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Revista Urutágua – revista acadêmica multidisciplinar –
Nº 18 – mai./jun./jul./ago. 2009 – Quadrimestral – Maringá – Paraná – Brasil – ISSN 1519-6178
Modernidade e pós-modernidade – Considerações habermasianas
Maikon Chaider Silva Scaldaferro*
Resumo: O presente artigo, tendo como referencial teórico a obra O Discurso Filosófico da
Modernidade, do filósofo alemão Jürgen Habermas, pretende apontar como que se dá a gênese
teórica e histórica do conceito de modernidade, compreendendo o significado desta e de uma
possível pós-modernidade.
Palavras-chave: Modernidade. Pós-modernidade. Razão.
Abstract: The present article, used as theoretical referential in the book The Philosophical
Discourse of Modernity, of the German philosopher Jürgen Habermas, tries to show how takes
place the theoretical and historical genesis of the concept of modernity, understanding his
meaning and even a possible pos-modernity.
Key words: Modernity. Pos-modernity. Reason.
*
Pós-graduando do curso de especialização em História Política "Poder e Cultura na História" e mestrando em
Filosofia na Universidade Federal do Espírito Santo.
Revista Urutágua – revista acadêmica multidisciplinar –
Nº 18 – mai./jun./jul./ago. 2009 – Quadrimestral – Maringá – Paraná – Brasil – ISSN 1519-6178
Na sua empreitada para compreender a
gênese e as características determinantes
da modernidade, Habermas desenvolveu
sua análise sob duas perspectivas, uma
sociológica e outra filosófica. No entanto,
a que mais nos interessa aqui é a filosófica.
Em nosso itinerário buscaremos primeiro
esclarecer que desde a perspectiva
sociológica Habermas falará de uma
modernidade
social,
enquanto
da
perspectiva filosófica ele falará de uma
modernidade cultural, que foi certificada
por Hegel, de acordo com o filósofo de
Frankfurt. Em seguida abordaremos os
problemas decorrentes dessa modernidade
cultural, a qual mais nos interessa nesse
momento.
Tais
problemas
serão
identificados primeiramente por Hegel e
ele também será o primeiro a apontar as
soluções. Habermas em sua leitura da
filosofia moderna indicará Hegel como
sendo o primeiro a tratar de maneira
filosófica os problemas da modernidade
buscando soluções para estes. Essas
soluções apresentadas por Hegel se
mostraram insatisfatórias no decorrer da
modernidade. Isso permitiu o surgimento
de três vias diferentes (hegelianos de
esquerda, hegelianos de direita e
Nietzsche) que visaram dar conta dos
problemas que o filósofo idealista não
conseguiu resolver. Os hegelianos de
esquerda e os hegelianos de direita ainda se
atêm ao programa do Esclarecimento, e
com isso pretendem revisar o conceito de
razão desde uma nova perspectiva. Por
outro lado, na visão habermasiana
Nietzsche abandona por completo esse
programa, e finca o pé no outro da razão.
Esse projeto de Nietzsche (assim como ele
é descrito por Habermas) criará um campo
fértil para o anúncio da pós-modernidade
pelo filósofo francês Jean-François
Lyotard. Ao final de nosso trabalho
tentaremos entender se uma despedida da
modernidade
anunciada
pela
pósmodernidade é de fato uma realidade ou
não. Com isso pretendemos esclarecer qual
o significado da pós-modernidade para
Habermas.
1. O fundamento da modernidade
Quando Habermas fala de modernização
social ele está falando do processo de
diferenciação entre economia e poder.
Estes dois âmbitos (economia e poder) que
antes do advento da sociedade burguesa
permaneciam interligados, agora passam a
se
organizar
em
dois
núcleos
funcionalmente distintos: a empresa
capitalista e o aparelho burocrático do
Estado. “Weber entende esse processo
como a institucionalização de uma ação
econômica e administrativa racional com
respeito a fins” (HABERMAS, 2000, p.4).
Ou seja, essa modernidade social se
reproduz através de uma razão que traça
estratégias para atingir determinados fins.
Se eu quero atingir determinado fim tenho
que usar determinados meios. Doravante, o
que nos interessa aqui é a modernidade
cultural, visto que é sobre ela que
Habermas se debruça em O Discurso
Filosófico da Modernidade.
Para entender o que Habermas chama de
modernidade cultural é preciso ter em
vista que ele, na esteira das investigações
de Hegel, coloca em sua gênese três
eventos chave históricos: a Reforma
Protestante, a Revolução Francesa e o
Iluminismo. É a partir desses três eventos
que Habermas pensa a modernidade do
ponto de vista filosófico. Vejamos o
porquê disso.
A modernidade em seu início foi
anunciada como a chegada dos “novos
tempos”, dos “tempos modernos”. Essa
chegada dos novos tempos não se limitava
a um sentido puramente cronológico, ou
seja, os “novos tempos” não eram somente
os fatos mais recentes ocorridos, mas sim
uma ruptura de grandes proporções com a
tradição vigente.
Na medida em que a modernidade se
apresenta rompendo com a tradição
anterior (a tradição medieval) ela não se
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estabiliza somente negando aquilo que lhe
antecede, mas antes ela quer se legitimar,
ou seja, ela quer justificar a ruptura se
afirmando. Para a modernidade se
legitimar ela tem que se certificar de si, e
se certificar de si é dizer qual é o seu
fundamento, dizendo assim em que ela se
diferencia da tradição anterior.
Habermas indica Hegel como aquele que
primeiramente tomou como problema
filosófico a necessidade da modernidade se
certificar de si. Em O Discurso Filosófico
da Modernidade, o filósofo de Frankfurt
afirma que Hegel tem em vista como tarefa
de sua filosofia “apreender em pensamento
o seu tempo” (HABERMAS , 2000, p.25),
e isso quer dizer: indicar o princípio dos
novos tempos, certificar-se do fundamento
da modernidade.
Tomando como referencial a já citada obra
de Habermas, podemos perceber que na
busca de levar a modernidade ao nível do
conceito, Hegel põe como princípio dos
novos tempos a subjetividade. O que aqui
se chama de subjetividade comporta quatro
conotações: a) individualismo: no mundo
moderno surge a idéia do indivíduo, que se
entende dotado de uma singularidade única
e que pode fazer valer suas pretensões; b)
direito de crítica: no mundo moderno
aquilo que se busca ser aceito
universalmente tem que ser reconhecido
como legítimo por cada um, sendo assim,
se encontra aberto à crítica; c) autonomia
da ação: no mundo moderno advém a idéia
do homem como aquele que pode dar leis a
si mesmo; d) filosofia idealista: no mundo
moderno a filosofia coloca como objeto do
conhecimento o próprio Eu que conhece.
Aqueles eventos históricos citados
anteriormente marcam a chegada dos
novos tempos porque foram eles que
serviram de aguilhão para o princípio da
subjetividade. Assim vemos na Reforma o
protestantismo afirmar contra a autoridade
da tradição a soberania do sujeito que
passa a ter acesso ao divino sem
mediações. Já a Revolução Francesa fez
valer contra a sujeição às leis divinas e da
tradição a vontade do sujeito que almeja a
liberdade. Daí vemos que a “Declaração
dos Direitos do Homem e o Código
Napoleônico realçaram o princípio da
liberdade da vontade como fundamento
substancial do Estado, em detrimento do
direito histórico” (HABERMAS, 2000,
p.26). O Iluminismo, por sua vez, ao
tripartir a cultura em três âmbitos
diferentes e autônomos (ciência, moral e
arte) também afirma o princípio da
subjetividade. Vemos então a ciência agora
objetivando um mundo desencantado, onde
diante da contestação de todos os milagres
o sujeito se encontra liberto para conhecer
as leis da natureza. A moral passa a ter
como
fundamento
não
“idéias”
transmundanas que determinam o certo e o
errado, mas antes se assenta na autonomia
de um sujeito racional que discerne como
válido o que ele deve fazer. Por outro lado
tal autonomia funda-se “na exigência de
que cada um persiga os fins do bem-estar
particular em consonância com o bem-estar
de todos os outros” (HABERMAS, 2000,
p.27). Já a arte não se sujeita mais a
expressar uma educação moral ou a vida
das divindades. “A auto-realização
expressiva torna-se o princípio de uma arte
que se apresenta como forma de vida”
(HABERMAS, 2000, p.27). A arte
romântica expõe maximamente esse ideal,
assim como a propagação da literatura
autobiográfica, ambos tem como elemento
principal a “exteriorização do Eu” por
parte do artista.
O que o Iluminismo promove é um
processo de diferenciação onde ciência,
moral e arte constituem, em termos
wittgensteinianos, “jogos de linguagem”
próprios. Isso quer dizer que os enunciados
desses três âmbitos da cultura seguem cada
um sua própria lógica, e cada um se
mantém independente um do outro.
Essa diferenciação da cultura em três
âmbitos diferentes e autônomos promovida
pelo Iluminismo é o que Habermas
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caracteriza como modernidade cultural.
Habermas diz que Hegel entendeu essas
diferenciações no âmbito da cultura como
cisões de uma realidade em conflito. É por
atribuir à modernidade esse caráter de uma
“época de cisões” que Hegel almejará com
sua filosofia superar o estado que fora
arremessado não só a razão, mas o
“sistema inteiro das relações vitais”. Com
isso o que Hegel quer com sua filosofia é
promover uma reconciliação das cisões da
modernidade.
2. Hegel e a reconciliação das cisões da
modernidade
Habermas entende que a avaliação feita
por Hegel da modernidade, caracterizandoa como uma época de cisões, se orienta por
uma visão voltada para as conturbações
sociais e políticas que se efetivaram como
o advento do Esclarecimento na sociedade
européia do século XVII. A Europa que
passara por um processo de secularização
não conseguiu sob a égide da razão
promover aquela unidade social que a
religião promovia mesmo com todas as
suas repressões. Dessa forma, agora o
indivíduo se via “livre demais”, mas não se
reconhecia fazendo parte de uma
coletividade.
Na
tentativa
de
promover
essa
reconciliação das cisões da modernidade, a
filosofia de Hegel passa por três momentos
distintos, segundo Habermas. No primeiro
momento Hegel quer reconciliar a
modernidade
através
de
passados
exemplares. Assim ele recorre aos modelos
de comunidade do cristianismo primitivo e
da pólis grega. Essa alternativa logo será
abandonada assim que Hegel reconhecer
na modernidade um elemento inexistente
nesses “passados exemplares”, a saber, a
economia capitalista.
Em um segundo momento, Hegel vê na
arte um possível reconciliador da
modernidade. Essa através da criação de
uma nova mitologia criaria uma religião
popular compartilhada pelo povo e pelos
filósofos. Contudo, Hegel vê surgir diante
de si o primeiro romantismo que com “uma
poesia de cisão dificilmente é convocada
para ser a educadora da humanidade”
(HABERMAS, 2000, p.48). Isso serve de
motivo para Hegel abandonar a “utopia
estética” e partir para esse que seria o
momento definitivo: a reconciliação
através do Espírito Absoluto.
Com a idéia de Espírito Absoluto Hegel
tem em mente um sujeito de macroproporções. É nessa fase de sua filosofia
que Hegel mais valoriza a história. No
entanto, Hegel valoriza os períodos
históricos à medida que os compreende
como etapas do desenvolvimento do
Espírito Absoluto. “A história do mundo é
a manifestação do Divino, o absoluto
desenvolvimento do Espírito em suas
formas mais elevadas” (HEGEL, 2001, p.
103).
Nesse desenvolvimento histórico a
Liberdade é o objetivo, o propósito único
para qual o Espírito tende e se realiza. E
para Hegel a realização da Liberdade só é
possível no Estado, e isso significa que o
Espírito só se realiza no Estado. Diante
disso, Hegel verá o Estado como “a
vontade divina como espírito presente ou
atual que se desenvolve na formação e na
organização do mundo” (HEGEL, 1997,
p.233). O princípio reconciliador das
cisões da modernidade será o Estado
entendido como a “Idéia divina como ela
existe sobre a terra” (HEGEL, 2001, p.91).
Ao atribuir ao “Estado forte” o título de o
“Espírito Absoluto na Terra”, Hegel já
veria então sua realidade histórica como a
modernidade
reconciliada.
Habermas
conclui o seguinte a respeito dessa
reconciliação realizada por Hegel:
Depois que o Espírito deu ‘um
empurrão’ na modernidade, depois que
encontrou uma saída para suas aporias,
depois que ele não apenas se
apresentou na efetividade, mas nela se
tornou objetivo, Hegel vê a filosofia
livre da tarefa de confrontar a
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existência vil da vida social e política
com seu conceito. A esse embotamento
da crítica corresponde a desvalorização
da atualidade, à qual os criados da
filosofia
viraram
as
costas
(HABERMAS, 2000, p.62).
O encadeamento lógico que Hegel deu aos
fatos históricos faz parte disso que ficou
conhecido como “Sistema do Espírito
Absoluto”. A história nada mais era do que
marcha do Espírito e a época de Hegel é o
fim
da
história,
a
modernidade
reconciliada. O que o sistema de Hegel
fizera foi eliminar o contingente e o
transitório.
3. Duas novas tentativas de reconciliação
Dentro do discurso filosófico da
modernidade Habermas vai atribuir um
papel essencial a três filósofos póshegelianos: Feuerbach, Kierkegaard e
Marx. Ao advogarem em nome do peso da
existência, tais filósofos recuperaram a
capacidade de crítica da filosofia ao
mostrarem como insatisfatórias as soluções
propostas por Hegel bem como ao
afastarem a idéia de uma realidade
histórica reconciliada pelo Espírito
Absoluto. Daí podemos ver Feuerbach
falando
da
existência
sensível
determinando a própria natureza interior do
homem. Já Kierkegaard insiste na
singularidade e existência histórica do
indivíduo que não se deixa reduzir às prédeterminações do Espírito Absoluto. Por
fim temos Marx entendendo que “a
atividade produtiva e a cooperação dos
indivíduos socializados formam o medium
do processo de autoconstituição histórica
da espécie” (HABERMAS, 2000, p.77).
Esses filósofos acenaram para aquilo que
escapava a todo panlogismo do sistema
hegeliano.
Se, por um lado, é tomada como factual
uma modernidade cindida que precisa ser
reconciliada,
por
outro
lado,
a
compreensão de que a filosofia de Hegel
não conseguiu realizar essa reconciliação é
tida como certa. É nessas duas
constatações que se apóiam então as três
perspectivas
filosóficas
diferentes
referidas, que darão continuidade ao
discurso filosófico da modernidade: os
hegelianos de esquerda, os hegelianos de
direita e Nietzsche.
A esquerda hegeliana “voltada para a
prática e atenta à revolução, quer mobilizar
o potencial de razão historicamente
acumulado” (HABERMAS, 2000, p.80).
Daí a razão se configura como uma razão
revolucionária. O trabalhador através da
práxis toma consciência de que é o sujeito
agente que produz a realidade histórica.
Contudo ele vê aquilo que é fruto de seu
trabalho ser apropriado pelo capitalista.
Desse modo ele promove a revolução
através de uma razão emancipadora que
visa recuperar aquilo que lhe foi tomado,
reconciliando assim a realidade histórica
através do comunismo que extingue a
guerra civil que se encontra encoberta no
interior da sociedade burguesa.
Habermas entende como limitada essa
perspectiva da esquerda hegeliana, pois a
razão que promove a reconciliação advém
do próprio trabalho. Entretanto, a
racionalidade do trabalho se constitui como
uma racionalidade instrumental com
respeito a fins. Por exemplo, se quero
produzir um sapato tenho que usar
determinado couro, seguir certas técnicas
de confecção, etc. Dessa forma, como que
uma razão que se configura como
manipulação de objetos que me são dados
pode ser o elemento decisivo para uma
reconciliação da cultura e da sociedade?
Para Habermas das “[...] relações entre um
ator e um mundo de objetos perceptíveis e
manipuláveis” (HABERMAS, 2000, p.93)
não pode nascer um poder unificador, pois
uma reconciliação demanda uma relação
maior que uma relação sujeito-objeto,
exige uma relação onde um sujeito se põe
diante de outro o reconhecendo como
sujeito, ou seja, requere uma intersubjetividade. A relação sujeito-objeto é
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posterior a essa relação intersubjetiva que
o homem constitui no mundo.
A direita hegeliana tal como a esquerda vê
a realidade cindida graças a uma
modernidade que tem como princípio a
subjetividade. Porém, a direita hegeliana
não recorre a uma razão que promoverá a
revolução, mas antes a uma razão que
efetue uma rememoração da tradição. Os
hegelianos de direita entendem que uma
razão revolucionária solapa
[...] a autoridade das instituições fortes
e das tradições simples; com isso
estorvam a operação de compensação
que uma modernidade tem de executar
consigo mesma, que a sociedade
racionalizada tem de executar com os
poderes sustentadores que são o Estado
e a religião (HABERMAS, 2000,
p.82).
A crítica de Habermas aos hegelianos de
direita é que esses reduzem o alcance da
razão, na medida em que essa não mais
pode projetar o futuro se não for desde
uma reafirmação das tradições do passado.
4. Nietzsche: um ponto de inflexão no
discurso filosófico da modernidade
Com a constatação feita por Hegel acerca
das cisões da modernidade, três foram as
concepções de razão desenvolvidas com o
intuito de reconciliar tais cisões. Assim,
primeiramente a razão foi concebida como
autoconhecimento do Espírito Absoluto
(Hegel), depois como razão agente da
revolução (hegelianos de esquerda) e por
fim como razão rememorativa das
tradições (hegelianos de direita). Essas três
concepções de razão falharam na tentativa
de se apresentarem “como equivalente do
poder unificador da religião e superar as
cisões da modernidade a partir das forças
motrizes da própria modernidade”
(HABERMAS, 2000, p.124).
Diante desse quadro o pensamento de
Nietzsche se apresentará como um ponto
de inflexão no discurso filosófico da
modernidade.
Segundo
Habermas,
Nietzsche tinha diante de si duas
alternativas: tentar mais uma vez criticar
aquele conceito de razão subjetivista e
projetar um novo conceito de razão (tal
como fizeram Hegel, os hegelianos de
direita e os hegelianos de esquerda); ou
então abandonar por completo esse
programa. Nietzsche escolhe a segunda
alternativa e “renuncia a uma nova revisão
do conceito de razão” (HABERMAS,
2000, p.124), fincando o pé no que seria o
outro da razão, a saber, o mito. “Sem o
mito [...] toda cultura perde sua força
natural e criadora: só um horizonte cercado
de mitos encerra em unidade todo um
movimento cultural” (NIETZSCHE, 2007,
p.133).
Habermas aponta que Nietzsche nessa sua
empreitada de dar cabo à razão tem como
ponto de vista a seguinte situação:
Por um lado, o esclarecimento
histórico apenas reforça as cisões
sentidas com as conquistas da
modernidade; a razão, apresentada na
forma de uma religião cultural, não
desenvolve mais nenhuma força
sintetizadora, capaz de renovar o poder
unificador da religião tradicional. Por
outro, à modernidade está barrado a
restauração. As imagens metafísicoreligiosas das civilizações antigas são
elas mesmas já um produto do
esclarecimento, demasiado racionais,
portanto, para ainda contrapor ao
esclarecimento
radicalizado
da
modernidade (HABERMAS, 2000,
p.126).
Vemos que Nietzsche ao constatar o
malogro de uma reconciliação pela razão
das cisões da modernidade não acredita
que tal empreendimento (reconciliação das
cisões da modernidade) possa ser realizado
através de um apelo de volta às origens.
Isso porque a vida arcaica e o mito foram
dissolvidos por um processo de
racionalização iniciado por Sócrates e que
tem na modernidade seu último estágio.
Dessa forma, “Nietzsche é apesar de tudo
moderno demais para advogar um retorno
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literal ao passado, mas acredita que a arte
pode servir de mediação entre o presente e
a pré-história mítica” (ROUANET, 1987,
p. 240).
arte moderna mais avançada promover essa
ruptura com o princípio da individuação,
através do êxtase, da perda dos limites, da
desdiferenciação.
A experiência estética de uma nova
mitologia renovada pela arte permitiria o
acesso ao dionisíaco. Nietzsche, tal como
os românticos, conclama Dionísio1, o deus
grego do êxtase, da loucura e das
metamorfoses incessantes. O dionisíaco
seria a experiência da falta de limites, é o
sujeito que se livra das convenções sociais
e não age mais segundo um conhecimento
teórico do mundo ou de acordo com uma
norma moral.
O pensamento nietzscheano pretende
mostrar que o conhecimento teórico e a
ação moral não permitem a reconciliação
de uma modernidade cindida à medida que
são frutos da razão, e foi da própria razão
que “nasceram” as cisões da modernidade.
As considerações habermasianas indicam
que Nietzsche transforma a arte nesse
elemento reconciliador empurrando-a para
o campo do irracional, coisa que até então
não existia no discurso filosófico da
modernidade. O fato de Nietzsche
empurrar a arte para o campo do irracional
não o exclui do discurso filosófico da
modernidade, pois sua filosofia não se livra
daquela diferenciação e autonomização dos
três âmbitos da cultura (ciência, moral e
arte). Entretanto, Habermas identifica em
Nietzsche um ponto de inflexão no
discurso filosófico da modernidade, ou
seja, a filosofia nietzscheana inaugura uma
mudança de curso. Essa mudança de curso
permite surgir o discurso dos ditos pósmodernos.
O êxtase do estado dionisíaco, com sua
aniquilação das usuais barreiras e
limites da existência, contém, enquanto
dura, um elemento letárgico no qual
imerge toda vivência pessoal do
passado. Assim se separam um do
outro, através desse abismo do
esquecimento, o mundo da realidade
cotidiana
e
o
da
dionisíaca
(NIETZSCHE, 2007, p.52).
Somente numa arte que dá acesso ao
dionisíaco é que estaria a “salvação” da
modernidade. Essa arte dionisíaca que
celebra o renascimento do mito teria como
máxima
expressão
a
proposta
revolucionária de Richard Wagner: O
“drama musical”. Não é uma razão
científica ou moral que possibilitará um
sentimento de “unidade com o todo” que
rompe com o princípio da individuação,
que rompe com o solipsismo do sujeito
fruto de uma modernidade cindida. Cabe à
1
Entretanto, o romantismo associa Dionísio à
figura de Cristo. O fato de Dionísio ser o deus do
vinho cujo regresso está por acontecer permitiu aos
românticos essa interpretação. O que permanece
como pano de fundo dessa interpretação é a
intenção de um rejuvenescimento do Ocidente
cristão. No pensamento de Nietzsche o deus grego
não é mais associado ao deus cristão salvador.
Dionísio é antes o anticristo que expurga a moral
cristã e a racionalidade de um Ocidente decadente.
O Dionísio de Nietzsche vem para promover uma
despedida do Ocidente e não um rejuvenescimento
tal como anunciaram os românticos.
5. O discurso pós-moderno
Nietzsche nunca se intitulou pós-moderno
ou anunciou a entrada na pósmodernidade. O slogan pós-moderno só
ganha repercussão a partir da publicação
da obra La Condition Postmoderne2, do
filósofo francês Jean-François Lyotard.
Lyotard designa de pós-moderno o “estado
da cultura” após as transformações que
afetaram principalmente os campos da arte,
da ciência e da moral. Essas
transformações têm como causa a falência
dos
metarrelatos
da
modernidade.
Expliquemos.
Segundo Lyotard, o que caracteriza a
modernidade é que a filosofia cria
metarrelatos para legitimar as ciências, as
2
Traduzido no Brasil como “O Pós-Moderno”.
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artes e as normas. Por exemplo, pensemos
na questão: o que me permite dizer que
uma lei é justa? O filósofo moderno ao se
deparar com tal questão recorre a algum
grande relato como a dialética do Espírito,
a emancipação do sujeito racional, a
emancipação
do
trabalhador,
o
desenvolvimento da riqueza, dentre outros
discursos. Tendo em vista a questão que
indicamos, podemos dizer que o filósofo
moderno faz uso desses metarrelatos por
almejar
uma
universalidade
que
determinaria a racionalidade de um
enunciado normativo.
Desse modo, esse estado da cultura que
Lyotard designa de “pós-moderno” é um
estado de “incredulidade em relação aos
metarrelatos” (LYOTARD, 1988, p. XVI).
A incredulidade em relação aos
metarrelatos é a incredulidade em relação a
uma racionalidade universal que confira
um fundamento à realidade. Essa
incredulidade era a incredulidade de
Nietzsche quando este se recusou a revisar
mais uma vez o conceito de razão e
depositou suas esperanças na inconstância
e indeterminação da experiência estética.
Nietzsche
conclamava
um
levante
dionisíaco contra o Ocidente decadente que
oprimiu a mutabilidade da própria vida em
nome do universalismo da razão. O
filósofo pós-moderno transforma a
promessa de libertação que se dará com o
retorno de Dionísio num estado factual da
cultura. Daí a pós-modernidade se
configura como o abandono do Ocidente
de uma busca de um fundamento universal
racional que reconcilie a realidade cindida.
Diante disso as esferas da cultura vêm
então se transformar ao se libertarem dos
punhos de aço de uma razão universal.
Dessa forma as ciências não mais
concebem modelos fixos de como se deve
proceder. Pelo contrário, há uma
combinação de tradições e a revalorização
de tradições que a ciência expurgou para
fora do campo do conhecimento, tal como
a astrologia, a alquimia, o xamanismo, etc.
É o “vale tudo” que enuncia a defesa de
um pluralismo metodológico. Já a moral
entendida
como
uma
busca
de
fundamentação
de
normas
de
comportamento universal é renunciada
pelo homem pós-moderno. O certo e o
errado são definidos por padrões de
comportamento que eu compartilho dentro
de um determinado grupo. Por fim temos a
arte agora despatologizada, ou seja, não
mais está presa ao sentimentalismo de um
sujeito que exterioriza suas dores e
alegrias. A arte agora “anti-aurática”
comunga do nonsense, do pastiche, perfila
uma ironia que recai sobre si mesma, ela
parece pedir em altas vozes para não ser
levada a sério demais.
Com essas transformações o filósofo pósmoderno pretende enunciar o salto da
cultura para fora da modernidade. Salto
este que só é possível a partir do momento
em que se ignora o “horizonte conceitual
fundamental em que se formou a
autocompreensão
da
modernidade
européia” (HABERMAS, 2000, p.8)
através da filosofia de Hegel.
6. Considerações finais: modernidade ou
pós-modernidade?
A pós-modernidade tem como primeiro
pressuposto o fato de que ela experimenta
“uma descontinuidade, o distanciamento
em relação a uma forma de vida ou de
consciência na qual anteriormente se havia
confiado de maneira ingênua e irrefletida”
(HABERMAS, 1992, p. 127). Segundo os
pós-modernos, é nessa forma de vida
ingênua que a modernidade confiava.
Podemos entender essa ingenuidade
atribuída à modernidade pela pósmodernidade a partir de Lyotard. O
filósofo francês ao falar da relação
metarrelato-modernidade pretende indicar
o homem moderno não se desvinculando
do mito que ele tanto negara. Isto porque a
própria razão, concebida como fundamento
universal da realidade, se configurou como
um mito através dos metarrelatos.
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Habermas nos permite entender em O
Discurso Filosófico da Modernidade que
aquele primeiro pressuposto onde se apóia
a pós-modernidade está equivocado.
Entendamos o porquê.
Vimos que a modernidade se certificou de
si ao identificar como seu fundamento o
princípio da subjetividade que se
configurou na esfera da cultura através da
diferenciação e autonomização entre
ciência, moral e arte. Assim, podemos
perceber que em nenhum momento a
modernidade caracterizou como seu
fundamento o uso de metarrelatos para
legitimar esses três âmbitos da cultura. Por
isso Habermas afirma que os pósmodernos só saltam para fora da
modernidade na medida em que formam
um conceito de modernidade não
condizente com a própria compreensão que
esta (modernidade) formou de si.
Vimos que aquela diferenciação e
autonomização dos âmbitos da cultura que
caracteriza
a
modernidade
ainda
permanecem na esfera de compreensão dos
ditos pós-modernos. Dessa forma “o
pensamento pós-moderno se arroga
meramente uma posição transcendental,
quando, de fato, permanece preso aos
pressupostos da autocompreensão da
modernidade [...]” (HABERMAS, 2000,
p.8).
Se a pós-modernidade não se legitima a
partir de um salto para fora da
modernidade, tão pouco pode se certificar
de si vendo seu fundamento na crítica a
modernidade. Pois, “não há nada de mais
moderno que a crítica filosófica da
modernidade” (ROUANET, 1987, p. 23).
Vimos isso nas tentativas dos filósofos de
reconciliarem uma modernidade cindida.
Diante desse quadro, como então
Habermas compreende o fenômeno pósmoderno? Qual o real significado da pósmodernidade para o filósofo de Frankfurt?
Se nem os ditos pós-modernos conseguem
se livrar daquelas compreensões que
caracterizam a modernidade (isto é, a
compreensão de uma cultura que
autonomiza e diferencia ciência, moral e
arte), podemos então dizer que a pósmodernidade enquanto estado real de uma
cultura não existe. Isso porque aquelas
alterações históricas visualizadas por
Hegel, e que determinavam o fundamento
da modernidade diferenciando ela da
tradição antiga, em nada se alteraram.
Habermas vê na pós-modernidade mais um
“estado de consciência” do que um “estado
da cultura”. A pós-modernidade se
apresenta somente no discurso daqueles
que se decepcionaram com o projeto
moderno. Em resumo, a pós-modernidade
se configura como um projeto que visa
substituir a modernidade e não como uma
característica determinante de uma época
da história. A modernidade cultural, e
também a social (que abordamos
brevemente), ainda vigoram em nossos
dias.
É certo que da modernização cultural (e
não somente da social) resultaram
“motivos de dúvida e desespero quanto ao
projeto da modernidade” (HABERMAS,
1982, p.109). Isso acabou promovendo o
discurso pós-moderno que trabalha visando
expurgar por completo os conteúdos
universalistas da racionalidade moderna.
Para Habermas o que o discurso pósmoderno não percebe é que o “culto” a um
pluralismo sem critério das idéias gera um
relativismo exacerbado, uma sensação de
“tanto faz”. Se “tanto faz”, por que então
nos determos nas
patologias da
modernidade em vez de deixarmos tudo
como está? Dessa forma, o discurso pósmoderno pode se configurar em
determinadas situações como um discurso
conservador, pois ele abre a possibilidade
de legitimar e conservar o estado atual da
cultura e da sociedade.
Embora o discurso pós-moderno muitas
vezes se estagne na ilusão de que os
problemas
da
modernidade
serão
resolvidos através de uma fuga desta,
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Revista Urutágua – revista acadêmica multidisciplinar –
Nº 18 – mai./jun./jul./ago. 2009 – Quadrimestral – Maringá – Paraná – Brasil – ISSN 1519-6178
Habermas entende que ele (discurso pósmoderno) também pode ter o seu valor.
“Nesta medida, os que se declaram ‘pós’
não são apenas oportunistas de faro
atilado; temos que levá-los a sério como
sismógrafos do espírito de uma época”
(HABERMAS, 2002, p.12). Época esta
que pretende exorcizar uma modernidade
doente, que muitas vezes sob a égide da
razão produziu barbáries tais como: a
expansão imperialista pela América e
África, Guerras Mundiais, destruição dos
recursos naturais do planeta, fome e
miséria no terceiro mundo, dentre outras.
Mas também é uma época que hesita diante
da de-cisão de qual caminho seguir.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A razão na
história: uma introdução geral à filosofia da
história. 2. ed. Introdução de Robert S. Hartman;
tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro,
2001.
__________. Princípios da filosofia do direito.
Trad. Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes,
1997. (Clássicos)
LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. 3. ed.
Trad. Ricardo Correia Barbosa. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1988.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia
ou helenismo e pessimismo. Tradução notas e
posfácio J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
ROUANET, S. P. As razões do Iluminismo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987.
Se a ruptura com a modernidade não
existe, o discurso pós-moderno muitas
vezes é capaz de captar na cultura um
desejo de ruptura. Por isso Habermas
sempre buscou em seus escritos
decodificar o discurso pós-moderno com o
intuito de adquirir recursos que o
auxiliassem em sua revisão do conceito de
razão sem se “desarraigar” desse momento
histórico da própria modernidade. O modo
como Habermas realiza essa revisão do
conceito de razão não será mostrado aqui,
sendo esse tema a proposta de estudos
posteriores.3
Referências
HABERMAS, J. Arquitetura moderna e pósmoderna; Modernidade: um projeto inacabado. In:
ARANTES, Otília Beatriz Fiori & Paulo Eduardo.
Um ponto cego no projeto estético de Jürgen
Habermas: arquitetura e dimensão estética depois
das vanguardas. São Paulo, Brasiliense, 1992.
__________.
O
discurso
filosófico
da
modernidade: doze lições. Trad. Luiz Sérgio Repa,
Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes,
2000.
__________. Pensamento pós-metafísico: estudos
filosóficos. 2. ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 2002.
3
Falo aqui da minha pesquisa de mestrado: A
superação do pensamento metafísico na filosofia
política de Jürgen Habermas.
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