A IMAGEM DE CORPO DO PACIENTE QUE EMERGE DAS PRÁTICAS TERAPÊUTICAS CONVENCIONAIS E ALTERNATIVAS Autor: Odalci José Pustai Prof. Aux. FAMED/UFRGS, Médico e Mestrando em Sociologia G. T. 14 - Pessoa, Corpo e Doença XX Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, 22 a 26 de outubro de 1996. A IMAGEM DE CORPO DO PACIENTE QUE EMERGE DAS PRÁTICAS TERAPÊUTICAS CONVENCIONAIS E ALTERNATIVAS Introdução O presente estudo baseia-se em dados coletados por alunos do 7º semestre da disciplina de Saúde e Sociedade da Faculdade de Medicina da UFRGS. Seu objetivo principal é o de analisar uma das questões mais importantes do levantamento realizado: elucidar, através da comparação, a imagem de corpo do paciente ligada ao “olhar” terapêutico da Medicina Convencional ( MC ) ou ligada a algumas terapias alternativas ( TAs ). Após analisar a imagem de corpo que emerge da ação terapêutica convencional e alternativa, vamos discutir alguns possíveis significados de cada imagem de corpo encontrada no material empírico do presente levantamento. Todavia, também serão apresentados dados abordando outros aspectos relacionados às terapias alternativas. Como se trata de uma abordagem ainda inicial do tema proposto, justificase sua discussão teórica em nível menos profundo. O trabalho dos alunos do 7º semestre, sob a nossa orientação, consistiu em realizar vários levantamentos em torno do tema das TAs. Para isso, foram consideradas TAs todas as opções terapêuticas excluídas da Medicina Convencional. Por exemplo, o uso de chás caseiros somente era considerado como TA quando o paciente o usava fora da lógica da Medicina Convencional. O presente trabalho está dividido em quatro partes: Na primeira parte, apresentaremos alguns dados relativos ao uso social de terapias alternativas, em diferentes situações sociais. Na segunda parte, explicitaremos dados obtidos com pacientes que têm opção preferencial por terapias alternativas. Na terceira parte, caracterizaremos por comparação os dados relativos a entrevistas com médicos convencionais e com terapeutas alternativos. E, na quarta e última parte, discutiremos os dados, tentando realizar algumas extrapolações. Primeira Parte No primeiro momento deste trabalho, preocupamo-nos em verificar se as TAs tinham alguma importância em termos de uso social na Cidade de Porto Alegre. Com esse objetivo, entrevistamos pessoas adultas, sem distinção de sexo ou escolaridade, pertencentes a diferentes grupos sociais. Assim, procuramos 20 pessoas usuárias costumeiras de restaurante natural. Dessas, apenas 3 mencionaram que faziam uso exclusivo da Medicina Convencional. Apuramos também que 11 faziam o uso combinado de TAs e 6 tinham opção preferencial por TAs. Destas, as mais citadas foram Homeopatia e Fitoterapia. Em outro momento, constatamos que de 20 usuários freqüentadores de churrascaria, a metade era adepta exclusivamente da Medicina Convencional. Dos outros 10, apenas 1 manifestou opção preferencial por TAs, enquanto que os nove restantes se utilizavam dos dois modelos. O tipo de TA mais citado novamente foi a Homeopatia e Fitoterapia. Numa outra situação, foram ouvidos 20 usuários do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Desses, somente 8 usam a Medicina Convencional e 12 utilizam os 2 dois modelos, mas nenhum manifestou opção preferencial por TAs. As TAs mais mencionadas foram Homeopatia e Benzedeira. Outro recorte foi feito com pessoas moradoras da vila 1º de Maio, situada na periferia de Porto Alegre. Dos 20 entrevistados, 13 fazem uso de ambos os modelos pesquisados, e 7 usam exclusivamente a Medicina Convencional. Nenhum dos entrevistados manifestou uso preferencial por TAs. As TAs mais mencionadas foram Homeopatia, Benzedeiras e Umbanda. Também foram entrevistados 20 estudantes universitários. Desses, 11 utilizam TAs juntamente com a Medicina Convencional, e 1 manifestou opção preferencial por TAs. As TAs mais citadas pelos estudantes foram a Homeopatia, Reiki, Yoga e Fitoterapia. Ao lado da busca dos dados acima relatados, realizamos outro 1 levantamento orientado pelo critério classificatório de BRONFMAN , com pessoas distribuídas em diferentes classes sociais. Nesse levantamento, as entrevistas eram dirigidas para o grupo familiar, ampliando o alcance das respostas. Os resultados foram os seguintes: Classe Social Usuários de TAs Burguesia 2 Nova Pequena Burguesia 5 Pequena Burguesia Tradicional 4 Proletariado 4 Sub-Proletariado 3 Total 18 Usuários da Medicina Convencional 2 3 3 9 2 19 Total 4 8 7 13 5 37 Apenas uma pessoa, das 18 que utilizam TAs, tem opção preferencial por TAs. De um total de 137 pessoas entrevistadas, 81 fazem uso de algum tipo de TA, o que corresponde a 59,12% da amostra. Desse grupo, 9 pessoas manifestaram opção preferencial por TAs, o que corresponde a 6,56% de toda amostra, e 56 pessoas manifestaram utilizar somente a Medicina Convencional, o que corresponde a 40,87%. Certamente os dados obtidos por esses levantamentos não têm muita validade para fins de cálculos estatísticos, a partir dos quais se pudesse fazer extrapolações. No entanto, serviram para sedimentar a convicção de que o fenômeno das TAs está presente no meio pesquisado, mesmo sem podermos precisar sua importância do ponto de vista estatístico. Além disso, os dados encontrados permitem-nos sugerir que deveriam ser efetuados estudos estatisticamente controlados que, certamente, confirmariam uma tendência já 2 observada em outros países. Na França, LAPLATINE e RABEYRON relataram uma pesquisa segundo a qual 49% da população geral da França já utilizou alguma vez TAs. Os mesmos autores também relatam o sucesso editorial de livros e revistas especializadas que tratam de TAs. 1 BRONFMAN, M. LOMBARDI, C. et al. Operacionalização do conceito de classe social em estudos epidemiológicos. Rev. Saúde Pública, SP. 1988, p. 253-265. 2 LAPLATINE, F. RABEYRON, P. Medicinas Paralelas Ed. Brasiliense, SP, 1989. 3 Esse sucesso também acontece por aqui. Nas duas últimas edições da Feira do Livro em Porto Alegre, os livros disparadamente mais vendidos pertenciam ao campo das Terapias não Convencionais, dos mais variados tipos. Também nos EUA, segundo EISEMBERG 3, um em cada três pacientes usa rotineiramente Terapias Alternativas. Ainda, segundo o mesmo autor, no ano de 1990, nos EUA, foram realizadas 425 milhões de consultas em Terapias não Convencionais, contra 388 milhões de consultas ambulatoriais com médicos convencionais. Com os dados apresentados preliminarmente, realizamos um reconhecimento, ainda que precário, da inserção das TAs em nosso meio social. Nessa fase exploratória da pesquisa, predominou o levantamento quantitativo de dados. Entretanto, ao mesmo tempo em que era aplicado um questionário fechado, já eram trabalhadas algumas questões que, posteriormente, serviriam de guia para uma abordagem qualitativa. Até esse ponto, as TAs constituíam-se em um tema amplo, que, necessariamente, precisava de um recorte mais específico, na busca da construção de um objeto de investigação. Segunda Parte O fio condutor, de nossa tentativa de estabelecer um objeto que tivesse base empírica e alguma significação teórica foi buscado em uma observação mais acurada das pessoas que têm opção preferencial por TAs. Em levantamento anterior, tínhamos percebido que essas pessoas apresentavam justificativas bem fundamentadas, para a sua opção, ou seja, a maioria delas tinha muita disposição para defender, de várias formas, sua opção terapêutica. Assim, já nos tínhamos apropriado de algumas indicações empíricas úteis para questões que poderiam ser definidas previamente para o nosso trabalho de campo. Dessa maneira foram elaboradas sete questões, que deveriam ser apresentadas de forma aberta para pessoas que manifestassem opção preferencial por TAs. Essas questões eram as seguintes: 1. Antes de procurar TAs, como você tratava seus problemas de saúde? 2. Que tipos de problemas você identificava no atendimento médico convencional? 3. O que levou você a procurar tratamento alternativo? 4. Houve algum fato importante na sua vida que o levou a mudar de opção terapêutica? 5. Que valores você identifica nas TAs que foram importantes para você? 6. Trace um paralelo entre o RMP do Modelo Médico Convencional e das TAs. 7. Houve alguma mudança no seu estilo de vida nessa passagem de opção terapêutica? Essas questões foram levadas a 34 pessoas que manifestaram opção preferencial por TAs. Para compor essa amostra, foi utilizada a técnica da “bola de neve”. E, para determinar o tamanho da amostra, foi utilizado o critério de esgotamento das questões, ou seja, quando não surgiam mais respostas novas e as já conhecidas esboçavam tendências claras, concluia-se que a amostra era suficiente para realizar-se uma análise qualitativa. 3 EISEMBERG, D. M. KESSLER, R. D. FOSTER, C. et al. Unconvencional medicine in the United States. N. Engl. J. Med. 1993; 328: 246-52. 4 A seguir, apresentaremos as principais respostas dadas às questões acima listadas e iniciaremos uma análise preliminar, objetivando a construção de questões para a fase seguinte da pesquisa. Para a questão, “Antes de procurar TAs, como você tratava seus problemas de saúde?”, a resposta foi unânime. Todos os entrevistados, antes de procurarem as TAs, tratavam-se com a Medicina Convencional. Disso podem ser depreendidos dois itenspara discussão: o primeiro indica que essas pessoas realizaram uma mudança importante em sua vida, já que antes tratavam seus problemas de saúde com médicos convencionais; isso indica que, por alguma razão, abandonaram esse modelo para procurar outra opção terapêutica. O outro item dessa questão mostra que a opção por TAs não vem de berço, ou seja, não foi adquirida com a família. Isso reforça a idéia de que o crescimento das Terapias Alternativas é relativamente recente em nosso meio social. Conseqüentemente, a opção preferencial por Terapias Alternativas igualmente deve ser um fenômeno bastante novo. Para explicitar as respostas da segunda questão, “Que tipo de problemas você identificava no atendimento médico convencional?”, recorremos a uma leitura horizontal. Assim, conseguimos identificar os principais posicionamentos, apresentados a seguir. Os problemas mais freqüentemente citados situam-se na esfera da relação médico-paciente ( RMP ). Um dos pacientes entrevistados expressou o seu relacionamento com o médico convencional nos seguintes termos: “Era um relacionamento superficial, frio, seco; o médico mantinha distância e, por isso, não me transmitia segurança.” (50 anos, jornalista). Muitos outros entrevistados queixaram-se da impessoalidade na relação com os médicos. Isso dificultava enormemente que fossem abordados problemas relacionados à subjetividade dos pacientes. Na percepção de muitos entrevistados, os médicos convencionais preferem dar ênfase a outros aspectos da relação, conforme demonstra o seguinte depoimento: ”Os médicos não sabem ouvir e conversar com a gente. Somente pedem exames e dão remédios.” (21 anos, estudante). Isso traduz uma idéia de que a relação não é propriamente direta entre o médico e o paciente, mas é mediada por elementos que, quando introduzidos nessa relação, acabam assumindo uma importância muito grande. Outra dificuldade apontada pelos entrevistados refere-se à idéia de que os médicos convencionais dirigem sua atenção apenas para partes do corpo, como indica a fala da seguinte entrevista: “Normalmente os médicos examinam e se interessam apenas por uma parte do corpo, como se fosse parte isolada do resto do organismo.” (25 anos, pedagoga). Dessa forma, muitos entrevistados entendem que se perde a integridade da pessoa, que fica fragmentada pela intervenção médica convencional. Isso está sintetizado nesta entrevista: “Na Medicina Convencional, no relacionamento com os médicos ocorre a perda da integridade do ser, do sentido de totalidade orgânica, psíquica e espiritual.” (37 anos, Artista Plástico). Outra questão bastante recorrente, encontrada nas entrevistas, considera que o atendimento da Medicina Convencional,embora esteja centrado na doença, não procura pesquisar profundamente as suas causas, como aparece neste depoimento: “A Medicina Convencional somente vê a doença e não se preocupa com o indivíduo. Por isso, o médico quer resolver 5 o problema que se apresenta no momento, e não tem preocupação de averiguar as causas que levaram àquela doença.” (27 anos, Auxiliar de Enfermagem). Outra questão que aparece com certa freqüência refere-se à desconfiança da intervenção do Médico Convencional, que, através do uso de tratamentos muito intervencionistas, poderia melhorar uma coisa, mas trazer prejuízos para o resto do organismo, como aparece nestas duas frases de entrevistas diferentes: “Eu acredito que a solução farmacológica dada pelo médico não cura a causa básica, e abre um rombo em outro lugar.” (24 anos, Bancário). “Na Medicina, eu me entupia de remédio, o que faz mal para a saúde. Tem efeitos colaterais, trata uma coisa e dá outra.” (21 anos, Estudante). Uma última questão que adquire certa importância traduz a idéia de que a Medicina Convencional assume a sua forma - a de não querer resolver os problemas na sua essência - por uma questão econômica, pois assim o paciente sempre teria que retornar para continuar seus tratamentos, como fica claro nesta entrevista: “O médico não está muito interessado em tratar as causas da doença, pois assim sempre terá o paciente em seu consultório de quem irá tirar parte de seu sustento.” (50 anos, Dona de Casa). Perguntados os pacientes sobre os motivos que os levaram a procurar tratamentos alternativos, tivemos basicamente três tipos de posicionamentos. Conforme o posicionamento mais freqüente, os entrevistados manifestaram que sua motivação estava relacionada com a idéia de buscar um modelo de atendimento para seus problemas de saúde mais adequado e adaptado em relação a sua nova visão de mundo, como aparece nesta entrevista: “Fui mudando minha maneira de pensar e ver o mundo e as coisas em geral, motivado por distúrbios alimentares que me fizeram procurar uma alimentação mais pura, mais saudável. Uma mudança espiritual profunda da minha pessoa levou a me identificar com outras modalidades terapêuticas que davam mais respostas com tratamentos alternativos, menos agressivos e com maior respeito ao paciente.” ( 44 a. Promotora de Justiça ). Nessa fala, podemos perceber claramente que houve uma mudança no modo de pensar, o que levou a entrevistada a procurar um tipo de terapia de acordo com sua nova visão de mundo. Um outro grupo de pacientes indicou, como razão principal para procurar nova opção terapêutica, a falta de uma resposta condizente para o seu problema ou a falhas no atendimento convencional, como aparece nesta entrevista: “A ineficiência da ‘Medicina Tradicional’ para os meus casos de doença e intoxicação causada por medicamentos que saravam um lado e estragavam o outro.” ( 26 a. Comerciária ). Nessa resposta está implícita uma certa desconfiança da entrevistada em relação ao tipo de eficiência dos tratamentos farmacológicos prescritos pela Medicina Convencional. 6 O último grupo respondeu a questão em pauta dizendo que a busca por um outro tipo de terapia tinha sido aconselhada pelos pais ou por algum amigo. Questionados os entrevistados se houve algum fato importante em sua vida que os tinha levado a mudar de opção terapêutica, a grande maioria respondeu negativamente. Apenas dois entrevistados mencionaram um fato que teria sido decisivo para mudarem de opção. Um deles atribuiu a sua escolha ao stress do vestibular, e o outro, a uma crise existencial muito forte, que havia determinado mudanças profundas na sua vida, inclusive influenciado sua nova opção terapêutica. Muitos dos entrevistados, ao comentarem essa questão, relataram que essa mudança fazia parte de um processo mais amplo, no qual uma das coisas mais importantes era o desejo de ter e a vontade de buscar uma vida mais saudável e natural, como aparece nesta fala de um dos entrevistados: “Não houve exatamente um fato, mas foi um processo que iniciou aos 17 anos de idade. Foi uma busca de uma alimentação e um estilo de vida mais saudável e conservador mais próximo da natureza. Foi aí que encontrei a Cooperativa Ecológica Colméia, que foi e é muito importante pra mim.” ( 37 a. Artista Plástico ). Quando perguntamos aos entrevistados que valores eles identificavam nas TAs importantes para eles, tivemos dois tipos de respostas. O primeiro dava ênfase para as finalidades próprias das TAs, e o segundo, ao papel do paciente no processo de cura. Quanto às finalidades próprias das Tas, os entrevistados nos forneceram um conjunto de características que podem ser divididas em três subgrupos. O primeiro desses subgrupos argumenta que essas TAs teriam um arsenal terapêutico não-agressivo, como aparece nesta entrevista: “A possibilidade de tratar os mesmos problemas que tratava antes com a alopatia, com medicamentos que não agridem tanto o organismo da gente.” ( 43 a. Professora ). O segundo subgrupo de argumentos explicita uma longa lista de qualidades e características das TAs, que alguns entrevistados chamaram de “visão holística em saúde”, assim comentado por um dos entrevistados: “A visão holística em saúde trata o indivíduo como um todo, relacionado com o universo. É a valorização da subjetividade do indivíduo, da linguagem simbólica popular. Mas o principal, acho que é uma coerência com o meu modo de pensar, de ver além do corpo material, de ver emoções e pensamentos como causas dos comportamentos e doenças.” ( 47 a. Engenheiro Florestal ). Para compor a lista de características desse “tipo ideal holístico”, seria necessário transcrever vários trechos de entrevistas. Por isso, somente vamos listar algumas características, a título de ilustração: harmonia, tranqüilidade, independência de drogas, humildade, sensibilidade, honestidade, sinceridade, amor, valorização pessoal, segurança, autoconhecimento, respeito, consideração da natureza. Essas qualidades foram expressadas por diferentes entrevistados, sempre referindo-se às terapias alternativas. O terceiro subgrupo, por sua vez, dá ênfase na relação terapeuta-cliente, questão que vamos discutir mais adiante. 7 Quanto ao papel do paciente no processo de cura, outro grupo de entrevistados considerou esse papel decisivo nas TAs, como aparece nesta entrevista: “Despertei a capacidade de ver que a gente tem o poder de se curar de qualquer doença. Percebo que a pessoa é ativa no processo de cura, que pode compreender o universo humano e, com isso, não ficar doente.” ( 42 a. Secretária ). É possível identificar uma disposição e uma vontade desse entrevistado no sentido de estabelecer uma relação com as terapias de cura em outro patamar. Ele não aceita simplesmente que o terapeuta assuma sozinho a responsabilidade pela cura, mas acredita que a capacidade de cura pode ser desenvolvida pelo próprio sujeito. Essa característica é importante e vai ser retomada mais adiante. Um dos pontos mais importantes de nosso levantamento está relacionado com a comparação que os entrevistados fazem entre a relação terapeutapaciente por eles vivenciada no atendimento médico convencional. Nas entrevistas, depois de denunciarem essa relação, destacavam as diferenças em relação ao tipo de relacionamento que encontraram nas Terapias Alternativas. A maioria das críticas manifesta de que a relação terapeuta-paciente na alopatia é mediada por um comportamento técnico baseado em princípios científicos, como sugere esta frase de um dos entrevistados: “Na alopatia as pessoas são mais técnicas, mais objetivas, ficam mais na medicina, na ciência.” ( 49 a. Produtor de teatro ). Quando o relacionamento terapeuta-paciente sofre uma grande influência do aparato tecnológico da medicina, os pacientes percebem que a relação fica difícil e torna-se impessoal, dificultando uma maior interação entre as partes envolvidas no processo, como aparece nesta entrevista: “Na medicina convencional, a relação terapeuta-paciente é nula: não há confiança, há muita impessoalidade, distância e formalismo.” ( 50 a. Jornalista ). Uma das críticas apresentadas considera que, além da impessoalidade e frieza da relação terapeuta-paciente, é muito comum que essa relação seja ainda mais reduzida, restringindo-se a apenas uma parte do corpo do paciente, a parte enferma, como aparece nesta entrevista: “A medicina convencional é fundamentada no mecanicismo, por isso tende a esquartejar o ser humano, e a relação médico-paciente com o objetivo de tratar uma doença acaba dividindo a pessoa em partes, e se relaciona com uma delas, como o pé, uma mão ou um outro órgão específico.” ( 21 a. Estudante ). Outra questão que apareceu com certa freqüência nas entrevistas considera que o médico monopoliza o poder em virtude de seus conhecimentos. Graças a isso, ele pode estabelecer uma relação de dominação sobre o paciente, como transparece nesta entrevista: “Na relação médico-paciente convencional, o paciente perde o poder de decisão, pois o saber está nas mãos dos médicos e estes fragmentam e submetem o paciente aos seus interesses.” ( 22 a. Estudante ). Das concepções desses entrevistados, todos com opção preferencial por terapias alternativas, podemos depreender uma imagem de corpo fundamentada 8 na relação médico-paciente da medicina convencional. Ou seja, dessa relação emerge a imagem de um corpo submisso, dominado, esquadrinhado pelo arsenal de equipamentos médicos tecnologicamente cada vez mais avançados, que perscrutam partes do corpo humano cada vez mais divididos e submetidos a uma ação super-especializada, não sobre o corpo como um todo, mas sobre sistemas, órgãos, células e partes cada vez mais recônditas. Nessa visão do corpo do paciente fragmentado, existe pouco espaço para as manifestações da subjetividade do indivíduo. A impressão inicial é a de que a relação médicopaciente convencional prescinde de um ser pensante, com sentimentos, emoções. De acordo com essa relação, precisa-se de um corpo impessoal, reificado, pois parece que o objeto privilegiado de atuação é um corpo material, orgânico, onde as manifestações subjetivas do paciente somente atrapalhariam a precisão dos diagnósticos e das intervenções terapêuticas. Na ótica dos pacientes entrevistados, há muitas diferenças entre a relação terapeuta-paciente ( RTP ) da Medicina Convencional e das TAs. Todos os entrevistados criticaram múltiplos aspectos da relação médico-paciente convencional, conforme os depoimentos apresentados. Em contrapartida, todos eles encontraram aspectos extremamente positivos na relação terapeuta-paciente nas TAs, e muitos creditavam sua adesão às TAs justamente por sentirem-se bem na relação terapeuta-paciente nas Tas. Os argumentos de acusação e defesa fundamentam-se em oposições. Se, no Modelo Convencional, há impessoalidade, formalismo e distanciamento, nas Terapias Alternativas existe a valorização da subjetividade, onde a relação é mais profunda e humanizada, inclusive nos aspectos da espiritualidade. Além disso, pelo Modelo Convencional o “ser humano é esquartejado”, enquanto nas TAs, o terapeuta vê o paciente como um todo. Parte dessas afirmativas estão subentendidas neste trecho de entrevista: “Nas Terapias Alternativas, a relação terapeuta-paciente é mais subjetiva, com ligação espiritual. Cria-se uma relação de confiança, amizade e sentimentos bons. Impera a verdade, o diálogo aberto, uma relação baseada na atenção e não somente no resultado.” ( 27 a. Auxiliar de Enfermagem ). Outras manifestações dessas oposições revelam que os entrevistado percebem a dependência e o poder do médico sobre o paciente na Medicina Convencional; já nas Terapias Alternativas, eles acreditam que ocorre uma colaboração entre o paciente e o terapeuta; o conhecimento é compartilhado e não existe hierarquia entre ambos. Esses posicionamentos foram assim sintetizados por um dos pacientes entrevistados: “Nas Terapias Alternativas, o terapeuta é um mero facilitador do processo de cura, que é realizado pelo próprio indivíduo; não existe, a princípio, hierarquia na relação; o conhecimento é compartilhado e não reservado exclusivamente para o terapeuta.” ( 22 a. Estudante ). A última questão trabalhada nas entrevistas objetivava identificar alguma modificação no estilo de vida das pessoas em decorrência de sua opção 9 preferencial por Terapias Alternativas. De todos os entrevistados, apenas dois afirmaram não ter ocorrido qualquer mudança em suas vidas. Para eles a nova opção terapêutica caracteriza-se simplesmente como um instrumento terapêutico, como relata este entrevistado: “Não houve mudanças no meu estilo de vida, apenas na forma de tratar os meus problemas de saúde, que agora eu trato com homeopatia.” ( 50 a. Dona de Casa ). Entretanto, a grande maioria dos entrevistados considerara que a mudança de opção terapêutica engendrou importantes mudanças na forma de entenderem suas vidas. Portanto, não só modificou suas práticas relacionadas à saúde, mas também todo contexto de suas vidas, como fica claro nos posicionamentos destes dois entrevistados: “Houve uma mudança total. O mundo que eu vejo hoje é muito diferente do de outrora, e isso se reflete diretamente no meu modo de viver, nos meus valores, nos meus relacionamentos, na minha alimentação, no meu estudo.” ( 21 a. Estudante ). “Passei a amar a natureza (inclusive a minha natureza humana) e passei a cuidar mais os meus alimentos e a me exercitar também, tudo em prol do equilíbrio. Passei a encarar a vida como integrante pleno dela, com mais alegria e amor.” ( 49 a. Produtor de Teatro ). Além de constatarmos que os entrevistados adotaram uma nova visão de mundo, o que os motivou a levarem concretamente a uma vida mais saudável, equilibrada física, emocional e espiritualmente através de uma relação harmônica com a natureza, também pudemos constatar que os pacientes das TAs têm uma noção de que sua relação com os terapeutas não os torna dependentes; pelo contrário, sentem-se mais livres, em condições de tomar decisões sobre os interesses da sua própria vida de forma mais autônoma. Esse tipo de posicionamento está sintetizado nesta entrevista: “O que mudou foi eu me conhecer melhor, contribuir no entendimento de que eu posso fazer opções para minha vida e responder por elas. É uma questão de respeito pela construção pessoal.” ( 42 a. Secretária ). Os relatos apresentados até aqui são resultado de levantamentos de dados, portanto, ainda sem qualquer abstração do contexto empírico pesquisado. Esses dados foram apresentados para mostrar de que forma evoluiu o presente estudo. Enquanto na primeira fase realizamos uma aproximação ao tema das Tas, na segunda pretendemos recortar uma questão bastante específica, buscando a definição de um objeto empírico, com base num quadro de referência. Entretanto a questão central que nos propusemos a trabalhar é a imagem de corpo que emerge da ação terapêutica na Medicina Convencional e nas Terapias Alternativas. Para abordar esse objeto, foi necessário definir primeiro alguns conceitos, para, em seguida, construir categorias que pudessem fazer a ligação entre o objeto e o contexto empírico. Terceira Parte 10 Nas duas primeiras partes deste trabalho ( até aqui desenvolvido ), trabalhamos com um conceito ampliado de TA, incluindo nele todas as terapias situadas fora da Medicina Convencional, portanto, também as terapias do campo espiritual-religioso. Para as próximas etapas da pesquisa, passaremos a restringir esse conceito ao trabalho de terapeutas estabelecidos em “consultórios”, que fazem uso de terapias não-alopáticas mas que situam fora do campo religioso, como Umbanda, e Candomblé, ou Doutrinas Pentecostais, Carismáticas, Espiritistas, etc. Essa divisão, embora completamente arbitrária e sem caráter classificatório, apenas procura atender a um critério de seleção de amostra para facilitar a comparação com os trabalhos médicos do Modelo Convencional. Cabe-nos, igualmente, explicitar objetivamente o nosso conceito de Medicina Convencional ou Oficial: com essa denominação, referimo-nos a uma prática terapêutica baseada na alopatia, realizada por médicos, em sua maioria divididos em diferentes especialidades, tendo sua atividade controlada por um conselho que fiscaliza o exercício da profissão médica. O nosso objetivo não é o de discutir as características de cada modelo terapêutico, nem o de abordar as cosmologias que sustentam cada ação terapêutica. É, isso sim, a partir de uma situação concreta em nossa sociedade, onde existem terapeutas em atividade nos dois campos delimitados, explicitar qual a imagem de corpo que emerge do discurso dos respectivos terapeutas. Para tanto, formamos amostras de profissionais dos dois grupos mencionados, entrevistando 9 médicos que atuam em Medicina Convencional e 13 profissionais que praticam as Tas. Os componentes do primeiro grupo estão assim distribuídos, por especialidade: dois, Clínica Médica; um, Medicina Interna; um Cirurgião Geral; um Cardiologista; um Pneumologista; um Cirurgião Vascular; um Hematologista; um Gineco-Obstetra. Para a formação do segundo grupo, selecionamos 13 terapeutas, identificados com as seguintes Terapias Alternativas: seis profissionais em Florais de Bach; três Cromoterapeutas; dois Terapeutas de Reiki; um Homeopata; e um Massoterapeuta. Entretanto, desse grupo apenas dois são médicos; os demais estão assim distribuídos: seis psicólogos, um jornalista, um pedagogo e três sem formação universitária. Para as entrevistas, elaboramos previamente seis questões abertas, que foram apresentadas de forma semelhante a profissionais dos dois grupos terapêuticos. A seguir, apresentaremos os resultados e algumas discussões dessas seis questões, centrando a atenção nos aspectos relativos à imagem de corpo que é produzida pela ação terapêutica. Comecemos pelos depoimentos dos médicos que atuam na Medicina Convencional. A primeira questão apresentada aos entrevistados refere-se à relação terapeuta-paciente. O discurso dos médicos entrevistados deixa transparecer a idéia de que é importante uma boa relação médico-paciente, porque isso seria fundamental para melhorar a eficácia dos tratamentos, como testemunha o seguinte depoimento: “O médico que tem uma relação empática e honesta com o paciente tem mais êxito no seu objetivo.” (Internista, 31 anos). No entanto, o uso instrumental da RTP, objetivando ajudar o paciente na busca de aliviar seus sofrimentos, parece mais um discurso de boas intenções, pois levanta uma cortina de fumaça que não permite enxergar muita coisa. Examinando um pouco mais a fundo a fala do primeiro grupo, aparecem claros indícios de que o médico dispõe de uma condição privilegiada para fazer vários 11 exercícios de dominação sobre os pacientes, a começar pelo fato de o paciente buscar ajuda do médico numa situação onde ele está em sofrimento. É um tipo de situação que propicia ao médico estabelecer uma relação em que ele pode ditar as regras, como nos fala um dos entrevistados: “O médico tem que saber que recebe normalmente uma pessoa fragilizada, assustada, e que busca no médico o que ele imagina que tenha o conhecimento suficiente para poder ajudá-lo nessa dificuldade. Então estabelece-se uma relação assimétrica. Nós estamos numa posição de vantagem em relação ao paciente, e nós precisamos nos dar conta de que essa relação deve ser transformada na mais equilibrada possível, no mais igual possível.” (Cirurgião Vascular, 55 anos). O médico entrevistado revela uma percepção de que ele está inserido numa instituição que, “a priori”, já lhe confere uma condição privilegiada. Ele, conscientemente, precisa tomar cuidado para conceder ao paciente alguma prerrogativa na RTP. Mas, se não tomar esse tipo de cuidado, ao que parece, o paciente, que já está assustado e fragilizado, pode ficar, completamente dependente do médico, onde a assimetria, reconhecida pelo entrevistado, pode ser trocada pela seguinte relação hierárquica: o médico manda e o paciente obedece. Quando o médico se encontra nessa posição de vantagem, certamente nem se dá conta que o seu discurso está impregnado de conceitos e concepções que a maioria das pessoas das classes populares não consegue compreender. Por outro lado, certamente, também é verdade que a maioria dos médicos não conhece os significados de muitas expressões da linguagem popular. Com isso não estamos afirmando que, quando os interlocutores da linguagem médica erudita encontram-se com a linguagem popular na relação médico-paciente, não possa ocorrer uma mútua compreensão, em circumstâncias muito especiais. Mas, certamente, na maioria das vezes, desses encontros resulta uma dupla incompreensão hermenêutica. Ou seja, ocorre um diálogo de surdos. Outra condição que também permite ao médico exercitar mecanismos de dominação na RTP pode ser traduzida pelo seguinte enunciado: Se desejar a exclusão do sujeito nessa relação, o médico simplesmente pode dirigir sua atenção a uma determinada parte do corpo do paciente, utilizando, para isso, uma intervenção bastante objetiva, como aparece nesta entrevista: “O médico deve saber ouvir e entender o paciente, sendo neutro e livre de preconceito. Da mesma forma, deve saber manter uma relação estritamente profissional com o paciente, dirigindo a entrevista para o ‘problema dele’, evitando um envolvimento profundo entre médico e paciente.” (Cirurgião Geral, 36 anos). Nesse caso, uma “relação estritamente profissional” deve ater-se aos aspectos mais técnicos da relação, principalmente àquilo que pode ser transformado em dados objetivos, em sinais, que podem facilmente ser traduzidos e interpretados à luz da clínica médica, de corte organicista. Dessa 12 maneira, o instrumento propedêutico à disposição do médico dá-lhe a prerrogativa de escolher, uma entre outras alternativas: trabalha com o paciente em todas as suas dimensões, ou recorta assepticamente a parte que lhe cabe, por sua condição de especialista de um órgão ou sistema do corpo humano. Talvez é por isso que o médico precisa fazer um esforço para lembrar que os órgãos ou partes do corpo humano não são peças mecânicas que precisam de reparo, como sugere um dos médicos entrevistados: “Devemos tratar o paciente não como uma máquina, ou como um conjunto de órgãos e sistemas, mas como um ser que também pensa e tem sentimentos.” (Obstetra, 42 anos). Apesar de sua boa vontade, esse médico não consegue disfarçar sua inclinação de sobrevalorizar o locus corporal onde estão as manifestações da doença, isso porque ele adiciona ao ser humano a condição de pensar e ter sentimentos. A segunda questão apresentada aos médicos entrevistados objetivava identificar o tipo de relação de poder que existia na RTP. De acordo com o posicionamento mais freqüente, manifestado sobre essa questão, a origem do poder do médico provém do seu conhecimento científico, exemplificado por esta entrevista: “O médico detém o conhecimento científico e pode ajudar o paciente na cura de sua doença. O médico intervém e o paciente acata (por decisão própria).” (Médico Internista, 31 anos). O paciente, nesse tipo de situação, tem pouca perspectiva de estabelecer uma relação de igualdade, porque o poder é conferido ao médico pelo seu conhecimento científico. Para haver alguma partilha de poder, necessariamente o médico precisaria partilhar seus “conhecimentos científicos” ao ponto de o paciente estar capacitado a dividir o poder de decisão com o médico. Mais uma vez o médico encontra-se em situação privilegiada, pois ele pode, ou não, trabalhar na perspectiva de ajudar o paciente a assumir algum papel ativo na RTP. Isso vai depender do interesse que o sistema tem sobre o tipo de pessoas que devem emergir da RTP, como sugere outro médico entrevistado: “Eu posso exercer esse poder de forma democrática, fazendo com que o paciente compartilhe desta decisão, na busca do que é melhor para ele, ou posso exercer de uma maneira mais autoritária, determinando para ele o que deve ser feito.” (Cirurgião Vascular, 55 anos). Outros médicos entendem que o próprio paciente dá ao médico um determinado poder, pois sua condição de doente prejudicaria sua capacidade de autodeterminação, em conseqüência, o médico, nessas circunstâncias, precisaria ser mais impositivo, como sugere este depoimento: “O médico pode usar o poder que o paciente lhe confere de uma forma construtiva. Algumas vezes o paciente regride, então o médico deve assumir um papel patriarcal, pois um paciente relapso ou que negue seu problema precisa de um tratamento mais enérgico, utilizando a grande barganha do médico que é a solução do problema.” (Hematologista, 29 anos). 13 Essa declaração nos parece muito elucidativa. Além de confirmar a posição cômoda do médico na relação com o paciente, ainda dá àquele o direito de fazer ameaças, que poderiam ser assim traduzidas: Você já está nesta situação difícil; veja se segue estritamente tudo que eu mando; caso contrário, não garanto a solução do problema. No caso, se o paciente já estiver em “regressão” decorrente do problema da doença, é fácil imaginar como ele irá ficar depois da intervenção enérgica do médico. Mais uma vez parece-nos que a atuação do médico, quando se prpõe a subjugar o paciente, dispõe de uma série de táticas, cada uma propícia para situações específicas. Algumas dessas situações já foram apresentadas anteriormente, mas ainda existem outras. Para exemplificá-las, apresentaremos mais uma dessas situações. Trata-se da capacidade do médico de regular o distanciamento entre ele e o paciente. A maioria dos entrevistados fala do uso da empatia como instrumento eficaz para aproximar-se do paciente e conquistar sua confiança para, então, poder prescrever seus tratamentos com chance de êxito. É isso que sugere um dos entrevistados: “Existe um poder proporcional à confiança que o médico conquista do paciente. Por exemplo, se o paciente não mostrar confiança no médico, dificilmente ele aceitará que o médico indique algum procedimento de maior risco. Por outro lado, se houver confiança, o paciente fará tudo o que foi indicado.” (Pneumologista, 30 anos). Através desse pronunciamento, o médico entrevistado demonstra uma grande confiança em seu poder de persuasão em relação aos pacientes. Isso também nos dá uma idéia da posição difícil do paciente, que facilmente pode ficar preso nas teias do discurso médico. Algumas dessas teias podem ser delicadas, pois confortam e amparam um paciente fragilizado; outras, porém, podem ser grosseiras, pois precisam segurar forças brutas que porventura tentem escapar desse emaranhado de relações. Outra questão apresentada aos médicos entrevistados objetivava saber quem deveria assumir a responsabilidade pela cura do paciente. O posicionamento geral dos entrevistados é o de que a responsabilidade pela cura é do próprio médico, como aparece nesta afirmação: “O médico, por ter conhecimento científico que lhe permite, na maior parte das vezes, a cura, tem extrema responsabilidade pela cura do indivíduo enfermo que lhe procura.” (Cirurgião Geral, 36 anos). Mas, sobre essa questão, há várias ressalvas, principalmente as que condicionaram a responsabilidade de cura à estrita colaboração do paciente, como nos fala um dos entrevistados: “Ao paciente cabe também ser esclarecido que é uma pessoa doente, sobre o prognóstico, sobre o seu futuro; cabe assumir a responsabilidade de, junto com o médico, cumprir aquilo que foi sugerido ou que o médico prescreveu, ou a maneira de como foi orientado.” (Cirurgião Vascular, 55 anos). O que fica bem salientado nesse ponto é a compreensão que os médicos entrevistados têm sobre o processo de cura. O paciente apenas deve seguir as orientações do médico; afora isso, é conveniente que não faça qualquer coisa. O paciente deve depositar toda sua crença de cura nas mãos do médico. Quanto 14 mais ele se entrega ao médico, mais cresce o poder de cura deste, que assim extirpa o mal alojado no corpo do paciente, isso se o paciente não atrapalhar. Outra questão apresentada para os médicos entrevistados refere-se ao significado de corpo do paciente para o médico. As respostas a essa questão revelam que a maioria dos médicos entrevistados entende que o corpo do paciente é dicotomicamente separado, havendo uma parte física e outra psíquica. Exemplo disso é a seguinte afirmação: “O corpo do paciente é formado pela parte física (órgãos, sistemas) e pela mente (parte psíquica).” (Obstetra, 42 anos). Por outro lado, há entrevistados que entendem o corpo do paciente como sendo somente a parte física, aquilo que tem materialidade, como sugere este depoimento: “O paciente é formado por duas partes, a parte física, que podemos chamar de corpo, e a parte psíquica, a mente do indivíduo. Elas agem independentemente, mas em harmonia.” (Cirurgião Geral, 36 anos). É sobre esse corpo físico que os adeptos dessas duas concepções atuam. Esse é o objeto privilegiado de atuação do aparato médico. É aí que está concentrada a essência do paciente da medicina científica. Todo conhecimento de patologia, de clínica médica, de farmacologia clínica é exercitado neste locus do ser humano, que, ao mesmo tempo, é o local onde se combatem as doenças e o laboratório experimental em que se buscam novos conhecimentos, como aparece nesta entrevista: “O corpo do paciente seria assim um laboratório onde o médico encontraria subsídios e elementos para o seu estudo e também do ponto de vista objetivo de cura, é onde procuro sinais e sintomas que me levem a concluir o diagnóstico de uma determinada enfermidade.” (Clínica Médica, 43 anos). Quando o objeto privilegiado do médico são os órgãos, os sistemas orgânicos, enfim, o corpo material do paciente, a identidade do paciente, com sua subjetividade, toda sua história cultural, social e econômica ficam automaticamente excluídas do roteiro diagnóstico do médico. Mais uma vez fica evidente que a atuação médica faz emergir a concepção de um corpo do paciente esquadrinhado por órgãos e sistemas orgânicos, enquanto que o sujeito desses órgãos, apenas assiste a cena em que o médico tenta reparar uma parte desse corpo que está com problema. Outra questão apresentada aos médicos entrevistados destinava-se a saber sua opinião sobre a existência de algum tipo de energia no corpo das pessoas. Todos os entrevistados responderam afirmativamente. As respostas mais comuns expressam a idéia de que o tipo de energia que há no corpo das pessoas é resultado de processos comandados por princípios científicos que regem as relações da natureza, como sugere um dos entrevistados: “No corpo das pessoas existe a mesma energia que rege as reações bioquímicas, que obedecem às leis gerais da matéria.” (Hematologista, 29 anos). Entendem que uma energia desse tipo não tem qualquer possibilidade de transcender o corpo do paciente; conseqüentemente, reafirma o caráter de materialidade do corpo orgânico do paciente, conceito que emerge do olhar “científico” do médico. A última questão apresentada aos entrevistados médicos procurava saber qual a posição deles sobre a comparabilidade entre os corpos ou sobre sua singularidade. As respostas a essa pergunta revelam que apenas um dos 15 entrevistados acredita que há singularidade, tanto ao nível de corpo como ao de mente das pessoas; portanto, as comparações seriam praticamente impossíveis. Os outros entrevistados acreditam todos que o corpo das pessoas têm muitas semelhanças, o que permitiria fazer comparações, como aparece nesta entrevista: “Sim, o organismo humano funciona de maneira muito semelhante, comparando-se uma pessoa a outra. Existem pequenas diferenças genéticas que levam à expressão de caracteres diferentes, como fenótipo, sexo, doenças hereditárias, etc.” (Cardiologista, 32 anos). Isso faz sentido, na medida em que a maioria dos médicos entende o corpo como uma unidade orgânica sem qualquer influência do meio externo. Quando ele “olha” estômagos de pacientes diferentes, usa um instrumental heurístico que não foi desenvolvido para verificar singularidades, mas semelhanças ou regularidades nas manifestações de determinadas patologias. Facilita-se, dessa forma, uma prática médica de caráter eminentemente social. Quando o médico toma suas condutas, acaba prevalecendo um mecanismo homogeneizado, que enquadra todos os pacientes na mesma perspectiva, como sugere um médico através destas palavras: “Tecnicamente sim, ou seja, na hora de prescrever, você uniformiza.” (Pneumologista, 30 anos). Como já foi visto anteriormente, mais uma vez aparece a idéia de separação entre corpo e espírito, conferindo um certo grau de autonomia para cada parte. Alguns entrevistados acreditam que há diferenças entre esses dois níveis, sendo o corpo uma unidade que pode ser comparada a outros corpos e conferindo à mente um status de singularidade, como aparece nesta entrevista: “O corpo, a unidade corpo, é semelhante entre as pessoas, com pequenas diferenças anatômicas e fisiológicas que variam entre os indivíduos, entre idades e sexo. Mas não se deve esquecer que a unidade mente é singular e que o homem é um todo, composto por essas duas unidades.” (Medicina Interna, 31 anos). Registrados todos esses depoimentos e feita a sua interpretação, passaremos a apresentar agora as respostas dadas pelos terapeutas alternativos às mesmas questões feitas aos médicos. Sobre a RTP, a maioria dos entrevistados acha que essa é fundamental para o êxito da sua atividade e, em geral, a maioria acredita que consegue estabelecer uma boa relação com os pacientes. A convicção de que há um bom relacionamento parece estar ligada à idéia de que há uma colaboração entre as partes envolvidas, como aparece nesta entrevista: “A RTP é muito boa. Com o tempo, tanto eu como o paciente vamos nos conhecendo melhor e, a cada consulta, vai ficando mais fácil ajudar a pessoa, pois o conhecimento mútuo deixa as pessoas mais à vontade.” (F. Bach, 33 anos). 16 Percebe-se que o paciente deve assumir um papel ativo na relação, buscando expor-se ao terapeuta que, por sua vez, também permite uma maior aproximação com o paciente. Essa dupla abertura, permitindo uma abordagem mais próxima dos problemas apresentados pelos pacientes, pode ser entendida como necessária, pois algumas dessas terapias necessitam explicitamente trabalhar com as manifestações objetivas e subjetivas do paciente, como sugere este entrevistado: “Na consulta do homeopata, é necessário que o terapeuta e o paciente estabeleçam uma relação de franqueza mútua e transparência, porque na anamnese homeopática é muito pessoal e nós temos que estar abertos o suficiente para poder compreender o conflito do paciente, para escolher o medicamento.” (Homeopata, 30 anos). A busca por dados mais sensíveis, relacionados à subjetividade do indivíduo, necessita de um instrumental muito delicado, que não tem muito a ver com exames sofisticados, e sim com uma alta sensibilidade pessoal. É esta que permite apreender toda uma gama de manifestações, como sugere uma terapeuta através das seguintes palavras: “Tu tens que ser não o espelho, mas deixar o outro refletir os problemas, as dificuldades, as limitações. Porque, se tu vais querer entender , tu não vais poder trabalhar. Tu tens que sentir. Às vezes, a gente não consegue nem se entender. Então tens que sentir.” (Clínica Geral e T. Florais de Bach, 38 anos). A relação terapeuta-paciente descrita pelos entrevistados mostra uma preocupação em resgatar os múltiplos aspectos dos problemas dos pacientes, com ênfase nos conteúdos não objetivos da relação. Parece, portanto, que toda essa preocupação com o imaginário e a subjetividade do paciente tem o objetivo de resgatar a participação ativa do paciente nessa relação, fazendo com que ele assuma tarefas na resolução de seus problemas de saúde, como sugere esta entrevista: “Na relação da Cromoterapia, nós buscamos sempre que haja um equilíbrio para que a pessoa possa se ver de uma maneira mais clara, mais honesta e mais consciente, e ela então começa, a partir dessa visão que ela própria adquire de si, a procurar se melhorar e a procurar fazer com que as coisas na sua vida se encaminhem para levar a melhores resultados em todas as suas atividades.” (Cromoterapeuta, 57 anos). Quando perguntamos aos entrevistados se existia uma relação de poder na RTP, a maioria manifestou que não considera que se trata de uma relação de poder com o objetivo de dominar o paciente. O que acontece, na maioria das vezes, é que o paciente se apresenta em posição de submissão; por isso, o papel 17 do terapeuta deve ser o de evitar que se cristalize essa posição, conforme aparece nesta entrevista: “No momento que eu sou idealizada, eu não existo; quando isso passa, fica mais fácil de se relacionar com o paciente. Em função disso, no início do tratamento, o poder está mais em mim, mas não porque eu queira; minha função é de não corresponder a isto, para equilibrar a relação.” (T. Florais de Bach, 33 anos). O terapeuta precisa manter essa vigilância permanentemente, pois, se os pacientes se tornassem submissos e dependentes, perder-se-ia grande parte do potencial dessas terapias, já que estas pressupõem que o paciente assuma sua parte na própria cura, como aparece nesta entrevista: “O que eu faço é como uma ponte entre a homeopatia e o paciente. Além disso, sempre é necessário que o homeopata estimule o paciente a ver seu papel de participante no tratamento e no processo de cura.” (Homeopata, 30 anos). Portanto, fica bastante evidente que os terapeutas alternativos entrevistados evitam estabelecer uma relação de dominação com o paciente, isso porque a submissão do paciente retiraria dele suas potencialidades, no sentido de ativar suas próprias forças para curar-se. É por isso que esses terapeutas buscam ativamente estreitar essa relação, promovendo um nível de interação mais profundo, como aparece nesta entrevista: “Ocorre uma interação profunda entre o terapeuta e o paciente; é completa desde que não haja resistência do paciente; será uma relação completa como um todo.” (T. de Reiki, 49 anos). Quando perguntamos aos entrevistados de quem era a responsabilidade pela cura, apenas dois responderam que ela era dividida entre o terapeuta e o paciente; os outros foram todos unânimes em afirmar que a responsabilidade pela cura é do próprio paciente, como sintetiza um dos entrevistados: “Numa relação de Cromoterapia, é o próprio paciente que se cura; então ele tem a maior responsabilidade, porque ele tem que ter muito mais vontade de ficar curado do que a pessoa que está passando energia. A Cromoterapia enxerga os males do físico e do espírito como deficiências que a própria pessoa terá que vencer.” (Cromoterapeuta, 57 anos). Os terapeutas alternativos deixam bem claro que eles têm dificuldade em assumir esse tipo de responsabilidade, já que é inerente à natureza de sua prática acreditar que o poder de cura está com o próprio paciente. O papel do terapeuta seria a de um guia, um condutor ou facilitador, mas jamais o de substituir o papel do próprio paciente. É este que deve encontrar o caminho da melhora de seus problemas de saúde. Alguns terapeutas têm plena convicção de que a responsabilidade pela cura é do paciente, tanto que afirmam que o terapeuta não pode ser responsabilizado por erro profissional ou insuficiência de resultados da terapia, como sugere esta entrevistada: “Seria como responsabilizar um médico pelo fato do paciente não ter ficado curado sem tomar a medicação que foi prescrita. Assim são as pessoas que procuram as terapias 18 alternativas: se elas não tiverem a vontade de mudar, de alcançar o equilíbrio, não vão conseguir encontrar aquilo que buscam. O terapeuta apenas orienta.” (T. Reiki, 53 anos). Ao responder a questão “qual é o significado de ‘corpo do paciente’ para o terapeuta”, a maioria dos entrevistados manifestou-se dizendo que somente existe um corpo, como um ser total, que é percebido em diferentes dimensões, como o mental, emocional, espiritual, divino, monádico. Essas diferentes dimensões do ser humano formariam um conjunto harmônico e equilibrado de energias que seriam a base da vida, como sugere o trecho desta entrevista: “O corpo do paciente é um santuário de vida, no qual os terapeutas auxiliarão a reacender a chama divina, fortalecendo e equilibrando a energia no ser físico e espiritual.” (Cromoterapeuta, 58 anos). Ao perguntarmos aos entrevistados se existe algum tipo de energia no corpo dos pacientes, obtivemos uma resposta unânime: todos os entrevistados acreditam que há energia no corpo dos pacientes. Há apenas pequenas diferenças quanto ao tipo dessa energia. Alguns acreditam que a materialidade do corpo é um estágio energético: “O corpo é energia pura condensada. Há outros corpos, onde a energia não é tão condensada: o corpo astral, o mental, o emocional.” (T. de Florais de Bach, 33 anos). A energia que os terapeutas alternativos percebem no corpo dos pacientes, embora impregne o ser também o transcende a ele, como sugere esta entrevista: “Existe um tipo de energia transcendental no corpo das pessoas. O corpo etérico é compreendido como sendo uma duplicata do corpo físico. Ele é energia. Se tirarmos uma foto Kirlian, mostraremos a luminosidade que irradia das coisas vivas.” (Cromoterapeuta, 58 anos). Para responder à pergunta se o corpo de uma pessoa pode ser comparado ao de outra, ou se cada corpo é singular, apenas dois entrevistados responderam que, do ponto de vista biológico, existem semelhanças entre o corpo das pessoas, mas essa semelhança não seria suficiente para estabelecer comparações válidas, como aparece nesta entrevista: “Eu te diria que biologicamente os corpos são semelhantes. Existem os mesmos órgãos, as mesmas funções, mas cada ser é um universo sozinho. É uma individualidade, um microcosmo que interage com o macrocosmo.” (Cromoterapeuta, 58 anos). Todos os outros entrevistados afirmaram que nem sequer ao nível orgânico existem semelhanças, sendo que as próprias células seriam diferentes, conferindo singularidade a todos os corpos. É isso que sugere esta entrevista: “Eu acho que cada célula é diferente da outra, mesmo estando num mesmo organismo. O que faz essa diferença é a energia das pessoas. Eu acho que nada pode ser comparado.” (T. de Florais de Bach, 32 anos). Um outro entrevistado fundamentou a sua resposta, justificando por que não era possível fazer comparações válidas entre o corpo das pessoas. No 19 entendimento dele, cada corpo tem uma história de vivências com o mundo externo, o que marca o corpo de forma tão particular que cada experiência corporal seria única: “Eu acho muito difícil de comparar uma pessoa a outra, em função das experiências que ela traz, da vivência que ela tem na família, na escola, no mundo em si. Chega para cada um uma outra forma de impressão.” (T. de Florais de Bach, 38 anos). Como já pudemos verificar anteriormente, os terapeutas alternativos têm uma visão de corpo onde não aparece a separação entre o corpo e a mente. Portanto, é o corpo todo que fica marcado, fica com as impressões da vivência social, fazendo com que a intervenção terapêutica tenha que ser rigorosamente individualizada, como sugere esta frase de uma das entrevistas: “Nenhuma pessoa pode ser comparada a outra; o tratamento neste sentido torna-se extremamente personalizado.” (Cromoterapeuta, 49 anos). Análise Comparativa dos Resultados A ação terapêutica de profissionais de saúde vinculados à MC e a de outros ligados às TAs fazem emergir uma imagem de corpo do paciente que tem diferenças importantes. Na MC, a imagem de corpo do paciente que resulta da ação terapêutica é a de uma pessoa fragilizada frente a uma instituição que é detentora de muitos instrumentos de dominação, entre os quais destaca-se a possibilidade de excluir o sujeito da relação médico-paciente, mantendo uma relação exclusivamente com uma parte do organismo do paciente. Importa ressaltar que essa relação não costuma ser mediada por categorias da relação pessoal, mas por um instrumental tecnológico muito desenvolvido, o que garante ao médico um alto grau de impessoalidade e procedimentos estandardizados. Uma das conseqüências imediatas dessa prática é que dela ficam excluídas todas as manifestações da subjetividade, de tal sorte que as marcas e impressões da história pessoal do paciente não exercem qualquer papel no quadro nosológico a ser investigado pelo médico. Nesse tipo de relação, o paciente fica muito dependente do médico e, até mesmo, é subjugado por ele. Portanto, o paciente perde completamente sua identidade como um sujeito global, dificultando sua manifestação como uma pessoa autônoma. Colnfigura-se, assim, uma relação de poder verticalizada, onde o médico tem à disposição todos os instrumentos de dominação; ao doente, por sua vez, é reservado o papel de um paciente que deve submeter-se docilmente a toda intervenção do médico, esperando que este assuma todas as responsabilidades e resolva seus problemas. A imagem de corpo resultante da ação dos médicos convencionais corresponde a do corpo do homem da modernidade. Ou seja, trata-se de um corpo esquadrinhado, dominado dentro das relações de produção capitalista do tipo teylorista. De acordo com esse modelo, as linhas de produção têm necessidade de um trabalhador que cumpra sua tarefa mecanicamente, produzindo uma pequena parte do produto, sem ter noção de todo o processo de produção, isso porque a produtividade está baseada na divisão de tarefas, onde cada um deve fazer a sua parte sem preocupar-se com o todo. Quando esse trabalhador fica doente, ele precisa ou ser substituído, ou ser reparado. Como aos meios de produção interessa um trabalhador que execute 20 tarefas previamente definidas, portanto, sem a participação de um “sujeito”, sua reparação leva em consideração a condição de um homem-máquina; conseqüentemente, exige-se um reparo das funções orgânicas avariadas, não importando as capacidades de um sujeito pensante, com uma subjetividade própria e alvo de múltiplas influências que podem interferir na sua condição de doente. Apenas interessa recolocar aquele trabalhador na sua função de executar uma tarefa mecânica. Assim, o aparelho médico, segundo RIBEIRO DA SILVA4, “assegura a reprodução ideológica das relações de produção numa sociedade”, que pode ser válido para qualquer fase de evolução das relações de produção capitalista. Nas terapias alternativas, a imagem de corpo do paciente que emerge da ação terapêutica é a de uma pessoa que está mais inteira na relação, projetando a imagem de um ser integral, sem fazer muita distinção entre a parte mental, subjetiva, e a parte orgânica do paciente. Trata-se de unidades altamente integradas, sem qualquer possibilidade de separação. O paciente carrega consigo as vivências de toda a sua história, que são muito valorizadas pelo terapeuta para fazer um diagnóstico e estabelecer um tratamento. O papel do paciente não é passivo. Ele deve assumir concretamente grande parte da responsabilidade pela cura. Tudo isso projeta um sujeito que deve capacitar-se permanentemente para assumir papéis importantes na relação com os terapeutas e, principalmente, na condução dos rumos dos seus problemas de saúde e, por que não, dos rumos de sua própria vida. O tipo de poder que se estabelece na relação dos terapeutas alternativos com os pacientes é mais horizontalizado, dividindo as responsabilidades entre o terapeuta e o paciente. Dessa forma, o poder fica mais repartido, fazendo com que a pessoa singularizada como um sujeito ativo no processo de cura atinja um certo grau de autonomia. A imagem de corpo resultante da ação terapêutica das terapias alternativas não se adapta ao arquétipo de homem engendrado nas relações de produção capitalista com características teyloristas. Trata-se da imagem de um corpo que projeta um sujeito não-fragmentado, constituído como uma totalidade, que tem vontade e necessidade de participar de forma diferente do processo de produção. Ele está apto a participar ativamente em todas as fases da formação de um determinado produto. Esse tipo de sujeito participa da discussão das necessidades mercadológicas, do planejamento e da execução de todas as tarefas necessárias pra fazer um produto. A relação hierárquica e burocratizada é substituída por uma relação de colaboração e parceria, onde as chefias precisam exercer um domínio muito mais inteligente e democrático sobre os trabalhadores. A relação autoritária e vertical é substituída pelo diálogo, onde a opinião do “produtor” é levada em consideração. Em consequência, o trabalhador não é um sujeito alienado no trabalho. Esse novo processo de trabalho, a priori, já necessita de pessoas melhor treinadas e, intrinsicamente ajuda a desenvolver a individualidade do trabalhador. Ou seja, necessita de trabalhadores inseridos num processo que fortalece a autonomização do sujeito do trabalho. Necessita também de novas técnicas de 4 RIBEIRO DA SILVA, M. G. Prática Médica: Dominação e Submissão. Zahar Editores, RJ, 1976. 21 gerência de recursos humanos para a produção que objetivem elevar os níveis de produtividade exigidos pelo mercado globalizado. Num contexto desse tipo, quando um trabalhador fica doente, precisa de uma reparação qualitativamente diferente da adotada para um trabalhador inserido numa relação de produção teylorista. O aparelho médico não deve apenas cuidar de uma parte do corpo que, de acordo com a concepção tradicional, estaria doente. Ele precisa cuidar de um sujeito que pensa, que tem subjetividade constituída de emoções, sentimentos, que são fundamentais também para esse sujeito ter bom rendimento no trabalho inscrito num processo de produção em que a fase de acumulação do capital é flexível, e diferente das relações de produção da modernidade fordista. Só assim é possível ingressar na contemporaneidade5, que adota novas formas de gerenciar as relações deprodução, tais como os programas de qualidade total ou toyotismo. Com base nessas considerações, embora com muita cautela, podemos especular que as novas tecnologias da organização social da produção, com sua necessidade de trabalhadores mais ativos, participativos, e que busquem algum grau de autonomia e exercitem sua individualidade, devem engendrar e estimular um novo aparelho médico, adaptado a essas novas necessidades. Como este estudo ainda é inicial e exploratório, seria muito temerário falar em conclusões. Portanto, em vez de conclusões, levantamos duas questões que merecem uma investigação mais profunda. A primeira questão, já abordada acima, refere-se à possibilidade de discutir mais profundamente a relação que existe entre os modelos terapêuticos e a 6 organização social da produção. Entre os autores examinados - LUZ , RIBEIRO 7 8 DA SILVA , FOUCAULT - há uma tendência clara no sentido de considerar que, na idade moderna, a medicina científica tenha sido engendrada pelas relações de produção capitalistas. Assim, acreditamos que seja possível relacionar as relações humanas do modelo teylorista de produção com as realações humanas resultantes da ação médica da medicina científica moderna ( que nós chamamos de medicina convencional ), uma vez que encontramos alguns indícios que mostram semelhanças entre as unidades comparadas. Ou seja, constatamos provisoriamente que o modo de produção teylorista produz e reproduz, na prática médica convencional, um padrão de relacionamento humano hierarquizado, onde o trabalhador e o paciente são esquadrinhados numa relação de poder verticalizada. Seguindo a mesma linha de raciocínio, podemos supor que, se é possível identificar o mesmo padrão de relacionamento entre o modo de produção teylorista e a prática da medicina convencional, também deve ser possível estabelecer o mesmo tipo identidade entre o relacionamento humano da qualidade total e o das terapias alternativas. Esse raciocínio, somado aos dados examinados, nos encoraja a ampliar esta investigação. Ou seja, pareceu-nos que as várias semelhanças encontradas precisam ser melhor estudadas. É claro que os indícios já verificados permitem visualizar um sujeito diferente. Nas relações 55 IANNI, O. Globalização: Novo Paradigma das Ciências Sociais IN: ADORNO, S.(Org.). A Sociologia entre a Modernidade e a Contemporaneidade. Ed. da UFRGS, PoA, 1995. O autor utiliza este conceito como sendo transicional entre o moderno e o pós-moderno. 6 LUZ, M. T. Racionalidades Médicas e Terapêuticas Alternativas, Cadernos de Sociologia, Vol. 7, 1995. 7 RIBEIRO DA SILVA op. cit. 8 FOUCAULT, M. O nascimento da medicina social In: Microfísica do Poder. Ed. Graal, RJ, 1986. 22 de produção pós-teyloristas, e nas terapias alternativas, configura-se uma relação horizontalizada, mais democrática, dando lugar a um indivíduo mais inteiro, capaz de participar das decisões que interessam a sua vida. Essa maneira de perceber os fatos aponta, portanto, para uma ruptura. Enquanto que a imagem de corpo do paciente, na medicina convencional, é a de um corpo dominado e esquadrinhado, das terapias alternativas emerge uma imagem de corpo mais livre, com alguma autonomia, que procura resgatar a subjetividade perdida na medicina convencional e contribui para a concepção de um ser humano mais integral. Mesmo assim, é necessário, que se testem essas hipóteses com mais controle. A segunda questão que pretendemos aprofundar refere-se especificamente ao tipo de sujeito social que emerge da ação das terapias alternativas. Ao que parece, numa análise preliminar, a concepção de pessoa que resulta dessa ação terapêutica, vincula-se à idéia de indivíduo enquanto valor fundamental. De acordo com tal concepção, os sujeitos atingiriam um grau de autonomia que lhes permitiria/determinaria possibilidades de ação individual com relativa liberdade em relação à ordem social estabelecida. Embora esse entendimento, encontre gurida em RUSSO9, que analisou as Terapias Corporais do Campo Psicológico como um movimento terapêutico alternativo, pode ser problematizado através de duas abordagens diferentes. Numa perspectiva histórico-estrutural, a individualização poderia estar ligada a uma necessidade intrínseca do estágio atual de evolução do capitalismo, com suas novas tecnologias de administração de recursos humanos, alto uso da informatização, surgimento de novos e revolucionários materiais e, principalmente, com a concorrência sendo levada a todos os mercados de forma globalizada. Desse processo é que surgiria a necessidade de sujeitos mais “individualizados”, que deveriam dar conta das novas tarefas do processo produtivo em curso. por outro lado, mudando o enfoque para uma perspectiva mais micro, o fenômeno da individualização e o rompimento com a perspectiva hierarquizante 10 poderiam ser entendidos, com base em KOHLBERG , como uma passagem do nível de consciência moral convencional, que se caracteriza pela conformidade e preservação da lei e da ordem, para o nível de consciência moral pósconvencional, que se caracteriza por relativizar as normas e orientar a conduta dos indivíduos por uma ética de caráter universal. Por esse entendimento, o processo de mudança estaria vinculado a procedimentos pedagógicos, onde a educação desempenharia papel fundamental na passagem da vinculação à hierarquia para a individualização dos sujeitos. Dessa forma, as terapias alternativas ( excluídas aí as terapias do campo religioso ) desempenhariam uma função facilitadora para o desenvolvimento dos sujeitos em direção a uma relativa autonomização, relativizando a importância de “um substrato cultural” localizado para explicar a grande difusão de terapias alternativas. 9 RUSSO, J. O corpo contra a palavra. UFRJ Ed. RJ, 1993. KOHLBERG, L. Stage and sequence: The cognitive developmental approach to socialization. In: Handbook of socialization theory and research. Daved Goslin. Ed. Rand Mc Nally e Company, EUA, 1969. 10 23