389 KANT INSERIDO NO DEBATE JUSNATURALISTA MODERNO Rodrigo Luiz Silva e Souza Tumolo1 RESUMO: A minha exposição será dividida em duas partes lógicas: em um primeiro momento, farei uma exposição ampla a título introdutório sobre os principais elementos do jusnaturalismo a fim de pôr o terreno sobre o qual nos moveremos; em um segundo momento, minha abordagem será estritamente kantiana – na qual buscarei apontar os pontos centrais do pensamento político kantiano relativos ao estabelecimento do Estado e depois problematizar algumas regiões especificamente polêmicas na questão do direito. O que exporei aqui é um “tateio” ou sondagem de terreno, portanto de modesta pretensão: o tema do jusnaturalismo é uma pequena parte da pesquisa maior que está em andamento; vi neste encontro a possibilidade de sistematizar em um único texto informações até então bastante esparsas. 1. O JUSNATURALISMO MODERNO: RECUPERANDO PONTOS CENTRAIS O desenvolvimento do jusnaturalismo moderno, conforme aponta Bobbio2, está estritamente ligado ao debate da limitação do poder e da sua justificação, isto é, à preocupação em controlar os excessos do Estado e sua legitimação. Pondo a questão em termos mais técnicos, o campo pelo qual nos movemos agora é o campo do direito político: nos perguntamos pela justificação do direito chamado de positivo. A limitação do poder pode se dar externamente ou internamente ao próprio sistema do poder: a teoria jusnaturalista é um exemplo de freio externo; a teorias da separação de poderes e a democrática são exemplos de freios internos. Os jusnaturalistas acreditavam que o Estado encontra limites em alguns direitos inatos do homem, quero dizer, em direitos que subjazem à própria natureza de ser homem e que, portanto, não podem ser renegados. É dever do Estado respeitá-los e, inclusive, garantilos. Exemplos de freios internos são as teorias de separação dos poderes (na qual os poderes constituídos são independentes e exercem controle um sobre o outro – com a ressalva do legislativo ser geralmente apontado como proeminente frente aos outros 1 2 Mestrando em Filosofia pela USP. E-mail: <[email protected]>. Norberto Bobbio, Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, pp. 24-27. Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 IX Edição (2013) 390 poderes, caso em que cabe aos cidadãos servir-lhe de freios e vigiá-lo); e a teoria democrática (cuja soberania se dilui em todo o povo). Não vale a pena nos perguntarmos sobre quais autores são jusnaturalistas e quais não são, visto que há uma vasta bibliografia divergente entre si e que também não são teorias estanques não miscíveis entre si – Kant, por exemplo, cria seu pensamento político influenciado por todas elas3; Rousseau, expoente maior de uma teoria democrática, por outro lado também dialoga abertamente com a tradição jusnaturalista no seu Contrato Social. O que realmente merece ser dito são os nomes dos principais pensadores envolvidos nesse debate mais amplo a fim de que nos situemos: nomes muito conhecidos que encabeçam as três principais correntes que citei há pouco como Locke e Montesquieu (na separação de poderes), Rousseau (na teoria democrática); Hobbes e também nomes como Grotius, Pufendorf, Thomasius, Achenwall e Wolff (no direito natural) – pensadores talvez hoje menos divulgados, mas que em sua época estabeleceram teorias importantes que influenciaram os demais e com quem percebe-se franco debate. Höffe salienta também outro aspecto interessante para se ter em mente: os pensadores citados se encontram na tradição do Esclarecimento. Outro elemento que gostaria de recuperar nesta rápida introdução é a teoria voluntarista. Se antes apresentei as teorias de limitação do poder, agora pergunto sobre os fundamentos do poder instituído. Talvez a teoria mais amplamente aceita até então na história da humanidade fosse aquela do fundamento teológico do poder, quero dizer, a teoria do direito divino; outra teoria também aceita era a da tradicionalidade do poder instituído. A teoria voluntarista representa, nesse ambiente, uma ruptura importante: não é conclusivo para um voluntarista que fundamento do poder seja divino ou que ele seja tradicional e, sim, que seja baseado em um acordo entre os homens. Os teóricos iniciais desta corrente foram calvinistas ligados à revolução holandesa4. Logicamente, é na teoria voluntarista que se encaixa o pensamento contratualista. Creio que a figura mais central neste ponto seja o jurista alemão Johannes Althusius5, também um calvinista: me refiro à sua obra Politica Methodice Digesta de 1603, revisada em 1610, na qual escreve explicitamente de um contrato (pactum) feito entre as pessoas de maneira que se 3 Otfried Höffe, Immanuel Kant, pp. 228-229. Fato histórico importante foi a revolta holandesa ou “guerra dos 80 anos”, aquela liderada por Guilherme de Orange (e sucessores) de 1568 a 1648 contra a Espanha e a Igreja Católica. Merece ser mencionada pelo significado político do que veio a resultar: a independência dos Países Baixos, que formaram a primeira república europeia em meio aos grandes impérios europeus cuja sustentação teórica do poder real era o direito divino. A República das Sete Províncias Unidas durou de 1581 até a invasão francesa em 1795. Não é de se estranhar, portanto, que o voluntarismo tenha ganhado corpo lá. 4 Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 IX Edição (2013) 391 possibilite a associação (consociatio) e a ele se atribui uma doutrina bastante cara aos jusnaturalistas: a doutrina do duplo contrato. Segundo essa doutrina, a instituição do Estado se dá com dois contratos sucessivos e diferentes, um pacto social (pactum societatis) e um pacto de sujeição (pactum subjectiones), a saber, o pacto social é aquele em que indivíduos que vivem de maneira isolada resolvem instituir uma convivência pacífica entre si – a rigor, diz-se que é o momento em que a multidão passa a se constituir como povo (populus); o pacto de sujeição é aquele em que o povo abre mão de sua potência de agir em favor de outro, que se constituirá como poder supremo e deterá o monopólio da coação sob a condição de salvaguardar a todos alguns direitos como a vida e os bens. O pacto de sujeição é merecedor de um aprofundamento conceitual e explico desde já o porquê: a partir do estudo das vias pela qual se dá a transferência de soberania ou, como me referi há pouco, a transferência da potência de agir torna-se possível pensar uma questão muito interessante – o direito de resistência ou, em termos mais kantianos, a relação entre a legalidade e a revolução. Há duas vias tradicionais de transferência: a que chamarei de “concessão” (concessio imperii) e a que chamarei de “transmissão” (translacio imperii). A concessão corresponde à delegação condicionada, isto é, se o mandatário não cumprir o acordo estabelecido pode ser destituído – cabe a ressalva que não se deve tentar compreender a concessão sucumbindo à tentação de se utilizar um paralelo com Rousseau: a concessão pode ser feita dentro de um sistema monárquico ou aristocrático, nada tem a ver com os magistrados encarregados do governo no Contrato Social daquele. A transmissão é a doutrina que prevê a transferêmcia completa e incondicional da soberania no contrato dos contratantes ao contratado, do todo que abre mão para o outro que a recebe: é neste campo que estão concentrados autores tão díspares como Hobbes (que defende a transmissão voluntária e contratual completa para um monarca e, portanto, um Estado absolutista) e Rousseau (que defende a completa alienação de tudo e de todos para com todos e, portanto, um Estado democrático); Kant, por sua vez, também pode ser inserido aqui. Por ser uma transmissão completa e irrestrita, todos os autores têm em comum também a dificuldade de aceitar o direito de resistência e/ou a revolução. À luz desses dados, desvelam-se mais alguns elementos importantes na reflexão jusnaturalista: a tensão relativa à liberdade e a passagem do estado de natureza para o estado civil. Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 IX Edição (2013) 392 Com tensão relativa à liberdade quero me referir ao difícil equilíbrio entre conservar a liberdade dos indivíduos frente ao poder instituído. Há dois extremos: quanto mais liberdade individual menor o poder do Estado, quanto maior o poder do Estado menor a liberdade individual. Vê-se, pois, que o conceito de liberdade é central no debate político moderno. Abrem-se três possibilidades de constituição de Estados: o absoluto (maior poder estatal e menor liberdade dos súditos – como o descrito por Hobbes), o democrático (maior liberdade político-civil e menor poder a ser delegado aos magistrados que formarão o governo – como o descrito por Rousseau) e o liberal (aquele que põe “in thesis” a soberania no povo mas limita esse povo em critérios como propriedade ou, no sentido geral mais aceito, que entende liberdade unicamente no sentido negativo: liberdade é a menor ingerência do Estado na vida do indivíduo e ser livre é fazer tudo aquilo que as leis não proíbam de ser feito – os principais liberais seriam Milton, Locke e Montesquieu). O estado de natureza é geralmente definido como um estado originário no qual os indivíduos viviam dispersos ou em pequenos grupos (sem constituir povo) sendo cada um o juiz e executor mais capacitado e indicado nas questões que envolviam seus próprios interesses. Era tido confessamente um recurso hipotético. A descrição mais usual do estado de natureza é como sendo marcado pela animosidade e insegurança. Talvez até pelo caráter hipotético do estado de natureza, tem-se a tendência a pensar o estado civil como seu total contraste – o que não é completamente válido. De qualquer maneira, é ponto pacífico que o estado civil é aquele estado convencional (no sentido de "artificial", apoiado em leis externas fruto de criação humana). 2. INSERINDO KANT NO DEBATE JUSNATURALISTA É sempre controverso delimitar fronteiras, por isso proponho desde já deixarmos de lado a tentação da pergunta “Kant é jusnaturalista?” para nos atermos ao fato que Kant, ao menos, dialoga abertamente com o pensamento jusnaturalista moderno. A título de ilustração de como seria improdutivo ceder à tentação de delimitar claramente a posição kantiana, Bobbio afirma no seu Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant que “Rousseau pode ser considerado o último jusnaturalista”6 e o 6 Cf. Norberto Bobbio, Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, p. 70. Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 IX Edição (2013) 393 mesmo autor em seu outro livro Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna7 traz incontroversamente Kant ligado à escola jusnaturalista. Creio ser oportuno algumas palavras sobre o pensamento político kantiano antes de nos debruçarmos em uma análise mais fechada de pontos específicos. Começo então por uma breve periodização despretensiosa da evolução dos temas políticos em Kant: seus grandes trabalhos políticos datam a maioria da década de 1790 (como a “Metafísica dos Costumes”, “À paz perpétua”, “Sobre a expressão corrente: isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática”, “A religião nos limites da simples razão” e o “Conflito das Faculdades”); de fora desse período, na década de 1780 vieram a público o “Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita” e “O que é o Esclarecimento?”. É enganoso pensar que os temas políticos não interessaram a Kant antes de sua velhice: pelo contrário, na década de 1760 Kant se mostrava bastante interessado em conhecer o debate que se desenvolvia proficuamente especialmente entre os filósofos-juristas alemães, na França e na Inglaterra. Trabalhos embora menos conhecidos, dão um rico testemunho desse interesse os Comentários (“Bemerkungen”) e as Reflexões (“Reflexionen”), ambos da década de 1760. Há, inclusive, que se reconhecer que também é ponto pacífico entre os comentadores que por volta dessa mesma época, Kant tomou contato e deixou-se influenciar grandemente por duas obras de Rousseau: O Contrato Social e o Emílio8. Kant demorará para se descolar do mesmo entendimento que faz Rousseau de conceitos centrais daquele (como o estado de natureza) e criar uma filosofia com caráter mais autoral. Höffe nota que Kant não se notabilizou em seu tempo por seu pensamento político, sendo mais lembrado por seu trabalho epistemológico e no campo da moral: a prova disso é que a tradição salta pela Rechtslehere kantiana para jogar luzes na hegeliana. Tendo procedido a um exaustivo estudo na tentativa de periodizar o pensamento político kantiano, Ritter9 refaz a crítica que resume bem a impressão geral que vigorava sobre a política kantiana: a Doutrina do Direito (e o pensamento político kantiano de maneira geral) é fraca porque Kant permanece preso demais ao direito natural metafísico e, principalmente, por não proceder criticamente como na razão teórica e na moral. 7 Cf. Norberto Bobbio e Michelangelo Bovero, Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna, pp. 13-17. 8 Ambas as obras de Rousseau datam de 1762. 9 Christian Ritter, Der Rechtsgedanke Kants nach den frühen Quellen. Cf. também os comentários acerca do estudo de Ritter feitos de maneira breve por Otfried Höffe em Immanuel Kant, pp. 229-230 e de maneira mais rica por Ricardo Terra em A política tensa, pp. 29-30 (nota de rodapé 12). Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 IX Edição (2013) 394 Apesar de eu ter falado dos Comentários e nas Reflexões, o Kant a que me referirei aqui é aquele maduro das décadas de 1780/90. O caminho que espero percorrer é o seguinte: expor a concepção de estado de natureza kantiano e do contrato, chamando a atenção para sua especificidade como ideia; a partir da posse do conceito de ideia, expor o papel singular do contrato no pensamento kantiano e, enfim, como a noção central de liberdade em Kant muda originalmente os termos da questão do estabelecimento do Estado (polarizando a discussão no Direito). 2.1. O ESTABELECIMENTO DO ESTADO: ESTADO NATURAL, CONTRATO, IDEIA E NATURRECHT Kant reestrutura o problema do estabelecimento do Estado de modo que, em sua doutrina, o direito ganha um destaque logo de saída que não tivera até então nos autores clássicos jusnaturalistas (como Hobbes ou Rousseau). Essa mudança pode ser percebida a seguir, agora que trataremos do estado de natureza e o contrato. O estado de natureza é apresentado na Teoria e Prática como “o estado de uma plena ausência de leis, onde todo o direito cessa ou, pelo menos, deixa de ter efeito”10, na Paz Perpétua como “um estado de guerra, isto é, um estado em que, embora não exista sempre uma explosão das hostilidades, há sempre, no entanto, uma ameaça constante”11. Essas definições contrastam com a teoria apresentada na Metafísica dos Costumes: na introdução à Doutrina do Direito contida nesta, Kant destaca que o objeto do presente estudo será o direito natural, estabelecendo uma distinção entre direito positivo e direito natural. Cabe ao direito natural a posição de fundamentação racional ao direito positivo, isto é, o papel de padrão de medida: se ao direito positivo a pergunta “o que é de direito?” receberá uma resposta elaborada a partir das leis existentes, a mesma pergunta ao direito natural é entendida como “o que é justo e o que é injusto?”. Para dar o passo seguinte em minha argumentação, é necessário introduzir o conceito de ideia. Ainda no escrito Teoria e Prática, pode-se ler sobre o contrato originário: “este contrato [...] não se deve de modo algum pressupor necessariamente como um facto (e nem sequer é possível pressupô-lo); [...] mas é uma simples ideia da razão”12. Há quase sete anos antes tinha vindo a público sua segunda edição da Crítica da Razão Pura, o que torna razoável supormos que ele estaria fazendo um uso seguro 10 Teoria e Prática, A259. À paz perpétua, B18. 12 Teoria e Prática, A249 (grifos do autor) Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 IX Edição (2013) 11 395 do conceito de ideia: Ricardo Terra13 nos esclarece que Kant buscou inspiração em Platão para definir o que seja ideia – um conceito puro do entendimento juntamente com as categorias, mas enquanto estas são condição de possibilidade da experiência, a ideia pode nunca encontrar um referencial empírico e não há nenhum problema com isso. A função da ideia é, então, reguladora, quero dizer, pode-se servir-se dela como uma métrica ou prumo; não exatamente como constitutiva do conhecimento. Nos primeiros escritos que citei, estado de natureza era um estado selvagem sem leis. Na Metafísica dos Costumes, uma análise mais acurada mostra uma mudança de posição: existem, sim, leis no estado de natureza, a grande diferença é que essas leis não são externas garantidas por instituições públicas. No original em alemão é possível distinguir três conceitos contidos na Metafísica e dois deles são de tradução problemática (porque podem ser traduzidos da mesma maneira – se não forem tomadas as devidas cautelas): Kant fala em um Naturrecht, que corresponde ao direito natural enquanto ideia; um natürliche Recht, que é o que reconhece como “direito privado” na medida em que vige no estado de natureza e, sendo assim, não tem a garantia de instituições públicas e o caráter coercitivo do öffentliche Recht – o “direito público”, quero dizer, aquele garantido por instituições públicas que garantem o caráter coercitivo. É possível o entendimento que a religião ou mesmo acordos entre indivíduos façam lei do ponto de vista social, de modo que Kant parece recuar da posição que o estado natural não tenha leis: seria mais adequado dizer que não tenha leis externas garantidas publicamente. Naturrecht e natürliche Recht aceitam a tradução em comum de “direito natural” e podem conduzir a erro – ao mesmo erro que cometeu o jurista francês Michel Villey na sua introdução à Metafísica dos Costumes da edição francesa da Vrin, a saber: de ligar o conceito de sociedade ao estado civil unicamente e tomar o “direito natural” a que Kant se refere como se fosse um único (aquele que aqui nomeamos de direito privado). Ignorando o direito natural enquanto ideia e, portanto, como fundamentador ou padrão de medida para o direito positivo, Villey projeta um Kant “positivista-legalista”: o oposto do que aponta o espírito da obra kantiana, pois o positivista-legalista toma os textos jurídicos, somente eles, como suficientes em si mesmos para pensar o Direito14. 13 Ricardo Terra, A política tensa, pp. 15-25. Cf. Soraya Nour, À paz perpétua de Kant, pp. 3-7: neste trecho pode-se encontrar parte da tradução de Villey e os valiosos comentários da autora sobre a questão da tradução. Ainda sobre o assunto do direito natural como fundamento do direito positivo, Höffe (Immanuel Kant, pp. 233-243) utiliza-se da expressão “conceito racional do Direito” para dizer algo muito semelhante ao que expus aqui. Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 IX Edição (2013) 14 396 Uma vez que estamos falando de ideia, voltemos ao contrato originário. Li há pouco um trecho da Teoria e Prática, em que Kant afirmava que o contrato não se tratava de um fato e sim de uma ideia. Outro trecho do mesmo livro apresentará a “pedra de toque” de toda a legislação pública: “[o contrato] obriga todo o legislador a fornecer as suas leis como se elas pudessem emanar da vontade colectiva de um povo inteiro. [...] É esta, com efeito, a pedra de toque da legitimidade de toda a lei pública”15. Este me parece ser o ponto crucial e original que diferencia Kant de outros jusnaturalistas: enquanto ideia, o contrato simula um plebiscito democrático que legitima qualquer governante (não democráticos incluídos). Isto é, qualquer governante pode fazer leis justas e incontestáveis16. Entre a total rendição dos súditos em Hobbes e a total democracia em Rousseau, Kant escolheu o caminho do meio: o respeito à universalidade contida na vontade geral pode garantir que um governante déspota crie leis justas e de acordo com a autonomia de cada um dos seus cidadãos – por mais indigesto que possa soar em um primeiro momento, se tivéssemos mais tempo e pudéssemos analisar na Fundamentação da Metafísica dos Costumes os conceitos de autonomia e reinos dos fins perceberíamos facilmente, enfim, como a argumentação kantiana se pauta toda sobre a razão (que é universal e universalizante). Como nota Höffe17, “Kant fundamenta Direito e Estado a partir de princípios de uma razão (jurídico-)prática pura. Sua filosofia política pertence ao direito natural no sentido de um direito racional crítico” e a darmos crédito a Bobbio é por conta de Hegel que tradicionalmente, quando se fala em direito racional, costuma-se referir estritamente à doutrina kantiana18. 3. ÚLTIMAS PALAVRAS Espero ter logrado êxito em demonstrar uma aproximação ou talvez até mesmo filição kantiana ao debate jusnaturalista, pois não encontrei farta bibliografia de estudos específicos nesse sentido escrita por filósofos e não juristas. 15 Teoria e prática, A250. Wolfgang Kersting, "Politics, freedom and order: Kant’s political philosophy" in: Paul Guyer (org.), Cambridge Companion to Kant, p 355: “But what is decisive - and here is the difference between Kant's political philosophy and the politicoethical conception of ‘discourse ethics’ that it has inspired in Jürgen Habermas and Karl-Otto Apel - is that for Kant this procedure of a genesis through a democratic plebiscite can be simulated and replaced by the thought-experiment of universalizability. By this means Kant makes it possible for nondemocratic rulers to provide just laws without having to give up power.” 17 Otfried Höffe, Immanuel Kant, p. 233 18 Norberto Bobbio e Michelangelo Bovero, Sociedade e Estado na Filosofia Política moderna, p. 16. Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 IX Edição (2013) 16 397 BIBLIOGRAFIA: PRIMÁRIAS KANT, I. “À paz perpétua”. In: ______. A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70. ______. Crítica da Razão Pura. Petrópolis: Vozes, 2012. ______. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Barcarola, 2010. ______. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo: Martins Fontes, 2011. ______. Metafísica dos Costumes. Petrópolis: Vozes, 2013. ______. “Sobre a expressão corrente: isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática”. In: KANT, I. ______. A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70. SECUNDÁRIAS BOBBIO, N. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. São Paulo: Mandarim, 2000. BOVERO, M. Sociedade e Estado na Filosofia Política moderna. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1996. HÖFFE, O. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005. KERSTING, W. "Politics, freedom and order: Kant’s political philosophy". In: GUYER, P. (org.) Cambridge Companion to Kant. Cambridge: CUP, 1995. NOUR, S. À paz perpétua de Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2004. TERRA, R. A política tensa. In: ______. Ideia e realidade na Filosofia da História de Kant. São Paulo: Iluminuras, 1995. _______. Passagens. In: ______. Estudos sobre a filosofia de Kant. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2003. RITTER, C. Der Rechtsgedanke Kants nach den frühen Quellen. Frankfurt: Klostermann, 1971. Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 IX Edição (2013)