A IMAGEM DE CORPO DO PACIENTE QUE EMERGE

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A IMAGEM DE CORPO DO PACIENTE QUE EMERGE DAS PRÁTICAS
TERAPÊUTICAS CONVENCIONAIS E ALTERNATIVAS
Autor: Odalci José Pustai
Prof. Aux. FAMED/UFRGS, Médico e Mestrando em Sociologia
G. T. 14 - Pessoa, Corpo e Doença
XX Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, 22 a 26 de outubro de 1996.
A IMAGEM DE CORPO DO PACIENTE QUE EMERGE DAS PRÁTICAS
TERAPÊUTICAS CONVENCIONAIS E ALTERNATIVAS
Introdução
O presente estudo baseia-se em dados coletados por alunos do 7º
semestre da disciplina de Saúde e Sociedade da Faculdade de Medicina da
UFRGS. Seu objetivo principal é o de analisar uma das questões mais
importantes do levantamento realizado: elucidar, através da comparação, a
imagem de corpo do paciente ligada ao “olhar” terapêutico da Medicina
Convencional ( MC ) ou ligada a algumas terapias alternativas ( TAs ). Após
analisar a imagem de corpo que emerge da ação terapêutica convencional e
alternativa, vamos discutir alguns possíveis significados de cada imagem de
corpo encontrada no material empírico do presente levantamento. Todavia,
também serão apresentados dados abordando outros aspectos relacionados às
terapias alternativas.
Como se trata de uma abordagem ainda inicial do tema proposto, justificase sua discussão teórica em nível menos profundo.
O trabalho dos alunos do 7º semestre, sob a nossa orientação, consistiu
em realizar vários levantamentos em torno do tema das TAs. Para isso, foram
consideradas TAs todas as opções terapêuticas excluídas da Medicina
Convencional. Por exemplo, o uso de chás caseiros somente era considerado
como TA quando o paciente o usava fora da lógica da Medicina Convencional.
O presente trabalho está dividido em quatro partes: Na primeira parte,
apresentaremos alguns dados relativos ao uso social de terapias alternativas, em
diferentes situações sociais. Na segunda parte, explicitaremos dados obtidos com
pacientes que têm opção preferencial por terapias alternativas. Na terceira parte,
caracterizaremos por comparação os dados relativos a entrevistas com médicos
convencionais e com terapeutas alternativos. E, na quarta e última parte,
discutiremos os dados, tentando realizar algumas extrapolações.
Primeira Parte
No primeiro momento deste trabalho, preocupamo-nos em verificar se as
TAs tinham alguma importância em termos de uso social na Cidade de Porto
Alegre. Com esse objetivo, entrevistamos pessoas adultas, sem distinção de sexo
ou escolaridade, pertencentes a diferentes grupos sociais. Assim, procuramos 20
pessoas usuárias costumeiras de restaurante natural. Dessas, apenas 3
mencionaram que faziam uso exclusivo da Medicina Convencional. Apuramos
também que 11 faziam o uso combinado de TAs e 6 tinham opção preferencial
por TAs. Destas, as mais citadas foram Homeopatia e Fitoterapia.
Em outro momento, constatamos que de 20 usuários freqüentadores de
churrascaria, a metade era adepta exclusivamente da Medicina Convencional.
Dos outros 10, apenas 1 manifestou opção preferencial por TAs, enquanto que os
nove restantes se utilizavam dos dois modelos. O tipo de TA mais citado
novamente foi a Homeopatia e Fitoterapia.
Numa outra situação, foram ouvidos 20 usuários do Hospital de Clínicas de
Porto Alegre. Desses, somente 8 usam a Medicina Convencional e 12 utilizam os
2
dois modelos, mas nenhum manifestou opção preferencial por TAs. As TAs mais
mencionadas foram Homeopatia e Benzedeira.
Outro recorte foi feito com pessoas moradoras da vila 1º de Maio, situada
na periferia de Porto Alegre. Dos 20 entrevistados, 13 fazem uso de ambos os
modelos pesquisados, e 7 usam exclusivamente a Medicina Convencional.
Nenhum dos entrevistados manifestou uso preferencial por TAs. As TAs mais
mencionadas foram Homeopatia, Benzedeiras e Umbanda.
Também foram entrevistados 20 estudantes universitários. Desses, 11
utilizam TAs juntamente com a Medicina Convencional, e 1 manifestou opção
preferencial por TAs. As TAs mais citadas pelos estudantes foram a Homeopatia,
Reiki, Yoga e Fitoterapia.
Ao lado da busca dos dados acima relatados, realizamos
outro
1
levantamento orientado pelo critério classificatório de BRONFMAN , com pessoas
distribuídas em diferentes classes sociais. Nesse levantamento, as entrevistas
eram dirigidas para o grupo familiar, ampliando o alcance das respostas. Os
resultados foram os seguintes:
Classe Social
Usuários de
TAs
Burguesia
2
Nova Pequena Burguesia
5
Pequena Burguesia Tradicional
4
Proletariado
4
Sub-Proletariado
3
Total
18
Usuários da Medicina
Convencional
2
3
3
9
2
19
Total
4
8
7
13
5
37
Apenas uma pessoa, das 18 que utilizam TAs, tem opção preferencial por
TAs.
De um total de 137 pessoas entrevistadas, 81 fazem uso de algum tipo de
TA, o que corresponde a 59,12% da amostra. Desse grupo, 9 pessoas
manifestaram opção preferencial por TAs, o que corresponde a 6,56% de toda
amostra, e 56 pessoas manifestaram utilizar somente a Medicina Convencional, o
que corresponde a 40,87%.
Certamente os dados obtidos por esses levantamentos não têm muita
validade para fins de cálculos estatísticos, a partir dos quais se pudesse fazer
extrapolações. No entanto, serviram para sedimentar a convicção de que o
fenômeno das TAs está presente no meio pesquisado, mesmo sem podermos
precisar sua importância do ponto de vista estatístico. Além disso, os dados
encontrados permitem-nos sugerir que deveriam ser efetuados estudos
estatisticamente controlados que, certamente, confirmariam uma tendência já
2
observada em outros países. Na França, LAPLATINE e RABEYRON relataram
uma pesquisa segundo a qual 49% da população geral da França já utilizou
alguma vez TAs. Os mesmos autores também relatam o sucesso editorial de
livros e revistas especializadas que tratam de TAs.
1
BRONFMAN, M. LOMBARDI, C. et al. Operacionalização do conceito de classe social em estudos
epidemiológicos. Rev. Saúde Pública, SP. 1988, p. 253-265.
2
LAPLATINE, F. RABEYRON, P. Medicinas Paralelas Ed. Brasiliense, SP, 1989.
3
Esse sucesso também acontece por aqui. Nas duas últimas edições da
Feira do Livro em Porto Alegre, os livros disparadamente mais vendidos
pertenciam ao campo das Terapias não Convencionais, dos mais variados tipos.
Também nos EUA, segundo EISEMBERG 3, um em cada três pacientes
usa rotineiramente Terapias Alternativas. Ainda, segundo o mesmo autor, no ano
de 1990, nos EUA, foram realizadas 425 milhões de consultas em Terapias não
Convencionais, contra 388 milhões de consultas ambulatoriais com médicos
convencionais.
Com os dados apresentados preliminarmente, realizamos um
reconhecimento, ainda que precário, da inserção das TAs em nosso meio social.
Nessa fase exploratória da pesquisa, predominou o levantamento quantitativo de
dados. Entretanto, ao mesmo tempo em que era aplicado um questionário
fechado, já eram trabalhadas algumas questões que, posteriormente, serviriam
de guia para uma abordagem qualitativa. Até esse ponto, as TAs constituíam-se
em um tema amplo, que, necessariamente, precisava de um recorte mais
específico, na busca da construção de um objeto de investigação.
Segunda Parte
O fio condutor, de nossa tentativa de estabelecer um objeto que tivesse
base empírica e alguma significação teórica foi buscado em uma observação
mais acurada das pessoas que têm opção preferencial por TAs. Em levantamento
anterior, tínhamos percebido que essas pessoas apresentavam justificativas bem
fundamentadas, para a sua opção, ou seja, a maioria delas tinha muita
disposição para defender, de várias formas, sua opção terapêutica. Assim, já nos
tínhamos apropriado de algumas indicações empíricas úteis para questões que
poderiam ser definidas previamente para o nosso trabalho de campo. Dessa
maneira foram elaboradas sete questões, que deveriam ser apresentadas de
forma aberta para pessoas que manifestassem opção preferencial por TAs.
Essas questões eram as seguintes:
1. Antes de procurar TAs, como você tratava seus problemas de saúde?
2. Que tipos de problemas você identificava no atendimento médico
convencional?
3. O que levou você a procurar tratamento alternativo?
4. Houve algum fato importante na sua vida que o levou a mudar de opção
terapêutica?
5. Que valores você identifica nas TAs que foram importantes para você?
6. Trace um paralelo entre o RMP do Modelo Médico Convencional e das TAs.
7. Houve alguma mudança no seu estilo de vida nessa passagem de opção
terapêutica?
Essas questões foram levadas a 34 pessoas que manifestaram opção
preferencial por TAs. Para compor essa amostra, foi utilizada a técnica da “bola
de neve”. E, para determinar o tamanho da amostra, foi utilizado o critério de
esgotamento das questões, ou seja, quando não surgiam mais respostas novas e
as já conhecidas esboçavam tendências claras, concluia-se que a amostra era
suficiente para realizar-se uma análise qualitativa.
3
EISEMBERG, D. M. KESSLER, R. D. FOSTER, C. et al. Unconvencional medicine in the United States.
N. Engl. J. Med. 1993; 328: 246-52.
4
A seguir, apresentaremos as principais respostas dadas às questões acima
listadas e iniciaremos uma análise preliminar, objetivando a construção de
questões para a fase seguinte da pesquisa.
Para a questão, “Antes de procurar TAs, como você tratava seus
problemas de saúde?”, a resposta foi unânime. Todos os entrevistados, antes de
procurarem as TAs, tratavam-se com a Medicina Convencional. Disso podem ser
depreendidos dois itenspara discussão: o primeiro indica que essas pessoas
realizaram uma mudança importante em sua vida, já que antes tratavam seus
problemas de saúde com médicos convencionais; isso indica que, por alguma
razão, abandonaram esse modelo para procurar outra opção terapêutica. O outro
item dessa questão mostra que a opção por TAs não vem de berço, ou seja, não
foi adquirida com a família. Isso reforça a idéia de que o crescimento das
Terapias Alternativas é relativamente recente em nosso meio social.
Conseqüentemente, a opção preferencial por Terapias Alternativas igualmente
deve ser um fenômeno bastante novo.
Para explicitar as respostas da segunda questão, “Que tipo de problemas
você identificava no atendimento médico convencional?”, recorremos a uma
leitura horizontal. Assim, conseguimos identificar os principais posicionamentos,
apresentados a seguir. Os problemas mais freqüentemente citados situam-se na
esfera da relação médico-paciente ( RMP ). Um dos pacientes entrevistados
expressou o seu relacionamento com o médico convencional nos seguintes
termos: “Era um relacionamento superficial, frio, seco; o médico mantinha
distância e, por isso, não me transmitia segurança.” (50 anos, jornalista).
Muitos outros entrevistados queixaram-se da impessoalidade na relação
com os médicos. Isso dificultava enormemente que fossem abordados problemas
relacionados à subjetividade dos pacientes. Na percepção de muitos
entrevistados, os médicos convencionais preferem dar ênfase a outros aspectos
da relação, conforme demonstra o seguinte depoimento: ”Os médicos não sabem
ouvir e conversar com a gente. Somente pedem exames e dão remédios.” (21
anos, estudante). Isso traduz uma idéia de que a relação não é propriamente
direta entre o médico e o paciente, mas é mediada por elementos que, quando
introduzidos nessa relação, acabam assumindo uma importância muito grande.
Outra dificuldade apontada pelos entrevistados refere-se à idéia de que os
médicos convencionais dirigem sua atenção apenas para partes do corpo, como
indica a fala da seguinte entrevista: “Normalmente os médicos examinam e se
interessam apenas por uma parte do corpo, como se fosse parte isolada do resto
do organismo.” (25 anos, pedagoga). Dessa forma, muitos entrevistados
entendem que se perde a integridade da pessoa, que fica fragmentada pela
intervenção médica convencional. Isso está sintetizado nesta entrevista: “Na
Medicina Convencional, no relacionamento com os médicos ocorre a perda da
integridade do ser, do sentido de totalidade orgânica, psíquica e espiritual.” (37
anos, Artista Plástico).
Outra questão bastante recorrente, encontrada nas entrevistas, considera
que o atendimento da Medicina Convencional,embora esteja centrado na doença,
não procura pesquisar profundamente as suas causas, como aparece neste
depoimento:
“A Medicina Convencional somente vê a doença e não se
preocupa com o indivíduo. Por isso, o médico quer resolver
5
o problema que se apresenta no momento, e não tem
preocupação de averiguar as causas que levaram àquela
doença.” (27 anos, Auxiliar de Enfermagem).
Outra questão que aparece com certa freqüência refere-se à desconfiança
da intervenção do Médico Convencional, que, através do uso de tratamentos
muito intervencionistas, poderia melhorar uma coisa, mas trazer prejuízos para o
resto do organismo, como aparece nestas duas frases de entrevistas diferentes:
“Eu acredito que a solução farmacológica dada pelo médico
não cura a causa básica, e abre um rombo em outro lugar.”
(24 anos, Bancário). “Na Medicina, eu me entupia de
remédio, o que faz mal para a saúde. Tem efeitos colaterais,
trata uma coisa e dá outra.” (21 anos, Estudante).
Uma última questão que adquire certa importância traduz a idéia de que a
Medicina Convencional assume a sua forma - a de não querer resolver os
problemas na sua essência - por uma questão econômica, pois assim o paciente
sempre teria que retornar para continuar seus tratamentos, como fica claro nesta
entrevista: “O médico não está muito interessado em tratar as causas da doença,
pois assim sempre terá o paciente em seu consultório de quem irá tirar parte de
seu sustento.” (50 anos, Dona de Casa).
Perguntados os pacientes sobre os motivos que os levaram a procurar
tratamentos alternativos, tivemos basicamente três tipos de posicionamentos.
Conforme o posicionamento mais freqüente, os entrevistados manifestaram que
sua motivação estava relacionada com a idéia de buscar um modelo de
atendimento para seus problemas de saúde mais adequado e adaptado em
relação a sua nova visão de mundo, como aparece nesta entrevista:
“Fui mudando minha maneira de pensar e ver o mundo e as
coisas em geral, motivado por distúrbios alimentares que me
fizeram procurar uma alimentação mais pura, mais saudável.
Uma mudança espiritual profunda da minha pessoa levou a
me identificar com outras modalidades terapêuticas que
davam mais respostas com tratamentos alternativos, menos
agressivos e com maior respeito ao paciente.” ( 44 a.
Promotora de Justiça ).
Nessa fala, podemos perceber claramente que houve uma mudança no modo de
pensar, o que levou a entrevistada a procurar um tipo de terapia de acordo com
sua nova visão de mundo.
Um outro grupo de pacientes indicou, como razão principal para procurar
nova opção terapêutica, a falta de uma resposta condizente para o seu problema
ou a falhas no atendimento convencional, como aparece nesta entrevista: “A
ineficiência da ‘Medicina Tradicional’ para os meus casos de doença e
intoxicação causada por medicamentos que saravam um lado e estragavam o
outro.” ( 26 a. Comerciária ). Nessa resposta está implícita uma certa
desconfiança da entrevistada em relação ao tipo de eficiência dos tratamentos
farmacológicos prescritos pela Medicina Convencional.
6
O último grupo respondeu a questão em pauta dizendo que a busca por
um outro tipo de terapia tinha sido aconselhada pelos pais ou por algum amigo.
Questionados os entrevistados se houve algum fato importante em sua
vida que os tinha levado a mudar de opção terapêutica, a grande maioria
respondeu negativamente. Apenas dois entrevistados mencionaram um fato que
teria sido decisivo para mudarem de opção. Um deles atribuiu a sua escolha ao
stress do vestibular, e o outro, a uma crise existencial muito forte, que havia
determinado mudanças profundas na sua vida, inclusive influenciado sua nova
opção terapêutica. Muitos dos entrevistados, ao comentarem essa questão,
relataram que essa mudança fazia parte de um processo mais amplo, no qual
uma das coisas mais importantes era o desejo de ter e a vontade de buscar uma
vida mais saudável e natural, como aparece nesta fala de um dos entrevistados:
“Não houve exatamente um fato, mas foi um processo que
iniciou aos 17 anos de idade. Foi uma busca de uma
alimentação e um estilo de vida mais saudável e
conservador mais próximo da natureza. Foi aí que encontrei
a Cooperativa Ecológica Colméia, que foi e é muito
importante pra mim.” ( 37 a. Artista Plástico ).
Quando perguntamos aos entrevistados que valores eles identificavam nas
TAs importantes para eles, tivemos dois tipos de respostas. O primeiro dava
ênfase para as finalidades próprias das TAs, e o segundo, ao papel do paciente
no processo de cura. Quanto às finalidades próprias das Tas, os entrevistados
nos forneceram um conjunto de características que podem ser divididas em três
subgrupos. O primeiro desses subgrupos argumenta que essas TAs teriam um
arsenal terapêutico não-agressivo, como aparece nesta entrevista: “A
possibilidade de tratar os mesmos problemas que tratava antes com a alopatia,
com medicamentos que não agridem tanto o organismo da gente.” ( 43 a.
Professora ). O segundo subgrupo de argumentos explicita uma longa lista de
qualidades e características das TAs, que alguns entrevistados chamaram de
“visão holística em saúde”, assim comentado por um dos entrevistados:
“A visão holística em saúde trata o indivíduo como um todo,
relacionado com o universo. É a valorização da
subjetividade do indivíduo, da linguagem simbólica popular.
Mas o principal, acho que é uma coerência com o meu modo
de pensar, de ver além do corpo material, de ver emoções e
pensamentos como causas dos comportamentos e
doenças.” ( 47 a. Engenheiro Florestal ).
Para compor a lista de características desse “tipo ideal holístico”, seria
necessário transcrever vários trechos de entrevistas. Por isso, somente vamos
listar algumas características, a título de ilustração: harmonia, tranqüilidade,
independência de drogas, humildade, sensibilidade, honestidade, sinceridade,
amor, valorização pessoal, segurança, autoconhecimento, respeito, consideração
da natureza. Essas qualidades foram expressadas por diferentes entrevistados,
sempre referindo-se às terapias alternativas. O terceiro subgrupo, por sua vez, dá
ênfase na relação terapeuta-cliente, questão que vamos discutir mais adiante.
7
Quanto ao papel do paciente no processo de cura, outro grupo de
entrevistados considerou esse papel decisivo nas TAs, como aparece nesta
entrevista:
“Despertei a capacidade de ver que a gente tem o poder de
se curar de qualquer doença. Percebo que a pessoa é ativa
no processo de cura, que pode compreender o universo
humano e, com isso, não ficar doente.” ( 42 a. Secretária ).
É possível identificar uma disposição e uma vontade desse entrevistado no
sentido de estabelecer uma relação com as terapias de cura em outro patamar.
Ele não aceita simplesmente que o terapeuta assuma sozinho a responsabilidade
pela cura, mas acredita que a capacidade de cura pode ser desenvolvida pelo
próprio sujeito. Essa característica é importante e vai ser retomada mais adiante.
Um dos pontos mais importantes de nosso levantamento está relacionado
com a comparação que os entrevistados fazem entre a relação terapeutapaciente por eles vivenciada no atendimento médico convencional. Nas
entrevistas, depois de denunciarem essa relação, destacavam as diferenças em
relação ao tipo de relacionamento que encontraram nas Terapias Alternativas.
A maioria das críticas manifesta de que a relação terapeuta-paciente na
alopatia é mediada por um comportamento técnico baseado em princípios
científicos, como sugere esta frase de um dos entrevistados: “Na alopatia as
pessoas são mais técnicas, mais objetivas, ficam mais na medicina, na ciência.” (
49 a. Produtor de teatro ). Quando o relacionamento terapeuta-paciente sofre
uma grande influência do aparato tecnológico da medicina, os pacientes
percebem que a relação fica difícil e torna-se impessoal, dificultando uma maior
interação entre as partes envolvidas no processo, como aparece nesta entrevista:
“Na medicina convencional, a relação terapeuta-paciente é nula: não há
confiança, há muita impessoalidade, distância e formalismo.” ( 50 a. Jornalista ).
Uma das críticas apresentadas considera que, além da impessoalidade e
frieza da relação terapeuta-paciente, é muito comum que essa relação seja ainda
mais reduzida, restringindo-se a apenas uma parte do corpo do paciente, a parte
enferma, como aparece nesta entrevista:
“A medicina convencional é fundamentada no mecanicismo,
por isso tende a esquartejar o ser humano, e a relação
médico-paciente com o objetivo de tratar uma doença acaba
dividindo a pessoa em partes, e se relaciona com uma
delas, como o pé, uma mão ou um outro órgão específico.” (
21 a. Estudante ).
Outra questão que apareceu com certa freqüência nas entrevistas
considera que o médico monopoliza o poder em virtude de seus conhecimentos.
Graças a isso, ele pode estabelecer uma relação de dominação sobre o paciente,
como transparece nesta entrevista: “Na relação médico-paciente convencional, o
paciente perde o poder de decisão, pois o saber está nas mãos dos médicos e
estes fragmentam e submetem o paciente aos seus interesses.” ( 22 a. Estudante
).
Das concepções desses entrevistados, todos com opção preferencial por
terapias alternativas, podemos depreender uma imagem de corpo fundamentada
8
na relação médico-paciente da medicina convencional. Ou seja, dessa relação
emerge a imagem de um corpo submisso, dominado, esquadrinhado pelo arsenal
de equipamentos médicos tecnologicamente cada vez mais avançados, que
perscrutam partes do corpo humano cada vez mais divididos e submetidos a uma
ação super-especializada, não sobre o corpo como um todo, mas sobre sistemas,
órgãos, células e partes cada vez mais recônditas. Nessa visão do corpo do
paciente fragmentado, existe pouco espaço para as manifestações da
subjetividade do indivíduo. A impressão inicial é a de que a relação médicopaciente convencional prescinde de um ser pensante, com sentimentos,
emoções. De acordo com essa relação, precisa-se de um corpo impessoal,
reificado, pois parece que o objeto privilegiado de atuação é um corpo material,
orgânico, onde as manifestações subjetivas do paciente somente atrapalhariam a
precisão dos diagnósticos e das intervenções terapêuticas.
Na ótica dos pacientes entrevistados, há muitas diferenças entre a relação
terapeuta-paciente ( RTP ) da Medicina Convencional e das TAs. Todos os
entrevistados criticaram múltiplos aspectos da relação médico-paciente
convencional, conforme os depoimentos apresentados. Em contrapartida, todos
eles encontraram aspectos extremamente positivos na relação terapeuta-paciente
nas TAs, e muitos creditavam sua adesão às TAs justamente por sentirem-se
bem na relação terapeuta-paciente nas Tas.
Os argumentos de acusação e defesa fundamentam-se em oposições. Se, no
Modelo Convencional, há impessoalidade, formalismo e distanciamento, nas
Terapias Alternativas existe a valorização da subjetividade, onde a relação é mais
profunda e humanizada, inclusive nos aspectos da espiritualidade. Além disso,
pelo Modelo Convencional o “ser humano é esquartejado”, enquanto nas TAs, o
terapeuta vê o paciente como um todo. Parte dessas afirmativas estão
subentendidas neste trecho de entrevista:
“Nas Terapias Alternativas, a relação terapeuta-paciente é
mais subjetiva, com ligação espiritual. Cria-se uma relação
de confiança, amizade e sentimentos bons. Impera a
verdade, o diálogo aberto, uma relação baseada na atenção
e não somente no resultado.” ( 27 a. Auxiliar de Enfermagem
).
Outras manifestações dessas oposições revelam que os entrevistado
percebem a dependência e o poder do médico sobre o paciente na Medicina
Convencional; já nas Terapias Alternativas, eles acreditam que ocorre uma
colaboração entre o paciente e o terapeuta; o conhecimento é compartilhado e
não existe hierarquia entre ambos. Esses posicionamentos foram assim
sintetizados por um dos pacientes entrevistados:
“Nas Terapias Alternativas, o terapeuta é um mero facilitador
do processo de cura, que é realizado pelo próprio indivíduo;
não existe, a princípio, hierarquia na relação; o
conhecimento é compartilhado e não reservado
exclusivamente para o terapeuta.” ( 22 a. Estudante ).
A última questão trabalhada nas entrevistas objetivava identificar alguma
modificação no estilo de vida das pessoas em decorrência de sua opção
9
preferencial por Terapias Alternativas. De todos os entrevistados, apenas dois
afirmaram não ter ocorrido qualquer mudança em suas vidas. Para eles a nova
opção terapêutica caracteriza-se simplesmente como um instrumento terapêutico,
como relata este entrevistado: “Não houve mudanças no meu estilo de vida,
apenas na forma de tratar os meus problemas de saúde, que agora eu trato com
homeopatia.” ( 50 a. Dona de Casa ).
Entretanto, a grande maioria dos entrevistados considerara que a mudança
de opção terapêutica engendrou importantes mudanças na forma de entenderem
suas vidas. Portanto, não só modificou suas práticas relacionadas à saúde, mas
também todo contexto de suas vidas, como fica claro nos posicionamentos
destes dois entrevistados:
“Houve uma mudança total. O mundo que eu vejo hoje é
muito diferente do de outrora, e isso se reflete diretamente
no meu modo de viver, nos meus valores, nos meus
relacionamentos, na minha alimentação, no meu estudo.” (
21 a. Estudante ). “Passei a amar a natureza (inclusive a
minha natureza humana) e passei a cuidar mais os meus
alimentos e a me exercitar também, tudo em prol do
equilíbrio. Passei a encarar a vida como integrante pleno
dela, com mais alegria e amor.” ( 49 a. Produtor de Teatro ).
Além de constatarmos que os entrevistados adotaram uma nova visão de
mundo, o que os motivou a levarem concretamente a uma vida mais saudável,
equilibrada física, emocional e espiritualmente através de uma relação harmônica
com a natureza, também pudemos constatar que os pacientes das TAs têm uma
noção de que sua relação com os terapeutas não os torna dependentes; pelo
contrário, sentem-se mais livres, em condições de tomar decisões sobre os
interesses da sua própria vida de forma mais autônoma. Esse tipo de
posicionamento está sintetizado nesta entrevista: “O que mudou foi eu me
conhecer melhor, contribuir no entendimento de que eu posso fazer opções para
minha vida e responder por elas. É uma questão de respeito pela construção
pessoal.” ( 42 a. Secretária ).
Os relatos apresentados até aqui são resultado de levantamentos de
dados, portanto, ainda sem qualquer abstração do contexto empírico pesquisado.
Esses dados foram apresentados para mostrar de que forma evoluiu o presente
estudo. Enquanto na primeira fase realizamos uma aproximação ao tema das
Tas, na segunda pretendemos recortar uma questão bastante específica,
buscando a definição de um objeto empírico, com base num quadro de
referência.
Entretanto a questão central que nos propusemos a trabalhar é a imagem
de corpo que emerge da ação terapêutica na Medicina Convencional e nas
Terapias Alternativas. Para abordar esse objeto, foi necessário definir primeiro
alguns conceitos, para, em seguida, construir categorias que pudessem fazer a
ligação entre o objeto e o contexto empírico.
Terceira Parte
10
Nas duas primeiras partes deste trabalho ( até aqui desenvolvido ),
trabalhamos com um conceito ampliado de TA, incluindo nele todas as terapias
situadas fora da Medicina Convencional, portanto, também as terapias do campo
espiritual-religioso. Para as próximas etapas da pesquisa, passaremos a restringir
esse conceito ao trabalho de terapeutas estabelecidos em “consultórios”, que
fazem uso de terapias não-alopáticas mas que situam fora do campo religioso,
como Umbanda, e Candomblé, ou Doutrinas Pentecostais, Carismáticas,
Espiritistas, etc. Essa divisão, embora completamente arbitrária e sem caráter
classificatório, apenas procura atender a um critério de seleção de amostra para
facilitar a comparação com os trabalhos médicos do Modelo Convencional.
Cabe-nos, igualmente, explicitar objetivamente o nosso conceito de
Medicina Convencional ou Oficial: com essa denominação, referimo-nos a uma
prática terapêutica baseada na alopatia, realizada por médicos, em sua maioria
divididos em diferentes especialidades, tendo sua atividade controlada por um
conselho que fiscaliza o exercício da profissão médica.
O nosso objetivo não é o de discutir as características de cada modelo
terapêutico, nem o de abordar as cosmologias que sustentam cada ação
terapêutica. É, isso sim, a partir de uma situação concreta em nossa sociedade,
onde existem terapeutas em atividade nos dois campos delimitados, explicitar
qual a imagem de corpo que emerge do discurso dos respectivos terapeutas.
Para tanto, formamos amostras de profissionais dos dois grupos mencionados,
entrevistando 9 médicos que atuam em Medicina Convencional e 13 profissionais
que praticam as Tas. Os componentes do primeiro grupo estão assim
distribuídos, por especialidade: dois, Clínica Médica; um, Medicina Interna; um
Cirurgião Geral; um Cardiologista; um Pneumologista; um Cirurgião Vascular; um
Hematologista; um Gineco-Obstetra. Para a formação do segundo grupo,
selecionamos 13 terapeutas, identificados com as seguintes Terapias
Alternativas: seis profissionais em Florais de Bach; três Cromoterapeutas; dois
Terapeutas de Reiki; um Homeopata; e um Massoterapeuta. Entretanto, desse
grupo apenas dois são médicos; os demais estão assim distribuídos: seis
psicólogos, um jornalista, um pedagogo e três sem formação universitária.
Para as entrevistas, elaboramos previamente seis questões abertas, que
foram apresentadas de forma semelhante a profissionais dos dois grupos
terapêuticos.
A seguir, apresentaremos os resultados e algumas discussões dessas seis
questões, centrando a atenção nos aspectos relativos à imagem de corpo que é
produzida pela ação terapêutica. Comecemos pelos depoimentos dos médicos
que atuam na Medicina Convencional.
A primeira questão apresentada aos entrevistados refere-se à relação
terapeuta-paciente. O discurso dos médicos entrevistados deixa transparecer a
idéia de que é importante uma boa relação médico-paciente, porque isso seria
fundamental para melhorar a eficácia dos tratamentos, como testemunha o
seguinte depoimento: “O médico que tem uma relação empática e honesta com o
paciente tem mais êxito no seu objetivo.” (Internista, 31 anos).
No entanto, o uso instrumental da RTP, objetivando ajudar o paciente na busca
de aliviar seus sofrimentos, parece mais um discurso de boas intenções, pois
levanta uma cortina de fumaça que não permite enxergar muita coisa.
Examinando um pouco mais a fundo a fala do primeiro grupo, aparecem claros
indícios de que o médico dispõe de uma condição privilegiada para fazer vários
11
exercícios de dominação sobre os pacientes, a começar pelo fato de o paciente
buscar ajuda do médico numa situação onde ele está em sofrimento. É um tipo
de situação que propicia ao médico estabelecer uma relação em que ele pode
ditar as regras, como nos fala um dos entrevistados:
“O médico tem que saber que recebe normalmente uma
pessoa fragilizada, assustada, e que busca no médico o que
ele imagina que tenha o conhecimento suficiente para poder
ajudá-lo nessa dificuldade. Então estabelece-se uma relação
assimétrica. Nós estamos numa posição de vantagem em
relação ao paciente, e nós precisamos nos dar conta de que
essa relação deve ser transformada na mais equilibrada
possível, no mais igual possível.” (Cirurgião Vascular, 55
anos).
O médico entrevistado revela uma percepção de que ele está inserido
numa instituição que, “a priori”, já lhe confere uma condição privilegiada. Ele,
conscientemente, precisa tomar cuidado para conceder ao paciente alguma
prerrogativa na RTP. Mas, se não tomar esse tipo de cuidado, ao que parece, o
paciente, que já está assustado e fragilizado, pode ficar, completamente
dependente do médico, onde a assimetria, reconhecida pelo entrevistado, pode
ser trocada pela seguinte relação hierárquica: o médico manda e o paciente
obedece.
Quando o médico se encontra nessa posição de vantagem, certamente
nem se dá conta que o seu discurso está impregnado de conceitos e concepções
que a maioria das pessoas das classes populares não consegue compreender.
Por outro lado, certamente, também é verdade que a maioria dos médicos não
conhece os significados de muitas expressões da linguagem popular. Com isso
não estamos afirmando que, quando os interlocutores da linguagem médica
erudita encontram-se com a linguagem popular na relação médico-paciente, não
possa ocorrer uma mútua compreensão, em circumstâncias muito especiais. Mas,
certamente, na maioria das vezes, desses encontros resulta uma dupla
incompreensão hermenêutica. Ou seja, ocorre um diálogo de surdos.
Outra condição que também permite ao médico exercitar mecanismos de
dominação na RTP pode ser traduzida pelo seguinte enunciado: Se desejar a
exclusão do sujeito nessa relação, o médico simplesmente pode dirigir sua
atenção a uma determinada parte do corpo do paciente, utilizando, para isso,
uma intervenção bastante objetiva, como aparece nesta entrevista:
“O médico deve saber ouvir e entender o paciente, sendo
neutro e livre de preconceito. Da mesma forma, deve saber
manter uma relação estritamente profissional com o
paciente, dirigindo a entrevista para o ‘problema dele’,
evitando um envolvimento profundo entre médico e
paciente.” (Cirurgião Geral, 36 anos).
Nesse caso, uma “relação estritamente profissional” deve ater-se aos
aspectos mais técnicos da relação, principalmente àquilo que pode ser
transformado em dados objetivos, em sinais, que podem facilmente ser
traduzidos e interpretados à luz da clínica médica, de corte organicista. Dessa
12
maneira, o instrumento propedêutico à disposição do médico dá-lhe a
prerrogativa de escolher, uma entre outras alternativas: trabalha com o paciente
em todas as suas dimensões, ou recorta assepticamente a parte que lhe cabe,
por sua condição de especialista de um órgão ou sistema do corpo humano.
Talvez é por isso que o médico precisa fazer um esforço para lembrar que
os órgãos ou partes do corpo humano não são peças mecânicas que precisam de
reparo, como sugere um dos médicos entrevistados: “Devemos tratar o paciente
não como uma máquina, ou como um conjunto de órgãos e sistemas, mas como
um ser que também pensa e tem sentimentos.” (Obstetra, 42 anos).
Apesar de sua boa vontade, esse médico não consegue disfarçar sua
inclinação de sobrevalorizar o locus corporal onde estão as manifestações da
doença, isso porque ele adiciona ao ser humano a condição de pensar e ter
sentimentos.
A segunda questão apresentada aos médicos entrevistados objetivava
identificar o tipo de relação de poder que existia na RTP. De acordo com o
posicionamento mais freqüente, manifestado sobre essa questão, a origem do
poder do médico provém do seu conhecimento científico, exemplificado por esta
entrevista: “O médico detém o conhecimento científico e pode ajudar o paciente
na cura de sua doença. O médico intervém e o paciente acata (por decisão
própria).” (Médico Internista, 31 anos).
O paciente, nesse tipo de situação, tem pouca perspectiva de estabelecer
uma relação de igualdade, porque o poder é conferido ao médico pelo seu
conhecimento científico. Para haver alguma partilha de poder, necessariamente o
médico precisaria partilhar seus “conhecimentos científicos” ao ponto de o
paciente estar capacitado a dividir o poder de decisão com o médico. Mais uma
vez o médico encontra-se em situação privilegiada, pois ele pode, ou não,
trabalhar na perspectiva de ajudar o paciente a assumir algum papel ativo na
RTP. Isso vai depender do interesse que o sistema tem sobre o tipo de pessoas
que devem emergir da RTP, como sugere outro médico entrevistado:
“Eu posso exercer esse poder de forma democrática,
fazendo com que o paciente compartilhe desta decisão, na
busca do que é melhor para ele, ou posso exercer de uma
maneira mais autoritária, determinando para ele o que deve
ser feito.” (Cirurgião Vascular, 55 anos).
Outros médicos entendem que o próprio paciente dá ao médico um
determinado poder, pois sua condição de doente prejudicaria sua capacidade de
autodeterminação, em conseqüência, o médico, nessas circunstâncias, precisaria
ser mais impositivo, como sugere este depoimento:
“O médico pode usar o poder que o paciente lhe confere de
uma forma construtiva. Algumas vezes o paciente regride,
então o médico deve assumir um papel patriarcal, pois um
paciente relapso ou que negue seu problema precisa de um
tratamento mais enérgico, utilizando a grande barganha do
médico que é a solução do problema.” (Hematologista, 29
anos).
13
Essa declaração nos parece muito elucidativa. Além de confirmar a
posição cômoda do médico na relação com o paciente, ainda dá àquele o direito
de fazer ameaças, que poderiam ser assim traduzidas: Você já está nesta
situação difícil; veja se segue estritamente tudo que eu mando; caso contrário,
não garanto a solução do problema. No caso, se o paciente já estiver em
“regressão” decorrente do problema da doença, é fácil imaginar como ele irá ficar
depois da intervenção enérgica do médico. Mais uma vez parece-nos que a
atuação do médico, quando se prpõe a subjugar o paciente, dispõe de uma série
de táticas, cada uma propícia para situações específicas.
Algumas dessas situações já foram apresentadas anteriormente, mas
ainda existem outras. Para exemplificá-las, apresentaremos mais uma dessas
situações. Trata-se da capacidade do médico de regular o distanciamento entre
ele e o paciente. A maioria dos entrevistados fala do uso da empatia como
instrumento eficaz para aproximar-se do paciente e conquistar sua confiança
para, então, poder prescrever seus tratamentos com chance de êxito. É isso que
sugere um dos entrevistados:
“Existe um poder proporcional à confiança que o médico
conquista do paciente. Por exemplo, se o paciente não
mostrar confiança no médico, dificilmente ele aceitará que o
médico indique algum procedimento de maior risco. Por
outro lado, se houver confiança, o paciente fará tudo o que
foi indicado.” (Pneumologista, 30 anos).
Através desse pronunciamento, o médico entrevistado demonstra uma
grande confiança em seu poder de persuasão em relação aos pacientes. Isso
também nos dá uma idéia da posição difícil do paciente, que facilmente pode ficar
preso nas teias do discurso médico. Algumas dessas teias podem ser delicadas,
pois confortam e amparam um paciente fragilizado; outras, porém, podem ser
grosseiras, pois precisam segurar forças brutas que porventura tentem escapar
desse emaranhado de relações.
Outra questão apresentada aos médicos entrevistados objetivava saber
quem deveria assumir a responsabilidade pela cura do paciente. O
posicionamento geral dos entrevistados é o de que a responsabilidade pela cura
é do próprio médico, como aparece nesta afirmação: “O médico, por ter
conhecimento científico que lhe permite, na maior parte das vezes, a cura, tem
extrema responsabilidade pela cura do indivíduo enfermo que lhe procura.”
(Cirurgião Geral, 36 anos). Mas, sobre essa questão, há várias ressalvas,
principalmente as que condicionaram a responsabilidade de cura à estrita
colaboração do paciente, como nos fala um dos entrevistados: “Ao paciente cabe
também ser esclarecido que é uma pessoa doente, sobre o prognóstico, sobre o
seu futuro; cabe assumir a responsabilidade de, junto com o médico, cumprir
aquilo que foi sugerido ou que o médico prescreveu, ou a maneira de como foi
orientado.” (Cirurgião Vascular, 55 anos).
O que fica bem salientado nesse ponto é a compreensão que os médicos
entrevistados têm sobre o processo de cura. O paciente apenas deve seguir as
orientações do médico; afora isso, é conveniente que não faça qualquer coisa. O
paciente deve depositar toda sua crença de cura nas mãos do médico. Quanto
14
mais ele se entrega ao médico, mais cresce o poder de cura deste, que assim
extirpa o mal alojado no corpo do paciente, isso se o paciente não atrapalhar.
Outra questão apresentada para os médicos entrevistados refere-se ao
significado de corpo do paciente para o médico. As respostas a essa questão
revelam que a maioria dos médicos entrevistados entende que o corpo do
paciente é dicotomicamente separado, havendo uma parte física e outra psíquica.
Exemplo disso é a seguinte afirmação: “O corpo do paciente é formado pela parte
física (órgãos, sistemas) e pela mente (parte psíquica).” (Obstetra, 42 anos). Por
outro lado, há entrevistados que entendem o corpo do paciente como sendo
somente a parte física, aquilo que tem materialidade, como sugere este
depoimento: “O paciente é formado por duas partes, a parte física, que podemos
chamar de corpo, e a parte psíquica, a mente do indivíduo. Elas agem
independentemente, mas em harmonia.” (Cirurgião Geral, 36 anos).
É sobre esse corpo físico que os adeptos dessas duas concepções atuam.
Esse é o objeto privilegiado de atuação do aparato médico. É aí que está
concentrada a essência do paciente da medicina científica. Todo conhecimento
de patologia, de clínica médica, de farmacologia clínica é exercitado neste locus
do ser humano, que, ao mesmo tempo, é o local onde se combatem as doenças
e o laboratório experimental em que se buscam novos conhecimentos, como
aparece nesta entrevista:
“O corpo do paciente seria assim um laboratório onde o
médico encontraria subsídios e elementos para o seu estudo
e também do ponto de vista objetivo de cura, é onde procuro
sinais e sintomas que me levem a concluir o diagnóstico de
uma determinada enfermidade.” (Clínica Médica, 43 anos).
Quando o objeto privilegiado do médico são os órgãos, os sistemas
orgânicos, enfim, o corpo material do paciente, a identidade do paciente, com sua
subjetividade, toda sua história cultural, social e econômica ficam
automaticamente excluídas do roteiro diagnóstico do médico. Mais uma vez fica
evidente que a atuação médica faz emergir a concepção de um corpo do paciente
esquadrinhado por órgãos e sistemas orgânicos, enquanto que o sujeito desses
órgãos, apenas assiste a cena em que o médico tenta reparar uma parte desse
corpo que está com problema.
Outra questão apresentada aos médicos entrevistados destinava-se a
saber sua opinião sobre a existência de algum tipo de energia no corpo das
pessoas. Todos os entrevistados responderam afirmativamente. As respostas
mais comuns expressam a idéia de que o tipo de energia que há no corpo das
pessoas é resultado de processos comandados por princípios científicos que
regem as relações da natureza, como sugere um dos entrevistados: “No corpo
das pessoas existe a mesma energia que rege as reações bioquímicas, que
obedecem às leis gerais da matéria.” (Hematologista, 29 anos). Entendem que
uma energia desse tipo não tem qualquer possibilidade de transcender o corpo do
paciente; conseqüentemente, reafirma o caráter de materialidade do corpo
orgânico do paciente, conceito que emerge do olhar “científico” do médico.
A última questão apresentada aos entrevistados médicos procurava saber
qual a posição deles sobre a comparabilidade entre os corpos ou sobre sua
singularidade. As respostas a essa pergunta revelam que apenas um dos
15
entrevistados acredita que há singularidade, tanto ao nível de corpo como ao de
mente das pessoas; portanto, as comparações seriam praticamente impossíveis.
Os outros entrevistados acreditam todos que o corpo das pessoas têm muitas
semelhanças, o que permitiria fazer comparações, como aparece nesta
entrevista:
“Sim, o organismo humano funciona de maneira muito
semelhante, comparando-se uma pessoa a outra. Existem
pequenas diferenças genéticas que levam à expressão de
caracteres diferentes, como fenótipo, sexo, doenças
hereditárias, etc.” (Cardiologista, 32 anos).
Isso faz sentido, na medida em que a maioria dos médicos entende o
corpo como uma unidade orgânica sem qualquer influência do meio externo.
Quando ele “olha” estômagos de pacientes diferentes, usa um instrumental
heurístico que não foi desenvolvido para verificar singularidades, mas
semelhanças ou regularidades nas manifestações de determinadas patologias.
Facilita-se, dessa forma, uma prática médica de caráter eminentemente social.
Quando o médico toma suas condutas, acaba prevalecendo um mecanismo
homogeneizado, que enquadra todos os pacientes na mesma perspectiva, como
sugere um médico através destas palavras: “Tecnicamente sim, ou seja, na hora
de prescrever, você uniformiza.” (Pneumologista, 30 anos).
Como já foi visto anteriormente, mais uma vez aparece a idéia de
separação entre corpo e espírito, conferindo um certo grau de autonomia para
cada parte. Alguns entrevistados acreditam que há diferenças entre esses dois
níveis, sendo o corpo uma unidade que pode ser comparada a outros corpos e
conferindo à mente um status de singularidade, como aparece nesta entrevista:
“O corpo, a unidade corpo, é semelhante entre as pessoas,
com pequenas diferenças anatômicas e fisiológicas que
variam entre os indivíduos, entre idades e sexo. Mas não se
deve esquecer que a unidade mente é singular e que o
homem é um todo, composto por essas duas unidades.”
(Medicina Interna, 31 anos).
Registrados todos esses depoimentos e feita a sua interpretação,
passaremos a apresentar agora as respostas dadas pelos terapeutas alternativos
às mesmas questões feitas aos médicos.
Sobre a RTP, a maioria dos entrevistados acha que essa é fundamental
para o êxito da sua atividade e, em geral, a maioria acredita que consegue
estabelecer uma boa relação com os pacientes. A convicção de que há um bom
relacionamento parece estar ligada à idéia de que há uma colaboração entre as
partes envolvidas, como aparece nesta entrevista:
“A RTP é muito boa. Com o tempo, tanto eu como o
paciente vamos nos conhecendo melhor e, a cada consulta,
vai ficando mais fácil ajudar a pessoa, pois o conhecimento
mútuo deixa as pessoas mais à vontade.” (F. Bach, 33
anos).
16
Percebe-se que o paciente deve assumir um papel ativo na relação, buscando
expor-se ao terapeuta que, por sua vez, também permite uma maior aproximação
com o paciente. Essa dupla abertura, permitindo uma abordagem mais próxima
dos problemas apresentados pelos pacientes, pode ser entendida como
necessária, pois algumas dessas terapias necessitam explicitamente trabalhar
com as manifestações objetivas e subjetivas do paciente, como sugere este
entrevistado:
“Na consulta do homeopata, é necessário que o terapeuta e
o paciente estabeleçam uma relação de franqueza mútua e
transparência, porque na anamnese homeopática é muito
pessoal e nós temos que estar abertos o suficiente para
poder compreender o conflito do paciente, para escolher o
medicamento.” (Homeopata, 30 anos).
A busca por dados mais sensíveis, relacionados à subjetividade do
indivíduo, necessita de um instrumental muito delicado, que não tem muito a ver
com exames sofisticados, e sim com uma alta sensibilidade pessoal. É esta que
permite apreender toda uma gama de manifestações, como sugere uma
terapeuta através das seguintes palavras:
“Tu tens que ser não o espelho, mas deixar o outro refletir
os problemas, as dificuldades, as limitações. Porque, se tu
vais querer entender , tu não vais poder trabalhar. Tu tens
que sentir. Às vezes, a gente não consegue nem se
entender. Então tens que sentir.” (Clínica Geral e T. Florais
de Bach, 38 anos).
A relação terapeuta-paciente descrita pelos entrevistados mostra uma
preocupação em resgatar os múltiplos aspectos dos problemas dos pacientes,
com ênfase nos conteúdos não objetivos da relação. Parece, portanto, que toda
essa preocupação com o imaginário e a subjetividade do paciente tem o objetivo
de resgatar a participação ativa do paciente nessa relação, fazendo com que ele
assuma tarefas na resolução de seus problemas de saúde, como sugere esta
entrevista:
“Na relação da Cromoterapia, nós buscamos sempre que
haja um equilíbrio para que a pessoa possa se ver de uma
maneira mais clara, mais honesta e mais consciente, e ela
então começa, a partir dessa visão que ela própria adquire
de si, a procurar se melhorar e a procurar fazer com que as
coisas na sua vida se encaminhem para levar a melhores
resultados em todas as suas atividades.” (Cromoterapeuta,
57 anos).
Quando perguntamos aos entrevistados se existia uma relação de poder
na RTP, a maioria manifestou que não considera que se trata de uma relação de
poder com o objetivo de dominar o paciente. O que acontece, na maioria das
vezes, é que o paciente se apresenta em posição de submissão; por isso, o papel
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do terapeuta deve ser o de evitar que se cristalize essa posição, conforme
aparece nesta entrevista:
“No momento que eu sou idealizada, eu não existo; quando
isso passa, fica mais fácil de se relacionar com o paciente.
Em função disso, no início do tratamento, o poder está mais
em mim, mas não porque eu queira; minha função é de não
corresponder a isto, para equilibrar a relação.” (T. Florais de
Bach, 33 anos).
O terapeuta precisa manter essa vigilância permanentemente, pois, se os
pacientes se tornassem submissos e dependentes, perder-se-ia grande parte do
potencial dessas terapias, já que estas pressupõem que o paciente assuma sua
parte na própria cura, como aparece nesta entrevista: “O que eu faço é como
uma ponte entre a homeopatia e o paciente. Além disso, sempre é necessário
que o homeopata estimule o paciente a ver seu papel de participante no
tratamento e no processo de cura.” (Homeopata, 30 anos).
Portanto, fica bastante evidente que os terapeutas alternativos
entrevistados evitam estabelecer uma relação de dominação com o paciente, isso
porque a submissão do paciente retiraria dele suas potencialidades, no sentido
de ativar suas próprias forças para curar-se. É por isso que esses terapeutas
buscam ativamente estreitar essa relação, promovendo um nível de interação
mais profundo, como aparece nesta entrevista: “Ocorre uma interação profunda
entre o terapeuta e o paciente; é completa desde que não haja resistência do
paciente; será uma relação completa como um todo.” (T. de Reiki, 49 anos).
Quando perguntamos aos entrevistados de quem era a responsabilidade
pela cura, apenas dois responderam que ela era dividida entre o terapeuta e o
paciente; os outros foram todos unânimes em afirmar que a responsabilidade
pela cura é do próprio paciente, como sintetiza um dos entrevistados:
“Numa relação de Cromoterapia, é o próprio paciente que se
cura; então ele tem a maior responsabilidade, porque ele
tem que ter muito mais vontade de ficar curado do que a
pessoa que está passando energia. A Cromoterapia enxerga
os males do físico e do espírito como deficiências que a
própria pessoa terá que vencer.” (Cromoterapeuta, 57 anos).
Os terapeutas alternativos deixam bem claro que eles têm dificuldade em
assumir esse tipo de responsabilidade, já que é inerente à natureza de sua
prática acreditar que o poder de cura está com o próprio paciente. O papel do
terapeuta seria a de um guia, um condutor ou facilitador, mas jamais o de
substituir o papel do próprio paciente. É este que deve encontrar o caminho da
melhora de seus problemas de saúde. Alguns terapeutas têm plena convicção de
que a responsabilidade pela cura é do paciente, tanto que afirmam que o
terapeuta não pode ser responsabilizado por erro profissional ou insuficiência de
resultados da terapia, como sugere esta entrevistada:
“Seria como responsabilizar um médico pelo fato do paciente
não ter ficado curado sem tomar a medicação que foi
prescrita. Assim são as pessoas que procuram as terapias
18
alternativas: se elas não tiverem a vontade de mudar, de
alcançar o equilíbrio, não vão conseguir encontrar aquilo
que buscam. O terapeuta apenas orienta.” (T. Reiki, 53
anos).
Ao responder a questão “qual é o significado de ‘corpo do paciente’ para o
terapeuta”, a maioria dos entrevistados manifestou-se dizendo que somente
existe um corpo, como um ser total, que é percebido em diferentes dimensões,
como o mental, emocional, espiritual, divino, monádico. Essas diferentes
dimensões do ser humano formariam um conjunto harmônico e equilibrado de
energias que seriam a base da vida, como sugere o trecho desta entrevista: “O
corpo do paciente é um santuário de vida, no qual os terapeutas auxiliarão a
reacender a chama divina, fortalecendo e equilibrando a energia no ser físico e
espiritual.” (Cromoterapeuta, 58 anos).
Ao perguntarmos aos entrevistados se existe algum tipo de energia no
corpo dos pacientes, obtivemos uma resposta unânime: todos os entrevistados
acreditam que há energia no corpo dos pacientes. Há apenas pequenas
diferenças quanto ao tipo dessa energia. Alguns acreditam que a materialidade
do corpo é um estágio energético: “O corpo é energia pura condensada. Há
outros corpos, onde a energia não é tão condensada: o corpo astral, o mental, o
emocional.” (T. de Florais de Bach, 33 anos). A energia que os terapeutas
alternativos percebem no corpo dos pacientes, embora impregne o ser também o
transcende a ele, como sugere esta entrevista:
“Existe um tipo de energia transcendental no corpo das
pessoas. O corpo etérico é compreendido como sendo uma
duplicata do corpo físico. Ele é energia. Se tirarmos uma foto
Kirlian, mostraremos a luminosidade que irradia das coisas
vivas.” (Cromoterapeuta, 58 anos).
Para responder à pergunta se o corpo de uma pessoa pode ser comparado
ao de outra, ou se cada corpo é singular, apenas dois entrevistados responderam
que, do ponto de vista biológico, existem semelhanças entre o corpo das
pessoas, mas essa semelhança não seria suficiente para estabelecer
comparações válidas, como aparece nesta entrevista:
“Eu te diria que biologicamente os corpos são semelhantes.
Existem os mesmos órgãos, as mesmas funções, mas cada
ser é um universo sozinho. É uma individualidade, um
microcosmo
que
interage
com
o
macrocosmo.”
(Cromoterapeuta, 58 anos).
Todos os outros entrevistados afirmaram que nem sequer ao nível
orgânico existem semelhanças, sendo que as próprias células seriam diferentes,
conferindo singularidade a todos os corpos. É isso que sugere esta entrevista:
“Eu acho que cada célula é diferente da outra, mesmo estando num mesmo
organismo. O que faz essa diferença é a energia das pessoas. Eu acho que nada
pode ser comparado.” (T. de Florais de Bach, 32 anos).
Um outro entrevistado fundamentou a sua resposta, justificando por que
não era possível fazer comparações válidas entre o corpo das pessoas. No
19
entendimento dele, cada corpo tem uma história de vivências com o mundo
externo, o que marca o corpo de forma tão particular que cada experiência
corporal seria única: “Eu acho muito difícil de comparar uma pessoa a outra, em
função das experiências que ela traz, da vivência que ela tem na família, na
escola, no mundo em si. Chega para cada um uma outra forma de impressão.”
(T. de Florais de Bach, 38 anos).
Como já pudemos verificar anteriormente, os terapeutas alternativos têm
uma visão de corpo onde não aparece a separação entre o corpo e a mente.
Portanto, é o corpo todo que fica marcado, fica com as impressões da vivência
social, fazendo com que a intervenção terapêutica tenha que ser rigorosamente
individualizada, como sugere esta frase de uma das entrevistas: “Nenhuma
pessoa pode ser comparada a outra; o tratamento neste sentido torna-se
extremamente personalizado.” (Cromoterapeuta, 49 anos).
Análise Comparativa dos Resultados
A ação terapêutica de profissionais de saúde vinculados à MC e a de
outros ligados às TAs fazem emergir uma imagem de corpo do paciente que tem
diferenças importantes.
Na MC, a imagem de corpo do paciente que resulta da ação terapêutica é
a de uma pessoa fragilizada frente a uma instituição que é detentora de muitos
instrumentos de dominação, entre os quais destaca-se a possibilidade de excluir
o sujeito da relação médico-paciente, mantendo uma relação exclusivamente com
uma parte do organismo do paciente. Importa ressaltar que essa relação não
costuma ser mediada por categorias da relação pessoal, mas por um instrumental
tecnológico muito desenvolvido, o que garante ao médico um alto grau de
impessoalidade e procedimentos estandardizados.
Uma das conseqüências imediatas dessa prática é que dela ficam
excluídas todas as manifestações da subjetividade, de tal sorte que as marcas e
impressões da história pessoal do paciente não exercem qualquer papel no
quadro nosológico a ser investigado pelo médico. Nesse tipo de relação, o
paciente fica muito dependente do médico e, até mesmo, é subjugado por ele.
Portanto, o paciente perde completamente sua identidade como um sujeito
global, dificultando sua manifestação como uma pessoa autônoma. Colnfigura-se,
assim, uma relação de poder verticalizada, onde o médico tem à disposição todos
os instrumentos de dominação; ao doente, por sua vez, é reservado o papel de
um paciente que deve submeter-se docilmente a toda intervenção do médico,
esperando que este assuma todas as responsabilidades e resolva seus
problemas.
A imagem de corpo resultante da ação dos médicos convencionais
corresponde a do corpo do homem da modernidade. Ou seja, trata-se de um
corpo esquadrinhado, dominado dentro das relações de produção capitalista do
tipo teylorista. De acordo com esse modelo, as linhas de produção têm
necessidade de um trabalhador que cumpra sua tarefa mecanicamente,
produzindo uma pequena parte do produto, sem ter noção de todo o processo de
produção, isso porque a produtividade está baseada na divisão de tarefas, onde
cada um deve fazer a sua parte sem preocupar-se com o todo.
Quando esse trabalhador fica doente, ele precisa ou ser substituído, ou ser
reparado. Como aos meios de produção interessa um trabalhador que execute
20
tarefas previamente definidas, portanto, sem a participação de um “sujeito”, sua
reparação leva em consideração a condição de um homem-máquina;
conseqüentemente, exige-se um reparo das funções orgânicas avariadas, não
importando as capacidades de um sujeito pensante, com uma subjetividade
própria e alvo de múltiplas influências que podem interferir na sua condição de
doente. Apenas interessa recolocar aquele trabalhador na sua função de executar
uma tarefa mecânica. Assim, o aparelho médico, segundo RIBEIRO DA SILVA4,
“assegura a reprodução ideológica das relações de produção numa sociedade”,
que pode ser válido para qualquer fase de evolução das relações de produção
capitalista.
Nas terapias alternativas, a imagem de corpo do paciente que emerge da
ação terapêutica é a de uma pessoa que está mais inteira na relação, projetando
a imagem de um ser integral, sem fazer muita distinção entre a parte mental,
subjetiva, e a parte orgânica do paciente. Trata-se de unidades altamente
integradas, sem qualquer possibilidade de separação. O paciente carrega consigo
as vivências de toda a sua história, que são muito valorizadas pelo terapeuta para
fazer um diagnóstico e estabelecer um tratamento. O papel do paciente não é
passivo. Ele deve assumir concretamente grande parte da responsabilidade pela
cura. Tudo isso projeta um sujeito que deve capacitar-se permanentemente para
assumir papéis importantes na relação com os terapeutas e, principalmente, na
condução dos rumos dos seus problemas de saúde e, por que não, dos rumos de
sua própria vida.
O tipo de poder que se estabelece na relação dos terapeutas alternativos
com os pacientes é mais horizontalizado, dividindo as responsabilidades entre o
terapeuta e o paciente. Dessa forma, o poder fica mais repartido, fazendo com
que a pessoa singularizada como um sujeito ativo no processo de cura atinja um
certo grau de autonomia.
A imagem de corpo resultante da ação terapêutica das terapias alternativas
não se adapta ao arquétipo de homem engendrado nas relações de produção
capitalista com características teyloristas. Trata-se da imagem de um corpo que
projeta um sujeito não-fragmentado, constituído como uma totalidade, que tem
vontade e necessidade de participar de forma diferente do processo de produção.
Ele está apto a participar ativamente em todas as fases da formação de um
determinado produto.
Esse tipo de sujeito participa da discussão das necessidades
mercadológicas, do planejamento e da execução de todas as tarefas necessárias
pra fazer um produto. A relação hierárquica e burocratizada é substituída por uma
relação de colaboração e parceria, onde as chefias precisam exercer um domínio
muito mais inteligente e democrático sobre os trabalhadores. A relação autoritária
e vertical é substituída pelo diálogo, onde a opinião do “produtor” é levada em
consideração. Em consequência, o trabalhador não é um sujeito alienado no
trabalho.
Esse novo processo de trabalho, a priori, já necessita de pessoas melhor
treinadas e, intrinsicamente ajuda a desenvolver a individualidade do trabalhador.
Ou seja, necessita de trabalhadores inseridos num processo que fortalece a
autonomização do sujeito do trabalho. Necessita também de novas técnicas de
4
RIBEIRO DA SILVA, M. G. Prática Médica: Dominação e Submissão. Zahar Editores, RJ, 1976.
21
gerência de recursos humanos para a produção que objetivem elevar os níveis de
produtividade exigidos pelo mercado globalizado.
Num contexto desse tipo, quando um trabalhador fica doente, precisa de
uma reparação qualitativamente diferente da adotada para um trabalhador
inserido numa relação de produção teylorista. O aparelho médico não deve
apenas cuidar de uma parte do corpo que, de acordo com a concepção
tradicional, estaria doente. Ele precisa cuidar de um sujeito que pensa, que tem
subjetividade constituída de emoções, sentimentos, que são fundamentais
também para esse sujeito ter bom rendimento no trabalho inscrito num processo
de produção em que a fase de acumulação do capital é flexível, e diferente das
relações de produção da modernidade fordista. Só assim é possível ingressar na
contemporaneidade5, que adota novas formas de gerenciar as relações
deprodução, tais como os programas de qualidade total ou toyotismo. Com base
nessas considerações, embora com muita cautela, podemos especular que as
novas tecnologias da organização social da produção, com sua necessidade de
trabalhadores mais ativos, participativos, e que busquem algum grau de
autonomia e exercitem sua individualidade, devem engendrar e estimular um
novo aparelho médico, adaptado a essas novas necessidades.
Como este estudo ainda é inicial e exploratório, seria muito temerário falar
em conclusões. Portanto, em vez de conclusões, levantamos duas questões que
merecem uma investigação mais profunda.
A primeira questão, já abordada acima, refere-se à possibilidade de discutir
mais profundamente a relação que existe entre os modelos terapêuticos e a
6
organização social da produção. Entre os autores examinados - LUZ , RIBEIRO
7
8
DA SILVA , FOUCAULT - há uma tendência clara no sentido de considerar que,
na idade moderna, a medicina científica tenha sido engendrada pelas relações de
produção capitalistas. Assim, acreditamos que seja possível relacionar as
relações humanas do modelo teylorista de produção com as realações humanas
resultantes da ação médica da medicina científica moderna ( que nós chamamos
de medicina convencional ), uma vez que encontramos alguns indícios que
mostram semelhanças entre as unidades comparadas. Ou seja, constatamos
provisoriamente que o modo de produção teylorista produz e reproduz, na prática
médica convencional, um padrão de relacionamento humano hierarquizado, onde
o trabalhador e o paciente são esquadrinhados numa relação de poder
verticalizada.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, podemos supor que, se é possível
identificar o mesmo padrão de relacionamento entre o modo de produção
teylorista e a prática da medicina convencional, também deve ser possível
estabelecer o mesmo tipo identidade entre o relacionamento humano da
qualidade total e o das terapias alternativas. Esse raciocínio, somado aos dados
examinados, nos encoraja a ampliar esta investigação. Ou seja, pareceu-nos que
as várias semelhanças encontradas precisam ser melhor estudadas. É claro que
os indícios já verificados permitem visualizar um sujeito diferente. Nas relações
55
IANNI, O. Globalização: Novo Paradigma das Ciências Sociais IN: ADORNO, S.(Org.). A Sociologia
entre a Modernidade e a Contemporaneidade. Ed. da UFRGS, PoA, 1995.
O autor utiliza este conceito como sendo transicional entre o moderno e o pós-moderno.
6
LUZ, M. T. Racionalidades Médicas e Terapêuticas Alternativas, Cadernos de Sociologia, Vol. 7, 1995.
7
RIBEIRO DA SILVA op. cit.
8
FOUCAULT, M. O nascimento da medicina social In: Microfísica do Poder. Ed. Graal, RJ, 1986.
22
de produção pós-teyloristas, e nas terapias alternativas, configura-se uma relação
horizontalizada, mais democrática, dando lugar a um indivíduo mais inteiro, capaz
de participar das decisões que interessam a sua vida. Essa maneira de perceber
os fatos aponta, portanto, para uma ruptura. Enquanto que a imagem de corpo do
paciente, na medicina convencional, é a de um corpo dominado e esquadrinhado,
das terapias alternativas emerge uma imagem de corpo mais livre, com alguma
autonomia, que procura resgatar a subjetividade perdida na medicina
convencional e contribui para a concepção de um ser humano mais integral.
Mesmo assim, é necessário, que se testem essas hipóteses com mais controle.
A
segunda
questão
que
pretendemos
aprofundar
refere-se
especificamente ao tipo de sujeito social que emerge da ação das terapias
alternativas. Ao que parece, numa análise preliminar, a concepção de pessoa que
resulta dessa ação terapêutica, vincula-se à idéia de indivíduo enquanto valor
fundamental. De acordo com tal concepção, os sujeitos atingiriam um grau de
autonomia que lhes permitiria/determinaria possibilidades de ação individual com
relativa liberdade em relação à ordem social estabelecida. Embora esse
entendimento, encontre gurida em RUSSO9, que analisou as Terapias Corporais
do Campo Psicológico como um movimento terapêutico alternativo, pode ser
problematizado através de duas abordagens diferentes. Numa perspectiva
histórico-estrutural, a individualização poderia estar ligada a uma necessidade
intrínseca do estágio atual de evolução do capitalismo, com suas novas
tecnologias de administração de recursos humanos, alto uso da informatização,
surgimento de novos e revolucionários materiais e, principalmente, com a
concorrência sendo levada a todos os mercados de forma globalizada. Desse
processo é que surgiria a necessidade de sujeitos mais “individualizados”, que
deveriam dar conta das novas tarefas do processo produtivo em curso.
por outro lado, mudando o enfoque para uma perspectiva mais micro, o
fenômeno da individualização e o rompimento com a perspectiva hierarquizante
10
poderiam ser entendidos, com base em KOHLBERG , como uma passagem do
nível de consciência moral convencional, que se caracteriza pela conformidade e
preservação da lei e da ordem, para o nível de consciência moral pósconvencional, que se caracteriza por relativizar as normas e orientar a conduta
dos indivíduos por uma ética de caráter universal. Por esse entendimento, o
processo de mudança estaria vinculado a procedimentos pedagógicos, onde a
educação desempenharia papel fundamental na passagem da vinculação à
hierarquia para a individualização dos sujeitos. Dessa forma, as terapias
alternativas ( excluídas aí as terapias do campo religioso ) desempenhariam uma
função facilitadora para o desenvolvimento dos sujeitos em direção a uma relativa
autonomização, relativizando a importância de “um substrato cultural” localizado
para explicar a grande difusão de terapias alternativas.
9
RUSSO, J. O corpo contra a palavra. UFRJ Ed. RJ, 1993.
KOHLBERG, L. Stage and sequence: The cognitive developmental approach to socialization. In:
Handbook of socialization theory and research. Daved Goslin. Ed. Rand Mc Nally e Company, EUA, 1969.
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