Prefácio (2a edição) Proliferação Os colegas concederam-me a honra de dizer as primeiras palavras, de fazer o prefácio, mas sabemos da dificuldade de dizer uma palavra primeira. De fato, a escrita dos textos que compõem este volume antecedem cronologicamente as palavras que hoje ensaio. Ocorreu-me então a ideia de fazer neste prefácio uma breve meditação em torno do que significa dar e receber as palavras. Pois se trata, em última instância, de explorar as ressonâncias pedagógicas das palavras que recebemos de Foucault e Deleuze e de compartilhar essas ressonâncias com os leitores. Trata-se de ler e de dar a ler, de pensar e dar a pensar, de se dizer nas palavras de outrem. Proponho então um breve exercício poético que consiste em pensar a relação com as palavras que nos habitam através de uma metáfora viral. Poder-se-ia dizer que a linguagem se comporta como um vírus: retira de uma corrente discursiva uma série de fragmentos e os isola, fazendo deles um vestígio, uma ruína, um resto, que, em seguida, se transforma numa promessa de sentido. Essa promessa invade outros discursos e aí se replica, se traduz, se compõe e recompõe, contaminando o novo discurso e produzindo nele uma mutação. Nessa repetição diferencial (para utilizar uma linguagem deleuziana) ou nessa tradução trans-criativa (para dizê-lo em palavras de Haroldo de Campos) alguma coisa nova é produzida. Na verdade, foi a microbiologia quem primeiro explicou todo o dinamismo viral a partir de metáforas linguísticas, de modo que este exercício que hoje proponho, não é senão a inversão de uma metáfora preexistente. Tomemos, como exemplo, o processo de transcrição genética, que serve como parâmetro para a classificação dos diferentes tipos de vírus: a transcrição é o processo de formação do RNAm mensageiro a partir da cadeia-molde de DNA; este tem como função informar ao RNAt (RNA transportador) a ordem correta dos aminoácidos a serem sintetizados mais tarde em proteínas, através da tradução desse RNA. Este processo de transcrição genética desemboca, em algumas ocasiões, numa mutação. Porém, é importante lembrar que existem mutações maliciosas, que criam desordem e destruição, mas existem também outras, que rapidamente conquistam sua própria validez. Isto acontece tanto no plano biológico quanto linguístico: às vezes, um enunciado se introduz num discurso e produz uma superposição caótica de frases feitas, incapazes de produzir qualquer efeito de sentido, porém, há outras ocasiões em que as mutações se revelam especialmente fecundas. Talvez, o problema não resida tanto no fato de um pensamento ser a deformação ou a transformação de outro, através da infecção de enunciados alheios, quanto no misterioso processo pelo qual a nova enunciação conquista sua própria verdade, crescendo, como uma pérola, em torno da impureza com que foi contaminada. Quando um enunciado é proferido por um indivíduo, numa determinada situação, o sentido se produz como um acontecimento singular, superficial e efêmero; impossível de ser conservado. Daí que os linguistas precisassem distinguir o “enunciado” da “enunciação”: o que se conserva é o enunciado, se conserva na escritura, nas gravações de som e de imagem ou na simples memória (a mesma sequência de letras ou fonemas, na mesma ordem), mas a cada vez que esse enunciado é efetivamente proferido, ele se compõe com uma situação singular, passando a constituir uma enunciação diferente. Imaginemos dois jovens namorados: se um deles disse para o outro, na segunda semana de namoro, “eu te amo”, esse enunciado terá um determinado sentido. Mas, se a mesma pessoa volta a repetir essa frase, depois de quinze anos de casamento, tendo tido dois filhos e passado por inúmeras vicissitudes, então, a mesma frase, “eu te amo”, terá um sentido diferente. Imaginemos ainda que, essa mesma pessoa, já na velhice, dissesse, mais uma vez, diante do túmulo de seu ser amado, “eu te amo”, o mesmo enunciado teria um sentido inteiramente distinto. Tratar-se-ia do mesmo enunciado, porém, de três enunciações diferentes. Na enunciação, o enunciado se mantém unido a uma voz, que faz dele um fenômeno, único e provisório. A voz é o elemento que liga as palavras a um corpo singular e a uma determinada situação. Em todo texto, inclusive no texto escrito, existe uma oralidade (uma voz) que evidencia as marcas do corpo e das circunstâncias dessa enunciação. Ora bem, quando retiramos uma frase do discurso no qual ele se encontra inserido, a privamos da sua 6 oralidade, transformando-a num vestígio de enunciação, num resto, ao qual chamamos de enunciado. O enunciado, da mesma forma que o vírus, não é exatamente um ser vivo, mas um elemento parasito que, só vive na relação com um corpo (uma voz) singular. Por isso, toda repetição implica já uma tradução: a “literalidade” não é senão um caso extremo de tradução, nela um enunciado é repetido sem transformações aparentes (“eu te amo”), no entanto, a mesma frase não possui o mesmo sentido. Algo se transformou; não “o que foi dito”, mas o próprio “dizer”. Entre o enunciado e a enunciação abre-se uma distância ínfima, porém, infinita. Entre a frase que lemos ou escutamos e a que dizemos ou escrevemos há uma distância incomensurável. Sem a experiência dessa distância nenhuma palavra pode ser própria. Sem essa experiência, nenhuma frase tem a força suficiente para constituir uma verdade. Em outras palavras, toda frase é de algum modo falsa quando não temos a voz para dizê-la, quando não nos cabe no corpo, quando não se compõe com uma vida. Agamben chamará de infância à experiência dessa distância que se abre entre o enunciado e o ato performático da enunciação, e a definirá como a impossibilidade de falar a partir de uma língua dada. Eis que nenhuma língua, nenhum conjunto de enunciados, pode nos poupar da fragilidade que sentimos quando temos que sustentar uma palavra. Fazemos experiência dessa in-fância quando habitamos o espaço incerto que se abre entre os enunciados que nos são dados e as enunciações que com eles construímos, quando tomamos consciência de que uma tradição não basta para falar, quando sentimos a profunda orfandade que nos produz o saber que o valor e a beleza das palavras que lemos, não garantem a verdade do que hoje dizemos. O livro que o leitor tem entre as mãos convida a partilhar essa intempérie, pois se trata de retomar uma série de discursos e se deixar contaminar por eles, de fazê-los proliferar nessa caixa de ressonâncias que é nosso corpo e nossa vida. Mas esse convite exigirá do leitor uma escuta especial, uma atenção redobrada, dado que, se é verdade que cada enunciação envolve um sentido que não se desprende do enunciado, então, o fato de ter lido Foucault ou Deleuze, de conhecer seus enunciados, jamais permitirá antecipar o valor e o sentido das enunciações que com eles são feitas. Se 7 a experiência da escrita é sempre arriscada, a experiência da leitura não é menos incerta, pois pressupõe o cultivo de uma ignorância sem a qual não há pensamento possível, uma ignorância nascida da compreensão da supérflua beleza da própria linguagem humana. Maximiliano Valerio López Juiz de Fora, agosto de 2013 8