, fazem com que ele atue no mundo externo, causando no mesmo uma modificação juridicamente relevante e proibida pela legislação penal. Enquanto que os segundos referem-se aos elementos externos que alimentaram e deram força aos primeiros, são os fatores sociológicos que formaram os motivos na consciência do agente, ou como diria Freud em seu subconsciente. Por exemplo, um homem que mata a sua esposa e seu amante, ao flagrá-los em conjunção carnal em sua própria cama. Um crime passional. A causa de tal crime provavelmente foi uma educação moralista e machista que o fez construir relações afetivas, tais como relações de propriedade, sendo que o mesmo se achava no direito de tirar a vida das pessoas que conspurcaram sua “propriedade conjugal”, diante de flagrante infidelidade. O motivo de tal delito foi possivelmente um acesso de raiva diante da considerada traição da esposa e do ódio contra o homem que invadiu sua “propriedade”. Logo, são vários os motivos e causas que levam uma pessoa a cometer um crime. Uma pessoa pode cometer um crime por amor, por ódio, por um acesso momentâneo de raiva, devido a uma crise nervosa, por fome, por medo, em decorrência um distúrbio nervoso, hormonal ou psíquico, em decorrência de alguma patologia mental, enfim por uma série de motivos. Neste sentido, os motivos que levam ao crime podem ser divididos em duas grandes categorias, os de ordem biológica e os de ordem psicológicas, alguns autores incluem aqui os de ordem social, contudo na perspectiva do presente entendimento os de ordem social, teriam maior relação com o que diz respeito às causas e não aos motivos. 2.2 MOTIVOS BIOLÓGICOS: É imperioso discorrer sobre os motivos biológicos e depois sobre os motivos psicológicos, para poder entender porque indivíduos nas mesmas condições sociais, diante das mesmas causas, agem de maneira diversa. E porque, por exemplo, uma pessoa de posses e condição financeira estável chega às vezes a roubar ou até matar por dinheiro, dentre outras situações aparentemente contraditórias. Os motivos biológicos mostraram o quanto disfunções e patologias biológicas podem interferir na vida do ser humano e o levar a praticar determinadas condutas que em condições normais nunca praticaria. Em determinadas ocasiões, o nosso corpo age de acordo com os estímulos externos que recebe. Assim, quando nossos sentidos captam uma possível situação de perigo, enviam essa informação para o cérebro que aciona diversas substâncias químicas como, por exemplo, a adrenalina, os hormônios e os neurotransmissores, que por sua vez, agem colocando o corpo em posição de alerta, pronto para fugir ou lutar, a isto dá-se o nome de Síndrome Geral de Adaptação. Nessa situação ocorreu uma interação entre os estímulos externos e a fisiologia interna do indivíduo. No entanto, pode ocorrer uma situação inversa, onde a fisiologia interna produz uma resposta comportamental. São casos onde tais substâncias apresentam um aumento sem que haja um estressor (estímulo externo) e acabam por colocar o indivíduo em posição de alarme. Constitui, também, importante página do estudo da biologia aquilo que se convencionou chamar de instinto de conservação, ou tendência à auto-afirmação. Presente em todos os seres vivos, essa característica se define pela natural e primitiva tendência de o ser vivo permanecer em seu estado existente, de manterse vivo, quando ameaçado de modificação desse estado por uma força qualquer. Nessa batalha pela sobrevivência, o ser-vivo se utiliza dos mecanismos de que dispõe para fazer cessar a atuação das forças, externas ou internas, que lhe ameaçam a existência. Podendo o discernimento sobre o que representa uma ameaça ou não, ser deturpado por alguma patologia, levando o agente à prática de um ou vários crimes. Organicamente, o comportamento agressivo, segundo Ballone no artigo “Cérebro de Violência”, pode ser determinado tanto por fatores anatômicos (integridade anatômica) quanto químicos (eletrofisiologia cerebral). Na agressão, os neurotransmissores que se alteram são encontrados fisiologicamente no Sistema Límbico, uma área do Sistema Nervoso Central que pode ser encontrado tanto em um réptil primitivo quanto nos mamíferos mais evoluídos, claro que não com a mesma complexidade, diferindo do dos répteis na quantidade e qualidade de comportamentos possíveis. O Sistema Límbico é relacionado ao controle e elaboração da maioria dos comportamentos motivados e da emoção. É formado pelas seguintes estruturas: Tálamo, Epitálamo, Hipocampo, Hipotálamo, Amígdalas, Cíngulo e Septo. Todos eles, juntamente com os lobos temporais, são relacionados à regulação do comportamento agressivo. Embora não faça parte de Sistema Límbico, a este rol também pode ser acrescentada a Área Pré-Frontal, porque desempenha um importante papel na regulação das emoções ao se conectar com o tálamo, amígdalas e outras áreas subcorticais. O indivíduo que possui uma lesão no córtex da Área Pré-Frontal perde o senso de suas responsabilidades sociais, podendo chegar até a um estado de tamponamento afetivo, nas hipóteses de uma lobotomia pré-frontal. As lesões cerebrais, que acabam por afetar as estruturas acima descritas, podem ter como causa tumores ou serem decorrentes de acidentes. Charles Whitman foi um exemplo de indivíduo portador de uma lesão cerebral causada por um tumor. Em 1966, Whitman matou 16 pessoas e feriu 24, incluindo nesses números sua esposa e sua mãe. Na noite anterior escreveu uma carta onde dizia sentir fortes dores de cabeça e que se sentia impelido por impulsos violentos extremamente fortes. Após efetuar os disparos do alto de uma torre da Universidade do Texas foi morto pela polícia, e em um exame foi constatada a existência de um tumor maligno na área do núcleo amigdalóide. Antonio García-Pablos de Molina explica que: Diversos estudos clínicos, por exemplo, parecem haver demonstrado que inclusive pessoas pacíficas afetadas por processos tumorais no cérebro se tornam violentas e causam graves danos inclusive a pessoas de sua família ou seres queridos pelas mudanças profundas de personalidade e problemas psicológicos provocados por aqueles processos: episódios psicóticos, alucinações, irritabilidade, depressão e inclusive ataques homicidas. 5 Mesmo quando as lesões são conseqüência de acidentes, as modificações de personalidade constatadas são semelhantes às tumorais. Hermann Mannheim salienta que: Psicoses traumáticas, devidas a lesões cerebrais causadas por acidentes, podem também produzir profundas modificações da personalidade que levam à criminalidade e/ou à vadiagem [...]. Os pacientes podem facilmente tornar-se excitáveis e propensos à prática de crimes violentos. 6 Além das lesões ao cérebro, como causa de distúrbios comportamentais, há ainda os casos de disritmia cerebral. A mais importante é a Epilepsia, que assume abordagens diversas dependendo da ciência que se toma por base. De acordo com a Neurologia, a epilepsia pode ser compreendida “como uma disritmia cerebral paroxística capaz de provocar alterações no sistema nervoso central”. Já sob o ponto de vista da Psiquiatria, ao conceito posto pela Neurologia é acrescentado o fato de que essas alterações no sistema nervoso central causam manifestações no comportamento, nas emoções e nos padrões de reações do indivíduo. 5 MOLINA, Antonio Garcia-Pablos. Criminología: introdução a seus fundamentos teóricos, introdução às bases criminológicas da Lei nº 9.099/95 - Lei dos Juizados Especiais Criminais. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000., p.233 6 MANNHEIM, Hermann. Criminologia comparada. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p.357. Segundo Ballone, em seu artigo ‘Violência e Psiquiatria’, a Epilepsia refere-se a uma condição crônica de ataques periódicos ou repetidos - contudo a convulsão é apenas um dos sintomas da doença podendo inclusive não existir causados por uma condição fisiopatológica da função cerebral, resultante da descarga espontânea e excessiva de neurônios corticais. É um distúrbio fisiológico do Sistema Nervoso Central. A peculiaridade comportamental das alterações da personalidade encontrada em pacientes com disritmia e que interessa à Criminologia é a agressividade. As pesquisas de Mark e Ervin demonstram que 50% de 163 pacientes agressivos tinham epilepsia, sendo a epilepsia do lobo temporal a mais comum associada ao comportamento destrutivo. Ballone cita as pesquisas de Bleuler que constatou que o traço mais dominante do caráter epiléptico é a intensidade mórbida dos impulsos emocionais e dos estados de ânimo. A Epilepsia pode ser parcial, subdividindo-se em simples e complexa ou generaliza. Podendo ser ainda, em qualquer um dos casos, convulsiva ou não convulsiva. São chamadas de parciais, as epilepsias que afetam apenas um dos hemisférios cerebrais. Serão simples quando não houver o comprometimento da consciência, as queixas mais freqüentes são de distorções na percepção dos objetos, modificações do humor e do afeto, episódios súbitos de depressão e raiva, de medo e de terror. E complexas quando houver este comprometimento. Os pacientes podem apresentar alterações da consciência que se dão sob a forma de um estreitamento, chamado Estado Crepuscular. Quando há agressividade excessiva durante esse estado, fala-se em Furor Epiléptico, passado esse furor, normalmente o paciente não possui uma lembrança nítida do que possa ter ocorrido. Já as generalizadas são aquelas que afetam ambos os hemisférios cerebrais. Para efeito de ilustração citaremos o caso de Jennie descrito no artigo intitulado ‘Componente Biológico da Agressão’: Um dia, ao ser criticada por ouvir alto demais seus discos, teve um acesso destrutivo e quebrou tudo que estava em seu quarto. Seus estados de ânimo variavam entre o angelical e o demoníaco e, finalmente, depois de estrangular um bebê de meses por não suportar seu choro. Jennie foi institucionalizada. Como seu irmão tinha epilepsia, aventou-se a possibilidade de sua extrema agressividade ser ocasionada por uma doença cerebral orgânica. Posteriormente constatou-se um foco irritativo temporal esquerdo, o qual entrava em atividade quando a paciente era estimulada a sentir raiva. O eletroencefalograma conseguido durante a estimulação por choro de bebê mostrou claramente a alteração desencadeada pela irritação da paciente. 7 A doença de Alzheimer tem também a sua importância na gênese criminosa na medida em que se caracteriza por um quadro de demência acentuada e progressiva, apresentando uma série de alterações cerebrais, entre elas a redução do lobo temporal médio e do hipocampo podendo estender-se para os lobos parietais e demais regiões corticais, acompanhado a evolução da deterioração cognitiva do paciente, como explica Ballone. Segundo Hermann Mannheim, sobre a demência senil: O enfraquecimento das faculdades físicas e mentais, perturbações emocionais e a perda de controle sobre os impulsos sexuais, associados ao aumento de desconfiança para com os outros, podem provocar actos de violência [...].8 Embora seja uma doença senil, pode acometer indivíduos ainda jovens o que causa um problema no âmbito jurídico, já que a pessoa passa a apresentar um comportamento que de imediato não é associado à doença, levando assim muitas vezes à sua punição e não a um tratamento, o que seria o mais adequado ao caso. 7 BALLONE, C.J. Componente biológico da agressão. Psiqweb. Revisto em 2003. Disponível em: <http://www.psiqweb.med.br/forense/biocosme.html>. 8 MANNHEIM, Hermann. Criminologia comparada. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p.358. Este grupo tem por objetivo estudar algumas substâncias que possam estar envolvidas com o comportamento criminoso. Dentre essas substâncias, serão abordadas neste trabalho os hormônios sexuais, a tireóide, o álcool, a glicose e o colesterol. O ser humano pode ser considerado como um ser químico. Por isso o estudioso Antonio García-Pablos de Molina (2000) ressalta que “um desajuste ou desequilíbrio significativo na balança química ou hormonal do indivíduo pode explicar transtornos em sua conduta e em sua personalidade”. Isso explica a quantidade de estudos relacionando certas substâncias químicas com o comportamento delinqüente. Contudo, deve ser ressaltado que nem todo criminoso apresenta um desequilíbrio químico e nem todo indivíduo que apresenta tal desequilíbrio é necessariamente um criminoso. Os hormônios são glândulas de secreção interna conectadas com o sistema neurovegetativo e este com a vida instinto-afetiva fazendo com que apresentem grande influência no temperamento e no caráter do indivíduo, como já comprovou a Endocrinologia. Os principais hormônios relacionados com a criminalidade são os sexuais, quais sejam, a testosterona, ligado a criminalidade masculina e na feminina aqueles ligados à menstruação. L. D. Kreuz e R. M. Rose, em 1972, ao observarem internos que haviam cometido delitos violentos, detectaram a incidência de um elevado nível de testosterona superior ao normal, o que os levou a concluir que esse hormônio seria determinante da agressividade masculina. Hoje, teses endocrinológicas consideram que, mediante oportuno tratamento hormonal, a cura de quem sofre essas disfunções seria viável. A tiróide é uma glândula localizada na região anterior do pescoço, sua função é a de controlar o metabolismo do organismo. Ela, estimulada pelo hormônio TSH (tireotrafina) que é produzido na Hipófise (glândula situada no cérebro), sintetiza os hormônios T3 e T4, que modulam a velocidade com que a energia será consumida. As disfunções da tireóide podem ser de duas ordens, ou ela produz hormônio demais, denominado de hipertireoidismo, ou de menos, chamado de hipotireoidismo, a conseqüência é que o corpo acaba por usar a energia de forma mais lenta do que deve. O hipertireoidismo pode possuir várias causas, entre elas a Doença de Basedow, Doença de Graves, Tireoidite Subaguda, etc. Alguns dos sintomas psiquiátricos são: depressão, com alto grau de ansiedade; transtornos psicóticos, de aspecto confusional e delirante e fadiga associada à insônia. Já o hipotireoidismo pode ser primário, quando o defeito está na própria glândula tireóide (mais comum); secundário, quando a origem está fora da glândula, mas com repercussão nela e terciário, cuja origem é uma falha na secreção do TRH que é o hormônio liberador do TSH. O paciente com hipotireoidismo apresenta quadro depressivo, com diminuição do rendimento intelectual e do apetite, fadiga e apatia. Na forma mais grave há um quadro psicótico confusional, delirante e alucinatório, chamado de “loucura mixedematosa”. Dentre as principais funções dos hormônios da tireóide (T3 e T4) estão: redução dos níveis de colesterol, por aumento de sua excreção e aumento da absorção de glicose pelos tecidos. Di Tullio sistematizou as principais investigações endocrinológicas européias que tiveram as seguintes conclusões: verificadas notas de hipertireoidismo em delinqüentes homicidas e sanguinários constitucionais; de distiroidismo nos ocasionais impulsivos e nos delinqüentes contra a moral e os bons costumes. Com relação à importância que tais estudos apresentam para a ciência criminológica, além do que já foi relatado por Di Tullio, Newton Fernandes explica que: Estudos endocrinológicos, relacionados com a modificação que o funcionamento das glândulas internas podem produzir no plano dos sentimentos e a emoção do indivíduo, são utilizados não só no surgimento de certas psicoses, mas, também, para a explicação de determinados delitos, como sucede com os denominados crimes passionais. 9 Além dos estudos realizados sobre os hormônios sexuais e a glândula tireóide, também merecem destaque no campo bioquímico, as pesquisas sobre a glicose, o colesterol e o álcool. Em 1987, Virkkunen, procurou demonstrar que os baixos níveis de glicose e de colesterol estariam associados ao comportamento criminoso. O álcool, por sua vez, diminui o açúcar na corrente sanguínea, sendo assim também seria tido como um fator facilitador do crime. Outro estudo, também realizado por Virkkunen, ao utilizar um grupo de indivíduos que ao ingerirem álcool ficam agressivos e um segundo grupo constituído por pessoas que não ficam, demonstrou que as pessoas do primeiro grupo apresentam níveis de colesterol menor do que o do segundo grupo, levando o pesquisador a concluir que a maior violência estaria associada à menor quantidade de colesterol. De outro lado, ainda no capo da biologia, mas precisamente no ramo da citologia, ocorrem a todo o momento no interior dos organismos vivos incontáveis processos destinados à manutenção da vida, levados a efeito por células, órgãos e sistemas que trabalham incessantemente. Processos como respiração, digestão, circulação sangüínea e outros, quando interrompidos ou em mau funcionamento, fazem aparecer no indivíduo o instinto auto-preservacionista que o impele na busca de uma solução para afastar o perigo que o ameaça. 9 FERNANDES, Newton; FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p.318 Ocorre que, por vezes, a consecução desta solução, pode conter algo de antijurídico. Sob essa ótica, é possível, por exemplo, que um indivíduo que esteja já há vários dias sem se alimentar, venha a cometer um furto contra um supermercado, unicamente para saciar a fome que lhe esvaece as entranhas. Aliás, esta hipótese, conhecida como furto famélico, encontra grande acolhida entre a doutrina e a jurisprudência brasileiras. Embora sejam muitas as pesquisas realizadas, grande parte delas ainda não são conclusivas ou totalmente irrefutáveis, dando margem a intermináveis discussões e críticas daqueles que temem uma retomada lombrosiana pautada em um determinismo biológico, onde o criminoso seria tão somente fruto de sua constituição física. Os estudos mais recentes não possuem a pretensão de eleger o fator biológico como o único responsável pela criminalidade - o que torna o temor de muitos estudiosos sem sentido - mas apenas de investigar até que ponto a constituição biológica pode interferir no comportamento humano, especificamente no comportamento criminoso. Longe de pleitear discutir o mérito das pesquisas aqui aventadas o objetivo das conjecturações a respeito dos motivos biológicos é no sentido de demonstrar que patologia ou distúrbios biológicos ou bioquímicos podem também, associados a outros motivos ou não, diante de determinadas causas ou realidade sociais apresentar comportamentos peculiares e até condutas tidas como delituosas. 2.3 MOTIVOS PSICOLÓGICOS: Será abordado neste capítulo o segundo componente do sistema biopsicossocial na procura da gênese criminosa. Ressalta-se que esta, de longe, não é a pretensão do presente trabalho, contudo procuraremos expor as principais teorias e seus respectivos estudiosos com o objetivo de demonstrar a importância da realização de pesquisas nesse sentido, e indo além, da aplicação dos mesmos nos casos concretos. Odon Ramos Magalhães explica que na abordagem do ato criminoso, devem ser considerados três fatores: tendências criminais (disposições do indivíduo), a situação global (solicitações momentâneas) e as resistências mentais e emocionais da pessoa ao estímulo (mecanismo repressor). A ação criminosa resultaria de um choque entre as tendências criminais mais a situação global contra a resistência. Se o primeiro grupo vencesse, o ato resultante seria criminoso, caso a resistência fosse a vencedora, o ato já seria socialmente aceito. Orlando Soares relembra ensinamento de Luiz Ângelo Dourado, que com muita propriedade explica: Estudos psicanalíticos modernos vieram comprovar que o delinqüente e aquele que jamais infringiu a lei não são diferentes morfologicamente no sentido de Lombroso. São diversos na maneira de dominar seus impulsos anti-sociais inconscientes. Já o indivíduo socialmente adaptado tem maiores possibilidades em reconhecer que a realização daqueles impulsos redundará em seu próprio prejuízo e no da comunidade.10 Esta resistência é constituída pela personalidade, que por sua vez vai sendo construída através de valores e fatores introjetados no indivíduo, desde a infância, possibilitando a ele a formulação de críticas e o desenvolvimento de meios capazes de conter impulsos. São chamados de primários ou psico-evolutivos os fatores que atuam na primeira fase de estruturação da personalidade, podendo ser tanto de ordem biológica, social ou psicológica. Os fatores que atuam sobre uma personalidade já estruturada são denominados de secundários, são esses os estímulos que surgem levando alguém a agir. Para Newton Fernandes (2002), a personalidade seria o produto final das “experiências adquiridas e paulatinamente incorporadas, de forma a que cada 10 DOURADO, Luiz Ângelo apud SOARES, Orlando. Criminologia. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S.A., 1986, p. 127 pessoa, através da integração de todos esses elementos, adquira a sua forma de ser própria e unitária”. Analisaremos a diante as principais teorias a respeito da personalidade. 2.3.1 PSICANÁLISE (FREUD): Para explicar o crime segundo a psicanálise, faz-se necessário a explanação prévia de alguns institutos psicanalíticos, o primeiro é a consciência. Segundo Freud, todas as ações têm um motivo, uma causa determinada por uma intenção. Quando esta intenção é facilmente descoberta ela estaria no consciente, já quando a sua gênese se torna mais obscura, aparentemente não existindo, ela estaria no inconsciente. Então possuiríamos três instâncias: o consciente, pequena parte da mente que engloba tudo do que estamos cientes em um determinado momento; o préconsciente, este seria uma parte do inconsciente que pode tornar-se consciente com maior facilidade, possuidor das lembranças de que a consciência necessita e, por fim, o inconsciente que, por sua vez, possui elementos instintivos, material censurado e reprimido pela consciência que embora não estejam acessíveis a ela, não estão perdidos ou esquecidos. É aqui onde estão as fontes da energia psíquica, os instintos e as pulsões. A segunda explicação diz respeito dos instintos ou impulsos. Estes seriam pressões que surgem de uma necessidade do corpo que precisa ser satisfeita para que seu equilíbrio retorne. É formado por quatro componentes, quais sejam, uma fonte (uma necessidade), uma finalidade (saciar essa necessidade), uma pressão (quantidade de energia que deverá ser usada para satisfazer tal necessidade) e um objeto (qualquer coisa que permita a satisfação da mesma). Os seres humanos agem dentro de um ciclo denominado modelo de tensãoredução, onde para satisfazer à suas necessidades partem do repouso para a tensão e a atividade, voltando em seguida para o repouso. Em alguns casos, no entanto, a necessidade que surge não pode ser satisfeita, seja porque ela se choca com outra ou porque é bloqueada por proibições sociais. Para tentar compreender todo esse processo, Freud propôs três componentes estruturais da psique, como explica Ballone: o Id, o Ego e o Super-Ego. O Id é a estrutura da personalidade original do ser humano, contendo tudo o que é herdado desde o nascimento, principalmente os instintos originados da organização somática cujas expressões psíquicas ainda são desconhecidas. Está exposto às exigências do Ego e do Super-Ego. Pode ser considerado como “o reservatório de energia de toda a personalidade” de onde o Ego extrai a força suficiente para suas realizações. Possui conteúdos contraditórios que coexistem lado a lado, sem que um anule ou diminua a força do outro, sendo quase todos inconscientes, alguns nunca se tornaram conscientes, outros foram banidos pela consciência por serem considerados inaceitáveis. Ballone, baseando-se em R. Frager J. Fadiman, ressalta que “um pensamento ou uma lembrança, excluído da consciência, mas localizado na área do Id, será capaz de influenciar toda vida mental de uma pessoa.” Se desenvolvendo a partir do Id à medida que o indivíduo toma consciência de sua própria identidade, o Ego é a estrutura que está em contato com a realidade. Suas funções são a de auto-preservação, de garantir a segurança, a saúde e a sanidade da personalidade, comandando o movimento voluntário e a de controlar as exigências do Id, dos seus instintos, decidindo se eles devem ou não serem saciados, e em caso afirmativo procurando sempre soluções mais adequadas, mais realistas à essa satisfação. A última estrutura é o Super-Ego, que por sua vez, se desenvolve a partir do Ego. Desempenha a função de censor sobre as atividades e pensamentos do Ego, engloba todos os parâmetros que funcionam como inibições da personalidade, por exemplo, os modelos de condutas, os códigos morais, etc. Normalmente o Super-Ego age sobre as ações conscientes, mas também pode agir inconscientemente sob a forma de compulsões ou proibições. O principal problema da psique é encontrar um equilíbrio entre as sensações de prazer e desprazer ou ansiedade que podem surgir do conflito entre Id, Ego e Super-Ego. Alguns exemplos de situações causadoras de ansiedade são: a perda de um objeto desejado, perda de amor, de auto-estima ou medo ser ridicularizado em público. Existem dois modos de diminuir essa ansiedade, enfrentando o problema e resolvendo-o ou negando a situação, deformando a realidade através dos mecanismos de defesa. Todas as pessoas possuem mecanismos de defesa, o problema surge quando a existência destes se torna excessiva, podendo indicar possíveis sintomas neuróticos e psicóticos. Os mecanismos de defesa são: repressão, negação, racionalização, formação reativa, isolamento, regressão, projeção e sublimação. A repressão consiste em afastar do consciente determinado material mantendo-o no inconsciente, contudo, este não desaparece, mas continua na psique causando problemas. Na negação ocorre, como o próprio nome já diz a negação de algum fato que perturba o Ego. Este fato não é aceito pela consciência, fazendo com que o indivíduo passe a fantasiar a seu respeito. Já na racionalização, a pessoa procura explicações lógicas e racionais para fazer com que fatos não aceitáveis passem a sê-lo. Enquanto que na formação reativa, há uma inversão inconsciente do verdadeiro desejo. A pessoa não pode realizar seu desejo, então cria barreiras mentais contrárias a ele, que tomam a forma de repugnância, vergonha e moralidade. No mecanismo denominado projeção, o indivíduo desloca para o meio externo aspectos de sua própria personalidade, ele lida com sentimentos reais, no entanto acredita que esses são oriundos de outras pessoas e não seus. Na regressão há um retorno a um nível ou a um modo de expressão infantil que reduza a ansiedade causada. A energia que seria usada para realizar impulsos que não podem ser satisfeitos é canalizada para outras atividades, como por exemplo, a paixão pela leitura ou pela arte, este é o mecanismo conhecido como sublimação. E por último, o deslocamento, onde a pessoa substitui a finalidade inicial de um impulso por outra socialmente aceita. O crime para a psicanálise, como explica Roque de Brito Alves, é visto como produto de um conflito entre Ego e Super-Ego. A personalidade do criminoso é explicada em termos de impulsos inconscientes, que não podem ser reprimidos, traduzidos em ações criminosas e a característica de neurótico seria a sua principal. 2.3.2 PSICOLOGIA INDIVIDUAL (ADLER): A linha de Alfred Adler é baseada principalmente no complexo de inferioridade, termo este criado pelo próprio, para designar a situação na qual o indivíduo sente-se inferior em relação a alguém. Quando este sentimento adquire forma moderada, é considerado extremamente benéfico porque impele o indivíduo a vencê-lo, fazendo com que ele obtenha realizações construtivas e saudáveis, assumindo a forma de uma luta pelo desenvolvimento das capacidades e habilidades. Segundo Adler a agressividade é usada para a superação de obstáculos, para a superação deste complexo de inferioridade, sendo crucial para a sobrevivência individual e das espécies. A luta pela perfeição seria inata ao ser humano, sem o qual a vida seria considerada inimaginável. Porém, esta luta adquire contornos negativos quando o seu objetivo passa a ser a superioridade pessoal através da dominação dos outros. Isso aconteceria como resultante de um forte sentimento de inferioridade e falta de interesse social, ganhando, assim, contornos de uma perversão neurótica. O crime é visto, então, como resultante de um complexo de inferioridade, usado como forma de compensação desse complexo. 2.3.3 PSICOLOGIA ANALÍTICA (JUNG): Carl Gustav Jung baseia sua teoria em dois conceitos principais: Introversão e Extroversão. Na introversão, a energia é voltada para o interior do indivíduo, este concentra-se unicamente em seus próprios sentimentos e pensamentos, o perigo surge quando o introvertido acaba perdendo ou tornando tênue a linha de ligação com o mundo exterior. Já na extroversão ocorre o inverso, a pessoa orienta suas energias para o mundo exterior, tende a ser mais consciente do que acontece ao seu redor, no entanto pode se apoiar tanto nas idéias alheias, que acaba por ignorar as próprias, alienando processos internos. O ideal seria o equilíbrio, onde o indivíduo tão flexível a ponto de ser extrovertido ou introvertido à medida que isso se fizesse necessário. Para Jung, a conduta criminosa não é produto de frustrações ou de sentimento de inferioridade, mas sim de complexos muito mais completos, amplos e profundos. 2.3.4 TRANSTORNOS DE PERSONALIDADE: Em alguns casos o Ego atua de forma anormal continuamente. A personalidade passa a poder ser classificada de acordo com um determinado traço marcante, com uma determinada maneira de existir, quando o normal seria que esta fosse formada por um pouco de tudo, sem que uma determinada característica prevalecesse. Newton Fernandes explica que: Noutras vezes, o indivíduo é possuidor de uma personalidade mórbida e o ato chega a ser sintoma de perturbação [...]. Poderá, ainda, existir defeito ou desvio da personalidade [...] e o ato delituoso chega a ser a expressão do caráter: é o que ocorre com as “personalidades psicopáticas” e “personalidades delinqüenciais. 11 O transtorno surge quando esta característica prevalecente acaba por restringir a liberdade da personalidade, prejudicando seu portador, fazendo com que ele ou outras pessoas sofram. Os principais transtornos são: paranóide, esquizóide, explosivo, histriônico, ansioso, obsessivo e anti-social. a) Transtorno Paranóide: a principal característica deste transtorno reside na tendência que o seu portador tem de interpretar as ações das outras pessoas quase sempre como ofensivas ou humilhantes. Ele acredita que está sendo prejudicado ou explorado pelos outros, isso faz com que esse indivíduo tome atitudes agressivas contra estes. Questiona a fidelidade e lealdade das pessoas ao seu redor, se tornando, muitas vezes, patologicamente ciumento. Possui também uma sensibilidade exagerada às posições que sejam divergentes da sua por acreditar que somente a sua opinião seja a correta. Este transtorno tem seu início no final da adolescência e início da idade adulta. b) Transtorno Esquizóide: o portador desse transtorno é introvertido, apresenta um padrão de afastamento social, sente-se freqüentemente incompreendido, o que acaba por reforçar seu isolamento. Sente um constante desconforto nas interações humanas, mantendo-se sempre isolado, não vê necessidade de vínculos emocionais. Possui uma excentricidade de comportamento e pensamento, muitas vezes, vincula-se a movimentos religiosos incomuns, associações de assuntos esotéricos e etc. Embora, estejam normalmente absortos em devaneios fantasiosos, não perdem a noção da realidade. c) Transtorno Explosivo: a pessoa portadora deste transtorno tende a agir por impulso, não medindo a conseqüências de tais atos. Quando estes impulsos 11 FERNANDES, Newton; FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 322. são impedidos ou reprimidos geram acessos de violência, ódio e agressividade que acabam fugindo do seu controle. A reação externada por eles é completamente desproporcional ao estímulo gerado pelo estressor. No entanto, após essas crises tendem a experimentar um sentimento de culpa. Apresentam grande instabilidade afetiva. d) Transtorno Histriônico ou Histeria: É mais freqüente nas mulheres. O indivíduo possui um comportamento dramático e extrovertido, normalmente exuberante sempre com o propósito de chamar a atenção das outras pessoas. Apresentam traços de vaidade, egocentrismo, exibicionismo e dramaticidade, encenam pequenos papéis que lhes foram negados pela vida, chegando a se perderem entre a fantasia e a realidade. Os principais mecanismos de defesas utilizados por essas pessoas são a somatização, dissociação e repressão. Se utilizam da sedução ou da manipulação emocional para controlar as pessoas. e) Transtorno Ansioso: a principal característica do indivíduo portador deste transtorno é a crença de ser socialmente inepto, desinteressante e desagradável. Por medo de críticas ou de experimentarem sentimentos desagradáveis, especialmente o de rejeição, acabam por se isolar. Para se sentirem socialmente aceitos, freqüentemente mentem a seu respeito, pois acreditam que se as outras pessoas souberem a verdade provavelmente irão perder o interesse. f) Transtorno Obsessivo: o indivíduo exibe um padrão generalizado de inflexibilidade e de perfeccionismo. Este último com relação especialmente a limpeza, arrumação e organização. Ele chega a checar diversas vezes se as portas estão trancadas, as gavetas fechadas, os chinelos arrumados, etc. Faz tudo de forma extremamente meticulosa e obsessiva, tornando-se por isso, muito enfadonho. Os seus portadores têm dificuldade em expressar sentimentos, como o de ternura, compreensão e compaixão pelos outros. g) Transtorno de Personalidade Emocionalmente Instável: de acordo com a Organização Mundial de Saúde (CID.10), este transtorno divide-se em outros dois, o tipo Impulsivo, também conhecido como Transtorno Explosivo, já analisado anteriormente, e o tipo Borderline ou Limítrofe. Este último é diagnosticado predominantemente entre mulheres (75% dos casos), e estima-se que atinja 2% da população geral. Caracteriza-se o seu portador por apresentar acentuada instabilidade afetiva, podendo transitar bruscamente entre o amor e o ódio, alegria e tristeza, indiferença e entusiasmo, etc. Agem de forma impulsiva, sem se preocupar com as conseqüências de seus atos. Pequenos estressores podem gerar respostas violentas e extremamente agressivas, tendo por objeto normalmente pessoas de seu convívio íntimo. Apresentam um sentimento crônico de vazio, não conseguem ficar sozinhos, e para evitar o abandono utilizam-se de expedientes violentos, como ameaças de suicídio (o suicídio consumado ocorre em 8 a 10% dos casos) e auto-mutilação. 2.3.5 PERSONALIDADE PSICOPÁTICA: Segundo a psicanálise, a psicopatia é uma grave patologia do Super-Ego, sendo considerada uma síndrome de Narcisismo Maligno. O narcisismo não patológico é considerado como conseqüência de uma boa evolução do Ego, no entanto, quando o indivíduo não interioriza de forma satisfatória sentimentos como amor e estima, recebidos do meio, acaba desenvolvendo defesas extremamente fortes. É caracterizado principalmente pela conduta anti-social, agressão egosintônica contra as outras pessoas ou contra si mesmo, sentimento de grandiosidade alternado com crises de insegurança, superficialidade emocional e auto-referência excessiva. Os psicopatas, geralmente, usam seu encanto pessoal para manipular as pessoas, transformando-as em coisas que podem servir de meio ao alcance de seus objetivos. Consequentemente quando estas deixam de apresentar utilidade são descartadas. Há absoluta falta de sentimentos pelos outros indivíduos, eles não são considerados como semelhantes, mas simplesmente como objetos manipuláveis ao seu prazer. Utilizam a mentira como “ferramenta de trabalho”, não sentem vergonha ou arrependimento, falta-lhes consciência moral, não possuindo qualquer noção de ética. Mentem de forma tão natural que chega a ser difícil distinguir a mentira da realidade. Muitas vezes, mentem para simular situações que sejam vantajosas, que agradem sua personalidade narcisística. Por conta deste narcisismo são obcecados em sempre serem os mais bonitos, mais ricos, etc. No filme Psicopata Americano (American Psycho, 2000), baseado no livro de Bret Easton Ellis, o protagonista tem uma verdadeira síncope ao descobrir que o seu cartão de apresentação não seria tão perfeito quanto o de seus colegas, demonstrando com veracidade o sentimento experimentado por eles. A total falta de freios capazes de conter a sua impulsividade e agressividade, aliada ao baixo limiar de tolerância às frustrações e a todas as outras características acima destacadas acaba por impulsionar o psicopata a cometer crueldades e até crimes. A psicopatia não tem cura ainda, pelo menos é o que atesta a mais moderna medicina. Sendo assim, o máximo que se pode oferecer a seus portadores seriam mecanismos que os mantenham longe da sociedade, tentando evitar, assim, que causem maiores danos. 2.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: O presente capítulo que se encerra é de suma importância para a resposta de questionamentos que naturalmente serão levantados no decorrer do próximo capítulo. O próximo capítulo tratará da origem do criminoso, sua gênese e também será abordado as causas e aspectos que, na perspectiva do presente trabalho, leva um cidadão normal, de bem e honesto, à delinqüência. Será demonstrado a forte influência do meio social no processo de formação do criminoso e nesse momento vários leitores podem se questionar dizendo: “Mas o rico também comete crimes!”. É evidente que sim, mas as causas e os motivos é que não são os mesmo e, na maioria dos casos, tampouco os tipos penais. Em outras palavras, geralmente o rico não comete os mesmos crimes que o pobre e quando os comete, não é em decorrência das mesmas causas e motivos. Por exemplo, os crimes expressão de um sistema intrinsecamente criminoso (criminalidade do “colarinho-branco”, racismo, corrupção dos agentes estatais, crime organizado, belicismo), possuem maior abrangência nas classes mais abastadas, enquanto que os crimes de ordem mais patrimoniais, tais como furto, roubo, extorsão, tráfico entre outros, são mais expressivos entre aqueles pertencentes às classes mais desprotegidas. Tendo maior ocorrência de determinados crimes em determinados segmentos sociais, por haver certa relação de causa e motivo para a prática destes delitos. CAPÍTULO III O CRIMINOSO 3.1 DA ORIGEM DO CRIMINOSO: Ninguém nasce criminoso! Mesmo com várias tentativas científicas de brilhantes cientistas como Cesare Lombroso e outros, nada pôde ser demonstrado, muito pelo contrário. O advento da genética reforçou esta tese. Não é possível olhar para uma criança brincando pelo pátio e afirmar que a mesma é um criminoso em formação ou coisa parecida, ou então, talvez dizer: “Hum... olha a cara deste aqui, esse vai ser bandido, tenho certeza que será! Já é mau desde de pequenino!”. Como afirmou o filósofo francês Jean Jacques Rousseau, “o Homem nasce bom, a sociedade o corrompe!” Ou seja, o Homem é produto do meio social em que vive, não de maneira determinante, mas ao ponto de exercer fortes influências. Conforme discutido no capítulo anterior existe aquele autor de um crime ocasional e aquele autor de vários e vários crimes. Isso é importante para demonstrar que nem todos que cometem algum tipo de crime, acabam por tornarse um criminoso. Há, ainda, aquele que comete um ou vários crimes sob influência de algum distúrbio biológico ou psicológico. Sendo também importante ressaltar que como já explanado nos capítulos anteriores o crime tem origem na ação do Homem, contudo exista somente por determinação legal, como exposto anteriormente. E por assim o ser, de agora em diante, o foco do presente trabalho serão os indivíduos que mesmo em plenas condições psíquicas e biológicas acabam por delinqüir. Para isso é preciso dissertar a respeito do meio social em que vivemos, com todas as suas contradições, para tornar-se possível enxergar a origem da delinqüência do Homem. A riqueza de uma nação não é abundante e infinita, pelo contrário é bem limitada e inconstante, crescendo às vezes, ou em alguns casos, diminuindo. O sistema capitalista de produção se sustenta basicamente na mais-valia da exploração do trabalho humano, gerando concentração de renda e conseqüentemente gigantescas discrepâncias de classes, entre ricos e pobres. No capitalismo tudo é mercadoria e possui um valor e preço correspondente. Até a força de trabalho humana, para o capitalismo é considerado mercadoria, com valor e preço. Acontece que a força de trabalho humana, possui uma particularidade que nenhuma outra mercadoria possui, que é o fenômeno de produzir valor, muito além, do que o seu próprio valor, daí a terminologia “maisvalia”. Esse valor excedente gerado pelo trabalhador que vende sua força de trabalho é apropriado pelo detentor dos meios de produção, acumulando valor e conseqüentemente riqueza. Talvez, um exemplo alegórico explique melhor a teoria da mais-valia. Suponhamos que em uma fábrica de sapatos fictícia, um determinado trabalhador recebe a quantia de vinte reais por dia e produz no mesmo dia, quarenta pares de sapato, que são vendidos ao preço de quarenta reais cada. Descontados o custo de produção, com exceção do salário do operário, cada par de sapato gera vinte por cento de lucro, ou seja, oito reais. Oito reais multiplicados pelos quarenta pares de sapatos produzidos por dia resultará em um total de trezentos e vinte reais. Do lucro gerado, o operário ficará com apenas vinte reais, que é aquilo que sua força de trabalho vale no mercado, devido a oferta e a procura, e o proprietário dos meios de produção ficará com o restante, trezentos reais. Isso é a mais valia, o operário produz mais do ele mesmo vale. Esse é o fenômeno que explica o acúmulo de capital e a origem das desigualdades de classe na sociedade capitalista. Assim, havendo uma minoria de milionários, inexoravelmente haverá também uma multidão de miseráveis. Outra comparação alegórica, quiçá ilustre melhor, as conseqüências da concentração de renda. Imaginemos que em uma determinada sala de aula possui vinte alunos, e todos os dias chegam quarenta maçãs para o lanche. Em uma distribuição equitativa, haverá duas maçãs para cada aluno; no caso de algum aluno comer três maçãs, inevitavelmente um dos outros dezenove alunos da classe comerá apenas uma. Da mesma forma acontece na sociedade capitalista, se a renda se concentra na mão de alguém, falta na mão de outro. O capitalismo, portanto, gera duas classes principais, distintas e antagônicas entre si, uma detentora dos meios de produção e outra detentora apenas de sua força de trabalho. A classe detentora dos meios de produção, quando não estão no poder, possui meios eficazes de influenciá-lo, mesmo no Estado democrático de direitos. E assim através de instrumentos estatais e outros, tais como a educação, a mídia e demais formas de dominação da superestrutura capitalista, cria-se uma cultura de consumo, da super-valorização da propriedade privada e da falsa ilusão de “ascensão” de classe, criando também uma atmosfera de permanente disputa entre os homens, para obter cada vez maiores e melhores condições de consumo, maiores e melhores propriedades e de maior status social. Este ambiente é dos mais propícios para degeneração do homem, excluído e marginalizado pela sociedade, ao crime. Dia a dia milhares, de pessoas sobrevivem sem qualquer tipo de tutela estatal, no que tange a oferecer a todos os cidadãos, dignidade; educação pública, gratuita e de qualidade; sistema de saúde eficaz e de qualidade; saneamento básico; lazer, esporte, cultura, segurança pública e etc. Vários cidadãos vivendo com tão pouco, contrastando-se com alguns com tanto, influenciadas pelo meio social conturbado em que vivem e pela cultura de consumo, imposta pela superestrutura capitalista, acabam por delinqüir e não raramente são julgados com todo o rigor estatal e enviados às penitenciárias para se “recuperar”, como se a criminalidade fosse algum tipo de enfermidade a ser curada, por meio de tratamentos específicos. Nessa perspectiva, depois de ficar alguns anos submetido a condições degradantes, este cidadão que se delinqüiu, é jogado de volta ao seu mesmo meio social conturbado, de antes, mais uma vez sem qualquer tipo de atenção do Estado e agora com a estigma ou a etiqueta, como preferem algumas escolas da criminologia, de criminoso. É preciso reconhecer que o sistema de reeducação do criminoso condenado é falho e ineficaz e que toda nossa política de repressão ao crime é repleta de falhas insanáveis. O Professor Sérgio Salomão Shecaira, ao falar sobre o pensamento dos abolicionistas, escola criminológica crítica, com relação ao cárcere, diz o seguinte: Ademais, a prisão pode ser considerada um gigante com pés de barro, contemplando uma total irracionalidade. E que as finalidades atribuídas à prisão, na realidade, não se cumprem. Ela não reabilita o preso. Todos os estudos demonstram que o condenado a uma instituição total internacionaliza os valores do presídio, com efeitos devastadores sobre sua personalidade. O índice de reincidência é sempre muito alto e a capacidade de superação do delito anterior está muito mais ligada aos apoios sociais e familiares que ele tem no presídio do que propriamente a “ação” desencadeada pelo encarceramento. Além disso, a prisão, por si só, não intimida o transgressor.12 Tendo em vista tantas contradições e falhas do atual sistema penal, é preciso prevenir o crime, ao invés de tão somente reprimi-lo e combatê-lo, e só será possível prevenir, se for possível afastar o homem do crime, transformando o seu meio social. Daí ser certeira a afirmação do filósofo alemão Karl Marx que dizia que “não se deve castigar o crime no indivíduo, mas destruir as raízes antisociais do crime e dar a cada qual a margem social necessária para exteriorizar a sua vida de um modo social”. Existe no país uma legião de pessoas vivendo e crescendo à completa margem da sociedade, sem acesso ao mínimo do que o Estado deveria oferecer a elas. No Brasil, em pleno século 21, existe ainda, infelizmente, pessoas que morrem por inanição, que não sabem ler ou escrever, que nunca tiveram contato com qualquer tipo de arte, desporto ou lazer. É como se para essas pessoas o Estado não existisse, pois elas nunca tiveram contato com esse monstro chamado por Hobbes de Leviatã. Essas pessoas sem qualquer esperança de melhora, se embrutecem, perdem a compaixão e muitas das vezes não possuem mais nada que possa delas ser tirado. Não raramente não possuem mais nada a perder. Como é possível exigir ou esperar dessa pessoa que ela tenha qualquer tipo de comprometimento com a sociedade e o Estado que sempre a ignoraram? Como é possível esperar solidariedade e compaixão de quem sempre recebeu o desprezo e o descaso? Essa pessoa não se sente parte desta sociedade, ela se sente um pária, 12 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia / Sérgio Salomão Shecaira; prefácio Alvino Augusto de Sá. - 2. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p.349. marginalizado e excluído e o crime para ela se mostra como algo natural e até mesmo justo. Esses infelizes nunca puderam contar com a Lei ou a proteção do Estado, muito pelo contrário tiveram maior contato com a repressão implacável do mesmo. Impera na periferia outros valores. Prevalece ali, uma ética e moral diferente dos bairros nobres, prevalecendo a lei do mais forte e do mais esperto e quem não consegue se adaptar é engolido pela selvageria da violência quotidiana destes meios sociais. O poeta Gonçalves Dias, em seu poema intitulado “Canção do Tamoio”, inicia e termina seu poema com estrofes que catam a dureza da vida, vejamos: “Canção do Tamoio” (Natalícia) I Não chores, meu filho; Não chores, que a vida É luta renhida: Viver é lutar. A vida é combate, Que os fracos abate, Que os fortes, os bravos Só pode exaltar. (...) X As armas ensaia, Penetra na vida: Pesada ou querida, Viver é lutar. Se o duro combate Os fracos abate, Aos fortes, aos bravos, Só pode exaltar. Gonçalves Dias 13 A poesia, uma das mais belas do autor, trata do diálogo de um pai para seu filho, preparando-o para as agruras e dificuldades da vida. Se na época do poeta, entre os tamoios, a vida era um combate, no capitalismo atual tomou feições de uma guerra sangrenta, sem nenhum brilho ou heroísmo. O capitalismo vai destruindo pessoas e minando suas perspectivas, criando expectativas que não são acessíveis a todos, ao ponto de transformar as pessoas em verdadeiros animais. Existe no capitalismo uma falsa impressão de liberdade, onde escutamos com freqüência, jargões do tipo: “basta batalhar duro, para vencer na vida” ou “estuda, menino, senão não será ninguém na vida”. Acontece, que no Brasil, existem pessoas morrendo de fome antes de completar quinze anos de idade, qual a oportunidade de escolha que essas pessoas tiveram? Que tipo de pessoa se torna esse indivíduo nessas condições? No ano passado, de Roma, a FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) divulgou estudo que demonstra que mais de 1,020 bilhões de pessoas passaram fome no ano de 2009. Para estabelecer estas previsões, a FAO se baseou nas análises do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. Este organismo atribui esse aumento à crise econômica mundial, que originou uma diminuição da renda e um aumento do desemprego, o que ajudou na redução ao acesso aos alimentos por parte dos mais desfavorecidos. Ou seja, quase um sexto de toda a população mundial passará fome no ano de 2009, em decorrência da crise capitalista. Logo, neste sentido, a maioria das crianças que crescem nos morros cariocas ou nas cidades do entorno de Brasília, ou qualquer outra zona de risco no 13 DIAS, Gonçalves. Canção do Tamoio : Natalícia / Gonçalves Dias. http://www.revista.agulha.nom.br/gdias01.html#tamoio Brasil, depara-se com a seguinte situação, que será descrito de forma alegórica. Estas crianças vão crescendo e convivendo quotidianamente com traficante, armado de fuzil, mandando e desmandando na “comunidade”. É o cara que realiza as festas, que manda o comércio abrir ou fechar, que “protege” a “comunidade”, que possui a atenção das meninas mais cobiçadas e o medo e o respeito de todos e todas. Geralmente, essas crianças nem mesmo conheceu o seu pai e sua mãe é espancada na sua frente dia sim, dia não, pelo o padrasto alcoólatra. Algumas vezes até possui um primo que a muito custo acabou se formando em História em alguma universidade pública, mas continua na periferia e é como qualquer outro “Zé Mané”. Estas crianças que nasceram boas e que geralmente são bem talentosas poderiam exercer qualquer atividade que quisessem, acabarão sendo influenciados pelo meio-social que vivem à optar pelo tráfico e ou outra forma crime por ser a referência de ascensão social que tiveram por anos a fio, somados ao desprezo e o descaso do Estado e das classes abastadas. Esta é uma das fórmulas do crime. Pessoas boas, que por falta de oportunidade e de justiça acabam delinqüindo, pouco a pouco, até chegar a um estágio irremediável. Esta situação é bem ilustrada no documentário “Falcão: Meninos do Tráfico”, uma realização da CUFA (Central Única das Favelas), dirigido e produzido pelo rapper MV Bill e Celso Athaíde. Seis anos percorrendo comunidades de todo o país. Mais de 90 horas filmadas. Depoimentos e imagens que revelam, como nunca foi visto antes, o universo dos menores de idade que trabalham no tráfico de drogas em periferias de Norte a Sul do país. Este é o material que serviu de base para que o rapper MV Bill e seu produtor, Celso Athayde, produzissem "Falcão - Meninos do Tráfico", um especial de 58 minutos, que o Fantástico exibirá no próximo domingo, dia 19. Trata-se do mesmo especial que seria exibido em agosto de 2003. Sem cortes e com um acréscimo de três minutos de novas imagens. "O Falcão não é um caso de polícia, não é uma denúncia, não é uma lamentação. Falcão é sobretudo uma chance que o Brasil vai ter para refletir sobre uma questão do ponto de vista de quem é o culpado e a vítima. Falcão é uma convocação para que a ordem das coisas seja definitivamente mudada", diz Celso Athayde, diretor do documentário. "É a oportunidade de o telespectador se aproximar de uma realidade que, muitas vezes, as próprias comunidades desconhecem", explica Athayde. "Eu não sei exatamente qual o papel desse documentário", diz MV Bill. "Solucionar eu tenho certeza de que não é. Mas é mais um instrumento para ajudar a pensar, repensar as leis dentro do Brasil, para que as pessoas discutam e vejam se é esse mesmo o Brasil que a gente quer. Ou a gente tem um Brasil só ou tem dois Brasis. E parece que estão cuidando mais de um e esquecendo do outro. Só que o outro tá crescendo e se transformando num monstro. Onde nós já perdemos o controle. Tá engolindo todo mundo." O filme é um documentário sobre pessoas que talvez nem façam parte das estatísticas, a não ser depois de mortas, é claro. Oferece uma visão realista do tráfico de drogas nas favelas cariocas, para que não seja ignorado quem vende, quem compra, quem morre e quem mata. Falcão é o jovem que vigia e protege os traficantes, a "boca" e os moradores da comunidade, é aquele que está no tráfico noturno. Não dorme, e para manter-se acordado, na sua grande maioria, faz uso de drogas. Geralmente são menores que vendem a droga no varejo, droga para eles é sinônimo de dinheiro, e dinheiro é a solução para todos os males. Fazem alusão a dois tipos de "carga" - mercadoria, "carga de pó" e "carga de maconha". Eles têm consciência de que o que vendem estraga a vida das pessoas, principalmente o crack, mas é vendendo o crack, que eles ganham o pão. Começam cedo a distribuir a droga e vão até a madrugada. Eles tem que ficar num ponto estratégico da favela, contam com a ajuda dos "fogueteiros", que são jovens que "trabalham" no tráfico e sinalizam usando foguetes quando a polícia vai ao morro e os inimigos dos traficantes também. Quando estoura o "12/1" na favela é porque a polícia está entrando. Os meninos usam também sinais, como passar a mão na barriga, para avisar. Precisam ficar em estado de alerta o tempo todo, o cuidado é excessivo, para que não sejam localizados e mortos ou presos. - Falcão não dorme, nunca descansa... quem é viciado, fica na "onda"! O cansaço é extremo, é a droga que os mantêm acordados: Tem que dar um "teco" cheirar cocaína. A polícia para eles é o inimigo maior, mas pode ser também aliada, para ignorar o que acontece nas favelas: "Se acabar o crime, acaba a polícia", dizem eles, fazendo alusão ao recebimento de propinas por parte de policiais, para "melhorar o salário deles". Então preconizam que o tráfico não vai acabar tão cedo! O objetivo com o que ganham no tráfico é: Ajudar a mãe, quase sempre uma mulher abandonada pelo companheiro, comprar roupas de "grife" famosa, sustentar o vício e freqüentar bailes funks, para "pegar" as "cachorras", jovens que se expõem nos bailes, dançando de maneira sensual. As armas exercem um enorme fascínio sobre estes jovens, que as define como algo que os protege, dá respeito e atrai as meninas, para eles é um instrumento de poder portar um fuzil ou uma pistola. Foi interessante observar que tratam os mais velhos da comunidade com respeito, à exceção daqueles que os delata "X-9", para estes não importa a idade, a sentença é uma só: A morte. Eles acham que não fazem parte da sociedade, que o morro é um caso à parte. Acham que não são nada e que estão ali para tudo, para o que der e vier. Não parecem ter medo de qualquer força de repressão, estão ali para enfrentar, para matar ou morrer, e a morte é vista como uma conseqüência natural para quem vive do tráfico. Mantêm certo assistencialismo para com os moradores da favela, compram gás, brinquedos, ajudam na construção dos barracos, enfim, compram o silêncio trocando por mercadorias, doam o caixão também... A delação é o pecado mais grave que um favelado pode cometer, o delator é o X-9, sua morte deve ser violenta para servir de exemplo, são torturados e queimados vivos, nos "microondas", feitos com pneus, onde é introduzida a pessoa e depois é ateado o fogo. É interessante observar que estes meninos do tráfico sequer têm conhecimento de onde parte a mercadoria que vendem. Dividem na favela e depois vão para pista vender, tem uma verdadeira linha de produção artesanal para o manejo com a droga, preparada para venda. Tem traficante que não fuma, não cheira e nem bebe, e chegam a entender que não deveriam estar lá, no morro, culpam o governo pela má distribuição de renda (em outras palavras) e queriam saber para onde vai "o dinheiro do Brasil". Queixam-se do "pouco estudo" e de alguns que nunca tiveram acesso a uma escola, acham que são discriminados por isso e que seu único recurso de sobrevivência é vender drogas. Alguns nem se consideram "bandidos", e acreditam que estão fazendo isso para ajudar a família. É interessante o fato de que não concebem a idéias de um filho viciado, mas quando são perguntados o que querem ser quando forem adultos a resposta é certeira: Quero ser bandido! Dinheiro e poder é o que a companhia de um bandido (Fiel) traz para estes menores, segundo a concepção deles. O "Fiel" é mais importante que os outros amigos, mais importante que os pais, parece existir uma nova estrutura de autoridade para estas crianças – "...onde a bala come, a lei é a do cão"... Quando uma mãe relata algo sobre a vida do filho, recentemente morto pela polícia, diz o que se espera ouvir: "ele era carinhoso, de repente tornou-se agressivo e não quis mais estudar", ela mostra fotos, roupas que serão doadas, e de cabeça baixa soluça, chorando de saudade. Um amigo deste garoto que foi morto foi o único que sobreviveu depois do documentário ter sido concluído. Somente ele acalentava um sonho: O sonho de ser um palhaço e trabalhar num circo... bem grande. Na favela, as crianças desde cedo conhecem a gíria do tráfico, este linguajar paralelo e brincam encenando atos da boca de fumo e da polícia, divertem-se atirando nos X-9 e fingindo estarem usando drogas. Alguns já adultos e com seqüelas de tiros e brigas, encontram um outro caminho e buscam uma outra maneira para sobreviver, queixam-se que o governo não pratica um salário digno e se fosse assim, a criminalidade não acabaria, mas segundo eles, diminuiria bastante. O autor termina o documentário externando que nem ele sabe o verdadeiro motivo para explanação destes fatos, talvez para dar oportunidade à reflexão sobre um "Brasil" que muitos não conhecem, e que está virando um Monstro. O filme descrito acima, dissertado neste trabalho, não é uma grande descoberta intelectual, são apenas o depoimento sofrido de pessoas simples na favela, que conhecem bem a teoria aqui defendida, a muito tempo, e na própria pele. É óbvio que nem todos que moram e vivem em meios sociais conturbados serão inexoravelmente criminosos, contudo, sem a menor sombra de dúvida, estão mais vulneráveis à influência do mesmo. E se houver uma intervenção ainda na fase da infância, no momento da formação do caráter humano, muito dos males atuais, poderiam ser evitados. Para melhor elucidar a questão do processo de delinqüência, faz-se imperioso citar dois casos verídicos que acabaram tornandose filme, no Brasil. O primeiro caso trata da vida do rap az Sand ro d o Nascim e nto , um a histó ria real q ue acabo u f igurando nas telas d e c ine m a, p elo fato d e no ano 2000 , ter seqü estrad o um ônib us no R io d e J aneiro . Tend o um a mo ça com o refém na m ira d e seu revó lver, a p o lícia atirad o re s d e elite - acabo u d isp arando e m atando o s do is. O f ato fo i transm itido p ela TV. Em 2002 o d ireto r Jo sé P ad ilha, de "Tro p a d e E lite", transf o rmo u a histó ria no do cum entário "Ô nib us 174 " e d epo is o diretor Bruno Barreto rodou o drama “Última Parada 174. Ambos os filmes trazem ao conhecimento do telespectador a vida pregressa do seqüestrador, de nome Sandro. Aos seis anos, filho de pai desconhecido presencia o assassinato da mãe, grávida de cinco meses. Cresce em abandono, morando nas ruas do centro do Rio de Janeiro. Sobrevive ao massacre de meninos de Rua da Candelária. Praticava roubos a veículos parados nos sinais de trânsito, para sustentar a si e ao vício em drogas diversas. Ainda menor, foi sentenciado ao cumprimento de medidas sócio-educativas, não efetivadas porque fugia das instituições onde permanecia sob custódia. Já na idade adulta, foi condenado e sentenciado pela prática de furto qualificado e assalto - mais uma vez não cumpriu a pena estabelecida. Apesar de apresentar bom comportamento durante o período em que esteve preso, optou por seguir outros presos que fugiram. A retrospectiva de vida de Sandro, repleta de infortúnios, encaminhada sem a assistência da família ou do Estado, conduz ao pensamento de Carnelutti (2005), expressado na obra "As misérias do processo Penal", em que o autor afirma que todos os homens possuem incrustados em si o germe do bem e do mal, e o desenvolvimento de um ou de outro depende, em muito, do tratamento que recebem ao longo da vida. No caso de Sandro, prevaleceu o germe do mal. Vários casos semelhantes a este acontecem todos os dias no Brasil. Casos como o de Sandro acontecem todos os dias em várias cidades brasileiras. Por tudo que foi visto e ouvido durante o filme, percebe-se claramente as falhas do sistema de segurança oferecido pelo Estado, iniciando-se pela ineficácia das medidas preventivas existentes, provavelmente em razão do distanciamento entre a legislação abstrata, que determina o desenvolvimento de políticas efetivas de atendimento às famílias, às crianças e aos adolescentes em situação de risco pessoal e social, e o tratamento dispensado ao fato concreto; passando pelo desaparelhamento das polícias, haja vista a precariedade de recursos material e humano verificada no decorrer das negociações com o seqüestrador; e finalizando com a mal sucedida idéia de alcançar-se a ressocialização do delinqüente por meio do cumprimento da pena privativa de liberdade em condições tão desumanas que raramente possibilitam ao sentenciado reaver sua condição de cidadão do ponto de vista da sociedade e de si próprio. Esta história, real, mostra com clareza espetacular o espírito do presente trabalho e leva à seguinte questão: Caso Sandro tivesse tido melhores oportunidades, teria tido um final melhor? Por todo o exposto neste trabalho não é possível deixar de afirmar que sim! O segundo caso remete à história do mineiro Roberto Carlos Ramos, que inspirou o filme “O Contador de Histórias”, do Diretor Luiz Villaça que conta uma história real de como o afeto pode transformar a realidade de uma pessoa. Caçula entre dez irmãos, Roberto desde cedo demonstra um talento especial para contar histórias, transformando, com a narrativa, suas próprias experiências de frustração em fábulas cativantes. Aos 6 anos, o menino cheio de imaginação é deixado pela mãe em uma entidade assistencial recém criada pelo governo. Ela acredita estar, assim, garantindo um futuro melhor para seu filho. A realidade na instituição é diferente do que se promovia pela propaganda na TV; e Roberto, aos poucos, perde a esperança. Aos treze anos, após incontáveis fugas, ele é classificado como “irrecuperável”, nas palavras da própria diretora da entidade. Contudo, para a pedagoga francesa Margherit Duvas (Maria de Medeiros), que vem ao Brasil para o desenvolvimento de uma pesquisa, Roberto representa um desafio. Determinada a fazer do menino o objeto de seu estudo, tenta se aproximar dele. O garoto em princípio reluta, mas, depois de uma experiência traumática, procura abrigo na casa de Margherit. O que surge entre os dois é uma relação de amizade e ternura, que porá em xeque a descrença de Roberto em seu futuro e desafiará Margherit a manter suas convicções. Aqui a história é outra, a tragédia cede espaço para um final feliz, cena infelizmente ainda rara no Brasil. O trabalho desta pedagoga reforça o presente trabalho no sentido que se pode evitar o crime, transformando o meio social que vive a criança, para fazer da mesma uma pessoa diferente, uma pessoa melhor. Que com poucas oportunidades serão possíveis transformações inimagináveis. É bem verdade que o problema criminal será ainda insolúvel nos marcos de uma sociedade capitalista, contudo podem-se elaborar algumas medidas no sentido de reduzir consideravelmente os índices de criminalidade. Todavia, pela ótica capitalista, que orienta boa parte de nossos governantes, é mais fácil e barato excluir e encarcerar pessoas, que investigar as causas da delinqüência, acompanhá-las desde a infância no sentido de afastá-las do crime ou ainda de incluir os condenados no processo produtivo. Lamentavelmente, a ideologia dominante nos organismos que elaboram as políticas de segurança pública e de vários parlamentares e também no senso comum é o disseminado pelo movimento realista de direita, que tanto nos Estados Unidos da América (EUA) como na Inglaterra, no começo dos anos 80, exigia maior repressão contra a criminalidade de massas e contra as minorias étnicas. É o período dos Governos Reagan/Bush nos EUA e Thatcher (seguido de John Major) na Inglaterra, em que o neoconservadorismo recebe a feição hoje conhecida como Law and Order Movement (Movimento da Lei e da Ordem), tendo como seus representantes Van den Haag, Wilson James, Edward Benfield, Freda Adler, dentre outros. Esse pensamento possui como premissas básicas, penas mais longas e mais duras, quando não a própria pena capital; menor poder discricionário a ser atribuído ao juízo, no momento de auferir a pena ou então de apreciar a flexibilização do regime de cumprimento da mesma; extremo rigor nos regimes de cumprimento de pena, descartando a idéia central do pensamento penal tradicional que vê na recuperação do condenado uma de suas principais finalidades. No bojo desse processo, as polícias, envolvidas com a idéia de tolerância zero, passam a ser administradas como se empresas privadas fossem. Alocam-se verbas fabulosas, aumentam-se os efetivos, relatórios periódicos passam a ser exigidos dos chefes de polícia e avaliações permanentes dos resultados devem ser apresentados na medida em que o plano se implementa. O movimento de “Lei e Ordem”, associado ao pensamento de “Tolerância Zero”, produziram o maior índice de encarceramento de que se tem notícia na história recente. O ano de 2008 iniciou-se nos EUA com 2.319.258 (dois milhões, trezentos e dezenove mil e duzentos e cinqüenta e oito) pessoas nos cárceres, o que significa dizer que um em cada cem adultos estava encarcerado nos Estados Unidos no início de 2008. 14 E a partir desta idéia, cria-se no seio dos operadores da segurança pública uma espécie de inimigo público, idéia fundamentada pelo professor Günther Jakobs, com sua teoria do “Direito Penal do Inimigo”. O que é desastroso, uma vez, que se inicia uma verdadeira guerra ao crime, ignorando suas causas e origem, combatendo apenas o resultado de uma realidade que é uma verdadeira fábrica de criminosos que são as desigualdades sociais gritantes, agregados ao individualismo capitalista, a competição desenfreada, a busca incessante de bens materiais, dentre outras mazelas. Nesta perspectiva, o sistema penal continua sendo uma máquina de produção de dor inútil. A execução da pena produz um meio de coação, de sofrimento, de dor moral e física para o condenado e sua família. É estéril, pois não o transforma; ao contrário, é irracional porque destrói e aniquila o condenado. O controle do crime se converteu em uma operação limpa e higiênica. A dor e o sofrimento desapareceram dos livros de direito penal, que trata o assunto como se fora tudo muito natural e asséptico. A experiência dos envolvidos não é trazida à tona. A dor foi esquecida. Constroem-se novos presídios e discute-se, maior eficiência na elucidação dos casos e maior severidade no cumprimento da pena, ao invés de se discutir formas de diminuição dos números de criminosos, através de ações sociais efetivas. 14 One in 100: behind bars em America 2008. Disponível em: <www.pewcenteronthestates.org> As classes dominantes aproveitam-se do temor geral para apresentar causas que não existem e falsas soluções para a criminalidade. Nos EUA onde um em cada cem cidadãos está preso, os índices de criminalidade não são menores. Este temor de ser vítima de algum delito golpeia e desorganiza mais a classe trabalhadora do que qualquer outro setor e os mais desprovidos são exatamente os primeiros a solicitar o aumento de policiais nas ruas, mais bem armados e equipados, fazendo-os se dividirem e ignorarem o verdadeiro inimigo que é a sociedade capitalista. Por fim, é possível sintetizar todo o exposto, na seguinte fórmula apresentada por John Lea e Jock Young: “A carência relativa produz inconformidade. Inconformidade mais a falta de soluções políticas produzem o delito.” 15 15 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia / Sérgio Salomão Shecaira; prefácio Alvino Augusto de Sá. - 2. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p.333. CAPÍTULO IV REFLEXÕES A RESPEITO DO DIREITO DE PUNIR DO ESTADO 4.1 DA JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO: Para entendermos a relação existente entre o Estado e o processo de delinqüência do Homem, é preciso compreender a origem do Estado, os motivos que o justifica e o que lhe legitima, para então serem traçadas reflexões a respeito da legitimidade do seu direito de punir. Desde a Revolução Francesa, ocorrida em 1789, várias teorias tentaram explicar qual seria a justificativa do Estado. O Estado é necessário na exata medida em que cumpre o seu papel de provedor do bem-público. Entretanto, este não é algo que se mantém estável. Pelo contrário, reflete a imagem da sociedade, que está em constante movimento. Num primeiro momento, no Estado Monárquico, não havia qualquer tipo de proteção do cidadão com relação ao Estado, isso porque, apesar de sua existência, sua aplicação poderia variar conforme variasse o humor do Monarca, que era o representante de Deus na terra, ou de quem quer que figurasse como juiz. Como garantir que o cidadão não mais temesse o Estado, tanto quanto temia o ladrão? 4.2 O CONTRATUALISMO: A idéia de Estado de Direito antecede às revoluções liberais. E foi Hobbes (1588/1679) quem primeiro concebeu um Estado como idéia, necessário à garantia de segurança jurídica a todos os cidadãos que, sem ele, viveriam eternamente em um estado natural de guerra. Para tanto, Hobbes idealiza o Estado como o mais forte, fazendo uso do monstro bíblico Leviatã como metáfora de um Estado que a todos seria capaz de engolir. No estado natural o homem é livre, porque pode usar seu poder do modo que lhe parecer melhor, para a preservação de sua própria natureza. Hobbes definiu a liberdade como a ausência de obstáculos externos capazes de impedir o homem de usar seu poder conforme o que lhe for ditado por seu julgamento e razão. E o que a razão dita é a busca pela paz, que somente existirá no Estado. A justificativa deste está, portanto, na manutenção da ordem através da garantia da segurança jurídica, dada pelo Direito. Para Hobbes, a construção jurídica do Leviatã se dá através de um contrato, onde cada indivíduo transfere ou cede parte de sua liberdade para obter segurança. A figura do contrato se encaixa bem na fórmula de Hobbes, vez que, como definido por ele mesmo, o contrato significa transferência mútua de direitos. Diferentemente de Hobbes, Locke parece, a princípio, encontrar na liberdade a justificativa para a idéia de Estado. Entretanto, essa não é a melhor interpretação de seus escritos. Sem mencionar o nome de Hobbes, seu contemporâneo, Locke critica o pensamento de alguns autores que confundem estado natural e estado de guerra. Neste, há um estado de ódio, maldade, violência e destruição recíproca. Naquele, o que existe é um estado de paz, boa vontade, cooperação mútua e conservação. No estado natural de Locke o homem é plenamente livre e vive em paz, porque a sua concepção de liberdade não se confunde com uma licença para se fazer o que quiser. Ela é de outra forma, o dever de obediência ao direito natural. Segundo Locke, portanto, a liberdade é a chave da existência humana e ela somente existe no direito natural. Mas se o homem é livre no estado de natureza, qual seria a justificativa para o Estado? A essa indagação Locke responde que não é sem razão que ele procura de boa vontade unir-se em sociedade com outros já que estão reunidos ou têm a intenção de se unir para a mútua preservação de suas vidas, de suas liberdades e bens, aos quais denomina genericamente como propriedade. Entenda-se bem o que sucede com as idéias de Locke: de um lado, nega que o estado da natureza seja um estado de violência, vez que nele o homem é livre e feliz; de outro, diz que a criação do Estado se faz necessária em função da insegurança a que são submetidos os cidadãos em relação às suas propriedades! Fica patente a contradição de Locke. Muito embora a liberdade seja o centro de sua teoria do Estado, a justificativa deste se dá em razão da necessidade de segurança jurídica e não da liberdade. O homem desiste da liberdade quando se insere no Estado. O passo seguinte na justificativa da idéia de Estado de Direito pela necessidade de segurança jurídica, veio com as obras do suíço Jean Jacques Rousseau (1712-1778). Muito embora tenha sido antecedido cronologicamente por Montesquieu, Rousseau é teórico do Estado de Direito, cuja justificativa está na segurança jurídica dos indivíduos. Seguindo os passos de Hobbes, Rousseau visualiza a existência de dois estados sociais, um natural e outro civil, este sendo fruto da ordem jurídica. No estado de natureza, o homem seria legislador de si mesmo e, portanto, plenamente livre para fazer o decidisse fazer. Mas a insegurança de todos colocaria em risco a própria existência do homem, dada a impossibilidade da convivência das liberdades conflitantes. Se um indivíduo desejasse ter o que pertence a outro, poderia fazê-lo. O estado natural seria também o estado da insegurança e da injustiça. Para Rousseau, a segurança jurídica está acima de qualquer outro bempúblico como justificativa do Estado, já que, quando o indivíduo cede ao Estado parte de sua liberdade, ainda assim estará em vantagem, posto que estará seguro pelo ordenamento jurídico. A liberdade seria o preço pago pela segurança. Rousseau distingue a liberdade natural, que o homem possui no estágio précontratual, da civil, que seria a jurídica, dada pela ordem legal. No Estado, portanto, além de perder a liberdade natural, o homem ainda tem sua liberdade civil limitada pelo Direito. No entanto, a segurança jurídica em Rousseau, diferentemente de Hobbes, é qualificada pela propriedade e pela justiça. Quanto à primeira, o pensador suíço atribui a ela a origem das desigualdades entre os homens. Embora indesejável, a propriedade já não podia ser extirpada da sociedade. Mas ela não decorre da natureza do ser humano, mas sim de uma criação do próprio homem. Essa criação realizada ainda no estado natural foi transportada para o estado civil, mantendo a exclusão social. A segurança jurídica no Estado de Direito, portanto, depende da forma com a qual o Estado lida com o equívoco da propriedade. Sendo impossível extingui-la, resta ao Direito racionalizá-la. No que tange à justiça, em primeiro lugar, Rousseau não vê o Estado (civil) como o mais forte indivíduo da sociedade, cuja lei por ele proclamada só seria legitimada pela força. Ao contrário, o pensador suíço o vê como uma ordem justa, atribuindo exclusivamente à vontade dos homens a criação do Estado e o respeito por suas leis. Uma lei deveria, portanto, ser cumprida não por ser o Estado o mais forte, mas porque entre os homens foi celebrado um Contrato Social, onde todos se comprometeram a cumpri-la. O Contrato Social não foi um acontecimento passado, mas uma realidade presente em qualquer governo legítimo. Ao contrário de Hobbes, Rousseau não concebe o Estado como um Leviatã - uma criação, em tese, antiética, ilegítima ou injusta, já que a todos seria capaz de engolir -, onde os mais fracos estariam submetidos à lei do Estado simplesmente por ser ele o mais forte. Diferentemente, o Estado é uma necessidade como fator de garantia de segurança jurídica, o que ocorre através do Direito. Somente no Direito há segurança jurídica e, o Direito, para que exista, depende da vontade de todos em torná-lo obrigação. Esta seria a razão do cumprimento das leis e não a força, portanto. A lei do mais forte, destarte, não condiz com o contratualismo de Rousseau. Em segundo lugar, a idéia de justiça qualifica a segurança jurídica à medida que o justo é algo que se deve e se pode alcançar. Sem o Estado, o homem não conseguiria, individualmente, permanecer com o que é seu. Muito embora os direitos naturais atribuíssem aos homens certas faculdades, somente os direitos civis seriam capazes de garanti-las. Assim é que a propriedade deve ser garantida pelo direito civil (segurança jurídica) à luz do direito natural. O direito civil deve tentar refletir ao máximo aquilo que preconiza o direito natural que, por sua vez, guarda simetria com o que é justo. Para Rousseau, portanto, o Contrato Social somente existirá mediante uma ordem justa. É interessante notar que, para Rousseau, o homem conserva sua natureza mesmo na sociedade civil, após o contrato social. E essa natureza, diferentemente do que afirma Hobbes, é essencialmente boa, voltada para o justo e para o bem. Deveras, fica clara a intenção de Rousseau de demonstrar que o Estado ideal é o natural, onde não haveria a propriedade e, portanto, não haveria injustiça. Entretanto, uma vez fundada, a sociedade civil somente se aproxima da justiça através da garantia da segurança jurídica, que passaria, essencialmente, pela justa gestão da propriedade privada por um Estado legítimo. Em Rousseau, portanto, a justificativa da idéia de Estado está na segurança jurídica, qualificada pela propriedade e pela justiça. A ordem jurídico-política cria a justiça e, por meio desta, distribui a segurança jurídica de que cada ser humano necessita para ser livre e proprietário. Essa desnaturalização ocorre em função do Direito e não do Contrato Social. Este explica a legitimação do Direito e do Estado, à medida que explica a razão pela qual todos devem obedecer à lei: por causa de um acordo em que todos se obrigaram a cumpri-la. O contratualismo de Rousseau constitui, desse modo, um tratado de Justificação do Estado, o qual possui fundamento, legitimidade e legitimação no Contrato Social, mas justificativa na segurança jurídica qualificada pela necessidade de justiça e pela racionalização da propriedade. Na construção da liberdade como justificativa do Estado de Direito Liberal, a primeira contribuição a ser mencionada é a de Montesquieu (1689/1755), cujo pensamento era essencialmente anti-absolutista, o que o faz se destacar de antecessores do quilate de Maquiavel, Bodin, Bossuet e Hobbes. Muito embora rejeite o impulso natural ou desejo de guerra que Hobbes atribui à espécie humana, Montesquieu identifica a existência, como Hobbes, de leis naturais e positivas. Para o pensador francês, a idéia de império e dominação é tão complexa, e depende de tantas outras noções, que jamais poderia ser a primeira a ter ocorrido à inteligência humana, de maneira que somente quando a humanidade entra no estado de sociedade é que ela perde a noção de fraqueza, cessa a igualdade e começa o estado de guerra. Segundo Montesquieu, esse estado de guerra que se inicia com a sociedade civil não pode ser vencido sem a democracia. O poder monárquico absolutista não seria capaz de dar segurança jurídica aos cidadãos, porque ao monarca faltaria virtude. Esta estaria nas leis positivas, criadas pela vontade popular. Mas a idéia hobbesiana do contrato social não é admitida por Montesquieu. Este também vê no conflito a fonte material das leis, mas não das leis de um contrato social, como entende Hobbes. Diferentemente de Hobbes, Locke e Rousseau, Montesquieu vê na liberdade a imagem do bem-público, a própria justificativa da idéia de Estado. Ele passa a concebê-la de forma diferente dos que lhe antecederam, estando ligada à ordem legal. Para ele: A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros também teriam tal poder. Para Montesquieu, portanto, a lei é a garantia da liberdade, bem-público supremo. Entretanto, para que a lei possa cumprir seu papel, ela há de ser virtuosa ou democrática. Assim, para que a lei (Estado) cumpra o seu papel (justificativa de sua idéia) de garantir a liberdade, Montesquieu defende a criação, a separação, a independência e a harmonia de três poderes distintos: Executivo, Legislativo e Judiciário. Montesquieu não atribui ao Estado o dever de dar segurança, mas sim liberdade, porque esta somente existe onde há a lei. A segurança decorre do fato de o homem poder ser livre e não o contrário. Aquele que não se subjuga às leis não pode possuir liberdade, mas possui a segurança de lhe ser aplicada a pena justa. Entretanto, a liberdade lhe poderá ser retirada assim que for recolhido ao cárcere, ou seja, assim que for privado do convívio social. Não é segurança que interessa ao homem ingresso no Estado, mas o direito de ser livre, conforme a lei lhe permitir que o seja. Apesar de vários teóricos com diferentes concepções, a idéia básica do contratualismo é simples. A organização social em um Estado, se dá através de um Pacto Social com o fim de assegurar seja segurança jurídica, justiça ou liberdade. Ou seja, as vidas dos membros da sociedade dependem, em termos de justificação, de um acordo, passível de ser definido de várias maneiras, que permite estabelecer os princípios básicos dessa mesma sociedade. Os conceitos e as formas de argumentação elaborados por Hobbes condicionaram todo o desenvolvimento da filosofia política moderna, até Kant e Fichte, criando o quadro em que o contratualismo pensou as questões relativas ao Estado, à soberania e ao Direito. O argumento contratualista inclui basicamente três elementos: situação inicial (pré-contratual), o contrato e o resultado do contrato (estabelecimento dos moldes e pressupostos do Estado, da sociedade ou de sua moral). A situação inicial é designada como “estado de natureza” por Hobbes, Locke e Rousseau; “posição original” por Rawls e “posição inicial de negociação” por Gauthier. Muito criticado por Hume, Hegel e Marx, o contratualismo foi renovado, na segunda metade do século XX, por John Rawls. Entre formas mais recentes de contratualismo moral contam-se as de David Gauthier e a de T. M. Scanlon. O projeto inicial de “O Capital” incluía um livro dedicado ao Estado. Mas, como se sabe, a obra ficou inacabada. Assim é que a teoria do Estado de Marx é apenas uma reconstrução a partir de textos políticos muitas vezes ditados pelas circunstâncias. De toda sorte, é possível extrair dos textos de Marx alguns elementos para uma teoria do Estado. Partindo-se do pressuposto de que o Estado burguês, capitalista, é um elemento de superestrutura, chega-se à inevitável conclusão de que sua existência é provisória e se justifica tão somente para manter as desigualdades entre as classes sociais, prevalecendo no Estado os interesses da classe social dominante. Assim é que toda teoria política pré-marxista, fundada na idéia de bem-comum como segurança jurídica ou liberdade, nada mais contém do que a justificativa para a desigualdade. É, pois, em nome da igualdade entre as classes que a teoria marxista direciona o Estado para o fim, vez que este Estado nada mais é do que a versão organizada do estado de natureza combatido pelos contratualistas. Ao passo que a filosofia da história dos escritores anteriores a Hegel (e com particular força no próprio Hegel) caminha para um aperfeiçoamento sempre maior do Estado, a filosofia da história de Marx caminha, ao contrário, para a extinção do Estado. O que para os escritores precedentes é a sociedade pré-estatal, ou seja, o reino da força irregular e ilegítima - seja este o bellum omnium contra omnes de Hobbes, ou o estado de guerra ou de anarquia que, segundo Locke, uma vez iniciado não pode ser abolido senão mediante um saldo para a sociedade civil ou política, ou a société civile de Rousseau, na qual vigora o pretenso direito do mais forte, direito que na realidade não é direito, mas mera coação, ou o estado de natureza de Kant, como estado "sem nenhuma garantia jurídica" e, portanto, provisório -, é para Marx, ao contrário, ainda o Estado, que como reino da força ou, conforme a conhecida definição que ele dá em O Capital, como "violência concentrada e organizada da sociedade". Para Marx, portanto, o Estado não se justifica, senão provisoriamente, para restabelecer a igualdade que o precedia, num momento onde havia uma situação social de comunhão ou, melhor dizendo, no comunismo. A proposta de Marx é substituir o Estado pelo comunismo. Para tanto, Marx pensa um Estado de transição, que sirva de ligação entre o Estado burguês e o comunismo, chamado por ele de Estado Socialista, fundado no socialismo científico. Como tal, o socialismo se estabelece por método, diferentemente do comunismo utópico, de Saint Simon. Para isso, Marx faz uso de um método materialista histórico-dialético: materialista-dialético, porque é de forma dialética que pensamos as contradições da realidade. Diferentemente de Hegel, onde a antítese (essência) se une à tese (natureza) para formar uma síntese (idéia), a dialética de Marx tem como síntese a realidade, fruto da vitória da antítese (estruturas) sobre a tese (superestruturas), o que só é possível por meio de uma revolução histórico-materialista, porque somente a revolução é capaz de mudar a história, o que demanda tempo, com um passo de cada vez. O bem-comum do Estado socialista é a igualdade e sua concretização só é possível mediante uma revolução. Se o Estado burguês se estruturou por séculos na ditadura da burguesia, o Estado socialista, para igualar as classes, deve se estabelecer pela ditadura do proletariado. Segundo Bobbio, Marx sugere o governo da classe operária. Com o socialismo, Marx acena para o desaparecimento do Estado, como escreveu em “Miséria da Filosofia”: A classe trabalhadora substituirá, no curso de seu desenvolvimento, a antiga sociedade civil por uma associação que excluirá as classes e seu antagonismo, e então não existirá mais poder político propriamente dito.16 Em “O Manifesto do Partido Comunista”, Marx continua: Se na luta contra a burguesia o proletariado é forçado a se organizar como classe, se mediante uma revolução se transforma em classe dominante e como classe dominante suprime violentamente as antigas relações de produção, então suprime também, 16 MARX, apud de BOBBIO, Nem com Marx, nem contra Marx, op. cit., p. 163. juntamente com essas relações de produção, as condições de existência dos antagonismos de classes, as classes em geral e, com isso, seu próprio domínio de classe.17 Como adverte Bobbio, a teoria marxista difere das teorias anarquista e social-democrática, uma vez que o Estado de transição, em suma, caracteriza-se por dois elementos distintos que não podem ser confundidos: apesar de destruir o Estado burguês anterior, não destrói o Estado como tal; todavia, ao construir um Estado novo, já lança as bases da sociedade sem Estado. Estas duas características servem para distinguir a teoria de Marx, de um lado, da teoria social-democrática e, de outro, da teoria anárquica. A primeira sustenta que a tarefa do movimento operário é a de conquista do Estado (burguês) a partir de seu interior, não a de "despedaçá-lo"; a segunda sustenta que é possível destruir o Estado como tal, sem passar pelo Estado de transição. A igualdade está no centro da teoria de Marx, pelo que passa a ser a justificativa da idéia do Estado Socialista. Essa concepção materialista da igualdade influenciou diretamente a Revolução Russa e se refletiu nos países do capitalismo central, que se viram obrigados a criar o Estado de Bem-Estar social, como contra-reforma. Assim é que, a partir de Marx, o bem-comum capaz de justificar a idéia de Estado passou a ser a igualdade. O materialismo dialético de Marx é, mais do que uma doutrina econômica, uma concepção do homem e do mundo, de caráter materialista, que coloca o fator econômico como determinante do comportamento humano, objetivando levar a humanidade a uma sociedade sem classes, sem exploradores e explorados. No socialismo ou comunismo, uma nova formação social se constituiria e traria, nas palavras de Marx, o fim da pré-história da sociedade humana. Em Marx, o Estado se justifica pela necessidade de igualdade, ainda que provisoriamente. 17 MARX, apud de BOBBIO, Nem com Marx, nem contra Marx, op. cit., p. 164. Finalizando a análise da construção do conceito de Estado em Marx se faz importante discorrer sobre numa obra que não é de Marx, embora tenha muito dele: “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” (1884). Este trabalho de Engels foi construído baseado nas anotações de Marx sobre o livro de Lewis Morgan, “A Sociedade Antiga”. Esta é a única obra clássica do marxismo a tratar sistematicamente do problema da formação do Estado. Segundo Engels, o Estado seria o produto de uma sociedade que chegou a um determinado nível de desenvolvimento, é a confissão que a sociedade se envolveu numa contradição insolúvel consigo mesmo, de que ela está cindida por antagonismos irreconciliáveis sendo incapaz de eliminá-los. Mas a fim de que esses antagonismos não destruam a si mesmo e a própria sociedade numa luta estéril, nasce a necessidade de uma potência que se coloque aparentemente acima da sociedade, que amenize o conflito e que mantenha nos limites da ordem. Este poder, que procede da sociedade, mas que se coloca acima dela é o Estado. Engels apontou quatro características básicas do Estado: 1º) O Estado divide os súditos segundo o território; 2º) o poder público já não corresponde ao povo em armas, nasce a burocracia e o militarismo; 3º) exigência de elementos materiais de coação: prisões, tribunais etc; e 4º) exigência de impostos e órgãos arrecadadores para manutenção da máquina estatal. A obra de Engels demonstra que a origem da propriedade privada, da família e da propriedade privada, estão intrinsecamente ligadas. Uma vez que, ele trata do início da organização social em Gens, com relações familiares coletivas e propriedade comum, imperando uma linhagem matriarcal. Com o decorrer do tempo, pela divisão social do trabalho o homem foi constituindo propriedade, através de bens de uso diário como utensílios de defesa e caça, que com sua morte retornava para sua Gen, ou melhor, para sua mãe. O homem com a vontade de perpetuar sua propriedade, que começava a se formar, passou a exigir da mulher a castidade e a fidelidade, dando início assim ao casamento monogâmico. Era necessário certeza de sua paternidade com relação aos filhos de sua esposa, para a transmissão de sua propriedade. Mas constituída a propriedade privada, a família para perpetuação desta propriedade, era ainda necessário a criação do Estado para garantir segurança à sua propriedade. Assim o livro de Engels assevera que o Estado justifica-se na promoção da segurança da propriedade de “quem a tem” em detrimento de “quem não a tem”, além de sua obra constituir um passo revolucionário e explosivo, pois desvendou aquilo que a ideologia burguesa sempre escondeu, a natureza de classe do Estado. 4.3 O CONSTITUCIONALISMO: Demonstrada as várias teoria e correntes a respeito da formação ou da justificação do Estado em um determinado Pacto Social, esta parte do trabalho discorrerá a respeito do resultado deste pacto, que se realiza por um documento jurídico chamado de Constituição. A Constituição moderna pode ser definida como "(...) a ordenação sistemática e racional da comunidade política através de um documento escrito no qual se declaram as liberdades e os direitos e se fixam os limites do poder político." 18 A partir da ótica moderna, a Constituição, passou a significar a construção pelo homem de um projeto racional de organização social, ou melhor, a condensação das idéias básicas deste projeto racional em um pacto fundador. Neste pacto, enquanto ordenação sistemática e racional da comunidade, garantiuse os direitos fundamentais e se organizou, de acordo com a princípio da divisão dos poderes, o poder político. 18 In CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Livraria Almedina, 1997. p. 46. Estabelecido que o próprio homem poderia e deveria pensar e estabelecer as condições de sua existência, a organização social não poderia mais ser fundamentada no Poder Divino. Desta forma, em um contexto de secularização do poder político, surgiram as teorias do poder constituinte, poder este que substitui Deus pela Nação na justificativa dos fundamentos (legitimação) da Constituição. Como base fundamental desta nova concepção de Constituição, estava a necessidade de limitar a autoridade do governante, o que se deu de duas formas básicas: pela separação dos poderes e pela declaração de direitos fundamentais do cidadão. É neste contexto que BOBBIO associa o termo Constituição, de acordo com a doutrina do constitucionalismo moderno, a um significado basicamente descritivo, próprio das ciências naturais. Assim Constituição seria "a própria estrutura de uma comunidade política organizada, a ordem necessária que deriva da designação de um poder soberano e dos órgãos que o exercem.” 19 A noção de Constituição como corpo de leis reunidas em um documento escrito, com autoridade superior às leis ordinárias apenas se deu a partir do final do século XVIII, como resultado do movimento constitucionalista. O Estado moderno apenas se consolidou através das lutas dos monarcas contra a autoridade do Papa e da aristocracia feudal, no período em que o poder absoluto tinha justificação divina. O constitucionalismo veio a ser, então, o movimento ideológico e político para destruir o absolutismo monárquico e estabelecer normas jurídicas racionais, obrigatórias para governantes e governados. O direito, assim, passou a encontrar a sua força legitimadora na Razão humana, esta encarnada na forma semântica da lei pública geral e abstrata, da qual a constituição constitui o núcleo legitimador fundante. De acordo com o já exposto, o desenvolvimento do constitucionalismo está ligado ao surgimento de um documento (Constituição) voltado para a 19 BOBBIO, Norberto, MATTEUCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 9. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1997. p. 247. racionalização do Estado e para a despersonalização do poder. Nessa perspectiva, o constitucionalismo supõe: a) uma Constituição normalmente escrita, de forma a ser certa, definitiva e acessível, de modo que todos possam exercer seus direitos e sua dignidade humana; b) uma Constituição rígida, protegida contra as arbitrariedades do poder, ou seja, cujos procedimentos de reforma sejam especiais e dificultados; c) uma parte da Constituição dedicada à transcrição de direitos fundamentais básicos de qualquer cidadão contra o arbítrio do Estado; d) uma parte da Constituição destinada à organização racional do poder, tendo como princípio fundamental a divisão de poderes ou de funções, de modo a limitar a atuação do poder do Estado. Neste aspecto, não se pode separar os postulados do constitucionalismo moderno do momento ideológico vivido na época de seu surgimento, de fortalecimento da burguesia e da ideologia que apregoava, qual seja, o liberalismo. Sendo assim: "Constitucionalismo é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. Neste sentido, o constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos. O conceito de constitucionalismo transporta, assim, um claro juízo de valor. É, no fundo, uma teoria normativa da política, tal como a teoria da democracia ou a teoria do liberalismo." 20 Em síntese, o constitucionalismo moderno caracteriza-se pela existência de uma Constituição jurídica, pela universalização dos direitos e liberdades, com suas respectivas garantias, e pelo aperfeiçoamento de técnicas que limitam o poder político. No plano histórico, a primeira Constituição de acordo com esta doutrina 20 In CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Livraria Almedina, 1997. p. 45 e46. foi a inglesa, mas esta surgiu a partir de um largo processo histórico, carecendo de documento articulado e codificado. Como criação consciente e deliberada, refletida em um documento escrito, a primeira realização institucionalizada do constitucionalismo decorreu das constituições das colônias norte-americanas, seguida da experiência francesa. 4.4 A RESPEITO DA LEGITIMIDADE DO DIREITO DE PUNIR DO ESTADO: Como já discorrido acima, o Estado justifica-se e legitima-se em um Pacto Social, que se realiza por um documento chamado de Constituição, onde se estabelece os princípios fundamentais e os limites do poder estatal, definindo ainda os direitos e obrigações, tanto do cidadão, quanto do Estado. O Estado Brasileiro não é diferente, contudo o seu pacto social foi refeito em diversos momentos históricos. O pacto social vigente, se expressa na Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada e publicada no Diário Oficial da União n.º 191-A, de 05 de outubro de 1988. A Constituição Federal de 1988, veio após anos e anos de luta contra um longo período ditatorial que se iniciou em 1964, onde, não havia garantias que protegessem o cidadão do arbítrio do Estado, principalmente após dezembro de 1968, com a outorga do Ato Institucional n.º 5. O Estado Brasileiro, após o golpe militar, passou a ser formado não por um pacto social, mas sim por imposição das armas, que mantinha aparelhos clandestinos de repressão que perseguia, torturava, estuprava e matava opositores do regime. Em um momento de massiva efervescência política do país, após a Lei de Anistia e o retorno dos exilados políticos, bem como das mobilizações para da “Campanha pelas Diretas Já!”, foi promulgada a Carta Magna de 1988, com o objetivo de estabelecer um novo pacto social no Brasil, firmado em determinados princípios, para a formação de um novo Estado, agora, democrático e firmado sob os auspícios da vontade do povo. Esta nova constituição, que ficou conhecida como “Constituição Cidadã” veio com a responsabilidade de iniciar uma nova sociedade, baseado em princípios fundamentais que estabeleceriam o caráter deste recém criado “Estado Democrático de Direito”, diferente do arbítrio sangrento e vergonhoso imposto pela Ditadura Militar brasileira. A nova constituição, já em seu Preâmbulo, estabelece uma prévia dos princípios fundamentais que a inspiraram: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil. 21 Em seguida em seu Título I, a Constituição, estabelece como princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre outros, o seguinte: TÍTULO I DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; 21 Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Vade Mecum Acadêmico de Direito / Anne Joyce Angher, organização. - 8. Ed. - São Paulo: Rideel, 2009. - (Coleção de Leis Rideel) IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 22 Continuando, em seu Título II, a Constituição, assevera direitos e garantias fundamentais, a saber: TÍTULO II DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS CAPÍTULO I DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; 22 Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Vade Mecum Acadêmico de Direito / Anne Joyce Angher, organização. - 8. Ed. - São Paulo: Rideel, 2009. - (Coleção de Leis Rideel) II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal; XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional; XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente; XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar; XVIII - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento; XIX - as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado; XX - ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado; XXI - as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente; XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição; XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano; XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento; XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; XXVIII - são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas; XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País; XXX - é garantido o direito de herança; XXXI - a sucessão de bens de estrangeiros situados no País será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do de cujus ; XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor; XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado; XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder; b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal; XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção; XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida; XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal; XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu; XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático; XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido; XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos; XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis; XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado; XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; L - às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação; LI - nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei; LII - não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião; LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos; LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; LVIII - o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei; LIX - será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal; LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem; LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada; LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado; LXIV - o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial; LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária; LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança; LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel; LXVIII - conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder; LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data , quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público; LXX - o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido político com representação no Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados; LXXI - conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania; LXXII - conceder-se-á habeas data : a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público; b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo; LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência; LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos; LXXV - o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença; LXXVI - são gratuitos para os reconhecidamente pobres, na forma da lei: a) o registro civil de nascimento; b) a certidão de óbito; LXXVII - são gratuitas as ações de habeas corpus e habeas data , e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania. LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. (Inciso acrescido pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Parágrafo acrescido pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) § 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão. (Parágrafo acrescido pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) CAPÍTULO II DOS DIREITOS SOCIAIS Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Artigo com redação dada pela Emenda Constitucional nº 26, de 2000) 23 Reside nesta parte da Carta Magna brasileira, acima citada, toda a essência deste novo pacto social, só isso já bastaria para formação do Estado Democrático de Direito, atualmente vigente no país. Contudo os constituintes resolveram tratar uma série de outros assuntos, no texto constitucional, com o intuito de garanti-los, devido ao sentimento de insegurança ainda muito forte naquele momento. Neste novo pacto social, expresso da Constituição de 1988, restam estabelecidos direitos e obrigações, tanto por parte dos cidadãos, quanto por parte do Estado, tal como em um contrato comum. Um dos direitos do Estado é o chamado direito de punir do Estado, ou jus puniendi. O direito de punir é o direito que tem o Estado de aplicar a pena cominada na norma penal incriminadora, contra quem praticou a ação ou omissão tipificada pela Lei, causando um dano ou lesão jurídica. Este direito não é absoluto, posto que o mesmo é limitado, por diretos e garantias fundamentais, também presentes na Constituição, e já citado anteriormente, tais como os presentes nos incisos XXXV, XXXIX, LIII e LIV do artigo 5º. O jus puniendi é um direito abstrato, exclusivo do Estado, pronto para ser exercido assim que houver uma transgressão da norma penal, cabendo ao mesmo infligir a pena cominada à conduta tipificada, em desfavor do autor da mesma. 23 Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Vade Mecum Acadêmico de Direito / Anne Joyce Angher, organização. - 8. Ed. - São Paulo: Rideel, 2009. - (Coleção de Leis Rideel) Para o devido convívio social é dado segurança jurídica a determinados bens jurídico, através da proteção do Estado, que se realiza pela tutela da norma penal a esses bens. Quando esses bens são atacados, além da vítima, existe também uma ameaça a toda sociedade, que se manifesta pela punição do infrator, visando, através da intimidação, à proteção genérica de determinado bem jurídico. Como a sociedade é uma entidade abstrata, esse direito de punir o infrator é exercido pelo Estado. Logo, o Estado é o único com legitimidade para exercer o direito de punir pertencente à sociedade. Asseverando, inclusive, como crime, previsto no art.345 do Código Penal, fazer justiça pelas próprias mãos. Devendo, portanto, a vítima quando ofendida, procurar a tutela jurisdicional do Estado. Dentre inúmeras teorias, que legitimam o jus puniendi destaca-se a teoria de Cesare Beccaria, que se respalda na Teoria do Contrato Social, afirmando que os homens com o passar do tempo decidiram abrir mão de parcela de sua liberdade para o Estado, em troco de garantia estatal para os seus direitos. Em face desse contrato, restou pactuado que aquele que descumprisse seria penalizado, recaindo nesse momento a sanção estatal da pena. Além de Beccaria, destaca-se ainda Michel Foulcalt que aborda em sua obra “Vigiar e Punir” de 1975, os instrumentos utilizados antes do Século XVIII, como forma de sanção penal (tais quais tortura, a morte, dentre outros), e discorre ainda sobre a sobre a história da prisão, examinando questões intrincadas como a loucura e criando uma verdadeira análise sobre o próprio poder. Por fim, a pena é aplica pelo Estado, devido ao seu direito de punir, por vontade dos cidadãos expressada no Pacto Social de formação do Estado. 4.5 DA ILEGITIMIDADE DO DIREITO DE PUNIR DO ESTADO: No pacto social de formação do Estado, conforme já abordado anteriormente, os cidadãos renunciam parte de sua liberdade e se submetem às imposições do Contrato Social, em troca de determinadas “garantias fundamentais” e estabelece ainda limites à atuação estatal e de seus representantes. Contudo, conforme preconizou Marx, a sociedade vive uma intensa luta de classes, e o poder estatal é exercido por uma determinada classe social que em antagonismo com relação à outras, utiliza do aparato estatal para, de forma dissimulada, resguardar os seus interesses, como se interesses do toda a sociedade fosse. Neste sentido, a Constituição Brasileira, em seu 1º artigo, assevera que a República Federativa do Brasil se fundamenta, dentre outros, na dignidade da pessoa humana, e que todo poder emana do povo. Mais que isso, no 5º artigo de seu texto, assevera que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. E garante, ainda no artigo 6º, como direito social do cidadão, o acesso à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância e à assistência aos desamparados. Pois não há o que se falar em dignidade da pessoa humana, sem que esses chamados direitos sociais sejam resguardados. Segundo afirma Berenice Dias o princípio da dignidade da pessoa humana “[...] é o mais universal de todos os princípios”.24 É dele que se irradiam todos os demais princípios éticos, como o princípio da igualdade, da solidariedade, da liberdade, da autonomia privada e da cidadania. O ilustre Ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau diz o seguinte: “[...] embora assuma a concreção como direito individual, a dignidade da pessoa 24 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 3ª ed. RT: São Paulo, 2006. p. 52 humana, enquanto princípio constitui, ao lado do direito à vida, o núcleo essencial dos direitos humanos”. 25 A dignidade da pessoa humana deve ser refletida, como uma forma de repressão às injustiças sociais, principalmente aos menos favorecidos, que inúmeras vezes são tratados como um objeto qualquer. O Estado tem o dever de proteger a dignidade de todo o ser humano. Há ainda que se evidenciar que a própria Declaração Universal de Direitos do Homem menciona que todo o ser humano é dotado de dignidade da pessoa humana. Desta forma, quando houver uma ação do ente estatal, esta deverá ser analisada tomando-se por base este princípio, pois, do contrario, poderá incorrer numa pena de inconstitucionalidade. Acontece que no Brasil, enquanto o presente trabalho está sendo escrito, existem crianças, jovens, idosos, homens e mulheres, morrendo de fome, ou vítimas de doenças corriqueiras por falta de simples atendimento médico. Existem pessoas morrendo, depois de toda uma vida sem ter aprendido ler ou escrever. Pessoas morrendo soterradas em barracos de lona, em áreas de risco, por falta de moradia. Crianças crescendo nas ruas sofrendo na própria pele violências e crueldades mil. Ou seja, nem mesmo o direito elementar à vida, está sendo garantido pelo Estado. Nos capítulos anteriores, foi exaustivamente, discutido o quanto o meio social influencia no processo de delinqüência do cidadão, e este meio social conturbado, se dá preponderantemente, em decorrência das desigualdades sociais, que conta com a omissão do Estado. Assim, se faz necessário os seguintes questionamentos: Teria o Estado legitimidade de exercer o seu direto de punir, contra o delinqüente que ele mesmo deu causa? Como pode o Estado exercer o 25 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 10º edição. Malheiros: São Paulo, 2005. p. 108. seu direito de punir, se ele não está garantindo aos cidadãos parte do pacto social, seus diretos garantias fundamentais? Depois de profunda reflexão, e exaustivos debates, a respeito destas questões, por todo o exposto acima, não há como deixar de afirmar que o Estado, apesar de único titular do jus puniendi, não encontra legitimidade para exercê-lo, em virtude de seu inadimplemento com os termos do contrato social, que se realiza, atualmente, no Brasil, pela República Federativa do Brasil. Além do supra mencionado, é ainda, merecedor de ênfase, o fato dos direitos e garantias, aqui discutidos estarem no rol das cláusulas pétreas presentes no art. 60, parágrafo 4º, IV, da Constituição de 1988. Deve-se salientar, também que o princípio da dignidade da pessoa humana é irrenunciável, não podendo o ser humano abster-se da sua aplicação do ordenamento jurídico pátrio. Este mandado de otimização é violado toda vez que um ser humano for rebaixado a um objeto qualquer, “tratado como coisa”. Dessa maneira, pode-se afirmar com a máxima certeza que o princípio da dignidade da pessoa humana é o núcleo central dos direitos fundamentais elencados na Constituição Federal vigente, desta forma jamais devendo ser desrespeitado, como vem sendo dia após dia. É gritante, e indignante, ver que o Estado tem descumprido o contrato social vigente, no que tange aos seus fundamentos essenciais, aos direitos e garantias essenciais do cidadão, mas arvora-se em exercer o seu direito de punir. Isso ocorre porque para classe social dominante detentora dos meios de produção, não tem interesse em reduzir as desigualdades sociais no país, pois isso implicaria na diminuição de seus privilégios. Na sociedade capitalista, de gritantes concentrações de renda, em poder de tão poucos, é impossível dar aos menos favorecidos, sem tirar dos abastados privilegiados deste sistema. A classe dominante, rica, que possui tudo do bom e do melhor, não está preocupada se está faltando comida, saúde, moradia, lazer, ou o que seja para o restante, e tampouco se os recursos destinados à educação, saúde e demais serviços públicos, estão sendo desviados ou não. A sua grande preocupação é com o “trombadinha” que pode levar sua bolsa no estacionamento do shopping, ou do assaltante que pode invadir sua casa ou outros crimes que atentem contra sua pessoa ou propriedade. Por isso o direito de punir do Estado tem sido exercido, mas suas obrigações, no sentido de garantir a dignidade humana, têm sido deixadas de lado. O aparato estatal de repressão ao crime serve também de controle de uma possível turbação da plebe despossuída de qualquer bem. Vários homens e mulheres são abandonados à própria sorte, em condições subumanas de sobrevivência, ao ponto de se degenerarem completamente da condição de cidadão, e caso se rebelem contra o descaso e o abandono, são punidos em nome da mesma sociedade que sempre lhe deu as costas. À medida as sociedades capitalistas se industrializam, a divisão entre as classes sociais vai crescendo e as leis penais vão, progressivamente, tendo que ser aprovadas e aplicadas para manter uma estabilidade aparente, encobrindo confrontações violentas entre classes sociais antagônicas entre si. Definir certas pessoas como criminosas permite um controle maior sobre o proletariado e que orienta a hostilidade do oprimido para longe dos verdadeiros opressores, em direção à sua própria classe. 26 Para, que fosse possível pelo menos vislumbrar uma “solução” para o crime, antes seria necessário implementar uma transformação revolucionária da sociedade e a eliminação da exploração do Homem pelo próprio Homem. A verdadeira política criminal seria, pois, uma política de radicais transformações sociais e institucionais para o desenvolvimento da igualdade e da democracia. Em síntese, adotar-se-ia uma superação das relações sociais de produção capitalista. O pacto social foi quebrado, e não tem mais aplicabilidade, enquanto assim estiver. É preciso cumpri o pactuado para que aqueles que o descumprir sejam 26 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal - 3. ed. - Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. p.205-207 punidos. Não havendo pactuação, não há crime, uma vez que a plena liberdade foi restabelecida. Podem ser considerados criminosos, aqueles que salvaram alguns judeus do estado nazista, cometendo assim crime contra o ordenamento jurídico vigente na época? Ou aqueles que resistiram à Ditadura Militar Brasileira? Ou aqueles que resistiram à ocupação nazista na França? Ou, ainda, o próprio Cristo, que segundo os cristãos, desafiou o Estado Romano? É obvio, que não pelo simples fato, de não haver para estas pessoas nenhum pacto social que as impedisse, estando, as mesmas, portanto, no direito de resistir a uma normativa não pactuada. Não pensaria da mesma maneira, os oprimidos brasileiros, ao delinqüir contra uma sociedade que descumpre o pacto social? Não se sentiriam eles, injustiçados? É natural, que surjam várias críticas, ao presente trabalho, acusando-o de fazer apologia ao caos. Pois, se o Estado, que possui exclusividade do direito de punir do Estado, não possui legitimidade para exercê-lo, ninguém possui. E assim o sendo, ninguém poderá ser punido pelos crimes que cometer, ensejando ao caos social. O objetivo do Contrato Social não é justamente evitar o caos? Não é este o espírito do pacto social? Se o mesmo não é cumprido, não há pacto, não há contrato, nem constituição, nem Estado e nem nada! Para que seja evitado o caos é preciso que o mesmo tenha eficácia e seja cumprido integralmente em toda sua plenitude. Logo o objetivo do presente trabalho, não é caos, tampouco a impunidade, pela ilegitimidade do exercício do jus puniendi pelo Estado, mas sim pelo cumprimento dos fundamentos e direitos e garantias dos cidadãos, emanados do pacto social brasileiro e insculpidos em sua Constituição. Este trabalho é antes de tudo um instrumento de denúncia ao descumprimento do Contrato Social Brasileiro, e uma voz pelo fim miséria, das desigualdades sociais, da fome, do analfabetismo e de tudo aquilo que mina a dignidade da pessoa humana e a empurra dia após dia para a criminalidade. Eis aqui, a origem do crime, do criminoso e a responsabilidade do Estado, nesse processo, não há mais em que se falar de desconhecimento das causas da violência e da criminalidade de nossa sociedade, cabe agora decidir entre os privilégios de uma minoria dominante ou caminhar rumo à paz social. CONCLUSÃO O presente estudo partiu da problemática a respeito da origem do crime, seus motivos e causas, passando pela origem do criminoso e chegando à ilegitimidade do direito de punir do Estado. Pretendeu-se com esse trabalho demonstrar as circunstâncias que levam a pessoa à delinqüência, bem como as várias causas e motivos que podem interferir nesse processo subjetivo de manifestação de uma determinada ação delituosa, estudando tanto os motivos de ordem biológica, quanto psicológicos, e também sociológicos. Investigou-se a respeito da influência do meio social no processo de formação do delinqüente, traçando, para tanto, inclusive, um paradigma a respeito de duas situações reais que ganharam notoriedade nas telas do cinema, de influência do meio social seja na formação ou na recuperação do delinqüente. E por fim, após discorrer longamente a respeito da origem da formação do Estado, tratando sobre as várias vertentes da teoria contratualista, bem como constitucionalista, chegando até a formação do Estado Democrático de Direto da República Federativa do Brasil, para demonstrar a ilegitimidade do direito de punir do Estado, por descumprimento do pacto social brasileiro. Com base nas pesquisas realizadas, bem como nas várias diligências realizadas, além de todas as discussões e intermináveis debates realizados sobre o tema, pôde se concluir que o crime tem origem no criminoso, uma vez que não há crime sem um criminoso que o pratique. Através do método materialista-histórico dialético foi demonstrado com o uso de uma argumentação lógica, permeada por várias comparações e aplicações à realidade concreta, as teses aqui defendidas. O presente trabalho se inicia discorrendo a respeito do conceito sui generis do crime. Em seguida, trata dos vários motivos e causas que levam uma pessoa a cometer um crime, ao passo que difere as pessoas que cometem crimes ocasionais das que tornam-se criminosas, praticando delitos com freqüência. Demonstrou-se ainda que há processos biológico (físico-químicos), assim como psicológicos, que podem interferir na vontade humana e resultar na prática de crimes. Restou demonstrado, ainda, no presente estudo que ninguém nasce bandido, desconstruindo, portanto, o determinismo lombrosiano, respaldando-se na concepção de J. Rousseau, onde Homem nasce bom e é corrompido pela sociedade, ou melhor, influenciado pelo meio social que vive. E demonstrou também que o capitalismo com seu individualismo, disputismo, e concentração de renda leva a sérias desigualdades sociais que muito contribuem para o processo de delinqüência do cidadão. O presente trabalho resultou na assertiva, de que todo o sistema penal, bem como o sistema judiciário, do Estado é, e sempre será, ineficaz e ineficiente. Trazendo à tona, que na maioria dos delitos, não existe forma de reparar o dano causado, restando então, somente à prevenção, como a forma mais eficiente de combate ao crime. Porém, a prevenção aqui, diz respeito a prevenir a delinqüência do Homem, através de mudanças revolucionárias nos meios de produção e no meio social, no qual ele está inserido. Sendo que esta prevenção só é possível, evitando que o cidadão entre no processo de delinqüência e acabe tornando-se bandido, através de medidas sociais inclusivas. Encontrado a origem do crime e apontado que ninguém nasce criminoso, mas sim, torna-se criminoso, por um processo de delinqüência, influenciado fortemente pelo o meio social em que vive, assim alicerçado em todas as premissas lançadas neste trabalho, é possível afirmar que o pacto social brasileiro foi quebrado, haja vista que os seus fundamentos, direitos e garantias do cidadão, não estão sendo assegurados pelo Estado. Portanto, apesar do Estado ser o titular, do jus puniendi, enquanto o pacto social não for restabelecido, não terá legitimidade para exercê-lo. Este trabalho, longe de almejar o fim da punição dos criminosos, ou de fazer qualquer tipo de apologia ao caos ou a desordem, tem por objetivo apenas que seja restabelecido o pacto social, no sentido de garantir que fundamentos como a garantia da dignidade da pessoa humana sejam efetivamente cumprido. Restou demonstrado que urge uma transformação revolucionária do meio social das pessoas mais carente, mais vulneráveis ao crime, para evitar que as mesmas se entreguem a criminalidade. Enquanto não é possível o fim da exploração do Homem pelo próprio Homem, da miséria, do analfabetismo e outras mazelas sociais, pode ser implementado medidas no sentido de alterar temporariamente o meio social pelo menos das crianças, como escolas de tempo integral e projeto de cultura, esporte e lazer, por exemplo. Assim, as crianças seriam removidas do meio social em que vivem, boa parte do tempo, para um ambiente verdadeiramente acadêmico abrindo para essa criança um novo leque de valores e premissas sociais. Contudo, antes de mais nada, é preciso ter clareza, que tal medida é meramente paliativa, mas que poderia reduzir, a médio prazo, consideravelmente os índices de criminalidade. Todavia, estaria longe, muito longe, de resolvê-los. Só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar. E eu não vou me resignar nunca! Darcy Ribeiro BIBLIOGRAFIA: BALLONE, C.J. Componente biológico da agressão. Psiqweb. Revisto em 2003. Disponível em: <http://www.psiqweb.med.br/forense/biocosme.html>. Acesso em 27/02/2010. ______. Eixo Hipotálamo - Hipófise - Tireóide. Psiqweb. 2003. Disponível em: <http://www.virtualpsy.org/psicossomatica/tireoide.html>. Acesso em 27/02/2010. ______. O cérebro e violência. Psiqweb. Revisto em 2002. Disponível em: <http://sites.uol.com.br/gballone/forense/cerebro.html>. Acesso em 27/02/2010. ______. Transtornos de personalidade. Psiqweb. Atualizado em 2002. Disponível em: <http:// www.psiqweb.med.br/persona/persona.html>. Acesso em 27/02/2010. BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal / Alessandro Baratta; tradução Juarez Cirino dos Santos. - 3. ed. - Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. BERTONCINI, Iris. 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