Notas introdutórias sobre sistema e modernidade: Kant e Habermas O projeto crítico kantiano pode ser pensado como inaugurador da modernidade filosófica. A caracterização weberiana 1 da modernidade cultural, como diferenciação de esferas de valor com legalidades próprias, pode começar a esclarecer esta afirmação e indicar um dos aspectos da noção de modernidade que está em causa. A esfera do conhecimento, da ciência, adquire independência, seus procedimentos metodológicos consolidam-se e surgem instituições que favorecem a pesquisa: as Academias de Ciências e os laboratórios. No plano prático, da ação moral e do direito, ocorre algo análogo: há a formação de princípios valorativos independentes de valores cognitivos e também religiosos, e o sistema judiciário com suas instituições vai se for mando. Ora, dá-se algo similar com a arte, que passa a apresentar autonomia em relação às duas esferas já referidas; a atividade da crítica artística se fortalece e as instituições voltadas para a arte se consolidam. Levando-se em conta essa caracterização da modernidade cultural, vamos encontrar em Kant sua expressão filosófica inaugural, uma vez que as três Críticas kantianas analisam as condições de possibilidade dos três campos de legislação: teórico, prático e estético. 2 1. Ver, de Max Weber, Zwischenbetrachtung. In: Weber, 1988. Conferir também a interpretação de J. Habermas em Webers Theorie der Rationalisierung. In: Habermas, 1981. 2. De fato, encontramos na perspectiva crítico-transcendental uma marca característica, segundo Habermas e Weber, da modernidade (i.e., o fato de cada domínio dar a si mesmo regras), uma vez que “uma crítica imanente, a razão como juiz da razão, (...) é o princípio essencial do método dito Passagens Habermas, contudo, atribui a Hegel a inauguração da modernidade filosófica, embora reconheça que este vê na filosofia kantiana a essência do mundo moderno concentrado como em um foco. (...) [entretanto seria apenas] mediante uma visão retrospectiva [que] Hegel pode entender a filosofia de Kant como auto-interpretação decisiva da modernidade (...); Kant não considera como cisões as diferenciações no interior da razão, nem as divisões formais no interior da cultura, nem em geral a dissociação dessas esferas. 3 Com Hegel formar-se-ia uma autoconsciência efetiva da modernidade, mesmo se em Kant a questão já se apresenta com toda a força. Convém fazer um esquema rápido da questão da modernidade e da contemporaneidade em Habermas para situar a posição da filosofia kantiana em sua reconstrução. Em O discurso filosófico da modernidade, Habermas atribui a Hegel a consciência da modernidade enquanto tal. Kant teria expresso as cisões da modernidade, mas não as teria transformado em problemas filosóficos, como Hegel, que, por sua vez, procurou superar as cisões através do absoluto. A filosofia posterior a Hegel seria uma repetida crítica da megalomania da razão hegeliana e sua pretensão de superar aquelas cisões, o que nos teria deixado na transcendental” (Deleuze, 1983, p. 11). Em cada uma das Críticas kantianas, trata-se de uma faculdade da mente: faculdade de conhecer, na Crítica da razão pura; de desejar, na Crítica da razão prática; e o sentimento de prazer e desprazer, na Crítica do juízo. E a questão é saber se essas faculdades são capazes de uma forma superior: “Diz-se que uma faculdade tem uma forma superior quando ela acha em si mesma a lei do seu exercício (ainda que, desta lei, decorra uma relação necessária com uma das outras faculdades)” (ibid., p. 12). 3. Habermas, Entgegnung, 1986, p. 30-31; trad. bras., p. 29. 18 Notas introdutórias sobre sistema e modernidade mesma situação dos jovens hegelianos.4 A filosofia pós-hegeliana aparece como uma série de tentativas fracassadas de criticar radicalmente a metafísica e a filosofia do sujeito. Habermas encontra em Schiller,5 no jovem Hegel, no jovem Marx e no jovem Heidegger elementos de uma outra via, que, entretanto, não foi por eles seguida: a perspectiva da racionalidade comunicativa. A via seguida, e que acabou por conduzilos ao fracasso, mantém de alguma forma a filosofia do sujeito, seja com o predomínio da racionalidade cognitivo-instrumental, seja com sua recusa radical. Desta maneira, a racionalidade não é enfocada, por essas filosofias, em toda sua complexidade, o que só ocorrerá com a mudança de paradigma proposta pela teoria do agir comunicativo. Ora, mesmo sem subscrever a tese central de seu livro, concordamos com Georg Kneer quando afirma: Também no quadro do paradigma da filosofia da consciência é possível circunscrever um conceito de razão complexo. Assim fez, por exemplo, Immanuel Kant, ou seja, um filósofo que concorreu de maneira decisiva para a autocompreensão da modernidade do ponto de vista da filosofia do sujeito; que, com suas três críticas da razão, incluiu em sua reflexão transcendental, ao lado da dimensão instrumental-cognitiva, o domínio prático-moral, como também o expressivo-estético.6 Seria de se esperar que Habermas insistisse nesse fato e o relacionasse com a posterior análise weberiana da diferenciação das esferas culturais de valor, que constitui um traço fundamental da modernização cultural, diferenciação na qual, para Habermas, Weber 4. Ver, a esse respeito, Repa, Notas sobre a tese da contemporaneidade dos jovens hegelianos, 1996. 5. Sobre a leitura de Schiller por Habermas, ver, mais adiante, o texto “Atualidade de Schiller”. 6. Kneer, Die Pathologien der Moder ne, 1990, p. 41. 19