Rodrigo Luiz Silva e Souza Tumolo: Kant inserido no

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KANT INSERIDO NO DEBATE JUSNATURALISTA MODERNO
Rodrigo Luiz Silva e Souza Tumolo1
RESUMO: A minha exposição será dividida em duas partes lógicas: em um primeiro
momento, farei uma exposição ampla a título introdutório sobre os principais elementos
do jusnaturalismo a fim de pôr o terreno sobre o qual nos moveremos; em um segundo
momento, minha abordagem será estritamente kantiana – na qual buscarei apontar os
pontos centrais do pensamento político kantiano relativos ao estabelecimento do Estado
e depois problematizar algumas regiões especificamente polêmicas na questão do
direito. O que exporei aqui é um “tateio” ou sondagem de terreno, portanto de modesta
pretensão: o tema do jusnaturalismo é uma pequena parte da pesquisa maior que está em
andamento; vi neste encontro a possibilidade de sistematizar em um único texto
informações até então bastante esparsas.
1. O JUSNATURALISMO MODERNO: RECUPERANDO PONTOS CENTRAIS
O desenvolvimento do jusnaturalismo moderno, conforme aponta Bobbio2, está
estritamente ligado ao debate da limitação do poder e da sua justificação, isto é, à
preocupação em controlar os excessos do Estado e sua legitimação. Pondo a questão em
termos mais técnicos, o campo pelo qual nos movemos agora é o campo do direito
político: nos perguntamos pela justificação do direito chamado de positivo.
A limitação do poder pode se dar externamente ou internamente ao próprio
sistema do poder: a teoria jusnaturalista é um exemplo de freio externo; a teorias da
separação de poderes e a democrática são exemplos de freios internos. Os
jusnaturalistas acreditavam que o Estado encontra limites em alguns direitos inatos do
homem, quero dizer, em direitos que subjazem à própria natureza de ser homem e que,
portanto, não podem ser renegados. É dever do Estado respeitá-los e, inclusive, garantilos. Exemplos de freios internos são as teorias de separação dos poderes (na qual os
poderes constituídos são independentes e exercem controle um sobre o outro – com a
ressalva do legislativo ser geralmente apontado como proeminente frente aos outros
1
2
Mestrando em Filosofia pela USP. E-mail: <[email protected]>.
Norberto Bobbio, Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, pp. 24-27.
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poderes, caso em que cabe aos cidadãos servir-lhe de freios e vigiá-lo); e a teoria
democrática (cuja soberania se dilui em todo o povo).
Não vale a pena nos perguntarmos sobre quais autores são jusnaturalistas e
quais não são, visto que há uma vasta bibliografia divergente entre si e que também não
são teorias estanques não miscíveis entre si – Kant, por exemplo, cria seu pensamento
político influenciado por todas elas3; Rousseau, expoente maior de uma teoria
democrática, por outro lado também dialoga abertamente com a tradição jusnaturalista
no seu Contrato Social. O que realmente merece ser dito são os nomes dos principais
pensadores envolvidos nesse debate mais amplo a fim de que nos situemos: nomes
muito conhecidos que encabeçam as três principais correntes que citei há pouco como
Locke e Montesquieu (na separação de poderes), Rousseau (na teoria democrática);
Hobbes e também nomes como Grotius, Pufendorf, Thomasius, Achenwall e Wolff (no
direito natural) – pensadores talvez hoje menos divulgados, mas que em sua época
estabeleceram teorias importantes que influenciaram os demais e com quem percebe-se
franco debate. Höffe salienta também outro aspecto interessante para se ter em mente:
os pensadores citados se encontram na tradição do Esclarecimento.
Outro elemento que gostaria de recuperar nesta rápida introdução é a teoria
voluntarista. Se antes apresentei as teorias de limitação do poder, agora pergunto sobre
os fundamentos do poder instituído. Talvez a teoria mais amplamente aceita até então na
história da humanidade fosse aquela do fundamento teológico do poder, quero dizer, a
teoria do direito divino; outra teoria também aceita era a da tradicionalidade do poder
instituído. A teoria voluntarista representa, nesse ambiente, uma ruptura importante: não
é conclusivo para um voluntarista que fundamento do poder seja divino ou que ele seja
tradicional e, sim, que seja baseado em um acordo entre os homens. Os teóricos iniciais
desta corrente foram calvinistas ligados à revolução holandesa4. Logicamente, é na
teoria voluntarista que se encaixa o pensamento contratualista. Creio que a figura mais
central neste ponto seja o jurista alemão Johannes Althusius5, também um calvinista: me
refiro à sua obra Politica Methodice Digesta de 1603, revisada em 1610, na qual escreve
explicitamente de um contrato (pactum) feito entre as pessoas de maneira que se
3
Otfried Höffe, Immanuel Kant, pp. 228-229.
Fato histórico importante foi a revolta holandesa ou “guerra dos 80 anos”, aquela liderada por
Guilherme de Orange (e sucessores) de 1568 a 1648 contra a Espanha e a Igreja Católica. Merece ser
mencionada pelo significado político do que veio a resultar: a independência dos Países Baixos, que
formaram a primeira república europeia em meio aos grandes impérios europeus cuja sustentação teórica
do poder real era o direito divino. A República das Sete Províncias Unidas durou de 1581 até a invasão
francesa em 1795. Não é de se estranhar, portanto, que o voluntarismo tenha ganhado corpo lá.
4
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possibilite a associação (consociatio) e a ele se atribui uma doutrina bastante cara aos
jusnaturalistas: a doutrina do duplo contrato. Segundo essa doutrina, a instituição do
Estado se dá com dois contratos sucessivos e diferentes, um pacto social (pactum
societatis) e um pacto de sujeição (pactum subjectiones), a saber, o pacto social é aquele
em que indivíduos que vivem de maneira isolada resolvem instituir uma convivência
pacífica entre si – a rigor, diz-se que é o momento em que a multidão passa a se
constituir como povo (populus); o pacto de sujeição é aquele em que o povo abre mão
de sua potência de agir em favor de outro, que se constituirá como poder supremo e
deterá o monopólio da coação sob a condição de salvaguardar a todos alguns direitos
como a vida e os bens.
O pacto de sujeição é merecedor de um aprofundamento conceitual e explico
desde já o porquê: a partir do estudo das vias pela qual se dá a transferência de
soberania ou, como me referi há pouco, a transferência da potência de agir torna-se
possível pensar uma questão muito interessante – o direito de resistência ou, em termos
mais kantianos, a relação entre a legalidade e a revolução. Há duas vias tradicionais de
transferência: a que chamarei de “concessão” (concessio imperii) e a que chamarei de
“transmissão” (translacio imperii). A concessão corresponde à delegação condicionada,
isto é, se o mandatário não cumprir o acordo estabelecido pode ser destituído – cabe a
ressalva que não se deve tentar compreender a concessão sucumbindo à tentação de se
utilizar um paralelo com Rousseau: a concessão pode ser feita dentro de um sistema
monárquico ou aristocrático, nada tem a ver com os magistrados encarregados do
governo no Contrato Social daquele. A transmissão é a doutrina que prevê a
transferêmcia completa e incondicional da soberania no contrato dos contratantes ao
contratado, do todo que abre mão para o outro que a recebe: é neste campo que estão
concentrados autores tão díspares como Hobbes (que defende a transmissão voluntária e
contratual completa para um monarca e, portanto, um Estado absolutista) e Rousseau
(que defende a completa alienação de tudo e de todos para com todos e, portanto, um
Estado democrático); Kant, por sua vez, também pode ser inserido aqui. Por ser uma
transmissão completa e irrestrita, todos os autores têm em comum também a dificuldade
de aceitar o direito de resistência e/ou a revolução.
À luz desses dados, desvelam-se mais alguns elementos importantes na
reflexão jusnaturalista: a tensão relativa à liberdade e a passagem do estado de natureza
para o estado civil.
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Com tensão relativa à liberdade quero me referir ao difícil equilíbrio entre
conservar a liberdade dos indivíduos frente ao poder instituído. Há dois extremos:
quanto mais liberdade individual menor o poder do Estado, quanto maior o poder do
Estado menor a liberdade individual. Vê-se, pois, que o conceito de liberdade é central
no debate político moderno. Abrem-se três possibilidades de constituição de Estados: o
absoluto (maior poder estatal e menor liberdade dos súditos – como o descrito por
Hobbes), o democrático (maior liberdade político-civil e menor poder a ser delegado
aos magistrados que formarão o governo – como o descrito por Rousseau) e o liberal
(aquele que põe “in thesis” a soberania no povo mas limita esse povo em critérios como
propriedade ou, no sentido geral mais aceito, que entende liberdade unicamente no
sentido negativo: liberdade é a menor ingerência do Estado na vida do indivíduo e ser
livre é fazer tudo aquilo que as leis não proíbam de ser feito – os principais liberais
seriam Milton, Locke e Montesquieu).
O estado de natureza é geralmente definido como um estado originário no qual
os indivíduos viviam dispersos ou em pequenos grupos (sem constituir povo) sendo
cada um o juiz e executor mais capacitado e indicado nas questões que envolviam seus
próprios interesses. Era tido confessamente um recurso hipotético. A descrição mais
usual do estado de natureza é como sendo marcado pela animosidade e insegurança.
Talvez até pelo caráter hipotético do estado de natureza, tem-se a tendência a pensar o
estado civil como seu total contraste – o que não é completamente válido. De qualquer
maneira, é ponto pacífico que o estado civil é aquele estado convencional (no sentido de
"artificial", apoiado em leis externas fruto de criação humana).
2. INSERINDO KANT NO DEBATE JUSNATURALISTA
É sempre controverso delimitar fronteiras, por isso proponho desde já
deixarmos de lado a tentação da pergunta “Kant é jusnaturalista?” para nos atermos ao
fato que Kant, ao menos, dialoga abertamente com o pensamento jusnaturalista
moderno. A título de ilustração de como seria improdutivo ceder à tentação de delimitar
claramente a posição kantiana, Bobbio afirma no seu Direito e Estado no pensamento
de Emanuel Kant que “Rousseau pode ser considerado o último jusnaturalista”6 e o
6
Cf. Norberto Bobbio, Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, p. 70.
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mesmo autor em seu outro livro Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna7 traz
incontroversamente Kant ligado à escola jusnaturalista.
Creio ser oportuno algumas palavras sobre o pensamento político kantiano
antes de nos debruçarmos em uma análise mais fechada de pontos específicos. Começo
então por uma breve periodização despretensiosa da evolução dos temas políticos em
Kant: seus grandes trabalhos políticos datam a maioria da década de 1790 (como a
“Metafísica dos Costumes”, “À paz perpétua”, “Sobre a expressão corrente: isto pode
ser correto na teoria, mas nada vale na prática”, “A religião nos limites da simples
razão” e o “Conflito das Faculdades”); de fora desse período, na década de 1780 vieram
a público o “Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita” e “O
que é o Esclarecimento?”. É enganoso pensar que os temas políticos não interessaram a
Kant antes de sua velhice: pelo contrário, na década de 1760 Kant se mostrava bastante
interessado em conhecer o debate que se desenvolvia proficuamente especialmente entre
os filósofos-juristas alemães, na França e na Inglaterra. Trabalhos embora menos
conhecidos, dão um rico testemunho desse interesse os Comentários (“Bemerkungen”)
e as Reflexões (“Reflexionen”), ambos da década de 1760. Há, inclusive, que se
reconhecer que também é ponto pacífico entre os comentadores que por volta dessa
mesma época, Kant tomou contato e deixou-se influenciar grandemente por duas obras
de Rousseau: O Contrato Social e o Emílio8. Kant demorará para se descolar do mesmo
entendimento que faz Rousseau de conceitos centrais daquele (como o estado de
natureza) e criar uma filosofia com caráter mais autoral. Höffe nota que Kant não se
notabilizou em seu tempo por seu pensamento político, sendo mais lembrado por seu
trabalho epistemológico e no campo da moral: a prova disso é que a tradição salta pela
Rechtslehere kantiana para jogar luzes na hegeliana. Tendo procedido a um exaustivo
estudo na tentativa de periodizar o pensamento político kantiano, Ritter9 refaz a crítica
que resume bem a impressão geral que vigorava sobre a política kantiana: a Doutrina do
Direito (e o pensamento político kantiano de maneira geral) é fraca porque Kant
permanece preso demais ao direito natural metafísico e, principalmente, por não
proceder criticamente como na razão teórica e na moral.
7
Cf. Norberto Bobbio e Michelangelo Bovero, Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna, pp.
13-17.
8
Ambas as obras de Rousseau datam de 1762.
9
Christian Ritter, Der Rechtsgedanke Kants nach den frühen Quellen. Cf. também os comentários acerca
do estudo de Ritter feitos de maneira breve por Otfried Höffe em Immanuel Kant, pp. 229-230 e de
maneira mais rica por Ricardo Terra em A política tensa, pp. 29-30 (nota de rodapé 12).
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Apesar de eu ter falado dos Comentários e nas Reflexões, o Kant a que me
referirei aqui é aquele maduro das décadas de 1780/90. O caminho que espero percorrer
é o seguinte: expor a concepção de estado de natureza kantiano e do contrato, chamando
a atenção para sua especificidade como ideia; a partir da posse do conceito de ideia,
expor o papel singular do contrato no pensamento kantiano e, enfim, como a noção
central de liberdade em Kant muda originalmente os termos da questão do
estabelecimento do Estado (polarizando a discussão no Direito).
2.1. O
ESTABELECIMENTO DO
ESTADO:
ESTADO NATURAL, CONTRATO, IDEIA E
NATURRECHT
Kant reestrutura o problema do estabelecimento do Estado de modo que, em sua
doutrina, o direito ganha um destaque logo de saída que não tivera até então nos autores
clássicos jusnaturalistas (como Hobbes ou Rousseau). Essa mudança pode ser percebida
a seguir, agora que trataremos do estado de natureza e o contrato.
O estado de natureza é apresentado na Teoria e Prática como “o estado de uma
plena ausência de leis, onde todo o direito cessa ou, pelo menos, deixa de ter efeito”10,
na Paz Perpétua como “um estado de guerra, isto é, um estado em que, embora não
exista sempre uma explosão das hostilidades, há sempre, no entanto, uma ameaça
constante”11. Essas definições contrastam com a teoria apresentada na Metafísica dos
Costumes: na introdução à Doutrina do Direito contida nesta, Kant destaca que o objeto
do presente estudo será o direito natural, estabelecendo uma distinção entre direito
positivo e direito natural. Cabe ao direito natural a posição de fundamentação racional
ao direito positivo, isto é, o papel de padrão de medida: se ao direito positivo a pergunta
“o que é de direito?” receberá uma resposta elaborada a partir das leis existentes, a
mesma pergunta ao direito natural é entendida como “o que é justo e o que é injusto?”.
Para dar o passo seguinte em minha argumentação, é necessário introduzir o
conceito de ideia. Ainda no escrito Teoria e Prática, pode-se ler sobre o contrato
originário: “este contrato [...] não se deve de modo algum pressupor necessariamente
como um facto (e nem sequer é possível pressupô-lo); [...] mas é uma simples ideia da
razão”12. Há quase sete anos antes tinha vindo a público sua segunda edição da Crítica
da Razão Pura, o que torna razoável supormos que ele estaria fazendo um uso seguro
10
Teoria e Prática, A259.
À paz perpétua, B18.
12
Teoria e Prática, A249 (grifos do autor)
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do conceito de ideia: Ricardo Terra13 nos esclarece que Kant buscou inspiração em
Platão para definir o que seja ideia – um conceito puro do entendimento juntamente com
as categorias, mas enquanto estas são condição de possibilidade da experiência, a ideia
pode nunca encontrar um referencial empírico e não há nenhum problema com isso. A
função da ideia é, então, reguladora, quero dizer, pode-se servir-se dela como uma
métrica ou prumo; não exatamente como constitutiva do conhecimento.
Nos primeiros escritos que citei, estado de natureza era um estado selvagem
sem leis. Na Metafísica dos Costumes, uma análise mais acurada mostra uma mudança
de posição: existem, sim, leis no estado de natureza, a grande diferença é que essas leis
não são externas garantidas por instituições públicas. No original em alemão é possível
distinguir três conceitos contidos na Metafísica e dois deles são de tradução
problemática (porque podem ser traduzidos da mesma maneira – se não forem tomadas
as devidas cautelas): Kant fala em um Naturrecht, que corresponde ao direito natural
enquanto ideia; um natürliche Recht, que é o que reconhece como “direito privado” na
medida em que vige no estado de natureza e, sendo assim, não tem a garantia de
instituições públicas e o caráter coercitivo do öffentliche Recht – o “direito público”,
quero dizer, aquele garantido por instituições públicas que garantem o caráter
coercitivo. É possível o entendimento que a religião ou mesmo acordos entre indivíduos
façam lei do ponto de vista social, de modo que Kant parece recuar da posição que o
estado natural não tenha leis: seria mais adequado dizer que não tenha leis externas
garantidas publicamente. Naturrecht e natürliche Recht aceitam a tradução em comum
de “direito natural” e podem conduzir a erro – ao mesmo erro que cometeu o jurista
francês Michel Villey na sua introdução à Metafísica dos Costumes da edição francesa
da Vrin, a saber: de ligar o conceito de sociedade ao estado civil unicamente e tomar o
“direito natural” a que Kant se refere como se fosse um único (aquele que aqui
nomeamos de direito privado). Ignorando o direito natural enquanto ideia e, portanto,
como fundamentador ou padrão de medida para o direito positivo, Villey projeta um
Kant “positivista-legalista”: o oposto do que aponta o espírito da obra kantiana, pois o
positivista-legalista toma os textos jurídicos, somente eles, como suficientes em si
mesmos para pensar o Direito14.
13
Ricardo Terra, A política tensa, pp. 15-25.
Cf. Soraya Nour, À paz perpétua de Kant, pp. 3-7: neste trecho pode-se encontrar parte da tradução de
Villey e os valiosos comentários da autora sobre a questão da tradução. Ainda sobre o assunto do direito
natural como fundamento do direito positivo, Höffe (Immanuel Kant, pp. 233-243) utiliza-se da expressão
“conceito racional do Direito” para dizer algo muito semelhante ao que expus aqui.
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Uma vez que estamos falando de ideia, voltemos ao contrato originário. Li há
pouco um trecho da Teoria e Prática, em que Kant afirmava que o contrato não se
tratava de um fato e sim de uma ideia. Outro trecho do mesmo livro apresentará a
“pedra de toque” de toda a legislação pública: “[o contrato] obriga todo o legislador a
fornecer as suas leis como se elas pudessem emanar da vontade colectiva de um povo
inteiro. [...] É esta, com efeito, a pedra de toque da legitimidade de toda a lei pública”15.
Este me parece ser o ponto crucial e original que diferencia Kant de outros
jusnaturalistas: enquanto ideia, o contrato simula um plebiscito democrático que
legitima qualquer governante (não democráticos incluídos). Isto é, qualquer governante
pode fazer leis justas e incontestáveis16. Entre a total rendição dos súditos em Hobbes e
a total democracia em Rousseau, Kant escolheu o caminho do meio: o respeito à
universalidade contida na vontade geral pode garantir que um governante déspota crie
leis justas e de acordo com a autonomia de cada um dos seus cidadãos – por mais
indigesto que possa soar em um primeiro momento, se tivéssemos mais tempo e
pudéssemos analisar na Fundamentação da Metafísica dos Costumes os conceitos de
autonomia e reinos dos fins perceberíamos facilmente, enfim, como a argumentação
kantiana se pauta toda sobre a razão (que é universal e universalizante).
Como nota Höffe17, “Kant fundamenta Direito e Estado a partir de princípios
de uma razão (jurídico-)prática pura. Sua filosofia política pertence ao direito natural no
sentido de um direito racional crítico” e a darmos crédito a Bobbio é por conta de Hegel
que tradicionalmente, quando se fala em direito racional, costuma-se referir
estritamente à doutrina kantiana18.
3. ÚLTIMAS PALAVRAS
Espero ter logrado êxito em demonstrar uma aproximação ou talvez até mesmo
filição kantiana ao debate jusnaturalista, pois não encontrei farta bibliografia de estudos
específicos nesse sentido escrita por filósofos e não juristas.
15
Teoria e prática, A250.
Wolfgang Kersting, "Politics, freedom and order: Kant’s political philosophy" in: Paul Guyer (org.),
Cambridge Companion to Kant, p 355: “But what is decisive - and here is the difference between Kant's
political philosophy and the politicoethical conception of ‘discourse ethics’ that it has inspired in Jürgen
Habermas and Karl-Otto Apel - is that for Kant this procedure of a genesis through a democratic
plebiscite can be simulated and replaced by the thought-experiment of universalizability. By this means
Kant makes it possible for nondemocratic rulers to provide just laws without having to give up power.”
17
Otfried Höffe, Immanuel Kant, p. 233
18
Norberto Bobbio e Michelangelo Bovero, Sociedade e Estado na Filosofia Política moderna, p. 16.
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BIBLIOGRAFIA:
PRIMÁRIAS
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______. Crítica da Razão Pura. Petrópolis: Vozes, 2012.
______. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Barcarola, 2010.
______. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo:
Martins Fontes, 2011.
______. Metafísica dos Costumes. Petrópolis: Vozes, 2013.
______. “Sobre a expressão corrente: isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na
prática”. In: KANT, I. ______. A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições
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SECUNDÁRIAS
BOBBIO, N. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. São Paulo: Mandarim,
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BOVERO, M. Sociedade e Estado na Filosofia Política moderna. 4ª ed. São Paulo:
Brasiliense, 1996.
HÖFFE, O. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
KERSTING, W. "Politics, freedom and order: Kant’s political philosophy". In:
GUYER, P. (org.) Cambridge Companion to Kant. Cambridge: CUP, 1995.
NOUR, S. À paz perpétua de Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
TERRA, R. A política tensa. In: ______. Ideia e realidade na Filosofia da História de
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_______. Passagens. In: ______. Estudos sobre a filosofia de Kant. Rio de Janeiro:
Editora da UFRJ, 2003.
RITTER, C. Der Rechtsgedanke Kants nach den frühen Quellen. Frankfurt:
Klostermann, 1971.
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